Tag: Terrorismo

  • Resenha | Simpatia Pelo Demônio – Bernardo Carvalho

    Resenha | Simpatia Pelo Demônio – Bernardo Carvalho

    Por que os homens lutam?

    O novo livro de Bernardo Carvalho (Reprodução), Simpatia Pelo Demônio (Companhia das Letras, 2017), apresenta o conflito entre amor e violência compreendidos na esfera íntima e coletiva do narrador: o Rato. Com isso, o autor explora a desnível que por vezes atinge o crescimento das pessoas, que, enquanto são profissionais em sua área de atuação, por outro lado, são particularmente amadoras em relacionamentos.

    No início do livro adentramos o cotidiano do Rato, o funcionário de uma agência humanitária, autor de uma tese famosa sobre violência, que trabalha mediando conflitos ao redor do mundo. Ele é escalado para ir ao Oriente Médio pagar o resgate do refém (desconhecido) de um grupo terrorista.

    Na esfera íntima, o narrador é um divorciado que mantêm uma amizade com a ex-esposa enquanto se sente insuficientemente capaz de acompanhar o crescimento da filha devido ao trabalho que ele exerce. Rato é convidado como palestrante em várias partes do mundo e, em Berlin, inicia uma amizade com um casal homossexual por conta de uma amiga em comum. Um dos rapazes, o Chihuahua, flerta com o Rato, e logo conhecemos a bissexualidade do protagonista.

    Como o autor interliga a esfera privada com a particular? Uma situação de vida ou morte. Toda a preparação e experiência do Rato não impede que ele seja surpreendido por um homem-bomba no hotel em que se hospeda no Oriente Médio. A situação extrema desata um nó de lembranças emocionais na última tentativa íntima de reavaliar o que aconteceu e arrefecer a consciência na iminência presente da morte.

    Por que os homens lutam? Esta é a resposta que Carvalho busca responder ao longo das 236 páginas do livro. É louvável a pesquisa e a exposição do autor de conceitos da geopolítica da violência bem como as relações psicológicas por trás dos relacionamentos mantidos por chantagens emocionais. Percorremos conceitos importantes sobre mediação de conflitos e também inteligência emocional, contudo, do ponto de vista estrutural, o romance peca por conta da longa digressão utilizada para desenvolver o conflito.

    A chave do bom romance é criar perguntas ao leitor e manter sempre uma suspensão de desejo para que ele se sinta impelido a ler a próxima página. Entretanto, o que o autor experimenta é apresentar logo no início o conflito principal (a vida ou morte do Rato nas mãos do homem-bomba), e ampliar a digressão emocional do momento. O efeito empático de prolongar a nossa expectativa de sobrevivência do personagem sai pela culatra por conta do longo parêntese aberto pelo autor, chegando ao ápice de nem mais nos lembrarmos o que estava acontecendo no presente do Rato, pois o desenvolvimento emocional toma a trama.

    A digressão, embora necessária, não é cultivada com parcimônia. Nos interessa mais o Chihuahua, o parceiro homossexual do Rato, um mexicano experiente em atrair parceiros e retirar deles apenas o que lhe convém. Um verdadeiro vampiro emocional. A longa digressão é formada pelo fluxo de consciência do Rato, por isso acompanhamos a evolução do Chihuahua da ingenuidade ao profissionalismo. Antes sincero, reservado, e apaixonado, para mentiroso, manipulador e libertino. Bernardo escreve uma escalada fantástica do complexo personagem e tempera o crescimento com referências artísticas, notas sobre conflitos internacionais e pontos de vista interessantes sobre relacionamentos.

    Por fim, sobra em Simpatia Pelo Demônio a dicotomia entre amor e violência e o domínio dos temas pelo autor. Personagens bem construídos, complexos questionamentos sobre conflitos pessoais, coletivos, e referências artísticas. Contudo houve um exagero na estrutura do romance que pode tornar a leitura apenas um virar de página enfadonho para sabermos se o personagem morre ou sobrevive ao final.

    Texto de autoria de José Fontenele.

