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  • Crítica | Bastardos Inglórios

    Crítica | Bastardos Inglórios

    Você já viu filmes de guerra, mas nunca viu a Guerra (Segunda Guerra Mundial) segundo os olhos de Quentin Tarantino. Essa frase estava presente nas propagandas de Bastardos Inglorios, filme do diretor de Cães de Aluguel e Pulp Fiction, lançado em 2009, após o insucesso de Grindhouse, participações no seriados CSI, e obviamente, as duas partes de Kill Bill. Como sempre, o realizador usa de sua sutileza ultra-violenta que já vinha empregando em inúmeros outros trabalhos, e de referencias ao grande cinema de Hollywood, como John Ford e companhia, para mostrar um pastiche do que era o confronto dos aliados contra o Eixo, através de um pequeno grupo de exterminadores de nazistas.

    Os primeiros momentos da história mostram uma burocrática conversa inquisidora, que mistura o tédio de um diálogo em inglês entre o coronel Hans Landa, de Christoph Waltz, e o fazendeiro Lapadite (Denis Menóchet), e a tensão de uma família judia, escondida embaixo do assoalho, ao ter um encontro ainda que indireto com o chamado Caçador de Judeus, um predador que se considera um falcão atrás dos ratos (ou como um rato que pensa como esses outros ratos…), mas que aos poucos se demonstra mais parecido com uma cobra venenosa e sorrateira, capaz de pegar suas presas, mas também enganadora, como a serpente do Éden, que ludibriou Eva e Adão para que traíssem o criador. O paralelo que o oficial nazista faz na verdade leva em conta um rato, mas toda sua descrição tem mais a ver com o caráter traiçoeiro de réptil, além é claro dele apresentar características camaleônicas de disfarce de seus ideais.

    Os dois comportamentos obviamente tem algo em comum. Landa manda metralhar a sangue frio as crianças judias que estão escondidas, da mesma forma que os Bastards – escritos errados na grafia original, como Basterds – espancam um soldado do Fuhrer com um taco de baseball, que é empunhado por Donwtiz (Eli Roth), o Urso Judeu, um soldado folclórico e com uma alcunha única, feita para diferencia-lo dos homens comuns. Tal rivalidade pode ser encarado – de maneira errônea – como duas faces da mesma moeda, dois lados ideológicos postos em contraponto como se tivessem o mesmo grau de desprendimento da civilidade. Isso não poderia ser mais errado e contrário a realidade, já que são violências que não se equivalem, uma vez que um desses grupos representa o povo oprimido, mas que busca revidar essa violência contra os próprios opressores.

    As razões que os fazem agir assim são extremas, porque claramente não se combate uma força extremada com pacifismos ou tolerância. É de fato uma briga ideológica, onde quem não mostrar força simplesmente perece. De certa forma em seu roteiro, Tarantino utiliza os atos soviéticos do exército de Josef Stalin para exemplificar qual era o modo ideal de aniquilar os inimigos preconceituosos e intolerantes. É quase como se a boina de Aldo The Apache Raine fosse um tenente soviete em meio aos americanos bonzinhos, colocando pólvora em suas cabeças, tornando estes figuras capazes de se defenderem sem depender de apoios táticos ou manobras militares, escondendo isso através do sotaque forçado e falso que Brad Pitt emprega ao longo de todo o filme.

    Há uma clara referência do roteiro a resistência antifascista até na escolha da trilha musical. A música de Ennio Morricone remixada não tem as mesmas características líricas de Bella Ciao, mas segue como canção que também serve como hino contra o extremismo fascista, apesar da freqüência musical ser em sentido bem diferente ao seu ritmo, e curiosamente The Surrender – ou La Resa – pára assim que Donowitz desfere o primeiro golpe de bastão na cabeça do oficial nazista e isso não é à toa, quando a violência pragmática ocorre, a música inspiradora pacifista já não tem mais espaço.

