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  • Crítica | Kundun

    Crítica | Kundun

    Quando Martin Scorsese, no distante 1988 veio com A Última Tentação de Cristo, tínhamos um nova yorkino da gema saindo da sua zona de conforto em busca de Jesus. Ficou de costas para os prédios, becos e táxis, e voltou-se as montanhas, fogueiras, ritos e rios. Fora da maior megalópole americana, e sua sinfonia inconfundível, Scorsese pareceu um patinho fora da lagoa onde cresceu e se firmou como homem, e cineasta, cuja visão cronicamente urbana custou a sua autonomia em âmbitos distintos. Somos o nosso meio ambiente, em muitos aspectos, em especial quando nele nos deixamos enraizar, e o filme com Willem Dafoe nunca consegue ignorar, ou muito menos subverter a fortíssima sensação de ser uma realidade (ainda que anistórica a vida de Cristo) filmada pelo viés de um turista curioso.

    E com Kundun temos a mesma impressão, tão latente quanto – muitos críticos aliás consideram-no o menos scorseseano da produção do mestre. Discordo, em partes: Kundun é uma experiência mística não revelada em toda a sua glória para o público através de suas imagens, e aposta qualquer traço de intensidade e profundidade que essas imagens poderiam ter na simples, e por vezes barata admiração com a cultura, os valores e a sociedade tibetana, ao norte da cordilheira do Himalaia. Scorsese tenta ao máximo viver e conectar suas imagens quentes e vibrantes à sintonia das cores, do vento e da beleza asiática ao redor, com seus monges, sinos e folclores extraordinários, ainda que tudo continue a se integrar, principal e insistentemente, numa perspectiva de admiração estrangeira.

    Aqui, Scorsese mostra demais porque não sabe no que focar, e amplia sua observação tal um turista passageiro, cuja estadia ainda vai durar um longo tempo naquelas bandas, sem pressa alguma. Um tanto perdido na cultura local, mas que a saboreia com a elegância de um sommelier atento na sua performance, o diretor de Táxi Driver narra, com uma belíssima fotografia do gênio Roger Deakins, a trajetória de um menino considerado a reencarnação do décimo terceiro Dalai Lama, e a sua consagração, já aos dois anos de idade, como o novo Buda, tendo que enfrentar o governo chinês contra à apropriação das terras sagradas do Tibete. Uma vez crescido, a guerra vem, e o pequeno país faz resistir como pode. O vermelho púrpuro e empoeirado dos trajes dos monges já alerta o que vem por ai, enquanto a paz parece descer, dia após dia, pelo vão de uma ampulheta.

    Resta ao jovem Buda, então, ser a figura do equilíbrio necessário, mas que o filme não torna, jamais, interessante. “Religião é veneno”, diz um general chinês ao encarar, com um falso sorriso diplomático, o exato oposto para o seu militarismo predatório de sempre. Kundun é inseguro, por vezes frágil, tanto no roteiro original de Melissa Mathison quanto na direção de Scorsese, após o ótimo Cassino, em expandir as suas possibilidades interpretativas, mantendo sempre o mesmo nível de calmaria e tranquilidade que impedem a biografia sobre o décimo-terceiro Dalai Lama, e de um notável período histórico da Ásia, de alçar voos maiores. Na tensão da iminência de um conflito bélico inevitável, o filme, que apela para um naturalismo agradável em sua concepção artística, se desenrola por longas duas horas em busca, ao final, de um lugar-comum que nunca realmente tentou abandonar.

    Obra inconvincente, ao todo, uma vez que, de tão vastas que são suas possibilidades cinematográficas, estas são renegadas como que por vergonha de assumi-las, e não pelo certo conformismo que a maturidade traz às coisas. Com o simbolismo aqui sendo parcialmente despretensioso, Kundun é quase que medíocre, no melhor uso da palavra – rascunho de luxo de um quadro mais potente, e que por pouco não tivemos acesso. Não por isso, o filme de 97 contém cenas belíssimas de grande impacto, como a clássica sequência de Dalai, jovem e sensível como o orvalho, de pé entre centenas, senão milhares de corpos de monges massacrados. Nisso, o doutrinador se pergunta o que fazer diante desse imperialismo selvagem e desumano, enquanto um cineasta, fora da sua zona de conforto, indaga-se como extrair o melhor de um universo tão rico de mensagens, e propósitos sem iguais. Valeu a tentativa.

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  • Crítica | Blade Runner 2049

    Crítica | Blade Runner 2049

    Havia muita expectativa em relação a Blade Runner 2049, fosse pelo óbvio fato de Blade Runner – O Caçador de Androides ser um clássico absoluto, injustiçado pelos produtores da Warner Bros à época, ou pelo fato da de Dennis Villeneuve,  uma promessa de grande cineasta desde o começo de sua carreira, assumir a direção. A realidade é que a continuação, lançada 35 anos após o primeiro filme, tenta expandir o conceito pensado por Hampton Fancher e David Webb Peoples, roteiristas do original, utilizando com maior vigor os temas de Phillip K. Dick.

    A história é contada através do olhar do caçador KD6.3-7, ou simplesmente K, vivido por Ryan Gosling. Desde o começo a trama informa que se trata de um replicante mais avançado que os modelos Nexus, da Tyrell Corporation. Uma das criações de Wallace (Jared Leto), um novo eugenista que se valeu dos espólios de seu antecessor para, basicamente, criar outros replicantes, supostamente menos agressivos e predatórios que os anteriores. Parte da base narrativa passa também por Luv (Sylvia Hoeks), um dos modelos mais avançados dessa era.

    K vive sozinho, com uma inteligência artificial holográfica, interpretada por Ana de Armas. O conceito por trás dessa tecnologia e identidade serve para contrapor a coisificação ocorrida com Rachel no primeiro Blade Runner, elevando a discussão para um tema mais progressista, quase significando um pedido de desculpas pela atitude de Deckard (Harrison Ford) ao forçar a replicante a dormir com ele. É a partir das discussões com a holografia que K passa a sonhar com upgrades em seu destino, com sonhos envaidecidos, que poem em cheque a questão desses modelos terem alma ou não.

    A direção de arte tem atenção as referências do primeiro filme, relembrando até mesmo o terrível spin off  Soldado do Futuro em alguns momentos. A tecnologia retro e suja insere a sequência na mesma tônica do primeiro filme, sem exagero e nem fan service. Parte da construção primorosa desse retorno ao universo de Dick é culpa de Roger Deakins, que retorna ao trabalho com Villeneuve para apresentar enquadramentos grandiosos, valorizando a utilização de efeitos práticos. Tudo no cenário tem textura e realismo impressionante.

    Em tempos de Atômica e John Wick, é natural que haja uma cobrança por lutas mais realistas. Não é o caso em 2049, já que os personagens são super humano. Assim, os embates físicos são organizados com golpes secos e certeiros, fato que valoriza também o roteiro e as cenas. A trilha de Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer segue a mesma linha de Vangelis, ainda que nos momentos em que a música interfere na trama não sejam tão brilhantes.

    A persona de K lembra muito mais o Deckard de Androides Sonham com Ovelhas Eletrônicas do que o Deckard de Ford no filme de 1982, em especial por ele não ter a dúvida sobre sua identidade genética. Todos os anseios do personagem são próximos de suas posses eletrônicas, seja na relação que tem com a inteligência artificial Joi, como também na necessidade de fazer upgrades no sistema. A fé que o personagem põe no discurso programado da inteligência, nos faz lembrar também a crença do Deckard original de que sua vida melhoraria graças ao animal artificial que compraria, uma vez que a evolução tecnológica é um dos principais motes do livro de Dick.