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  • Crítica | Fahrenheit: 11 de Setembro

    Crítica | Fahrenheit: 11 de Setembro

    Fahrenheit 11 de Setembro 1

    Mergulhando ainda mais no estilo documental que emula o jornalismo gonzo de Hunther Thompson, após dois anos do recolhimento de louros por Tiros em Columbine, Michael Moore apresenta uma faceta muitíssimo cômica da vida política estadunidense, começando a esmiuçar a controversa e duvidosa subida ao poder no ano de 2000 por parte de George W. Bush, uma questão mal explicada – ou nada explicada – até a atualidade, com toda a polêmica posterior que envolveria também a posição de Al Gore como vice-presidente do país. A alegação de que toda aquela movimentação seria um sonho fazia da fantasia uma boa medida de escape, ante uma realidade insana o suficiente para ser desacreditada.

    A cena ocorrida dentro da casa da lei, onde os senadores afro-americanos falam e tentam o apoio dos seus colegas, sem sucesso, é tão inapelável que mais parece um ato encenado, dada a completa ignorância que todos os opositores sofrem, mesmo com a clara manipulação de assinaturas. O desconforto ganharia as ruas, W. Bush não conseguiria sequer fazer a caminhada pela posse até a Casa Branca, dada a presença do povo na rua protestando contra ele. Toda esta movimentação ocorrendo após a declaração da Fox News, contestabilíssima, de que ele havia vencido na Califórnia, conquistando então a maioria dos colégios eleitorais.

    O retrato de cowboy, descerebrado, é arquitetado nos primeiros 12 minutos do longa de Moore, tudo para fazer crer que o político era na verdade um fantoche, parte de todo o circo midiático que fazia do público massa de manobra, acreditando que seu presidente não teria muitas diferenças entre eles. Um autêntico boi de piranha para interesses de mandatários mais poderosos. O encerramento da construção deste arquétipo é pontuado por um ensaio em frente a tela, onde Bush e outros parlamentares se maquiam frente às câmeras, emulando a falsidade de suas feições e expressões, igualando-as de seus discursos falaciosos e vazios.

    O artifício usado pelo realizador para desmascarar ainda mais a possibilidade de farsa do republicano foi um evento em uma escola, após o atentado de 11 de setembro, onde Bush teve imposto, por si e pelos assessores um ensurdecedor silêncio de sete minutos, diante de câmeras inclusive, possivelmente refletindo sobre a quantidade de acordos comerciais que ele, pessoa física e sua família, incluindo George Sênior, também ex-presidente, tinham com o clã dos Bin Laden, que tinha em Osama um dos seus principais suspeitos, sendo amputado a culpa quase automaticamente.

    O destaque que o documentarista dá a multiplicidade de discursos midiáticos – da faceta mais podre e manipulatória possível – é ímpar, pois destaca a alienação que a população tem ao ingerir palavras oficiais tão ambíguas, de que os inimigos existem e querem o sangue inocente, e de que deve o cidadão comum curtir suas férias sem maiores preocupações. O tratamento a base de sofismas é exibido de modo categórico, e no qual Moore acaba por destacar a maior isenção possível dentro da fita, não narrando as falas mais desavergonhadas, de pura manipulação midiática exercida sobre o povo.

    A ironia nada fina de Moore chega a ser rude, ao comparar a paranoia do cidadão médio americano a um comportamento baixo e egoísta, capaz de denunciar um vizinho pelo simples fato dele discordar da postura presidencial de avanço rumo à exploração do petróleo do Oriente Médio, além de tratar grupos de discussão, desde os mais simples, como potenciais terroristas. As táticas esdrúxulas de cerceamento de liberdade também são flagradas, como a proibição de viajar com leite materno, mas com isqueiros e caixas de fósforos liberados, mesmo em voo. A contradição não é perdoada pela fala ferina do cineasta.

    Mas não há somente cinismo na fala do realizador, há também uma profunda compaixão aos moradores de cidades menos abastada de dinheiro, que veem no ingresso ao exército a possibilidade de ascensão social. A investigação dentro do corpo de alistados é municiada por argumentos e falas completamente soltas, onde os alistados falam livremente, deixando ao público claro o nível de desinformação geral e claro, levando o espectador a possivelmente aderir à ideia do idealizador de Fahrenheit.

