Tag: David Lowery

  • Crítica | Sombras da Vida

    Crítica | Sombras da Vida

    Apesar do terrível nome brasileiro – A Ghost Story, no original – Sombras da Vida é um longa que captura demais a atenção do espectador, ainda mais ávido por boas historias. O longa de David Lowery infelizmente não chegou aos cinemas brasileiros, mas é um belo exemplar de filme intimista e com muito a se discutir.

    O diretor de Amor Fora da Lei e do recente Meu Amigo Dragão traz a história de um ser que não consegue fazer a passagem para o outro mundo de maneira fluida. A história começa mostrando um casal vivido por Casey Affleck e Rooney Mara, que vivem em uma casa ampla, grande demais para um casal, e tem seus dias repletos de uma intimidade que não inclui muita conversa.

    Uma tragédia os acomete, e a moça fica sozinha, na casa e na vida, e a outra parte do casal se levanta, já defunto, levando o lençol que o cobria no leito hospitalar. Seguindo seus instintos mais básicos, ele retorna a tal casa, e fica por ali, por não saber exatamente o que fazer. Nesse ínterim, o tempo se confunde com a existência, há retornos e avanços na linha cronológica, que vão longe e permeiam também os momentos não só da vida do sujeito como pós-morte e até antes de sua existência. É como se a passagem para o limbo entre o mundo espiritual e o carnal propiciasse um novo tipo de existência, embora só sobrem os instintos, e até esse conceito de existir seja absolutamente discutível.

    Incrivelmente o filme tem pouquíssimos diálogos, é contemplativo, mas não parece pretensioso ou enfadonho, ao contrário, mesmo no silêncio é praticamente impossível não se afeiçoar a figura carente e desolada que nem expressão tem, pois o homem a ser reduzido aos mais básicos sentimentos, se torna universal, torna suas dores reais e indiscutivelmente tangíveis e de fácil compreensão, e isso ocorre demais aqui, mesmo que esse não seja um filme feito para o grande público.

    O cinema de Lowery é inteligente, sagaz e repleto de significados. Sombras da Vida talvez seja o ápice de sua curta carreira de cineasta nesse sentido, pois é simples em forma e profundo em conteúdo. O equilíbrio entre pragmatismo e escapismo é impressionante, e indiscutivelmente esta é uma pérola do cinema recente, muito menos falada do que merecia.

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  • Crítica | Meu Amigo, o Dragão

    Crítica | Meu Amigo, o Dragão

    E como num dos deliciosos contos de Roald Dalh, autor de Matilda e o vergonhoso O Bom Gigante Amigo, eis um filme que não trata uma história excepcionalmente infantil de forma fraca ou como apoio para um exagero de efeitos especiais. Temos então o jovem Elliot, espécie de Mogli que vai parar na floresta após um incidente com seus pais. Lá, olha para cima e se depara com seu salvador de 25 metros de altura, 10 metros de cauda e 15 de asas, essas incrivelmente finas para aguentar o corpo do bichano, um dragão. Dentuço, predador, mas com um olhar âmbar irresistível de cão arrependido, no fundo do quintal onde os intolerados, por alguma razão, são mantidos desde sempre.

    Um roteiro que, facilmente, poderia ser o de um filme entre os anos 70 e 90 reprisado em loop na Sessão da Tarde, mas trata-se de um semi-invisível filme de 2016, por mais incrível que pareça. Trata-se, na verdade de um fenômeno nostálgico, desses que nunca perdem o brilho e não se camuflam nem como ‘conservadores’, nem como ‘revolucionários’. Pode-se dizer, ainda, que isso se dá pelo acolhimento à novas tecnologias para contar uma fantástica fábula dessas, já que sem fabulosos efeitos seria impossível recriar (na escala almejada) um dragão peludo cor-de-musgo, o céu onde voa, livre, e sua realidade fabulesca em paralelo com a de seus amigos e algozes bem realistas. Porém, a questão não é essa.

    Embarcamos na história, pois a intervenção aqui de um mito vivendo no mundo real, e contemporâneo, sofre uma bela releitura totalmente inofensiva numa ‘lavagem Disney’ do mesmo feijão com arroz de anteontem, já requentado (sob arquétipos familiares narratológicos) numa porção de ensejos anteriormente já explorados, sobre como a magia ainda pode interferir e remodelar o cotidiano de qualquer cultura, lugar, e em qualquer faixa de tempo. E daí que os efeitos especiais sejam iguais aos de Eragon, de 2005, e muito inferiores ao Smaug de O Hobbit? Eis aqui um êxito que ambas as produções não conseguiram tomar pra si, fazer o coração do robô pulsar. E nisso, justiça seja feita, a Disney humilha a concorrência desde que lápis e papel eram a única maneira de transmitir a imaginação que nunca nos abandona, mesmo longe da infância ou daquela janela do ônibus.