    O roteiro de Fancher e Michael Green levanta questões filosóficas diferentes do original, em especial no embate entre o legado de Tyrell e a vaidade humana como ponto primordial da vida, mesmo que a inorgânica. O desfecho de K e Deckard gera  discussões válidas, que levam em conta o preço da liberdade e o esforço para travar uma guerra por ela. De certa forma, o filme remonta a discussão ocorrida em um episódio de Jornada nas Estrelas: a Nova Geração, a respeito da individualidade do androide positrônico Data, analisando suas liberdades e escolhas. Caso haja de fato a exploração do cliffhanger de Blade Runner 2049 com continuações vindouras, há um valido argumento para uma sequência. Porém, há chances delas falharem como o péssimo Matrix Revolutions. Como obra fechada, o filme segue de maneira criativa e inspirada, unindo-se com qualidade aos pontos inteligentes do clássico.

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  • Top 20 | Diretores de Fotografia – Parte 1

    Top 20 | Diretores de Fotografia – Parte 1

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    Direção de fotografia é uma forma de arte quase que subestimada. Quando muitas pessoas vão ao cinema, elas podem perceber que a fotografia foi bonita, mas são poucas as pessoas que vão atrás do responsável por dirigir esse trabalho. Na grande parte das vezes essa pessoa pode passar despercebida do público geral, tirando a ressalva dos indicados ao Oscar. Mas cinéfilos com a paixão pela fotografia sabem que a sétima arte é completamente um meio colaborativo que enquanto alguns diretores trabalham ao mesmo tempo na fotografia, a grande maioria dos resultados que vemos na grande tela envolve o diretor, fotógrafo, designer de produção, figurinista e etc.

    Quando a fotografia digital começou a aparecer, de repente houve um boom de diferentes novas maneiras de capturar o filme. Alguns realizadores abraçaram as vantagens do digital, enquanto outros optaram por isso como um recurso visual extra. No fim do dia a câmera é uma das muitas maneiras de dar vida ao visual do seu filme. E hoje posso dizer que, vivemos um momento muito interessante para a fotografia.

    Existe um número considerável de fotógrafos que tem trabalhos dignos de serem ressaltados, mas para fechar esse artigo eu selecionei apenas 20. Os citados aqui representam profissionais que atuam hoje na indústria, com diferentes maneiras e estilos para fascinar o espectador, o que ligam todos é que estão fazendo um trabalho fenomenal na sua área.

    20 – Roger Deakins

    Trabalhos: Skyfall, O Assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford, Fargo.

    Roger Deakins é um mago. Ele vem lapidando seu talento há quatro décadas e só continua melhorando. Deakins recusou as escolhas óbvias, resultando na iconografia marcante que permeia Onde os Fracos não tem Vez e Um Sonho de Liberdade, e ele parece completamente confortável fotografando um longa cômico como Queime Depois de Ler assim como um épico histórico como Invencível. Suas colaborações mais frequentes são com certeza com os Irmãos Coen, mas comparando seu trabalho nesses filmes com A Vila ou Sicario de fato denota a competência do mesmo para atribuir diferentes estéticas para cada visão de diretor. Você conhece quando um filme é fotografado Deakins, mas o mesmo tem uma capacidade de camaleão de atravessar os gêneros. De uma maneira técnica Skyfall e  O Assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford são suas obras-primas mesmo sendo filmes completamente diferentes.

    19 – Jody Lee Lipes

    Trabalhos: Manchester à Beira Mar, Girls (1ª Temporada), Martha Marcy May Marlene.

    Jody Lee Lipes é relativamente um novato em comparação aos outros nomes da lista, mas ele chegou com o pé direito, estreando sua carreira com o sombrio Martha Marcy May Marlene e a primeira temporada de Girls, da HBO. Com esse último, Lipes aceitou o desafio de capturar Nova York de maneira completamente diferente, e ele conseguiu. Cada episódio de Girls parece que foi artesanalmente enquadrado, e muita dessa impressão vem das influências anteriores do mesmo. Desde então, ele pegou projetos como a comédia de Judd Apatow e Amy Schumer, Descompensada, mas é sua colaboração com o diretor Kenneth Lonergan no obra prima dramática Manchester à Beira Mar que marca sua posição como um dos d. de fotografia mais promissores de hoje. Aos que não viram Machester fiquem avisados que verão tomadas extremamente envolventes durante o longa.

    18 – Bradford Young

    Trabalhos: Selma, O Ano mais Violento, A Chegada.

    Se você esta procurando por novos rostos no quesito direção de fotografia, Bradford Young deve estar no topo de sua lista. Nós sabíamos que pelo seu trabalho no Neo-Western Amor Fora da Lei que ele era capaz de capturar um gênero de maneira intimista, e Pariah provou sua capacidade de se adaptar a fotografia road-movie. Mas foi em 2014 com Selma que ele se mostrou muito mais que um fotógrafo competente. Young tem um controle intenso do ponto de vista do personagem, trabalhando em conjunto com Ava DuVernay, ele ajudou a narrar a solidão marcante que foi a vida de Martin Luther King Jr., fora a cena do terrível ataque na ponte Edmund Pettus. Com a ambientação oitentista de O Ano mais Violento, Young mais uma vez brilhou, e não é surpresa que ele foi escolhido pra substituir Roger Deakins no novo filme de Denis Villeneuve, o sci-fi/drama A Chegada.

    17 – Bill Pope

    Trabalhos: Matrix, Homem-Aranha 2, É o Fim.

    Bill Pope tem uma carreira fascinante. Passeando por gêneros completamente díspares, de Uma Noite Alucinante a um longa de estúdio engessado como As Patricinhas de Beverly Hills, ele pode ter como seu trabalho mais reconhecido o revolucionário Matrix, de 1999, mas seu currículo não para por aí. Pope reprisou seu talento nas sequências da franquia e se manteve em blockbusters como Homem-Aranha 2 e 3, e ainda arranjou tempo pra trabalhar em filmes conhecidos por terem sido produções muito problemáticas como Team America: Detonando o Mundo, e agora se tornou o Diretor de Fotografia oficial do diretor Edgar Wright depois de sua primeira colaboração em Scott Pilgrim contra o Mundo. Pope tem uma incrível capacidade de produzir imagens pop, mas de um maneira intrigante, ele sabe como prosseguir cenas de ação. Mas o mais importante, Pope não aparenta ter medo de tentar coisas novas. Sejam bonequinhos, super-heróis, ou até a série Cosmos. Pope se prova o mais versátil até hoje com o lançamento desse ano Mogli: O Menino Lobo  e o piloto da série Preacher mostram que ele se mantêm confortável tanto no ambiente em CG como numa cidadezinha no meio do nada no Texas, e os dois são incríveis!

    16 – Maryse Alberti

    Trabalhos: Creed, O Lutador, Velvet Goldmine.

    Maryse Alberti é um dos exemplos mais interessantes dessa lista. Ela começou no ramo dos documentários. Suas tomadas mostravam uma carreira já promissora como no filme Um Táxi Para a Escuridão e mostrando ser altamente capacitada para longas quando colaborou com o diretor Todd Haynes, em 1998, com Velvet Goldmine. O trabalho de Alberti alcança destaque para a maioria dos espectadores no filme de Darren Aronofsky, O Lutador, novamente mostrando assim como Bradford Young um enorme talento em capturar o ponto de vista do protagonista. Se já não bastasse, ela foi a primeira escolha de Ryan Coogler quando estava desenhando a ideia de sua sequência de Rocky Balboa, resultando numa obra contundente e emocionante tanto dentro quanto fora do ringue. De fato, existem dois planos-sequências em Creed: Nascido Para Lutar que não são apenas visualmente incríveis mas que tem um propósito em cena. Você consegue sentir a ansiedade de de Michael B. Jordan dentro da montagem da cena.

    https://www.youtube.com/watch?v=pqSSHmr8bR4

    15 – Darius Khondji

    Trabalhos: Se7en, A Imigrante, Meia-Noite em Paris.

    Lá em cima com Deakins, Darius Khondji é um veterano da fotografia cinematográfica, trabalho esse que sempre parece ficar melhor. Nascido no Irã, o diretor de fotografia já deixou sua marca colaborando com David Fincher no longa Se7en – Os Sete Crimes Capitais, capturando a sujeira e o desespero da cidade sem nome com um tipo de beleza mal assombrada. E mais tarde, se tornou co-diretor de fotografia de Woody Allen em Meia -Noite em Paris. Fora isso, foi seu trabalho no longa de James Gray, em 2013, no drama histórico A Imigrante que solidificou seu lugar como um dos melhores de todos os tempos. O filme é carregado de sequências inesquecíveis, mas é nos closes que ele se mostra genial, reforçando de maneira curiosa a temática do longa.