    Cada meandro, cada detalhe e cada close que Moore flagra serve para provar o seu ponto, gritando aos quatro cantos do mundo a quantidade de injustiças e contradições do modo belicoso como os republicanos governam seu país e o quão prejudicial é sua política externa. O modo como ele aborda o causo é bem menos sensacionalista do que em Tiros de Columbine, mais moderada e amadurecida, mas prossegue tenaz e inconspícua, sem medo de reabrir feridas ou de sofrer perseguição, sem receio de parecer exagerado sequer nas cenas em que apresenta os mutilados; claro, em cenas de forte cunho visual, que visavam aterrorizar a audiência, tanto quanto a política atormenta os concidadãos norte-americanos.

    No final apelativo, Moore se dedica a entregar panfletos aos congressistas, para que eles possam alistar os próprios filhos. O argumento comumente usado – e achincalhado – dito por bocas direitistas é como um mergulho ao mundo dos conservadores, que tem o intuito de resgatar os corações e mentes daqueles que não conseguem ver na política expansionista de Bush e companhia um problema tão grave e real quanto o é, e ao menos nesse ponto o documentarista acerta exatamente na verve, sem chance alguma de argumento contrário, utilizando as armas de seus rivais para fazer valer seus próprios pontos de vista. Em uma perversão que acalenta a vergonha do político-alvo, destacando o modo grotesco como tudo foi arquitetado.

  • Crítica | Sniper Americano

    Crítica | Sniper Americano

    Sniper Americano - poster internacional

    O chamado sonoro, anunciando a ação antes mesmo de qualquer personagem aparecer na tela, guarda as intenções de seu diretor em reprisar um tema que para ele é caro. Sem filmar dramas relacionados a conflitos armamentistas desde O Destemido Senhor da Guerra, Clint Eastwood apresenta uma nova versão da guerra ao terror – fazendo às vezes de Kathryn Bigelow – em Sniper Americano, utilizando uma figura masculina como ponto central de sua trama, diferente do que ocorreu com o recente A Hora Mais Escura.

    Chris Kyle, vivido por Bradley Cooper, representa um soldado fiel aos preceitos de sua pátria e à bandeira das forças armadas. Atrás da compleição resoluta, esconde-se uma psiquê frágil de um homem que se tornou bruto pela rígida criação conservadora e religiosa de seus pais. Desde cedo, o personagem é doutrinado a pensar que o mundo é habitado por criaturas maldosas. Na infância, os avatares desta perversidade eram prioritariamente os bullyers, às vezes alcunhados de “lobos”, revelando uma concepção baseada em um engodo que escondia o prejuízo que a superproteção do pai tinha pelo garoto.

    A personalidade de Kyle é baseada na fragilidade de espírito, que causa nele dificuldades de expressar seus sentimentos. O modo econômico com que Clint filma tais factoides talvez faça o analista desatento não perceber que o recurso não é inferido por pobreza de narrativa, mas sim por apego ao material original,  o livro Sniper Americano: O Atirador Mais Letal da História dos EUA, autobiografia que baseia a obra. A narrativa acompanha o protagonista enfatizando a simplicidade de espírito de sua personagem, emulando a frugalidade de sua alma.

    Os cortes rápidos, variando entre os dias que Chris passa nos alojamentos e as lembranças que tem com sua amada, Taya (Sienna Miller), fazem lembrar os melhores momentos de Billy Wilder. No desértico campo de batalha, ou nas estalagens verdejantes onde o treinamento ocorre, Chris recorda-se das doces memórias, daquilo que poderia motivá-lo a voltar vivo, além do patriotismo exacerbado e o medo fomentado pelo modo de governo do Partido Republicano diante das tragédias de setembro de 2001, artimanha essa que justiçaria qualquer barbarismo em terras estrangeiras, validando o revide àqueles que impingiram o mal à nação, independentemente de serem alvos fracos na visão dos machistas e xenófobos que inspiram e delegam ordem aos alistados.

    O decorrer das operações revela uma confusão visual causada pela caça aos inimigos islâmicos, visualmente agravada pelo efeito do breu da noite, e emocionalmente piorada pela discussão moral a respeito dos vitimados pelas ações dos fuzileiros. Apesar de algumas (raras) exceções, a maior parte do modus operandi militar é registrado de modo contemplativo, como se direcionado a um espectador desconfiado.

