Tag: Cinema Soviético

  • Crítica | Vá e Veja

    Crítica | Vá e Veja

    Há filme perturbadores, e há Vá e Veja. Provavelmente, sempre será assim. O convite do título não é à toa: o chamado não tem misericórdia, rumo ao nível mais baixo da alma humana – sem exageros nenhum, sobre isso. Cabe ao espectador ir até o inferno, e assisti-lo sem barreira nem blindagem alguma, mas de forma crua e objetiva aos horrores de uma guerra mundial, do ponto de vista de dois adolescentes que também assistem, despreparados assim como nós, e destroçados assim como nós, sua realidade na antiga União Soviética ser total, literal e irreversivelmente apodrecida. Muito já foi falado, negado e discutido sobre o terror que existe em Holocausto Canibal, Um Filme Sérvio e Necrofilia, alguns clássicos do gênero que chocam até o mais resistente dos homens. Mas nem um boleto bancário atrasado há um ano chega aos pés do horror psicodélico insuportavelmente real do clássico filme de Elem Klimov. Em uma palavra? Cruel. Noutra? Desumano. Choca por ser verossímil, impiedoso, e ao invés de tocar na ferida, a faz borbulhar enquanto produz um mal-estar inigualável.

    Eis um dos melhores filmes do mundo que precisa não apenas ser assistido, mas testemunhado por quem aguentar a sessão. Afinal de contas, nem todos aguentam um soco no estômago a cada um dos 130 minutos de exibição, nos quais a guerra se mostra exatamente como ela é, e potencializada por um encenação naturalista e acachapante, e sem igual na história do Cinema. Vá e Veja é tudo aquilo que os dez melhores filmes de guerra de Hollywood (faça sua lista) quiseram ser, mas os estúdios não permitiram. Klimov não quis chocar ninguém, mas sim expor, com todo o requinte cinematográfico que pode existir enquanto andamos por um pesadelo, a vida como ela é quando toda a animosidade do Homem recai sobre ela, e nela se infiltra, fazendo dela o inferno na Terra. A Terra, aqui, não vai além dos limites da Bielorrússia, quando uma pequena vila da região é invadida por soldados alemães, e o jovem garoto Florya é forçado a integrar um grupo de resistência, como era de se esperar. Está plantada a semente da loucura para termos a certeza de o umbral está vazio, e que os cavaleiros de Satã estão soltos por ali, loucos pela guerra e seus efeitos na raça humana.

    Tão bela, e tão destrutível quando quer ser. Florya então sobrevive, numa série de eventos que começam a remodelar sua personalidade (e que no final do filme, o deixarão mais envelhecido que um ancião centenário), e com a ajuda da forte e bela Glasha, ele conquista a oportunidade mais que custosa (a interminável cena da lama nunca pode ser esquecida) de regressar a vila que abandonou há pouco tempo, apenas para encontrar o massacre promovido por lá, e finalmente, quase na metade de Vá e Veja, começar a pagar seus pecados no seio de um conflito bélico diabólico, como se ele tivesse cem carmas de cem vidas diferentes para acertar as contas. Florya não encontrou fantasmas pelo caminho, mas algo muito pior: o fim da humanidade. Curioso como a zona em que tudo isso acontece tem um céu cinza sem fim, cobrindo a penitência de almas para sempre marcadas pela morte, o sacrifício, e a falta de esperanças por dias melhores. Nem mesmo para povos que nunca participaram ativamente de uma guerra arrasadora, como é o caso do Brasil, é impossível não sentir a dor e o lamento onipresentes aqui também apresentados na ausência do sol, e na predominância da noite, da neblina, e da absoluta falta (e silêncio) de Deus.

    Quanta emoção, quanta vibração cabe num filme? Em cada close arrebatador no menino Florya, temos em seu rosto, olhos, boca e rugas a certeza de que terror maior que uma guerra para a psicologia humana, não há. O poder de Vá e Veja não pode ser mensurado em nenhuma cena do filme, nem mesmo no seu todo, uma tarefa ainda mais impossível de ser feita na sua meia-hora final, quando a perturbação aqui é tão grande que chega a ser forte demais para a maioria dos espectadores. Temos como norteadora da narrativa a transformação de um garoto que absorve, em seus pobres e escuros olhos assustados, a insanidade de sua própria raça para consigo mesmo; metamorfose essa que nenhum outro filme jamais chegou perto de conceber, ao público, com tamanha potência, e ousadia para também nos transformar, quase que tanto quanto seus personagens danosos. Pessoas um dia livres, e sãs, mas que um dia foram trancadas todas juntas numa casa para queimarem junto dos seus parentes e vizinhos, e aos “sortudos” a quem a morte ainda não chegou, resta assistir a tudo, enterrados na podridão mundana, e com o mais soberbo dos terrores impedindo-os até de piscar devido a força das visões. A experiência aqui é por sua conta, e risco, e acredite: se nada aqui te impressionar, a vida já perdeu o sentido pra você há muito tempo.

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  • Crítica | Zoya

    Crítica | Zoya

    Produção do estúdio de cinema Soyuzderfilm lançada em 1944, Zoya é uma produção soviética, em preto e branco e um registro cinebiográfico da vida de Zoya Kosmodermyamskaya, uma militante e combatente russa que lutou contra a invasão nazista na URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). O filme começa com a chegada de uma pessoa estranha numa instalação militar que só tinha homens. Logo, percebem ser essa pessoa uma mulher e a levam até os lideres do regimento nazista. O sujeito dá um tapa com as costas da mão na mulher, interpretada por Galina Vodyanitskaya, basicamente porque ela se mantem em silêncio. Aos poucos, a história da personagem real é desenvolvida, com direito a um retorno à época de sua infância.

    Quando retorna ao passado, o filme relembra os períodos da Revolução Soviética e utiliza imagens reais de Josef Stalin, soando como uma propaganda do governo, mas sem compromisso de louvar a figura do líder soviético, mas demonstrando apenas o teor informacional. A forma como aparecem essas referências não tem demora, o foco narrativa nesse trecho é na construção do código ético da personagem, que já no início, era estabelecido pela sua militância e estudos, visando tornar a juventude em algo mais que apenas massa de manobra.

    No longa é retratado que durante a ofensiva alemã, uma das maiores armas contra a ideologia nazifascista foi a instrução da juventude, que ocupava sua mente com conceitos que punham o povo como soberano, um pensamento que tinha nos trabalhadores seu foco central e suas articulações, dessa forma, a ascensão do Fuhrer e de uma mentalidade segregadora batiam de frente com o ideal não só de Zoya, como de todos os seus contemporâneos. Ora, para aquele juventude não existia alternativa senão o combate de forma veemente a ideologia de Adolf Hitler, Benito Mussolini e outros líderes de extrema-direita.

    O filme foi lançado em Novembro de 1944, alguns poucos meses depois de Dia D onde as forças aliadas invadiram a Normandia, ou seja, é uma obra bem contemporânea. Os letreiros que descrevem as ações de Zoya dão a ela um caráter de heroísmo, mas não tornam ela um incidente isolado, ao contrário, fica claro que ela e tantos outros compatriotas se juntaram no esforço de guerra contra o Eixo. Falando assim parece maniqueísta a premissa, e de fato é quase impossível não soar assim dada a época do filme, mas o exemplo da personagem-título serve demais ao propósito de mostrar como prevenir a simpatia ou tolerância ao nazifascismo.

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