    14 – Claudio Miranda

    Trabalhos: As Aventuras de Pi, O Curioso Caso de Benjamin Button, Tron: O Legado.

    Como a fotografia em CG ganhou popularidade, a quantidade de diretores de fotografia para CG cresceu progressivamente. Claudio Miranda se tornou referência quando o assunto vem à tona. Miranda se tornou algo como a ponte entre a fotografia real e o CG, do realista O Curioso caso de Benjamin Button até o sci-fi Tron: O Legado. Ele sabe o seu caminho através do cada enquadramento, e nenhum deles é tão atraente quanto em As Aventuras de Pi, de Ang Lee. Os cenários e personagens são todos em CG, o ator Suraj Sharma é o único elemento real enquadrado em boa parte do filme e mesmo assim Miranda encontrou beleza que salta os olhos no longa, resultando em muitas indicações e estatuetas no Oscar.

    13 – John Guleserian

    Trabalhos: Questão de tempo, Paixão Inocente, Casual.

    O diretor de fotografia John Guleserian marcou sua trajetória em passos largos. Iniciando sua carreira com a série Tim and Eric Awesome Show, Great Job!, foi seu trabalho com Drake Doremus em Loucamente ApaixonadosPaixão Inocente, e o último lançado Quando Eu Te Conheci que realmente mostraram o potencial do fotógrafo. Existe algo crespo no universo imagético de Guleserian que traz o espectador para muito perto do que ocorre em tela, e o uso frequente de câmera na mão apenas aumenta essa impressão dos personagens no filme. Mesmo com filmes muito focados em luz como em Questão de Tempo, algo permanece urgente e próximo que permeia até as cenas mais periféricas.

    12 – Jeff Cronenweth

    Trabalhos: Clube da Luta, Retratos de Uma Obsessão, Abaixo o Amor.

    Se tem dito muitas vezes que David Fincher é um diretores que sabe fazer seu trabalho melhor que ninguém, mas existe um motivo pelo qual ele colaborou Jeff Cronenweth em Clube da Luta além de seus últimos três filmes seguidos. A diversidade na paleta entre A Rede Social e Os Homens que não amavam as Mulheres é chocante e o controle de Cronenweth sob cada enquadramento não é menos impressionante. O imagético muitas vezes de natureza estéril reflete a frieza de muitos dos personagens da trama, mas em filmes como Garota Exemplar e até Hitchcock, Cronenweth provou que ele pode manter esse consistência de qualidade a cada enquadramento até hoje.

    11 – Emmanuel Lubezki

    Trabalhos: Árvore da VidaAliA Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça.

    A lista não poderia estar completa sem Emmanuel Lubezki, que está destinado a ser um dos maiores diretores de fotografia que já viveu. Foi indicado ao seu primeiro óscar por A Princesinha, de 1996, mas esse foi apenas o começo. Sua colaboração com Alfonso Cuaron trouxe um trabalho impactante para diversos filmes como E Sua Mãe TambémFilhos da Esperança e Gravidade. A inclinação de Lubezki para a fotografia “câmera-na-mão” é a primeira vista surpreendente e intimista, permitindo que a audiência sinta que elas também são parte importante da trama. Sua parceria com Terrence Malick provou francamente ser um pioneiro, trazendo a audiência tão próxima que chega a ser desconfortável, e mesmo assim conseguiu construir algo bonito e poético com A Árvore da Vida, onde a técnica parece tornar o longa de outro mundo. E nem precisamos citar Birdman e O Regresso. O homem é um mestre na fotografia, mago da natureza e acima de tudo um realizador excitante.

    Gostaram até aqui? Continue acompanhando o Vortex Cultural que em breve postaremos a segunda parte!

    Texto de autoria de Halan Everson.

  • Crítica | Sicário: Terra de Ninguém

    Crítica | Sicário: Terra de Ninguém

    sicario

    O talentoso diretor canadense Denis Villeneuve retorna ao circuito estadunidense após executar seu belo O Homem Duplicado em sua terra, para executar o badalado Sicario: Terra de Ninguém, que explora um drama policial que tem seu protagonista dividido entre uma mulher e um homem latino, o que deveria ser o ponto de partida para uma trama equilibrada em relação às minorias, fato que não ocorre.

    O roteiro do iniciante Taylor Sheridan (um ator de series televisivas, como Sons of Anarchy, Veronica Mars e dois spin offs de CSI) explora a história de Kate Macer (Emily Blunt), uma agente do FBI que já no início se vê em uma situação de calamidade, ao encontrar os espólios de um cartel latino violentíssimo, que se escondia nos compartimentos de uma casa entre corpos putrefatos de seus inimigos.

    A trilha sonora, apesar de interessante, acaba por cortar a maior dose dos suspenses que se postam diante de Kate. Gradativamente, novos chamados à aventura são feitos a agente, que deixa sua confortável posição de chefia para acompanhar Alejandro (Benicio Del Toro) e Matt Graver (Josh Brolin). Os dois personagens masculinos exercem uma opressão emocional sobre ela, fazendo ficar ainda mais evidentes os descuidos da moça com a sua aparência, aspecto que serve de signo para o estado depressivo em que ela se encontra.

    No entanto, a postura debochada de Graver é completamente diferente do comportamento misterioso de Alejandro, que se enquadra no mesmo estereótipo dos heróis de western spaghetti: homem duro, cujo passado misterioso o credencia para ser o superior em qualquer aventura. Não fosse a entrega de Del Toro, tal repetição de bordão dramatúrgico seria um erro, mas não o é, especialmente se comparado a todo o resto. As motivações das personagens são mal construídas, tão rasas que não possuem credibilidade em qualquer de suas atitudes por serem somente reflexos de um péssimo clichê.

    A construção de ideário do que seria Juárez, uma província mexicana onde a violência explícita é a palavra definitiva, esbarra em mais uma retratação xenófoba por parte do script tipicamente hollywoodiano. Até as boas cenas de ação e a bela fotografia de Roger Deakins (que já havia trabalhado com Villeneuve em Os Suspeitos) são diluídas graças à desimportância que ocorre após tantas frases de efeito e repetições de padrões visuais toscos, como gângsteres tatuados, que têm na crueldade seu norte, conceito idêntico ao dos piores seriados policiais dos anos 1990.

    Nem mesmo a mudança tática entre o esquadrão do começo do filme e o novo modo de combate apresentado pelos agentes especiais serve de alento. A tentativa de gerar signos visuais que acarretem em situações de real discussão de ambiguidade esbarra nas péssimas construções de relacionamento, que primam pela insipidez, exceto no caso de Alejandro – exatamente por não se revelar quase nada de seu repertório.

    Apesar de tentar mostrar um universo enbrutecido, Sicario peca por não saber escolher entre a vontade de Kate em alcançar a onisciência e o cinismo caricato de Graver e seus homens, ao abordar um mundo sem esperanças. O final assume de vez a má construção do texto, entregando o protagonismo ao único personagem que não está mal justificado em tela, aludindo curiosamente a uma curiosa semelhança deste desfecho com o videogame que dá continuidade aos fatos ocorridos no jogo Scarface: The World is Yours, que punha Tony Montana de novo em ação, ainda que Del Toro seja muito menos histriônico que o traficante cubano. Curioso que um desfecho semelhante ao realizado em outra mídia seja um dos melhores momentos de um filme cujo potencial era imenso, mas que se perde em meio a um argumento descabido e desequilibrado, que torna banais até temas graves.

  • Crítica | Invencível

    Crítica | Invencível

    invencivel 1

    Invencível, novo filme dirigido por Angelina Jolie, adaptado do livro Invencível – Uma História de Sobrevivência, Resistência e Redenção, conta com os irmão Coen no roteiro para dar corpo à vida e à memória do atleta olímpico Louis Zamperini (Jack O’Connor), que após sobreviver 47 dias no mar é feito refém pelos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial.