    A situação emocional se complica para Chris, que muito antes do desfecho já é considerado um herói de guerra, idolatrado por alguns veteranos, cujas vidas foram radicalmente modificadas pelo tempo em que permaneceram em combate. Ser agraciado por estes se torna um incômodo visível, ampliado pela forçada ausência em seu recentemente formado núcleo familiar. Assistir de longe ao crescimento dos filhos faz com que ele discuta internamente a validade de seu modo de vida.

    É curioso que um filão antes muitíssimo utilizado pela dupla Menahem Golan e Yoram Globus e sua Cannon Films esteja atualmente recebendo tanta atenção por parte do cinema de alto orçamento americano, quase sempre com um caráter revisionista, de forte crítica ao expansionismo imperial imposto pelos Estados Unidos nos últimos anos. Talvez a questão a ser mais discutida é o alvo desse tipo de reprimenda, já que Comando Delta, Desejo de Matar e Invasão U.S.A são filmes feitos quase que exclusivamente para transferir o ódio, antes dados aos nazistas e comunistas, para os islâmicos e árabes, filhos de Ismael, portanto “usurpadores da promessa a Abraão”. Proveitoso seria se os filmes norte-americanos refletissem sobre isto, ao menos como mea culpa.

    A filmografia de Eastwood visa discutir lados diametralmente opostos do belicismo, a exemplo de A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima. Em Sniper Americano, o diretor utiliza o símbolo da caveira do herói da Marvel, o Justiceiro (Punisher, no original), personagem cujo passado inclui um trauma na Guerra do Vietnã, com pecados morais bastante semelhantes aos de Chris, ainda que a abordagem que Cooper apresenta em seu papel possua mais nuances, mais detalhes e mais humanidade, muito bem mostrados no quarto final do filme.

    Apesar do exagerado ensejo presente no meio da fita, visando enfatizar os espectros familiares do biografado, é o minimalismo do realizador que predomina em meio à análise do material final. As cenas de ação são bem coreografadas, imitando um número de balé, ode dada ao deus da morte, uma divindade idealizada e distante do pragmatismo de quem analisa o panorama político de um ponto longínquo.

    Sniper Americano se propõe a ser um relato sobre os que se entregaram de corpo e alma a um ideal, a defesa da nação, mesmo que os motivos para tal sejam amplamente discutíveis, e ainda que tais situações espinhosas não sejam contestadas, como se esses assuntos complicados orbitassem um nível acima do pensamento rasteiro dos soldados.

    Passadas duas horas de filme, é revelado o destino do protagonista, cuja aura de conspiração envolve-o até a subida dos créditos do filme, não sem antes mostrar a bandeira norte-americana tremulando vorazmente, mais uma vez louvando a bravura dos soldados. Pesa contra o fato de o clímax ocorrer aproximadamente 30 minutos antes do filme se encerrar, fazendo com que todo o restante da película mostre o deslocamento social do soldado e um acontecimento fatídico cerceando sua vida sem qualquer possibilidade de ápice. O heroísmo do sniper até tenta ser resgatado nas cenas em que ocorrem as homenagens aos seus feitos pelas ruas dos EUA, o que por si só é muito pouco diante de toda a pompa anterior.

  • Crítica | A Entrevista

    Crítica | A Entrevista

    A Entrevista 1

    O narcisismo da curiosa persona do ditador norte-coreano é cantado por uma simpática menininha, que destaca os feitos hostis de seu país, além de xingar largamente a política dos Estados Unidos. Kim Jong-un (Randall Park) mostra-se como uma figura controversa, um personagem semelhante à caricatura dos piores líderes políticos da história. O modo como a figura pública é exibida é jocoso e distorcido, como se espera de uma fita de humor explorada por um comunicólogo sensacionalista.

    Dave Skylark, vivido por James Franco, é um apresentador que faz da fofoca o principal plot de seu programa, tendo já nos primeiros minutos de exibição uma revelação bombástica relacionada a Eminem. Cada mexerico que ele consegue tirar dos artistas é louvado por seu produtor, Aaron Rapoport, interpretado pelo co-diretor Seth Rogen, que repete a parceria razoavelmente boa, depois de É o Fim, com Evan Goldberg. A valorização da faceta cinza do jornalismo é a tônica do trabalho dos citados, e é em meio a uma das demonstrações de segredos grotescos de artistas que vem a notícia de que a Coreia do Norte executou um ataque terrorista.

