Tag: Cary Joji Fukunaga

  • VortCast 102 | James Bond – 007: A Era Daniel Craig

    VortCast 102 | James Bond – 007: A Era Daniel Craig

    Bem-vindos a bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira | @flaviopvieira) e Mario Abbade (@marioabbade)  se reúnem para comentar sobre o encerramento da era Daniel Craig como James Bond nos cinemas. Quais foram os pontos altos e baixos, as polêmicas e o futuro da franquia.

    Duração: 74 min.
    Edição:
     Flávio Vieira
    Trilha Sonora: Flávio Vieira
    Arte do Banner:
     Bruno Gaspar

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    Comentados na Edição

    No Time To Die — Goodbye, Mr. Bond

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  • Crítica | 007: Sem Tempo para Morrer

    Crítica | 007: Sem Tempo para Morrer

    Após um grande início adaptando uma obra de Ian Fleming com Cassino Royale; uma sequência sem roteiro devido às greves de roteiristas em Quantum of Solace; uma queda e ascensão dividida entre tradição e o moderno de Operação Skyfall e a retomada da estrutura clássica em 007 Contra Spectre, o longevo personagem James Bond, personificado pela quinta e última vez por Daniel Craig, tem sua missão derradeira em 007: Sem Tempo Para Morrer.

    Finalizando a passagem do britânico pelo personagem, a produção do vigésimo quinto filme de James Bond foi carregada com uma maior expectativa do que suas predecessoras. O último filme com Craig, marco numérico sempre destacado pela mídia, foi marcado por entraves internos e externos à sua produção.

    A princípio, Danny Boyle foi escalado como diretor, mas se justificando com o batido “divergências criativas” abandonou a produção e, em seu lugar, Cary Joji Fukunaga assumiu a cadeira, tornando-se o primeiro americano a dirigir uma produção Bond. Com a mudança, o início das filmagens foi reagendado para abril de 2019 e a estreia programada para abril de 2020. Naturalmente, a necessidade do distanciamento social deixou o lançamento em espera até setembro desse ano quando grande parte do mundo possui uma estrutura mínima para, munidos de vacinas e máscaras, estar no conforto do cinema sem correr risco de vida. O risco, aliás, fica por conta do próprio personagem central.

    O início da nova trama se situa após os acontecimentos de Spectre e resume os elementos que definiram o novo Bond. Aposentado em um lugar idílico, ao lado de Madeleine Swann (Léa Seydoux), dá vazão aos laços sentimentais até o inevitável momento em que o passado retorna, explosivo. A grande cena de ação inicial é intensa, extremamente física, bem equilibrada entre a coreografia e um realismo possível, mantendo vigente a estética fundamentada por A Identidade Bourne e reverenciada pela versão de Craig. A cena intensa demonstra algo que o público da primeira temporada de True Detective já sabe: Fukunaga constrói cenas de ação com habilidade. A cena inicial injeta adrenalina antes da canção que abre o longa, No Time To Die de Billie Eilish.

    Após os créditos de abertura, a trama salta cinco anos no futuro. Como desenhado desde a produção anterior, é a tradição que rege essa aventura final. Se no enredo anterior se descobre que as intrigas foram orquestradas pelo SPECTRE, aqui outro elemento tão poderoso quanto surge em cena, contrabalanceando as forças, mas com objetivos semelhantes: a vingança e a destruição mundial, características comuns da maioria dos vilões megalomaníacos da franquia.

    Se em composições anteriores Bond pareceu um homem sem amarras, o personagem da geração 2000, composto de forma seriada em cinco produções, é formado com maior coesão cronológica e emocional. As perdas são lembradas com sentimento e dor e trazem a evidente constatação de que é necessário desapegar do passado para seguir, embora o passado profissional e as missões anteriores nunca fiquem, de fato, no passado. Entre o equilíbrio pessoal e emocional, e a frieza das missões cumpridas se destaque um personagem central que além da camada de espionagem, dos carros luxuosos, do esnobismo britânico e do diálogo feito de punhos, uma mensagem boba e simples de que os brutos também amam, sim.