    A literalidade da obra não fica apenas no título, porém. Invencível é um drama clássico, ao menos em teoria, feito aos moldes da Poética de Aristóteles: é a síntese da busca pela catarse através da dor e sofrimento, com o objetivo de nos provocar medo e compaixão, para, em seguida, entregar uma breve purificação como fruto do sofrimento compartilhado.

    Apesar de seguir à risca o caminho canônico da tragédia dramática, falta a Jolie e ao roteiro dos Cohen o compartilhamento sobre o real estágio humano de seu protagonista, que em nenhum momento parece saber por que sobreviver. Falta comunicação com o espectador e um fio condutor melhor resolvido do que a frase “se puder suportá-los, pode vencê-los”, a qual Zamperini leva consigo como mantra.

    Datado como obra, Invencível não só é aristotélico como também platônico. Ao trabalhar diversos combates e situações em um plano quase etéreo, eleva seu protagonista aos céus, enquanto seus companheiros – tão sofridos quanto – mantêm-se no plano mundano. Jolie idealiza seu protagonista a ponto de achar que não precisamos de suas motivações, e que sua sobrevivência fala por si. Fora das convenções do cinema, sua fibra moral é óbvia, mas em determinado momento Zamperini deixa de reagir às privações, o que é problemático em termos de dramaturgia.

    Isso influencia no trato dos coadjuvantes, subaproveitados, que poderiam ter dado um pouco mais de sustância ao roteiro se houvesse nisso a tentativa de decodificar Zamperini ao público. A idealização faz sentido, já que o veterano foi vizinho e amigo pessoal de Angelina Jolie, chegando a participar ativamente da produção. Mas ao espectador falta justamente a catarse, da qual temos apenas vislumbres, como na belíssima composição da batalha ideológica do personagem principal e seu algoz, o sargento Watanabe, que perde seu potencial de conquistar até mesmo o mais blasé dos espectadores ao reafirmar a santidade do atleta olímpico e fazendo da cena um bem filmado exercício de futilidade. O resultado são 162 minutos do que seria uma bela história de resiliência filmada como se fosse apenas teimosia da parte de Louis.

    A crítica especializada (sic) diz que, quando uma crítica começa a análise falando bem sobre a fotografia do filme, é porque este não é tão bom, mas sim simpático. Simpático, mas nada empático; bonito, mas carece de poder cinematográfico, pois logo nas primeiras cenas a mão pesada da montagem enfeia todas as incríveis composições da direção de fotografia idealizada por Roger Deakins (Onde os Fracos Não Têm Vez, 007 – Operação Skyfall), e consegue tornar o filme mais insensível do que seu roteiro ao simplesmente não nos permitir contemplar cena alguma por carecer de ritmo. Não há suspiro quando deveria haver, nem tensão quando deveria haver. A tentativa de tensão é feita sem sutileza na transposição das cenas, levando o espectador a perder-se geograficamente mesmo em ações simples.

    Não faltará nem mesmo a tradicional explanação sobre o destino de seus personagens, apenas burocraticamente colocada para arremate. Um trabalho visualmente muito bonito e inspirado que funcionaria melhor em mãos mais delicadas e focadas.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Filmografia Comentada: Os Irmãos Coen – Parte 2

    Filmografia Comentada: Os Irmãos Coen – Parte 2

    De Gosto de Sangue a Inside Llewyn Davis, uma análise geral e não-datada sobre as diretrizes da obra de Joel e Ethan Coen. Da parceria primordial com Sam Raimi a dois lugares cativos nas expectativas de crítica e público, feito mais que raro, senão raríssimo. Suas obras são trabalhadas com mãos de pelica juntamente a todas as possibilidades do cinema, em seu estado humilde, para apostar em temas ricos, intentando criar algo inédito, como que com o ímpeto de um fracassado que aposta tudo na única chance de sua vida.

    A moral e a força dessas obras vêm em forma de lenta infiltração atrás da parede da sala, apesar da rápida duração, geralmente, das mesmas. Em um punhado de entrevistas dedicadas a dissecar o que está por trás dos estímulos da filmografia vigente, os cineastas não cedem a surtos didáticos sobre seu caminho no cinema, carregado de marcos em dobro.

    O Homem que Não Estava Lá(2001)

    O expressionismo alemão que não se mostra herdeiro das consequências do passado, mas de uma irrevogável essência dúbia e ambígua da composição do mundo surreal desses realizadores, corajosos por experimentar de tudo, um pouco; formados na fórmula de como se sustentar na corda bamba da criatividade. As sombras do interior de um homem expostas nas calçadas no contra plongée de um enquadramento, na possibilidade do filme ser mudo, sem carência de pantomima, na caricatura de uma história contida, prestes a explodir a qualquer segundo como um dínamo desconfiado. Até onde pode se estender a luz nas sombras do mero ser, quiçá os domínios da técnica numa produção com coração e possibilidade de submersão, além do visual. O Homem Que Não Estava Lá é um convite para o espectador ter a responsabilidade de sentir a história separadamente ao belíssimo arranjo e aquisição do fotógrafo Roger Deakins, o oposto do que as produções bilionárias de Hollywood tentam evocar. É como se os irmãos, através de cada frame e close facial do ator Billy Bob Thornton, levassem o público pelas mãos por um campo já arado, esperando uma semeadura de consciência para algo poder ser colhido dali. É claro que o potencial poético do filme não é de todo renegado, mas desde que a estrutura dialoga em primeira e terceira pessoa, o que é unilateral nos filmes de Joel e Ethan não tem vez.

    O Amor Custa Caro (2003)

    Crises existenciais sempre foram inerentes aos Coen, e aqui, em plena era da infinitamente atrasada igualdade entre os sexos, eles homogeneízam em uma inusitada paleta de cores quentes o que há de bom e ruim no interior humano, na fronteira entre o distinguível e as miragens da neblina moral, no caso, existencial. A ênfase às contradições, revogáveis vistas do lado de fora, da natureza do homem e da mulher são colocadas no microscópio conhecido por Cinema, imagens e sons novamente sob o prisma da interpretação variável. A começar por ser boêmio e não menos que simbólico, há alguns “novamentes” aqui, seja a repetida parceria com Thornton e Clooney ou o raro esforço por não serem tão óbvios no tratamento de um contexto pré-montado, há mais no sorriso de George Clooney e no vermelho de Catherine Zeta-Jones do que sonha nossa vã filosofia. Como nós aceitamos ser guiados por dois seres desprezíveis é cortesia nossa, só nossa, nascida do simples ímpeto de se envolver com uma boa história, humilde sem demais alegorias no fluxo de ideias velhas bem retocadas, num cenário de roupagens e vocabulários requentados; poucos podem ser culpados por tentar a nobre arte da revitalização clássica.

    Matadores de Velhinha (2004)

    O humor universal é o que há de mais caro no gênero. Tudo se assemelha em âmbito cultural e de repente a satisfação se esvai em prol da sede pelo original. Quase não há espaço para a inovação nessa questão, a menos que essa seja obtida por legítimos punhos de aço; um empurrãozinho da sorte, aliás, não faz mal a ninguém. Só nos resta ser o gato à margem da ponte, na cena derradeira de Matadores de Velhinha, filme que se recusa a ir ou a voltar no espaço-tempo: Vaga nesta filmografia como um espectro do que ficou na vontade, e do que os Coen poderiam ter sido na pior instância. O maior risco intelectual dos Coen se concretizou em escorregão, convertido aqui em plena irresponsabilidade no material final: É lugar comum, é a espreguiçada que se dá ao acordar no domingo de manhã. Equívoco que todo cineasta merece e faz bem de cometer para se mostrar hábil o bastante de espantar o pó e seguir de cabeça erguida adiante.