    A perda de audiência mexe com o complexo narcísico de Skylark, que em uma pequena investigação percebe que o político asiático é fã de seu trabalho, e dessa forma o jornalista abutrino resolve tentar explorar tal estratagema. Passando por cima de todas as improbabilidades, Aaron é chamado a conversar com os representantes do tirano. O encontro se dá em um local ermo, distante da civilização, e ocorre rapidamente unicamente para o humorista acima do peso zombar da dificuldade que o ditador tem em utilizar informação, uma vez que os termos discutidos poderiam ser enviados em um simples e-mail. O que Un chama de estilo, os americanos acreditam ser “atraso”. Logo, o comunicador vira a notícia, sendo alardeado por inúmeros colegas que o criticam por glorificar um assassino.

    Uma agente da CIA intercepta os protagonistas com uma missão árdua. A dificuldade que Aaron e Dave têm em se concentrar em algo que não seja os seios de Lizzy Caplan, e sua Agente Stacey, é mais uma crítica superficial ao machismo implícito no modo de pensar do americano médio, que não consegue se concentrar sequer no belicismo que é comum ao dia a dia imperialista. A espera por uma propaganda velada ao capitalismo é cerceada, até mesmo por causa do caráter absolutamente debochado da fita.

    O modo como a Coreia comunista é retratada não é uma versão ainda mais pobre de Cuba: até os personagens estadunidenses se surpreendem por não haver fome nas ruas ou miséria nas esquinas de Pyongiang. Logo, Kim Jong visita Dave para tietá-lo antes da famigerada gravação. Apesar de toda a valorização do ridículo via pastiche, o modo como o roteiro mostra o líder coreano é até leve, com poucos defeitos realmente lamentáveis. O que realmente é execrável é a postura de filho rejeitado, que dá prosseguimento aos planos do procriador em uma tentativa de compensação, além da inveja clara à política super-capitalista dos EUA, nada que não seja esperado vindo de uma produção hollywoodiana. A figura demasiada carismática de Kim faz o apresentador se confundir com relação a suas preferências, certezas, missão e abordagem midiática, claro que através de uma análise política rasa.

    Com a polarização errada no posicionamento, Skylark passa a agir lealmente ao seu novo amigo, dando as costas aos seus amigos e nação, com um comportamento à la síndrome de Estocolmo, e do modo mais cretino possível. No entanto, o patriotismo e senso de dever falam mais alto, realocando a mente do personagem de volta ao lugar onde jamais deveria ter saído, “coincidentemente” no momento em que o roteiro perde um pouco do seu fôlego.

    A mácula de desrespeito em relação à figura do soberano do filme não é justificada em momento algum. Como mencionado antes, a crítica ao partidário não é profunda: mesmo nas cenas em que ele é mostrado nu, não há qualquer piada fácil, como referências a um membro diminuto, ou algo que o valha. A reviravolta comportamental visa desconstruir a imagem divina do líder ante os seus conterrâneos, claro, levando em conta o julgamento ocidental sobre a sua figura, o que certamente motivaria em qualquer adepto do personagem biografado um incômodo atroz. Mas nada que chegue perto da completa humilhação vista em Team America, de dez anos antes, que julgou seu pai, Kim Jong-il, como um puppet master infernal.

    O discurso de Un, ao ser questionado sobre os alarmantes números de famintos, destaca o embargo dos EUA ao seu país, assim como a alta massa carcerária, formando uma incômoda alfinetada ao país que se julga dono do mundo. O decorrer da entrevista é catastrófico, para os dois distintos lados. A posição de fragilidade de Kim Jong colaborou, inclusive, para todo o alarde do ditador, assim como a cena em que ele é executado.

    A revolução tosca acabou sendo televisionada e tratada a sério, não condizendo em nada com seu gênero humorista. Um preço alto, presumindo-se que os ataques a Sony foram promulgados por agentes de Kim Jong-un. Não há qualquer justificativa para a transmutação do filme, de comédia dentro de tela, para o drama fora dela.