    Em entrevista a GQ em 2020, o ator afirmou que elevou o nível do personagem para outros. Sem dúvida, o sucesso da franquia se deve a sua capacidade de manter suas estruturas básicas, mas, na medida do possível, se adaptar a novos formatos narrativos. Sob esse aspecto, talvez a era Craig tenha sido a modificação mais inventiva de Bond. Trouxe não apenas novas camadas trágicas aos personagens como também a possibilidade de quebrar a forma física do agente, pois, lembrem-se, o ator foi criticado no início por seu físico e por ser loiro demais. Foram modificações como essas que permitiram que Lashana Lynch surgisse em cena como a primeira 007.

    Sem Tempo Para Morrer é um falso título porque em um filme cuja missão é ser um desfecho a uma versão de Bond, tudo é uma celebração final. Em tudo há certo tom de morte e despedida como amigos que se desencontram, arqui-inimigos que se vão e, querendo ou não, não há nada de novo nessa narrativa. Mas, sim, uma conclusão natural de uma história iniciada em 2005 e que encerra seus enredos e o legado de Craig no papel.

    O ator e sua modéstia têm razão. O marco deixado em sua passagem será um desafio à execução do próximo Bond. Mas também abriu espaço para que novas facetas sejam exploradas, sem medo de reinvenções e sem o excesso de amarras da tradição. Como um personagem com maior aptidão para se reinventar, os produtores Michael G. Wilson e Barbara Broccoli devem ter algumas cartas na manga para o futuro dessa nova Bond.

  • Crítica | Beasts Of No Nation

    Crítica | Beasts Of No Nation

    Beasts Of No Nation - Poster

    Desde seu surgimento, a Netflix demonstra a intenção de modificar a concepção atual de recepção de conteúdos midiáticos, estabelecendo um novo padrão diferente do cinema e da televisão convencional. Após lançamentos bem-sucedidos de séries como Orange Is The New Black, House of Cards e de documentários como Virunga e The Square, a empresa realiza seu primeiro filme ficcional.

    Orçado em seis milhões de dólares, Beasts Of Nation se baseia na obra do nigeriano Uzodinma Iweala, publicada no país em 2006 pela Nova Fronteira como Feras de Lugar Nenhum. Dirigido por Cary Joji Fukunaga, o roteiro também foi de responsabilidade do diretor. Nos últimos sete anos, esteve moldando a narrativa, portanto antes do sucesso da primeira temporada de True Detective. A coerência da obra se apresenta desde o título, que não especifica nenhum local aparente e não representa nenhuma nação. História que simboliza qualquer nação tomada por forças impositivas, sejam do governo ou de facções internas.

    A jornada acompanha o jovem Agu (Abraham Attah), uma criança que vive em uma pequena vila africana em harmonia com a família. A princípio, é perceptível como a trama foge da concepção padrão da representação da África como um país miserável. Uma inserção de realidade cotidiana que cumpre a visão cinematográfica de muitas produções sobre o local. Em seu pequeno microcosmos, mesmo vivendo com dificuldade, Agu é feliz, e o ato inicial, quando rouba a carcaça da televisão do pai para brincar com amigos, comprova este equilíbrio. Após sua vila ser invadida por soldados, Agu se torna o único sobrevivente da família e, em fuga, é resgatado por um grupo de rebeldes cujo líder se autodenomina Comandante, sem nenhum nome além de sua patente, explicitando a desumanização da personagem.

    O público reconhece a jornada por antecipação. A visão realista imposta em cena agudiza o drama do jovem. Diante de um cenário desolado e sem nenhuma outra alternativa, Agu sobrevive para manter-se vivo em uma jornada rumo ao inferno. Inserindo o público na visão do garoto, que narra em breves momentos a história, compreendemos seu sentimento em relação aos acontecimentos. A personagem compreende elementos base, como a repressão do governo, a intenção dos rebeldes, mas tais concepções nunca são aprofundadas e são coerentes com a mentalidade de uma criança arrancada de sua vida infantil, adaptando-se obrigatoriamente a um mundo adulto ao qual nenhuma criança pertence. Emancipado pela violência, Agu sobrevive. A inocência do garoto é violentada pela sociedade e pelo Comandante.