    Na hora que Aldo marca um soldado alemão com o ferimento que se tornaria a cicatriz da suástica na testa – hábito este que sempre acompanharia os mensageiros – o diretor simplesmente abre mão das sutilezas que vinha alimentando, mostrando pleno domínio de sua arte, dando-se ao luxo de provocar seu público com elementos tão diferentes e em tão pouco tempo, conseguindo a proeza de mesmo com essas condições, fazer tudo soar harmônico.

    Emanuelle Mimieux, a dona de um cinema francês é abordada por um sujeito chato, um soldado alemão, vivido por Daniel Bruhll, que parece interessado por sua beleza, e que a cerca de maneira infeliz e inconveniente, ao ponto de faze-la se encontrar com Joseph Goebbels (Sylvester Groth), de maneira coercitiva, mas aos olhos dele, nada havia de errado. O filme nas suas entrelinhas se torna quase didático, ao mostrar o modo de operar de organizações fascistas, a violência e truculência é normalizada.

    É irônico como recai exatamente a Sossanna, com outra identidade, a oportunidade de estar em seu cinema todo o crème de la crème das forças alemãs num espaço fechado e festivo a eles, tudo muito perfeito, até a chegada do terror da moça, Landa. Mélanie Laurent consegue reunir em uma pequena expressão, de levantar lentamente seu pescoço até o seu detrator como uma expressão sutil de seu medo, receio e instinto de sobrevivência que a faz tentar soar fria, mesmo que esse equilíbrio seja tão difícil, ainda mais diante de toda a dubiedade de caráter do personagem de Waltz.

    Os cinquenta e três minutos de filme permitem não só explorar a agressividade típica da guerra, mas também diversos de seus frontes. A introdução do major Dieter Hellstrom (August Diehl) é quase tão cruel quanto a demonstração de Landa, embora ele não seja tão dúbio, mas somente um soldado que não se furta em causar agouro aos seus opositores. Toda a sequência no porão, envolvendo o ainda desconhecido Michael Fassbender em um papel curto porém importante torna-se engraçada, apesar da quantidade exorbitantes de mortes ocorridas. O riso é uma válvula de escape diante do nonsense e da caricatura que Tarantino traça, ainda que leve às tramas de traição e espionagem a um nível sério, o desfecho desses destinos é tratada como uma piada.

    A história proposta é capitular, mas ganha ares teatrais, com uma última parte parecida com os atos de teatro onde absolutamente todos os acontecimentos são resolvidos de maneira dramática, tragicômica e exagerada. Laurent veste vermelho, como uma dama da morte se maquia de forma propositalmente militar, riscando as bochechas com linhas semelhantes as de camuflagem. Toda a sequência no cinema soa tão atrativa que é quase doce, e a versão do cineasta para o fim de Hitler não poderia ser mais fantasioso e irônico.

    Apesar de quebrar paradigmas, Bastardos Inglórios não deixa seu personagem mais rico sair impune, as marcas que Landa tem em sua pele fazem parte da retribuição de Aldo e dos outros bastardos a todo mal impingido não só a eles mas a todo povo judeu. Sua nova casa e seu acordo ainda valeriam, mas sua aparência estaria marcada para todo o sempre, e toda e qualquer pessoa saberia quem foi e o que ele cometeu. A ideia de Tarantino era de estabelecer uma ode contra o comportamento nazifascista, com elementos  de discussão bastante adultos, sem deixar de soar divertido em última análise.

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  • Crítica | O Jovem Karl Marx

    Crítica | O Jovem Karl Marx

    O cinema político é o cerne da filmografia do haitiano Raoul Peck. Transitando entre o cinema e a TV, o diretor se tornou conhecido pelo caráter crítico e social de seus filmes, em especial com a indicação ao Oscar de melhor documentário por Eu Não Sou Seu Negro, sobre a vida e obra do escritor e ativista James Baldwin. No entanto, seu prestígio se destaca desde os anos 2000 em filmes como Lumumba, cinebiografia do líder congolês Patrice Lumumba; Abril Sangrento, sobre o genocídio de Ruanda; além de uma ampla filmografia sobre as mazelas sofridas pelo seu povo ao longo da história. De modo que não se mostra uma surpresa a escolha de Peck em filmar um período da vida de um dos teóricos mais importantes dos últimos séculos: Karl Marx.