    O posicionamento radical do tirano parece ter ocorrido mais por este não crer que qualquer sanção legal aos envolvidos na produção fosse atrapalhar as vendas de ingressos ou a propagação do ideal do que uma ofensa verdadeira à sua moral. O desfecho feliz, com Aaron, Dave e seu cachorrinho embarcando em paz rumo a América, exibe para o público a ingenuidade da fita, presente em cada ação, e em cuja supervalorização e desnecessária seriedade por parte das autoridades norte-coreanas – e das forças “terroristas” – transformou A Entrevista em algo muito maior do que deveria ser, atraindo uma atenção que não existiria certamente sem este tipo de publicidade.

  • Crítica | Fome

    Crítica | Fome

    82 - Hunger

    Estreia do diretor britânico Steve McQueen, Hunger (Fome) se passa na prisão de  Maze, onde os prisioneiros condenados por participar de ações terroristas do IRA eram levados. A história se passa em torno de Bobby Sands, (Michael Fassbender) um combatente do exército republicano irlandês, que lidera um movimento a fim de conseguir o status de “prisioneiro político” ao invés de prisioneiro comum, o que o governo da então primeira-ministra Margaret Thatcher se recusa a fazer.

    Mais do que um filme político, Hunger evita todos os clichês e se foca somente nos detalhes e nas características comuns de cada um dos personagens do filme, sejam os detentos, sejam os guardas. Tentando ao máximo fugir da panfletagem, McQueen consegue desenvolver uma narrativa onde importa mais discutir as motivações por trás dos atos daqueles guerrilheiros do que qualquer outra coisa.

    Usando uma estética da violência para se estabelecer o padrão das relações naquele ambiente, o filme não poupa o espectador de uma brutalidade crua e fria, mas que provavelmente choca mais os habitantes de outro país do que do Brasil, onde já estamos habituados ao tratamento desumano de nossos presídios, o que desumaniza também a sociedade e seus agentes do micro-poder responsáveis pela manutenção deste ciclo. As sequências mostrando o cotidiano paranoico de um guarda da prisão ao olhar minunciosamente o carro e sua rua, procurando por ameaças antes de ir trabalhar, mostra como a violência infligida ao outro sempre acaba por violentar também seu executor. Outra sequência também de tirar o folego é quando o batalhão de choque é chamado para conter uma revolta dos prisioneiros. Extremamente bem filmada, a cena consegue passar um realismo e uma ferocidade raras no cinema.

    Porém, sabiamente, Hunger não se limita a somente mostrar a violência. Há outros condutores de relacionamento. Depois de estabelecida a dinâmica do presídio, McQueen se volta para estabelecer as motivações por trás dos guerrilheiros do IRA. Vindos de uma Belfast onde todos se conhecem e frequentaram as mesmas igrejas, escolas e lugares públicos, Sands encontra-se com um Padre, onde explica sua próxima ação a fim de minar a credibilidade dos britânicos: uma greve de fome iniciada em sequência, com intervalos de dias entre os prisioneiros, onde ficaria impossível monitorar todos. Em um belíssimo plano-sequência de 16 minutos, o Padre Dominic Moran (Liam Cunningham) tenta, em vão, convencer Sands da loucura que seria impor aos amigos e família tal sofrimento. Mas Sands, em uma argumentação extremamente convincente e elaborada, fruto de uma imensa reflexão e ideologia beirando o fanatismo, se mostra irredutível.

    O terceiro ato é a consumação da greve de fome, onde somos forçados a ver agora um ato de uma violência auto-infligida de Sands em si mesmo, onde ele mostra ao mesmo tempo que é dono de seu corpo, e o sofrimento físico causado pelos britânicos naquele período de encarceramento não representam nada. A entrega de Fassbender ao papel também merece destaque, já que o ator, que já era magro, precisou emagrecer ainda mais 16 quilos a fim de gravar as cenas finais, onde Sands agoniza. Ele morre, junto de outros companheiros. O governo britânico não dá o status de prisioneiros políticos ao grupo, mas concede outras melhorias a fim de acabar com a greve e a pressão internacional. Se ao menos Sands não consegue seu objetivo principal, consegue, ao doar sua vida a uma causa, transformar seu corpo e sofrimento em panfleto político e expor ao mundo o que estavam passando, expondo também o autoritarismo dos anos Thatcher.