    Interpretado por Idris Elba, ator que vem construindo aos poucos uma carreira de destaque no cinema americano, o Comandante é um personagem brutal que exala violência, tanto a personificação física como a truculência que o impede de enxergar a falha em suas táticas como possível guerrilheiro. Há uma cena que destaca seu deslocamento ao encontrar um binóculo roubado de um caminhão do exército e, mesmo sem saber manuseá-lo, ostenta o objeto com orgulho. Uma cena que simboliza um homem sem conhecimento, vivendo sob uma filosofia sem coesão além do império da ordem camuflado como um levante da população. Sobre ele reina a pretensa lei de que os homens locais devem assumir o poder, mesmo que não haja nenhum projeto para tal. Ainda que seja subordinado a um líder, é dono de suas próprias leis que resultam em um cenário agressivo, o qual eclode na violência e centraliza-se em Agu. O garoto, que outrora via o mundo por uma televisão invisível de sonhos, se transforma naquele incapaz de dormir devido à violência que foi obrigado a cometer.

    A produção é um reflexo da realidade em estado puro. Se a ficção científica Distrito 9 era uma simbologia sobre o apartheid, executada de maneira brilhante Beasts of no Nation evita qualquer metáfora para concentrar-se no cerne primitivo do homem, desgastando qualquer construto filosófico e iluminista para desconstruir qualquer evolução em sociedade, evidenciando o lado primitivo do homem e a violência imposta com mais violência. Um drama ao qual se assiste aflito pela jornada e pela percepção do que o recorte apresentado em tela é um reflexo cru e vivo das bestas que andam soltas pelo mundo, ainda que tais bestas sejam provocadas pela mesma evolução humana que fundamentou leis e direitos humanos.

    O longa foi lançado em 31 salas de cinema nos Estados Unidos, além de ser disponibilizado em streaming para assinantes da Netflix. Com um desempenho considerado fraco para os cinemas, a produção foi um sucesso, e nove dias após seu lançamento contabilizava três milhões de views somente na América do Norte, sendo que já havia sido visto em todos os 50 países que o sistema opera. Um sucesso que abre um novo caminho para produções além do circuito cinematográfico, demonstrando como a empresa foi pioneira em conceber produtos originais dentro de um novo sistema de mercado, que já conta com outras futuras produções originais prestes a estrear.

  • Review | True Detective – 1ª Temporada

    Review | True Detective – 1ª Temporada

    true-detective

    A escritora policial Dona Leon em seu primeiro romance, Morte No Teatro La Fenice, definiu semelhanças entre a função de um detetive investigador e a de um médico legista. Ambos partiriam de um mesmo elemento em comum – o crime – mas se movimentariam contrariamente. O médico legista, ao examinar o corpo, dá continuidade à ação natural. O exame à procura de indícios criminológicos é feito com base no cadáver, quando há um, ou em outras evidências forenses passíveis de análise. Em contrapartida, o detetive é aquele que parte do crime para resgatar momentos anteriores, reconstituindo a história com o máximo de indícios que a cena fornece e, a partir da construção do passado, busca a verdade.

    O gênero policial é um estilo narrativo que ainda resiste às hibridizações ou fusões com outros. Ainda que, no decorrer na história, muitos autores produziram narrativas diferenciadas, o princípio fundamental permanece imutável. Há um crime ou outro elemento transgressor e uma investigação que busca elucidá-lo. Atividade que se inicia na reconstrução de fatos, no retorno a momentos anteriores, como ponderou Leon.

    Há uma semana, a série True Detective encerrou sua primeira curta temporada. Manter o registro temporal é interessante para observarmos que sete dias foram suficientes para que uma quantidade considerável de informações, teorias e curiosidades sobre a série surgisse na rede a respeito de sua trama. São elementos que reforçam o bom enredo, teorizando-se sobre sua mitologia.