    O Jovem Karl Marx, escrito por Peck e Pascal Bonitzer, com a colaboração de Pierre Hodgsonfoi lançado em um período bastante controverso de nossa história. Não apenas pela série de retrocessos sociais que os trabalhadores vêm sofrendo, mas também pelo avanço e crescimento do conservadorismo no mundo. “Se eu não usar o trabalho infantil outros farão e eu perderei mercado”, alega um empresário em determinado momento do filme, desculpas não tão distantes daquelas que costumamos ouvir hoje. Se tratando de Peck, não há coincidências. Seu cinema anda lado a lado com o nosso tempo.

    O trabalho do diretor procura discutir a constituição histórica do marxismo. Se voltando para a gênese da teoria social desenvolvida por Marx e Friedrich Engels (Stefan Konarske), o longa busca retratar todo o cenário do movimento revolucionário anticapitalista do século XIX, desde anarquistas, como Mikhail Bakunin (interpretado por Ivan Franek) a diversas variantes de socialistas. Culminando na construção do chamado socialismo científico que superava as teses idealistas e utópicas dos pensadores da época.

    Assim, o filme se inicia com um período bastante específico da juventude de Marx, a perseguição do Estado prussiano aos camponeses por conta do “furto” de madeira – lei que criminalizava qualquer cidadão que apanhasse lenha caída na floresta por se tratar de propriedade privada. O legislativo responsável pelo projeto de lei entendia ser necessário um alargamento do termo “furto” para essas situações, já que se versava apenas de mera contravenção penal. O absurdo era tamanho pois não se referia meramente de furto de madeira verde, mas sim a criminalização pela subtração de madeira caída e apanhada no chão ou ainda o recolhimento de madeira seca. Para Marx, ainda um democrata radical neste período, se tratava de um claro exemplo de mercadorização da natureza e uma adequação das leis segundo os interesses de uma maioria e não a natureza jurídica das coisas. A visão do direito para o pensador também sofreria modificações a partir de então.

    Essa criminalização culminou em prisões e até mesmo em assassinatos de camponeses pobres pelo governo, marcando profundamente o pensamento de Marx acerca do papel da propriedade privada e do próprio Estado. O fato é fundamental, pois, em poucos minutos do filme somos apresentados ao protagonista quando ainda  escrevia no jornal prussiano Gazeta Renana,  publicação que mantinha um postura severa à monarquia. Criticado pelos seus pares pela radicalidade de seu artigo sobre o tema (texto que pode ser lido no livro Os Despossuídos, da Boitempo Editorial), o acontecimento marca não apenas sua entrada na vida política, mas também o primeiro embate com questões “materiais” e não apenas filosóficas. Em cena, temos o primeiro rompimento de Marx com a escola de pensadores radicais democratas e idealistas, por se dar conta dos limites e contradições dentro da ordem e do caráter de classe do Estado burguês.

    A produção é calcada na tomada de consciência de Marx para um modelo teórico-econômico que seria desenvolvido ao longo dos anos, mas que tem como pedra basilar sua aproximação com Engels, as superações do pensamento crítico-radical e a definição da classe trabalhadora como o sujeito revolucionário. Todos esses importantes períodos da juventude de Marx são bem retratados, mantendo uma boa didática para os que não conhecem o cerne da obra do pensador, inclusive desmistificando a demonização constante do autor e sua obra.

    Após essa apresentação inicial, somos apresentados ao jovem Engels, no interior de uma das fábricas têxtil de seu pai na Inglaterra, mostrando uma revolta de mulheres diante da completa falta de condições e segurança de trabalho. Interessante notar como Peck retrata as contradições do parceiro de Marx, filho de um legítimo burguês que explora sem piedade seus funcionários, mas que ao mesmo tempo luta contra essa exploração. O contraste entre as condições materiais de Marx e Engels funcionam como um espelho ao longo do filme, seja pelo figurino de cada um ou pelos cigarros que fumam e os ambientes que frequentam.