    Onde os Fracos Não Têm Vez (2007)

    E seguiram. Quando um(a) artista, no sentido amplo do termo, chega no auge do exercício almejado com unhas e dentes, ele(a) retorna talvez injustamente ao ponto de partida, pois sente que foi naquele ponto onde sua autenticidade falou mais alto, gritou e berrou ao mundo. Onde os Fracos Não Têm Vez é uma constatação rara que não tem espaço para nada mais do que a maturidade absoluta no ofício do realizador, este que arrisca toda a reputação até aqui conquistada para fazer o que é preciso dentro e fora da conjetura que se equilibra para não arredar o pé, com ou sem esforço. Tipo de peça que toda filmografia deve ter, é o currículo dos Coen falando lado a lado com a história árida e que casa mais que perfeitamente com os fundamentos dos irmãos, na hora certa e com o material certo. Estimulante a qualquer profissional da área, nota-se que, através dos paradoxos psicológicos e do desenvolvimento harmonioso do mosaico de sensações a ser desembrulhado, conforme a projeção se encarrega do próprio desfecho, a adaptação de McCarthy é a mais notável evolução moral desta dupla de mentes. Sua maior proeza extraestrutural é ser denso enquanto flexível, aberto a todo o tipo de interpretação a quem acompanha o cão (Tommy Lee Jones) perseguir o gato (Javier Bardem), que persegue o rato (Josh Brolin) e rata (Kelly Macdonald). De câmera intimista num mundo desesperado por lógica, intenções se desenham em terreno abstrato diante dos olhos; um manifesto imprevisível e amargo contra a violência e a favor do que pode ser ridículo nela. Os irmãos aqui assumem a figura de dois palhaços tristes que sempre nos fizeram rir com signos derivados de tiros a queima roupa e sangue sobre carne, se posicionando desta vez na lateral oposta do mesmo, sem máscaras ou maquiagem, acerca de uma modernidade ainda deficiente de humanidade. Se eles não conseguiram ser pretensiosos aqui na abordagem, por mais ativa que seja, eles certamente não mais poderão ser, pois sem o habitual humor negro, qualquer um morreria sufocado assistindo Onde os Fracos Não Têm Vez.

    Queime Depois de Ler (2008)

    Do veterano roteirista Marshall Brickman: “A mensagem do filme não pode estar no diálogo”, e para quem não tem ideia de onde mais poderia estar, os filmes desses instáveis irmãos chegam a ser uma boa resposta. Infelizmente, sendo uma resposta reflexiva para alguns, fato é que Queime Depois de Ler, dotado de um elenco estelar, faz parte do que já pode ser analisado como a segunda fase dos Coen: A fase que eles não precisam mais provar nada a ninguém, quando o motor do carro para de ranger após subir a colina e chegar ao topo do planalto. É possível descansar nessa hora, esticar as pernas e deixar rolar tudo o que o desejo assim apontar. Instáveis, porém incansáveis, o céu não é o limite para quem anda com a cabeça nas nuvens, e à medida que a câmera desce na abertura do décimo quarto filme da dupla rumo ao foco no teto de uma instalação governamental em Washington, Estados Unidos, é como se o tempo tivesse parado e aquelas comédias, dos tempos de Arizona Nunca Mais, nunca tivessem saído do lugar para alçar voos mais altos. Premissa claramente iniciada do zero, um filme interessante de corroer as bases, morder os princípios ao longo da projeção, por lá estar contido um punhado de estruturas submersas, à tona aos poucos: Um strip-tease ofertado pelas toneladas de relações humanas trágicas apresentadas, terrivelmente familiares para muitos de nós, e em constante impacto quase cármico. Um círculo social de diálogos subversivos vindos de condições, apenas e, sobretudo, masoquistas por excelência. A obra é o picolé de limão mais ácido no dia de verão mais quente, conquistando quem vive a vida real e acha graça nos imprevistos irresistíveis e contínuos. Como Cartola já cantou: “Rir, pra não chorar”. É a vida.

    Um Homem Sério (2009)

    Uma rara metalinguagem não-admitida. Por mais abstratas que sejam suas cognições, Um Homem Sério é um antifilme onde os Coen brincam de ser Deus e se fazem ilegíveis, portanto. O excesso de subjetividade é totalmente proposital, e entre fenômenos naturais improváveis e a lógica matemática que também não chega a lugar nenhum, os irmãos assumem a ironia de o cineasta ser capaz de criar seus mundos, mantê-los e destruí-los quando e como bem quiser, seja através de um divórcio ou de um furacão geológico. Indo além do masoquismo e sendo tão imparcial quanto as constelações nos são, Um Homem Sério não parte mais do pressuposto artístico de investigar os mistérios da vida, mas passa a aceitá-los sem a pretensão de entendê-los, como sugere um personagem em devido momento quando a força do que vem a ser dispensável pontua qualquer julgamento, cético ou não, agnóstico ou não, quanto a confusão que é provável de se formar da abrangência da produção em relação ao tudo e ao nada. Os rostos interrogatórios de todas as figuras no filme promovem signos indecifráveis, embora para com a dupla de cineastas, sempre serenos e donos das verdades que não aceitam compartilhar, no caso, os rabinos desta história que olha para si mesmo e rejeita um final, pois é um retrato do ciclo da vida que só termina quando a montagem exibe os créditos finais e tudo fica escuro, na técnica do fade out. Filosófico sem levantar bandeiras, e bem sucedido enquanto amplo em torno de embalagens melancólicas, como projetos cinematográficos no início foram idealizados a ser, aqui os Coen riem baixinho da vida com as mãos na frente da boca, após gargalharem do caos existencial em Queime Depois de Ler. Logo, a filmografia desses irmãos tem humor negro próprio, caso seja procurado um sentido para cada filme existir.

    Bravura Indômita (2010)

    Silenciar as impressões dos Coen quanto a um gênero não funciona com eles. É tentador imaginar os irmãos na premissa de um terror a seus moldes, assim como era um western visto a temperatura e o fluxo de calor que suas produções são submetidas, de vez em quando, na direção que o gênero imortalizado por LeoneFord e Hawks era inevitável, em uma visão senão mais próxima de Sam Peckinpah, é verdade, se esse fosse adepto de Proust. Se de estereótipos se faz o gênero, os irmãos se aproveitam disso e mostram a jornada da vida através de quem vai, e só não ignora o cenário devido à beleza das pradarias e do céu do meio-oeste dos Estados Unidos captados pela câmera de Roger Deakins, mais uma vez na sua melhor parceria com a dupla criadora. Metáfora sobre a coragem do “fazer humano” reflexiva e caricatural em suas causas, e seus efeitos. O rosto deformado de Jeff Bridges, a bravura cega da jovem figura de Hailee Steinfeld e, principalmente, a ineficiência do personagem de Matt Damon apontam para o fim de um jeito seco, sem conclusões, aqui substituídas pela, artisticamente falando, analogia moral de se realizar a arte que reúne as outras, o cinema, da concepção notória do movimento com ou sem final feliz, tanto faz, na ubiquidade do invólucro narrativo aqui presente até a última cena. Toda a beleza fotografada indica qual beleza? Uma beleza que não se pode ver, apenas ouvida, quiçá pela força dos diálogos, os olhares que dizem tanto? Daí a principal indagação, de dentro pra fora, no frescor da nobre odisseia para prender um bandido. De uma mera vaidade surge a obra mais sábia e onisciente de seu poder de persuadir o espectador desde Onde os Fracos Não Têm Vez, a partir do momento que retira a bravura do título da humildade com que tudo nos é configurado, sem pressa na familiar esquematização cênica dos irmãos que quase nos permite ver seus filmes com nossas avós ao lado, numa dramatização econômica e cirurgicamente precisa, não mais que satisfatória; uma máquina que chega com o manual necessário, porém, obviamente, escrito em uma língua que só as emoções sabem falar. No dia mais escuro, quando os Coen se tornarem objetivos em suas razões então deturpadas, nada mais poderá fazer sentido.