    Desde sua criação, qualquer seriado da marca HBO é formatado de maneira diferenciada, justificando o conteúdo inédito que se paga para adquirir o canal. Normalmente, suas séries são apresentadas com uma quantidade menor de episódios, filmados e finalizados meses antes da estréia. Uma confiança genuína no trabalho competente da equipe e dos produtores. Afinal, como afirma o slogan, não é televisão, é HBO.

    Além do “estofo” do canal, capaz de sempre atender à expectativa do público, dois nomes conhecidos no cenário cinematográfico são os produtores executivos da série. Atores que estão na indústria há longo tempo, conquistaram papéis importantes e buscam na televisão mais um motivo para fundamentar sua carreira numa época em que o cinema parece sofrer uma evasão de qualidade.

    Ainda hoje, a personagem do detetive é uma das representações românticas mais tradicionalistas. Um dos poucos heróis que resistiram ao tempo e não perderam o viço moral ou o senso de justiça – ainda que o noir e o hard boiled tenham distorcido esta linha com vigor. Escolher o gênero policial como estilo narrativo é um trunfo que tem riqueza dramática e agrada aos espectadores.

    Os detetives são personagens que vivem como resistência de um mundo caduco. Valendo-se do aprendizado da corporação e de uma sabedoria intrínseca para desvendar crimes, procuram restabelecer a balança entre o bem e o mal, devotados de uma causa invisível. O senso de justiça ou moral referido anteriormente faz parte de sua conduta, como se ser um agente da lei fosse maior do que uma profissão.  Mas uma vocação amaldiçoada, próxima de um vício difícil de ser largado. Uma obrigação inerente por desejar a justiça, ainda mais quando se reconhece em si habilidades para tal.

    São personagens que deixam a vida de lado em detrimento da profissão, vivem à margem de si mesmas e da família, porém respeitando o que consideram justo ou moral. Dentro de um universo desestruturado, a figura policial permanece como resistência romântica. A última guarda antes da falência da lei. Figuras dedicadas a uma causa maior.

    Como bastiões desta causa, surgem as duas personagens centrais da trama. As duplas de detetives são um dos recursos mais tradicionais da narrativa policial pela capacidade de dar ao público dois personagens, diferentes entre si, que fazem parte de um único conjunto necessário. Sem dúvida, Sherlock Holmes e John H. Watson formam a dupla mais icônica que se completa em inteligência e emoção, respectivamente. Tal recurso nunca foi abandonado e ainda está presente em obras contemporâneas, como a de Denis Lehane, e os detetives Patrick Kenzie e Angie Gennaro; ou de Jeffery Deaver, com o paralítico Lincoln Rhyme e Amelia Donaghy.

    Na série, Martin “Marty” Hart (Woody Harrelson) representa o policial tradicional que acredita em sua vocação e no senso de fazer o bem, tendo a religião como base moral. Crente na prosperidade da família, o detetive é o arquétipo comum que degusta rosquinhas quando chega ao trabalho, o que transforma a personagem de Rust Cohle (Matthew McConaughey) em um exemplo ainda mais estranho.

    Mesmo que se evite tal afirmação, a espinha dorsal da série está em McConaughey. Cabe a ele desenvolver uma personagem acentuada que cause estranheza, simpatia e erudição ao mesmo tempo. Rust entra na lista de policiais enigmáticos da ficção, um homem mergulhado no niilismo e agarrado a uma percepção racional da vida. Um severo agente da lei que reconhece a vilania do mundo e ainda disposto a lutar contra o mal. Rust é a citada representação romântica policialesca. Equilibra sua profissão entre uma intuição natural e a sensação de carregar um fardo nas costas. É devido a sua obsessão pela história dos assassinatos que chegamos ao desfecho da trama.

    true detective plot

    Os papéis fornecidos a Harrelson e McConaughey são duplamente ingratos. Sem um personagem representando com veracidade um policial comum como Marty, Rust perderia sua credibilidade. Parte da aceitação do público em compreender Rust vem do julgamento de Marty que, mesmo contra a corporação, confia na índole do excêntrico detetive texano. Ingrediente que fundamenta a antítese paradoxal e fundamental da trama.