    A união é apresentada em cena de maneira curiosa, após um encontro dos dois em que discutem sobre as obras A Situação da Classe Operária na Inglaterra, de Engels, demonstrando a face mais cruel do pauperismo a que estava submetido o proletariado moderno, e Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, em que Marx investe contra a existência do Estado político que aliena a participação direta das massas impondo-lhe a condição de Estado-não político. A cena se inicia sempre em plano e contraplano, remetendo a divisão dos dois. Ao longo dos diálogos, a câmera procura enquadrá-los num plano único, desenvolvendo uma aproximação que se completa na cena do jogo de xadrez em que, com o companheirismo já selado, observamos não só a união intelectual, mas também fraternal desses dois homens, ainda que estivessem em mundos divididos.

    Outro ponto interessante no trabalho do diretor é a sensibilidade e a congruência em caracterizar as mulheres do filme. Ao retratar Jenny Marx (Vicky Krieps), o cineasta deixa claro sua contribuição real na teoria marxista, não se tratando meramente de um papel passivo frente às decisões centrais. Ao abordar Mary Burns (Hannah Steele), companheira de Engels, destaca sua responsabilidade tanto à frente da organização de mulheres que trabalhavam em fábricas de tecelagem, como na introdução dos dois companheiros na Liga dos Justos, uma organização internacionalista de trabalhadores que se tornaria a liga dos comunistas.

    Dá metade para o final, o filme aborda tanto o processo de redação do Manifesto do Partido Comunista como também a luta entre as tendências do nascimento do movimento operário, retratando ainda o trabalho de desenvolvimento teórico das obras Teses Sobre Feuerbach, Miséria da Filosofia e A Sagrada Família, além de apresentar o rompimento com Joseph-Pierre Proudhon (Olivier Gourmet) e Wilhelm Weitling (Alexander Scheer).

    É certo que a obra se configura como um cinema didático, sedimentado em um roteiro verborrágico que procura explicitar ao longo de quase duas horas de duração diversas teorias e teóricos. O trabalho de direção de arte é bastante fiel, em especial no que diz respeito aos cenários e ambientações, ainda que minimalista, retratando uma Europa no auge do da Revolução Industrial, demonstrando com excelência as contradições da miséria existente nas ruas inglesas em comparação ao luxo dos salões franceses.

    O elenco se mostra bastante acertado com August Diehl interpretando Karl Marx entre explosões de arrogância, sorrisos sarcásticos e o desespero no olhar por não poder dar o melhor de si, seja à sua família ou a contribuição para a própria classe como gostaria. Konarske faz um trabalho interessante em sua interpretação de Engels, com as necessárias contradições de seu personagem e a gentileza de quem parece ter deixado de lado sua própria genialidade em prol do seu companheiro.

    Peck não faz proselitismo e foge de qualquer viés propagandístico, deixando de lado qualquer aspecto messiânico ou demonizado de seu biografado, entregando uma visão humanizada de Marx, repleto de alegrias e tristezas, contentamento e decepções, ainda que essa tônica passe por problemas típicos de cinebiografias que seguem certa fórmula. Contudo, seu cinema sempre deixou claro que não pretende ser tecnicamente exuberante, afinal, em entrevista ao jornal mexicano El Universal afirmou que “nunca quis fazer um filme para contar histórias, [pois] o cinema para mim era uma forma de fazer política”.

    Em outras palavras: somente o conteúdo importa, sendo a técnica apenas um instrumento para expressar com melhor qualidade as intenções e objetivos do diretor, uma ferramenta de engajamento político da sociedade. Remetendo a uma frase do próprio biografado: “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo”. Peck, assim como Marx, está interessado nessa transformação.

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