    Hunger se mostra então um filme sobre violência, das mais diversas formas, usadas pelos mais diversos pretextos, e como ela pode ser usada como forma de discurso. O principal mérito do filme, no entanto, é não se deixar cair em melodramas, ao executar com perfeição as cenas dramáticas com uma tonalidade séria, sem músicas que forcem o choro, que tentem exagerar ou mesmo diminuir o nosso sofrimento ao testemunhar tais atos. Dessa forma, é um filme corajoso, frio, e que nos tira do nosso lugar comum com uma brutalidade necessária para nos chacoalhar nesses tempos tão cínicos e insensíveis a dor do outro e a dor altruísta.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

    Ouça nosso podcast sobre Steve McQueen.

  • Resenha | O Lixo da História

    Resenha | O Lixo da História

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    A história dos quadrinhos nacionais esbarra na própria história do cartunista brasileiro Angeli. Considerado um dos mais influentes quadrinistas do Brasil, Angeli criou inúmeros personagens que já fazem parte da nossa cultura como Bob Cuspe, Rê Bordosa, Mara Tara, Os Skrotinhos, Wood & Stock, e tantos outros que colocaram o artista como referência no quadrinho nacional, ao lado de nomes como Laerte e o saudoso Glauco.

    Angeli foi o fundador da revista Chiclete com Banana, criada na década de 1980 e um marco para o mercado editorial de quadrinhos nacionais, tendo em vista a liberdade dos artistas para abordarem o que bem entendessem, mas acima de tudo a análise comportamental do ser humano sob uma ótica visceral da época. Nas páginas da Chiclete com Banana diversos personagens foram criados, boa parte dos já citados, além de tantos outros.

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    Contudo, as charges políticas que produziu para a Folha de São Paulo são consideradas por muitos o trabalho mais contundente de Angeli. Há décadas o artista publica seu trabalho na página dois da Folha, e desde então não poupa ninguém e nunca escolheu um lado fácil para tecer suas críticas políticas.

    Desde 2001, Angeli vem dedicando seu humor ácido em face da política internacional norte-americana e os conflitos no Oriente Médio após o 11 de setembro. A política de guerra ao terrorismo de George W. Bush não é poupada, sempre retratando os anos 2000 como um período sujo, marcados pela presença constante de sangue e de um tratamento à vida humana como meros peões em um grande jogo de xadrez.

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    O traço de Angeli retrata muito bem esses anos, sujo e visceral, mas ao mesmo tempo com um acabamento que denota a diversidade de estilos do autor. Sua arte na maioria das vezes não precisa de texto, fala por si só. A mensagem é clara. Nada é poupado, seja governos, crenças, ideias, Angeli atira para todos os lados, e absurdamente, quase sempre acerta.

    Todas essas charges são reunidas no álbum O Lixo da História, publicado pela Quadrinhos na Cia. em uma coletânea que faz jus ao conteúdo interno. A edição conta ainda com uma linha do tempo para entender melhor o contexto histórico relacionado com as charges publicadas.

    Angeli se mantém implacável: não nos deixa esquecer que os anos 2000 passaram muito longe de ser um período de paz em nossa história e relembra como vidas humanas são subvalorizadas em prol de interesses financeiros ou de poder.

    Compre aqui.

  • Crítica | A Hora Mais Escura

    Crítica | A Hora Mais Escura

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    A diretora Kathryn Bigelow parece ter apreciado a temática EUA vs Oriente Médio. Dois anos após faturar 6 estatuetas do Oscar, incluindo Melhor Filme, com Guerra ao Terror, Bigelow retorna com A Hora Mais Escura.

    A película que ilustra a caçada ao mentor dos atentados do 11 de Setembro, Osama Bin Laden (ou UBL, como é referenciado em alguns momento do filme), roteirizada por Mark Boal, já estava sendo escrita quando o anúncio da morte de Bin Laden foi feito, em Maio de 2011. Imediatamente Kathryn e Boal começaram a retrabalhar o roteiro para que o longa fosse condizente com os novos fatos.

    O resultado deste nos apresenta Maya, interpretada por Jessica Chastain, uma jovem analista da CIA que tem seu primeiro contato em campo interrogando prisioneiros da Al Qaeda no oriente médio – in loco.