    Como policial comum, o polo dramático de Marty situa-se na disfunção entre as crenças que profere e os atos que comete, díspares entre si. Já Rust, um tipo que assusta e conquista, demonstra em uma personalidade extremada seu desgosto com a escuridão do mundo. A parceria produz o inevitável laço em equilíbrio: o tradicional em comum em contraponto com o obsessivo intuitivo. Uma combinação que não é inédita, mas sempre se destaca quando bem fundamentada.

    A trama de True Detective é apresentada em três momentos temporais diferentes seguindo uma mesma linha narrativa. O período, notado pelo espectador no decorrer dos oito episódios, inicia-se em 2012 com depoimentos dos dois detetives – brigados – sobre uma investigação aberta a partir da descoberta de uma morte encenada (com provável intenção ritualística) de uma prostituta em uma plantação na Luisiana, em 1995. Em seguida, a série avança temporalmente para 2002, revelando o motivo que desencadeou a briga dos policiais e dando prosseguimento, dez anos depois, ao fim de parte da investigação.

    Ao produzir em tempos distintos dois polos narrativos, criam-se dois focos de luz em uma escuridão narrativa iluminada – e consumida pelo público – pouco a pouco, no decorrer de cada episódio. Um recurso que aumenta o interesse do público, ávido por saber por que as personagens parecem tão diferentes das décadas passadas, e fornece ao roteirista e criador da série, Nic Pizzollato, maior manejo para manipular a história e apresentar somente o que deseja, promovendo os ganchos tradicionais vistos em diversas narrativas.

    Além dos polos narrativos iluminando épocas específicas, ao fazer uso da memória como recurso, a trama sofre modificações do natural desgaste da lembrança. Afinal, a memória não é registrada da mesma maneira linear que se mede o tempo, mas construída por acontecimentos específicos, guardados em partes diferentes do cérebro – muitas vezes inconscientemente – e que podem trazer à tona lembranças que não necessariamente estavam ligadas. Dessa maneira, a história ganha maior obscuridade e elipse, intensificando o suspense, mesmo que o público acredite que tais personagens estão dizendo a verdade sobre o que investigaram.

    A escolha de uma morte brutal para abrir a série é outro recurso que conquista o público. Ainda que, para ser eficiente, chocar e ser significativa para o argumento, deve ser feita com cuidado. Afinal, desde a retomada das séries americanas, muitas histórias se debruçaram na solução de crimes. A morte como início chama a atenção inicial, mas só se mantém com boa condução narrativa. No entanto, ela é feita de maneira exemplar, focando-se em um elemento que desperta curiosidade: o medo no ser humano. O contrato realista estabelecido permite ao público supor, desde o princípio, que a história terá uma explicação plausível e que até mesmo os elementos mais incômodos sejam explicados.

    Sob tais aspectos mencionados, True Detective não se encaixaria como uma série brilhante se pressupormos que a palavra carrega uma inventividade inédita de alguma maneira. O público assíduo do gênero reconhecerá diversos recursos utilizados em cena. Porém, podemos afirmar que a série é exemplar, já que trabalha habilmente os recursos e clichês do gênero, dosando-os com cuidado para produzir uma história eficiente.

    Pizzolato trabalha com três pontos de tensão para fundamentar sua narrativa. Três elementos que passam pelo público, intensificando o teor temático: o primeiro está nos crimes brutais, assustadores por sua natureza agressiva; o segundo elemento vem da violência contra a criança e a mulher, fato que não só se reflete no mundo real, como também faz o público imaginar a perversa continuidade criminosa do assassino do referido crime brutal; por fim, os objetos e signos denotam uma seita. Uma tríade plausível que faz com que o horror cresça no público.

    A escolha da sulista Luisiana como palco dos crimes fornece o ambiente certo para desenvolver plenamente a tríade . A região é conhecida pelos elementos culturais diferenciados, o que deixa plausível um possível grupo ritualista. Devido a uma economia dedicada à agricultura, há muito espaço natural, deslocando a população e dando-nos a impressão de um local ainda não completamente civilizado em que a natureza engole os avanços humanos. Uma atmosfera obscura que potencializa o crime e dificulta a investigação.