    Como já foi apontado antes em outros tratados críticos meus, no site, qualquer significado mais aprofundado sobre ‘Mito’ na Terra de 2017 (ou sabe-se lá o ano chinês e judaico que nos encontramos) já nos deixou faz tempo; inocência virou burrice e a magia, esta já desacreditada por ratos de laboratório e seus códigos binários. Um dragão habitando hoje nosso planeta, mesmo escondido na floresta mais distante é tão impensável que dói, mesmo que embora não saibamos nem 40% dos segredos que o oceano esconde, mas não seria “Acreditar” o verbo que a Disney sempre mais promoveu e vem nos ensinando, incansavelmente, junto à vassouras, super-heróis e príncipes encantados? A gente não acredita mais no que não pode ser comprovado, essa época já passou, enquanto a ciência tenta provar que o Homem de Ferro pode sim existir no mundo real, e Deus seria apenas uma partícula a ser decodificada boiando numa convidativa infinidade interestelar.

    Talvez por isso que o filme foi desacreditado por boa parte do público, e merece ser descoberto num domingo à tarde. Simples dos pés à cabeça, e grande nos significados e na moral tímida que ostenta – tal sua criatura mitológica com jeito de cachorro domesticado -, Meu Amigo, o Dragão aprimora a cada cena a mistificação e o brilho da situação, sem jamais modernizar o conto a ponto de racionalizar a existência do fantástico, do elemento espetacular de vários carros correndo atrás de um bicho descomunal que voa, voa alto e cospe fogo no alto de uma ponte; no final das contas, assistimos tudo através da ótica infantil e despretensiosa do menino Elliot, tratando o monstro seja no chão ou no céu banhado pela aurora da mesma forma que por ele, também é tratado: Seu melhor amigo de infância. Um filme de infância, em primeiro lugar.

     

  • Crítica | Amor Fora da Lei

    Crítica | Amor Fora da Lei

    amor fora da lei

    Poetas e contadores de histórias gostam de relacionar o amor ao proibido, e a evolução da associação do sentimento ao que a sociedade vê como reprovável é natural. Tal conceito é utilizado no cinema largamente; por mais repetitivo que seja, o clichê ainda chama a atenção. Recentemente, Amor Bandido atraiu a atenção de quem era fã de Matthew McConaughey e Jeff Nichols ao dar uma abordagem mais diversificada e de ângulo diferente do mito de Bonny e Clyde e do que foi visto em Uma Rajada de Balas. Em Amor Fora da Lei, David Lowery apresenta um clima mais rural e até white trash à máxima, apresentando um casal apaixonado não tão normal quanto a maioria.

    Após uma bela introdução, que põe os cônjuges em uma corriqueira troca de carícias e farpas, Robert Muldoon e Ruth Guthrie (Casey Affleck e Rooney Mara, respectivamente) se põem em um tiroteio, fazendo com que um dos policiais seja baleado. Como um autêntico cavaleiro de armadura, “Bob” assume a autoria do atentado e é levado à penitenciária em uma cena de despedida que transita entre o tocante e o grotesco, com a câmera enquadrando um beijo terno e as vestes imundas pela poeira e pelo pecado de suas ações, que foram causadas de forma direta ou negligentemente.

    Bob não se sente o réu sentenciado que na realidade é, e em virtude disso tenta arranjar a sua liberdade à força, tencionando sua própria fuga em cinco oportunidades, finalmente tendo êxito no sexto tiro. Uma vez na área aberta novamente, ele procura encontrar sua amada numa jornada país adentro, mudando drasticamente a vida de quem ele encontra em sua estrada rumo à perdição.

    Apesar de aparentar no começo o contrário, Ruth aguarda ansiosamente a chegada de seu amado. Fazer os terceiros pensarem que ela teme pela vida de sua filha faz parte da atuação teatral para afastar qualquer suspeita de envolvimento com a fuga de Bob. O nome original da película, Ain’t Them Bodies Saints, remete à ausência de santidade nos envolvidos da trama, qualidade esta que também pode ser interpretada pela falta de inocência e até por certa responsabilidade pelo crime, independente do julgamento parecer desigual.

    A trajetória do fugitivo rumo ao seu destino final o faz praticar o que ele foi acusado de fazer outrora. O rastro de sangue que ele deixa é acompanhado de um sentimento de sobrevivência, mas que não o resguarda da culpa de ter que ameaçar as pessoas e matá-las quando isso se mostra necessário. Sua ida para casa se faz por vias tortuosas; o personagem percorre o caminho sentindo sua vida escorrer pelos dedos. Ignorando o bom senso, ele prossegue em busca de sua musa, mal pensando na própria sobrevivência.

    A cena em que Ruth e Bob finalmente se encontram é singela. A moça tenta guardar suas lágrimas, mas é quase inevitável que ao menos algumas escorram em seu rosto, especialmente depois de toda uma vida esperando por ele. Por estar quase convalescendo, a enfim restrita reunião ocorre, variando entre o presente, nada pessimista e calcado no real, e uma imaginação de ambos abraçados em tempos mais simples, sem toda a arquitetura de bandidos em fuga. Em seus sonhos, Bob vive em uma casa idílica onde o casal poderia morar e ser feliz, num paraíso intocado, distante demais dos áridos dias que ambos sofriam. A sensibilidade com que Lowery trabalha o roteiro é ímpar ao utilizar o conceito de “falar de modo leve de coisas graves” a potências altíssimas, sem recorrer a um sentimentalismo banal.