    Inside Llewyn Davis: A Balada de um Homem Comum (2013)

    O folk de Joan BaezDave Van Rock e Bob Dylan é o ritmo que melhor casa com o ritmo dos Coen, se tornando irresistível de representar; o frenesi de discos como The Folkways Years e Highway 61 Revisited exemplificam perfeitamente a semelhança ideológica nas intenções conjuradas em mensagens sociais (e atemporais, como as do folk), oriundas da desconexão com o que e quem essas mensagens pretendem tocar. O músico Llewyn Davis de decadente e ascendente social não tem nada, é apenas um nômade feito com pernas incansáveis, junto a seus sapatos surrados, violão e cabelos despenteados, a materialização do espírito musical em pauta, de uma geração e de um artista. No primeiro musical convencional dirigido em dobro pelos Coen, a predominância do tempo presente é mais uma vez redigida com gosto, uma espécie de limpeza de alma, do poder que a música empresta ao cinema quando esse se habilita em aperfeiçoar melodia com o audiovisual sem perder fatores de fidelidade. Retratar o som em nome da expressão não verbal que A Balada de um Homem Comum termina por ser é tarefa árdua, que aqui parece ser das mais simples, tímida, mas masoquista até a medula. O foco dos diretores continua sendo a potencialidade do que é retratado, num processo de destilação vertiginosa no conteúdo da história, um descobrimento leve do que pode vir a ser – sempre no tempo presente já mencionado – e um polimento do interesse bruto do público. Os Coen aqui assumem que suas zonas de conforto são amplas e seus domínios, largos, e há ainda muito a que se agarrar e discursar em prol daquela visão 360° que eles têm sobre seu terreno, e nos querem fazer ter também.

  • Filmografia Comentada: Os Irmãos Coen – Parte 1

    Filmografia Comentada: Os Irmãos Coen – Parte 1

    De Gosto de Sangue a Inside Llewyn Davis, uma análise geral e não-datada sobre as diretrizes da obra de Joel e Ethan Coen. Da parceria primordial com Sam Raimi a dois lugares cativos nas expectativas de crítica e público, feito mais que raro, senão raríssimo. Suas obras são trabalhadas com mãos de pelica juntamente a todas as possibilidades do cinema, em seu estado humilde, para apostar em temas ricos, intentando criar algo inédito, como que com o ímpeto de um fracassado que aposta tudo na única chance de sua vida.

    A moral e a força dessas obras vêm em forma de lenta infiltração atrás da parede da sala, apesar da rápida duração, geralmente, das mesmas. Em um punhado de entrevistas dedicadas a dissecar o que está por trás dos estímulos da filmografia vigente, os cineastas não cedem a surtos didáticos sobre seu caminho no cinema, carregado de marcos em dobro.

    Gosto de Sangue (1985)

    É o gatilho elencado por toda a cinefilia acumulada antes do primeiro projeto de quem é aspirante a artista e não sabe o que é ser um, mas sabe que é. Gosto de Sangue é uma barca de sushi de boa parte do que já foi produzido no gênero policial, seja das influências das fantásticas décadas de 60 e 70, ainda que oriundas do gênero noir, aqui tudo revisitado, à tona mais uma vez, sem preconceitos ou pudores através de uma visão particular de cinema, em notório, ainda sentindo a necessidade de evolução gradual. No primeiro lance é costumeiro somar a inexperiência do(s) realizador(s) diante daquele gostinho de quero mais, afinal nem todos se chamam Orson Welles ou John Houston (ambos, curiosamente, iniciaram seus passos ao rol das lendas no mesmo ano, 1941). Contudo, em Gosto de Sangue, os irmãos compram a briga dos mais exigentes e tentam assumir calmamente uma maturidade a ser comprovada, jogando com elementos que viriam determinar o “ao longo” da carreira; humor dramático, um constante drama irônico com o humor trágico dos laços humanos (o trágico aqui é literal), e uma violência doméstica indomesticável, satírica e inesperada, cada vez mais requintada daqui em diante. A quem tem olhos de lince, a história apoiada nos conflitos expostos da persona de Frances McDormand já apontava polos distintos enquanto únicos no cenário audiovisual do meio dos anos 80, povoados de inúmeros nortes, é verdade… Todo filme é uma odisseia indiscutível a quem o faz, que seja Ulysses então a melhor analogia a qualquer filme prematuro e experimental.

    Arizona Nunca Mais (1987)

    Sergio Leone imortalizou o homem desconectado da sociedade que vive, sem passado e futuro definidos, lutando para sobreviver no presente. Nicolas Cage se consagrou como a personificação pública do ator desastroso no potencial duvidoso dos filmes que resolve atuar. Antes de protagonizar o cult Coração Selvagem, de David Lynch, Cage, o “melhor pior ator” do mundo, embarcou no mundo das loucuras racionais de Arizona Nunca Mais, a última obra não esquematizada dos Coen, pois corre irresponsável sem críticas sociais, políticas ou artísticas, adiantando o tempo e dando indícios dos quebra cabeças geniais que viriam a seguir, agora com a parceria (nunca reconhecida) de John Goodman. Cheio de momentos impagáveis, Cage faz quiçá outra personificação típica dos irmãos: O desajustado que talha as próprias rugas através dos problemas que não consegue evitar rumo a lugar nenhum, ou melhor: A glória ou a tragédia, sem meios termos. Ponto decisivo na jornada dos cineastas, provando a quem se deixar convencer que sabem ser pop sem vender suas almas no mercado proibido a doutrinas autorais, o que acabou sendo uma verdade, mesmo que, na época, a constatação pareceu ter vindo cedo demais. Aqui, os Coen descobriram que podem ser masoquistas na nutrição de suas crias, e adoraram a satisfação disso!

    Ajuste Final (1990)

    Caso os Coen já tivessem a experiência obtida aqui desde os tempos de Gosto de Sangue, Ajuste Final seria o estopim dos irmãos. Possivelmente, a obra mais pretensiosa dos irmãos, vinda de uma nítida confiança tanto da indústria por eles, quanto deles para eles mesmos. Homenagem explícita a grandes clássicos do gênero que pertence e extravasa com elegância, alternando estilos e funções diferentes de filmagem para uma única proposta com base no cinema de identidade, reflexivo enquanto reflexo do que já foi feito no mural da história da arte. É em Ajuste Final, legítimo “filme de gângster”, em todos os sentidos, que os Coen se mostram de súbito exímios diretores de atores, característica que seria amplamente divulgada pela publicidade oriunda da qualidade de seus trabalhos, não puro marketing. Pop, mas pessoal demais para passar na Tela Quente. Vale uma ressalva: A pretensão aqui se torna positiva através da ambição na escala do projeto, ainda inacessível nos tempos de Gosto. Numa história tipicamente noir, em plena década de 90, o cenário diegético continua avesso a tendências e didatismos falando muito sem dizer especificidades, cebolas em formas de filmes esperando pacientemente o descascar. Além de contar com participações dos amigos Sam Raimi e Steve Buscemi, para quem pergunta o porquê dos Coen terem virado cult, este e o próximo exemplar são as melhores respostas. Eles mereceram.

    Barton Fink: Delírios de Hollywood (1991)

    Há quem diga que em Ajuste Final eles começaram a se levar a sério demais, mas na verdade seu domínio artístico que foi. Viver a vida dependente da promoção artística não é fácil, seja nos subúrbios urbanos ou no cume da montanha de Hollywood. O clímax de Barton Fink sintetiza, por meio de ação, tragédia e conclusão aberta o que é a vida do escritor, do artista que tenta ser um. Os Coen riem da própria desgraça, em um momento que eles podem ser dar a esse luxo sem serem chamados de abusados. O dom de escolher protagonistas indispensáveis segue forte, a soma rica da qualidade dos detalhes simples, a precisão em condensar pequenas ideologias em prática grandiosa sem se apoiar no quilate de superprodução, e o fantástico bom-senso impulsionado pela criatividade pulsante sempre foram exemplares nesta espécie de metalinguagem satírica, no viés da obra do grande Molière. “Eu sou um artista, eu crio mundos na minha cabeça!”, grita a persona introvertida de John Turturro em certo momento, e leva um soco da vida caindo de cara no chão. Quem nunca passou por isso, de qualquer jeito? Todavia, não é só na identificação em âmbito público que Barton Fink se consagra, senão no desnecessário segmento que faz com que Joel e Ethan não precisem se importar em se reinventar, pois têm nas mãos, para todos os estilos, todos os temperos que existem a ser misturados. Eles realmente não precisam se preocupar. Cinema é culinária.