    Ao iniciar a trama na década de 90, em uma época sem muitos elementos forenses, vemos uma dupla de detetives que produz o caso com o próprio suor. Uma investigação à moda antiga em que policiais sentavam-se em salas gigantescas de arquivo à procura de evidências, e iam de casa em casa tentando identificar suspeitos e encontrar os fios que teciam o caso. Ao discorrer sua história por quase vinte anos, observamos como as pistas se perdem com o tempo e encontrá-las se torna um exercício de paciência, como um quebra-cabeça que nunca será inteiramente finalizado. As situações vão se recriando aos poucos e definindo os motivos que trouxeram a queda das personagens, muitos anos depois.

    Com tais elementos apresentados até então, é perceptível que uma trama policial não siga as mesmas regras de um drama tradicional. Se muitas séries finalizam sua temporada fechando muitas pontas, às vezes munidos de um final feliz, narrativas policiais encerram-se na medida do possível. Isso é reflexo da funcionalidade das investigações que nem sempre encontram provas suficientes para acusar todos os envolvidos. Além disso, o decorrer natural do tempo que condensa lembranças deixa mortos pelo caminho e destrói arquivos e provas. Cabe ao público considerar se os elementos apresentados para a conclusão são falhos ou espaços em branco a serem preenchidos.

    Os cartazes que divulgaram a série apresentam uma citação de que o homem é a mais cruel das criaturas. Durante a narrativa de oito episódios, o ambiente e sua trama sufocam pela agressividade real. Ecoa a natureza cruel e primitiva dos homens, maldição que toca qualquer homem em algum momento da vida. Como Marty destruindo a família por causa de prazeres carnais e Rust mencionando, de maneira lacunar, o acidente da filha, dando-nos a inferência de que, talvez, por conta de seu histórico de drogas e bebida, ele mesmo possa ter causado a destruição da família. Retratos de um gérmen cruel da humanidade, impossível de ser evitado, mas capaz de ser combatido.

    Sobre o elemento sobrenatural ou ritualístico da série, Pizzollato novamente recorre à tradição policial para justificá-la. Criado pelo escritor Ambroise Bierce, Carcosa é uma antiga cidade destruída e misteriosa presente em um de seus contos de horror. A mesma cidade descrita por Robert W. Chambers, leitor de Bierce, no livro de contos O Rei Amarelo, em sintonia com a série. Nestas histórias, Carcosa é uma cidade amaldiçoada e, embora inferida muitas vezes como um espaço não pertencente à Terra, tornou-se sinônimo de um lugar desolado que carrega uma mística negativa, sendo citada em diversas outras obras ao lado do Rei Amarelo – a título de curiosidade, Carcosa também é nome de duas editoras voltadas para histórias de horror .

    A Carcosa de True Detective se transforma em um templo de adoração. Um local em que residem os mortos sacrificados e seus despojos, sendo a figura central uma estátua feita de troncos de árvores, caveiras humanas e mantos amarelos. Apoiado na realidade, não há explicação sobrenatural, exceto a própria natureza humana.

    Após o desfecho do crime, a personagem de Rust se abre pela primeira vez ao público e ao próprio amigo, Marty, desfecho definitivo que pondera explicitamente a funcionalidade da narrativa policial e do personagem detetive romântico. A luta eterna do bem contra o mal. A crença de que a luz, palavras de Rust, há muito ganha da escuridão.

    Em seu audacioso projeto de contar uma nova história a cada temporada, Pizzolato produz uma espécie de antologia policial que vem das tradicionais fontes do gênero e se traduz em uma nova série com uma excelente primeira temporada. Ao finalizar o primeiro ano com a câmera registrando a vastidão do céu escuro em contraponto com as estrelas, o público estava conquistado e, sem dúvida, colocará a série como uma das melhores da temporada. Trabalho em dobro para o autor que, em seu segundo ano, terá de criar uma narrativa à altura da primeira e conceber personagens que nos façam esquecer, mesmo momentaneamente, a ótima dupla formada por Rust e Marty.