    Inicialmente intimidada pelas técnicas de interrogatório, Maya possui uma evolução espetacular e brilhantemente interpretada. Anos se passam enquanto a mesma persegue pistas as quais, em boa parte do tempo, só ela acredita que estas devam levar a algum lugar. Jessica Chastain se supera de forma magistral e demonstra a crueza que, catalizada pela obsessão, transforma-se em convicção.

    O roteiro de Boal que trabalha com elipses temporais constantemente faz uso de capítulos para prosseguir com a narrativa. Os capítulos bem explicitados não levam o espectador a perda da noção  de continuidade. Ademais, o roteiro evolui muito bem quase sempre com, pelo menos, uma tensão martelando sua mente. A segurança dos envolvidos nunca é certa, e o transpasse dessa sensação é fortalecido por ótimas atuações do elenco. Destaque para Jason Clarke, Kyle Chandler e Jennifer Ehle.

    A direção de fotografia de Greig Fraser (Deixe-me Entrar) é eficiente e dinâmica, trabalhando com cenários diversos. Há, de fato, uma identidade visual bem trabalhada. Desplat (Árvore da Vida) toma as rédeas da trilha sonora que, ainda que extremamente mais notável quando escutada à parte, cumpre sua função narrativa.

    A Hora Mais Escura culmina em uma captura curiosa e bem conduzida. A cineasta coordena toda esta apreensão de forma precisa e sensata, sem jamais perder a linha. A Hora Mais Escura explora, ainda que uma versão duvidosa, o trabalho descomunal e personificado de uma nação para capturar o maior de seus inimigos. Bigelow, por mim você volta a esta temática o quanto quiser.

    Texto de autoria de Matheus Porto.

  • Crítica | O Homem Mais Procurado do Mundo

    Crítica | O Homem Mais Procurado do Mundo

    o homem mais procurado do mundo - poster brasileiro

    Desde os atentados de Onze de Setembro, a imagem de Osama Bin Laden adquiriu reconhecimento mundial. Seu rosto tornou-se figura central de noticiário e, de uma maneira torpe, foi rentável material de notícias, sendo uma espécie de celebridade. Nada mais evidente, portanto, que sua morte seja vista como um espetáculo.

    O Homem Mais Procurado do Mundo é uma produção realizada para a televisão com o intuito de dramatizar as horas que antecederam a operação militar que resultou na morte do líder da al-Qaeda, como também apresentar um resumo dos procedimentos que levaram a descoberta de seu esconderijo.

    A narrativa tem início com depoimentos dos soldados da marinha envolvidos na operação e de parte do grande escalão da inteligência americana. O didatismo dos testemunhos são tão evidentes que parecem muito semelhante ao estilo documental televisivo. Não há a intenção de expor verdadeiramente os fatos, mas apresentar uma versão da história oficial. História em que todos os soldados tem uma boa índole, acreditam na força americana e, acima de tudo, são regidos pela ética de batalha, sem subjugar o oponente.

    Aos poucos, o molde didático cede a uma dramaticidade cinematográfica, explorando dois pontos distantes da mesma guerra: o dia-a-dia dos Navy Seals e a inteligência da CIA que articulou a operação autorizada pelo presidente Obama. A precariedade das interpretações salvam-se por dois atores conhecidos do público televisivo americano: Robert Knepper e William Fichtner que voltam a dividir a cena após trabalharem em Prison Break. São essas personagens que se destacam por dar maior realidade dramática as cenas, além de trazerem ao público parte de seu carisma (os nomes podem parecer desconhecidos, mas os atores sempre estão presentes em séries ou em pequenos papéis cinematográficos).

    Mesmo que produtores tenham mencionado a dificuldade em desenvolver o roteiro da trama, devido aos documentos sigilosos da inteligencia americana, a necessidade em se produzir uma história chapa branca é maior do que uma narrativa bem realizada. A representação cênica não tira a ideia de que estamos assistindo a uma dramatização superficial que funciona somente se vista para compreender os acontecimentos que eclodiram na bem sucedida operação.

    O diretor John Stockwell (Turistas, A Onda Dos Sonhos) parece não se esforçar além do registro das cenas. Como tradicional documentário dramatizado – visto em demasia em canais de televisão a cabo – alcança seu objetivo de apresentar um acontecimento. Mas falha como produção cinematográfica que deseja ser.