    Na Roda da Fortuna (1994)

    A linha de raciocínio da dupla cineasta continua a mesma: Um personagem que pensa pertencer ao mundo onde permanece por vontade própria, numa metalinguagem sobre o modus operandi da indústria do entretenimento. Em uma entrevista de 2013, os irmãos deixaram claro que não assistem a seus próprios filmes após o cansativo trabalho requerido de pós-produção. Antes disso, o mesmo entrevistador aponta o quão sadio é rever suas produções, dar uma segunda olhada do ponto de vista de quem ainda precisa garimpar os pontos de quem já possui uma visão 360º de tudo. Na Roda da Fortuna inaugura esta prática na filmografia deles, pois é o típico camaleão que se camufla em uma mera diversão ainda que muito bem construída (com estereótipos inofensivos) a quem não está voltado, por exemplo, às vértices que apontam a uma análise capitalista no mercado da publicidade predatória americana – global, hoje em dia. Considerando que seria fácil demais empunhar escudos críticos em um terreno como este, os Coen definitivamente se especializam aqui no que se tornaram mestres nos próximos trabalhos: Polvilhar interrogações onde só poderiam haver pontos finais, ou pior, somente exclamações! Uma aventura descontraída no mundo dos efeitos especiais, o filme segue sendo o de mais fácil acesso dos irmãos, agradável a gregos e troianos em sua proposta de fácil adaptação pública e midiática (é extremamente fácil de imaginar uma montagem teatral à história). Ao mesmo tempo, Na Roda da Fortuna contém a oferta de enxergamos mais do que realmente existe em uma obra – na ótica de Guy Debord, os Coen seriam anarquistas. Graças a Deus.

    Fargo: Uma Comédia de Erros (1996)

    Como sinônimo de atestado de qualidade, no decorrer do balado prêmio Oscar houveram três comédias as quais realmente mereceriam a premiação máxima: Jejum de Amor (1940), de Howard Hawks, Annie Hall (1977), de Woody Allen, e Fargo. Fato é que o gênero ganhou novos fôlegos, relativamente, após a estreia e dissipação das influências dessas três obras vitais para uma revitalização da satiricidade na sétima-arte, até o presente momento, é claro. Ao realizar um produto cínico e lenitivo a todos os males do mundo, os Coen, dupla naturalmente voyeur, que assiste sem se envolver, sabiam que tinham muito a falar, e conscientes do poder da narrativa entre imagens deixaram a história discursar por si mesma, em total exatidão nas segundas, terceiras e quartas intenções implícitas nos matizes de sangue, gelo e implicações sociais, como de praxe. Talvez o melhor verbete para ilustrar Fargo e suas tramas paralelas seja esse, “exatidão”, pois quem o assiste pela primeiríssima vez não se dá conta disso. É como se Jerry Seinfeld parasse de ser um bom menino e tomasse as rédeas do jogo nesta que pode ser considerada peça-chave, ou pelo menos eficiente, no processo de desconstrução criativa que consiste na definição crítica de um filme. Uma dica: A neblina que abre o sexto filme dos Coen esconde exatamente o que é sentido até o final, mas muito mais do que toda a magnitude que já foi mostrada.

    O Grande Lebowski (1998)

    Um estudo duplo de personagens que só poderia ser tramado pela mente duplicada dos cineastas, aqui encarnando as figuras icônicas de Jeff Bridges e Goodman num tour de force do cinema independente americano com nítidos ares predominantes de um monopólio libertador, sob o manto da criatividade, resvalando no ato vulgar da libertinagem, por pouco. Tudo cresce ao redor da colcha de retalhos desenvolvida, como se a pretensão germinasse em solo fértil a tanto e fosse tão bem cultivada quanto poderia ser. Os Coen continuam rindo de seus propósitos, e chamam todos para rir junto desta vez. O Grande Lebowski é um manifesto que acontecerá mais vezes na história do cinema, e cada um será oriundo da representação de uma geração que envelhece, finalmente, e quer ver suas representações temporais retratadas na arte do enquadramento. Isso, sem esquecer-se do gosto agridoce da ironia que vem da reprodução de certos elementos atemporais, como o Jesus Quintana de John Turturro, de longe a criação mais nonsense dos realizadores. De descobrimento, crítica e análise o filme não tem nada, além do masoquismo inseparável do DNA dos Coen: É um puro acerto de contas com o espírito de uma época, sem um pingo de ego na mistura, “but well, it’s just like, my opinion, man”.

    E Aí, Meu Irmão, Cadê Você (2000)

    A filosofia sensorial sóbria dos irmãos, cultivada desde os idos da Universidade de Cinema de NY, perturba com êxito o marinheiro de primeira viagem em águas serenas de tubarões invisíveis, mas há o que falar quem essas águas ainda faz afundar e revisitar, logo após sobreviver do último mergulho. Logo, E Aí, Meu Irmão, Cadê Você? segue como um tiro pela culatra, em forma mais de ensaio que um verdadeiro filme dos Coen, nos moldes tradicionais da filmografia vigente. Ao adaptar o intrincado e vasto poema de Homero, fica a impressão de tentativa válida, contudo jamais páreo para os outros trabalhos da dupla. Os irmãos compreenderam que o que tinham em mãos era uma metáfora com suas criações, e simplificaram em suas decisões o material original na forma de uma belíssima fotografia que salta aos olhos, e nas expressões faciais conflituosas, basicamente, do trio de condutores deste “road-movie” frio, incomunicável nas suas ondas de sintonia que se chocam simultaneamente. Uma obra que tem vergonha de ser tudo o que poderia ser, de emoções abafadas por uma espécie de legitimidade que não chega a lugar nenhum em belos compostos cênicos, como fragmentos de uma contradição. O aperfeiçoamento prático da sabedoria pessoal dos contadores da história, todavia, são tão legíveis quanto o instinto humano de sobrevivência e de autodestruição, aqui retratados pela visão particular dos Coen, nem tanto, pela primeira vez. Na falta de experiências realmente construtivas no pacote encabeçado por Clooney, Turturro e Tim Blake Nelson, fica na memória uma cena memorável da Ku Klux Klan, e a certeza de que os irmãos Coen entram de vez na sua fase adulta deste ponto em diante.

  • Crítica | Uma Viagem Extraordinária

    Crítica | Uma Viagem Extraordinária

    O atual cinema francês não tem nada de atual, é de tradição e de comprometimento social como vem tentando ser desde os anos 60, com a resistência de grande parte da crítica e dos cinéfilos franceses, temerosos – no fundo – pelo tamanho das garras e presas da globalização prestes a engolir tudo e todos, muito além da terra do croissant e de outros clichês idiotas. Em termos de prestação de serviço ao registro da vida do público, de mistificar o que não cabe em jornais ou revistas, o cinema française mistifica e expande o sentido de seu microcosmo sócio-político como, hoje em dia, nenhuma outra filmografia de qualquer país consegue fazer, e esse é o principal de seus méritos: não apenas evitar ser uma televisão gigante com fatos não descartáveis, se atendo apenas a interesses públicos, como foi no século XXI o cinema inteiro da América Latina, mas ser mais teatro do que TV, muito mais nobre do que o horário nobre da telinha – como Alan Resnais tratou objetivamente de provar na ‘‘peça filmada”, ou no ‘‘filme encenado”, que é Amar, Beber e Comer, grande e rica obra de 2014.

    Mas nenhum filme desde a virada do milênio encantou tanto o mundo feito Amélie Poulain, de 2001, com um visual acachapante (e a beleza de Tautou) em prol do impacto que uma história simples e comum pode ter, se contada usando todo o poder absoluto da sétima-arte. Esse filme levou às grandes massas um cinema até então muito ligado à intelectualidade exagerada, digamos, algo arrogante e frio como ficou conhecido desde os tempos que Godard, Chabrol, Rivette e outros cineastas mandavam no jogo da exposição artística – de novo, com muito desdém pela turma mais antiga, acostumada só com Renoir e Carné, artistas de cinema em estado bruto. A Nouvelle Vague também já é passado, e, agora, Uma Viagem Extraordinária é a consolidação, o fruto do que começou no ano de 2001, quando o cinema do sotaque parisiense e do l’amour e da revolución ficou mais pop e livre do que nunca. E todo mundo, claro, amou e está amando o que não precisa mais ser rebelde – mas que não evita ser quando é preciso.

    A beleza e o encantamento como difusores de um conceito. Esse é a ideia, iniciativa e visão de Jean-Pierre Jeunet, o mais comportado dos surrealistas, justamente por ser mais expressionista que surreal, apesar de brincar de um jeito único com as duas vertentes. Para o artista, usar a lupa da graça ao analisar a vida neste mundo é básico, é uma obrigação a ser alcançada em cada facho de luz contra as sombras da desgraça. Com influência visual de grandes artistas do passado, franceses, americanos, e principalmente britânicos, poucos cineastas filmam o mundo de maneira mais viva e exuberante que Jeunet – Malick e o fotógrafo Roger Deakins podem entrar na lista. É burrice dizer que a estética de Amélie Poulain já não encanta mais, 10 anos depois, pois quem ainda não conhece o cinema de Jeunet vai se encantar do mesmo jeito ao assistir à obra, ao absorver a história francesa (em solo americano) de um jovem gênio, Spivet, um guri carismático que decide cair no mundo em busca de um prêmio conquistado por uma de suas invenções – que mais remete a um daqueles projetos de Da Vinci.

    O fantástico vem da extravagância que faz o filme ser o ícone de si mesmo. Tudo é visto pelo deslumbre que só uma criança vê o banal, o cotidiano, que não tem mais graça, visto da janela de um trem por um adulto, já integrado demais na vida real. O garoto Spivet é irmão do menino de Os Incompreendidos, cada um em uma realidade, mas unidos na curiosidade pelo proibido; ambos netos de Cabral e Colombo, todos sedentos pela promessa do além-abismo devido à sede pelo amanhã. Assim sendo, antes de ser um cientista, o moleque é descobridor da vida, e antes de ser um artista, Jeunet é adulto o bastante para expor sua criança interior na pele de outra, e sem medo de ser feliz. O resultado é o melhor e mais belo filme infantil desde O Garoto da Bicicleta, de 2011, na tradição do primeiro filme da história a se dedicar ao universo infanto-juvenil: O Ator Tokkan Kozo (1929), do mestre Yasujiro Ozu.

    Uma Viagem Extraordinária pode investigar o papel da criança no mundo de hoje, diferente da época do filme de Truffaut, mais livre e inteligente do que as gerações passadas para se libertar de dogmas familiares e descobrir seu lugar no mundo, de forma prematura. Ou ainda, pode debater o autoconhecimento através das relações pessoais que uma viagem nos traz, a todos nós, independente de nossas idades, por que não? Acima de tudo, atrás da paleta de cores e da experiência audiovisual que nos convida a assistir várias vezes o filme, sempre descobrindo algum sentido novo, com certeza é indiscutivelmente gratificante quando o cinema americano brinca de ser francês, e brinca de maneira tão graciosa.

  • Crítica | Bravura Indômita (2010)

    Crítica | Bravura Indômita (2010)

    bravura indomita

    A adaptação do romance de Charles Portis feita pelos irmãos Coen talvez seja o trabalho menos autoral da dupla de cineastas, pois não tem os traços característicos mais marcantes de suas produções, como o humor negro e a complicada cadeia de eventos que acomete e dificulta a vida dos protagonistas. Porém, não é menos significativa por isso. Ao optar por uma ótica e narrativa mais diretas, temos contato com o outro lado, também talentoso, dos diretores.

    A história se inicia com a órfã de pai extremamente inteligente, educada e perspicaz Mattie Ross (Hailee Steinfeld) em busca de alguém para trazer Tom Chaney (Josh Brolin), o assassino de seu pai, à justiça. Para isso, tenta contratar o caçador de recompensas Rooster Cogburn (Jeff Bridges), que aceita o serviço a contragosto. Também se junta ao bando o Texas Ranger LaBoeuf (Matt Damon), que há anos procura Chaney por um assassinato de um senador cometido no Texas.

    Bridges compõe um personagem peculiar, pois ao mesmo tempo em que se mostra um bêbado e em decadência, mostra um faro apurado ao ser colocado no encalço de seu alvo. Misturando um sotaque carregado com a fala confusa característica dos alcoólatras, Bridges cativa o espectador ao flertar com um típico anti-herói, que, apesar de antagonizar a protagonista, no final faz de tudo para salvá-la.

    A protagonista Mattie Ross também tem em sua pele a atuação impressionante da novata Hailee Steinfeld, que logo de início convence o espectador através da obstinação de sua personagem – que renegocia os pôneis de seu falecido pai – em um diálogo rico, rápido e extremamente inteligente, que lembra o estilo clássico dos Coen, mas em um tom mais sóbrio, condizente com a proposta do filme. A própria existência de uma adolescente, forte e dona de seu destino, em um contexto como o do Velho Oeste oitocentista, garante uma profundidade maior a Mattie, fartamente explorada tanto pelas situações em que é colocada como pela amplitude dramática de Steinfeld.

    Matt Damon dá a LaBoeuf a arrogância típica do texano, que traz um sentimento maior para com o seu estado do que para com o seu país, causando uma antipatia em Cogburn. Porém, após tantas disputas e certas trapalhadas, como morder a língua ao ser arrastado por um cavalo, LaBoeuf mostra um lado fraternal para Ross, como se estivesse tentando protegê-la tanto de Cogburn quanto do restante do mundo.

    Juntando três personagens tão diferentes com um mesmo objetivo, a dinâmica da narrativa se estabelece exatamente na evolução de suas relações e como todos aprendem mais sobre o outro, si próprios e sobre o mundo, especialmente Mattie, que acaba por enfrentar e depois matar Chaney sozinha, enquanto Cogburn protagoniza uma bela e épica cena de tiroteio contra o grupo de “Lucky” Ned Pepper (Barry Pepper), sendo ajudado depois por LaBoeuf em um tiro certeiro, o que restabelece sua confiança como atirador antes abalada justamente por Cogburn. Interessante também é a composição de Chaney, mostrado como um bandido inferior, submetido às ordens do outro, e que reage impulsivamente e de forma nem sempre inteligente às situações, contrariando a expectativa criada sobre um grande mestre do crime que engana as autoridades há meses.

    Tecnicamente falando, a produção é um primor em todos os aspectos. A fotografia de Roger Deakins traz os mais belos planos do Oeste, nos lembrando a todo instante das razões pelas quais o gênero conquistou tantos espectadores com o passar das décadas. O figurino, o design de produção e a maquiagem passam toda a brutalidade suja do Oeste, responsável por transformar homens em bestas que, depois de algumas décadas, seriam alçados à categoria de heróis e desbravadores do país.

    Bravura Indômita cativa, então, por sua seriedade e sobriedade, com toques de um leve humor, e por seus personagens que agem, reagem e crescem frente aos obstáculos em seus caminhos, criando-se um vínculo próprio entre eles. Vínculo esse que é friamente subvertido na cena final, onde a já crescida Mattie Ross procura Cogburn depois de 25 anos para prestar uma homenagem a ele e o encontra morto. Essa atmosfera áspera e melancólica do Oeste, que se reflete nas relações entre seus habitantes, é transferida para o filme, o que dá a ele uma carga emocional ainda mais intensa, já que poucos cineastas têm a sensibilidade de retratar o sul dos EUA com toda a complexidade social e cultural da região sem cair em clichês e estereótipos.  E essa produção traz exatamente isso: uma nova releitura sobre uma história bem conhecida mas que renova o combalido gênero western através de um revigorante sopro de qualidade.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.