Tag: Eduardo Coutinho

  • Crítica | Peões

    Crítica | Peões

    Fruto do que costumou-se chamar de Cinema de Encontro, Peões é um longa de Eduardo Coutinho que investiga os detalhes mais íntimos da campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, focando o funcionário raso e suas conquistas trabalhistas, mostrando pessoas que dependem da renda dessa campanha e de como alguns deles conseguiram em meio a um governo neoliberal, alguns avanços do ponto de vista para uma sobrevida profissional mais digna.

    Após alguns momentos de entrevista com pessoas comuns é mostrado um dos lideres do movimento grevista de 1979, em dois filmes, Abc da Greve e Linha de Montagem. Tanto nas imagens de arquivo, quanto nas palavras dos entrevistados, há uma reverencia bastante patente na figura de  Lula, que aquela altura do pleito era franco favorito a ganhar a eleição presidencial de 2002.

    Coutinho gasta muito tempo conversando com gente simples, seja com os funcionários humildes que prestavam serviço aos partidários do PT ou com os parentes desses, e uma boa parte deles parece ser bastante consciente politicamente,  tendo uma base de pensamento tão forte com que alguns assumam-se como comunistas, vendo nessa ideologia um bom norte para os direitos do povo serem respeitados.

    Duas entrevistadas são bastante curiosas e bem enfáticas, inclusive em tom de crítica ao PT ainda antes deles subirem ao poder. Na primeira delas, a personagem reclama que o ideal do Partido dos Trabalhadores que eleva Lula a presidente, não é o mesmo dos seus tempos de militância, alguns anos atrás, ainda que faça a ressalva de que adora Lula e o ache inteligente, mas o seu programa de governo não engloba as mesmas pautas de outrora. A segunda, diz que no começo os partidários do PT eram mais agressivos, e partiam para o enfrentamento direto, sem medo de se machucar ou de serem encarados como violentos ou bárbaros. Os dois discursos são bem opostos a conciliação que se deu nos governos em que o partido esteve na cadeira presidencial, avessos a postura conhecida como Lulinha Paz e Amor, e talvez fossem proféticas quanto aos absurdos ocorridos com o partido no futuro, seja no Golpe a Dilma, na prisão de Lula em 2018 ou no antipetismo alimentado pela imprensa e oposição.

    Peões é um retrato muito realista do povo brasileiro, mostrando pessoas absolutamente comuns e que contrariam a máxima de que brasileiro não gosta e não discute política. As pessoas que são mostradas, cada um do seu modo, demonstram como a militância funciona nas camadas mais populares, provando que a pecha de que a esquerda é formada única e exclusivamente por pessoas abastadas que nunca tiveram necessidades reais é uma visão bastante preconceituosa e irreal sobre ela.

    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram.
  • Crítica | Eduardo Coutinho, 7 de Outubro

    Crítica | Eduardo Coutinho, 7 de Outubro

    eduardo coutinho 7 de outubro“Minha vida é tão pobre que eu preciso filmar”, diz Eduardo Coutinho durante entrevista dada a Carlos Nader, que viria a se tornar o documentário Eduardo Coutinho, 7 de Outubro, no qual o documentarista se torna o documentado. Tarefa nada fácil delegada a Nader pelo Sesc, devido às particularidades do seu entrevistado.

    A obra surgiu como uma proposta do diretor e produtor João Moreira Salles feita a Nader para que codirigisse, junto com Coutinho, Últimas Conversas – que seria o último trabalho do saudoso documentarista -, prontamente declinada por Nader por não se achar à altura de trabalhar com alguém que sempre considerou um mestre. No entanto, pouco tempo depois o Sesc viria a propor uma atividade com entrevistas de 15 minutos com octogenários. Assim, após o contato realizado com Coutinho e o convite aceito, a entrevista foi marcada para sete de outubro de 2013. O que, a princípio, seria uma produção de 15 minutos se tornou um filme de 73 minutos que, segundo Nader, se estendeu por aproximadamente 5 horas de conversa.

    O filme inicia com Coutinho chegando ao estúdio onde será realizada a entrevista; de modo habitual, o documentarista reclama da vida, da saúde, com seu delicioso mal-humor característico, e de suas queixas passa a conjecturar a respeito de palavrões e a origem de alguns termos. Uma típica conversa de nosso cotidiano que não parece importante, mas que muitas vezes diz algo sobre nós mesmos. O diálogo inicial à entrevista de Coutinho faz rima com seu trabalho de diretor, dando voz àquilo que a sociedade não parece se importar. Ao mesmo tempo, apesar de Nader não ver em Eduardo Coutinho, 7 de Outubro um trabalho tipicamente autoral, ele sabe como sua carreira tem muito de Coutinho e do homem comum. Coincidentemente O Homem Comum, seu último trabalho, diz muito sobre isso, e do mesmo modo fala sobre a filmografia de seu entrevistado. “Ser ouvido é ser legitimado. Mas quem quer dar voz para outro?”, indaga Coutinho.

    eduardo coutinhoSe para alguns cineastas o cinema deve sempre trabalhar com profundidade aos temas humanos, para Coutinho ela é ironizada e se torna motivo de zombaria para o diretor, que afirma que a humanidade está naquilo que é superficial, no cotidiano. O banal que nos humaniza. Coutinho era conhecido como o “cineasta dos outros” pela forma como estimulava uma conversa, a troca realizada entre entrevistado e entrevistador, a escuta legítima, a necessidade de se ouvir; e fazia isso como ninguém. Sabia da importância de, ao se realizar um documentário, não se esconder no anonimato de seus trabalhos. Isso é demonstrado por meio da simplicidade com que conduzia seus filmes, utilizando uma equipe pequena. A forma de uso de câmera, não fazendo a menor questão de esconder a aparelhagem técnica e, claro, o modo com que conduzia suas entrevistas, com a proximidade das cadeiras e a distância da câmera. Nader entende isso e, praticando o mesmo método de seu objeto de estudo, se faz ouvir. E Coutinho fala.

    O mestre dos documentários fala sobre seu processo de trabalho, suas escolhas, de sua maneira de ver o entrevistado, da importância do documentário em sua vida. Por sua vez, Nader utiliza cenas dos filmes de Coutinho para desenvolver a entrevista, como realizado em Hércules 56, de Silvio Da-Rin, o que acaba estimulando a memória do entrevistado a discorrer sobre a composição fílmica de tal cena e o que ela representa atualmente. O que nos leva a uma memória de Coutinho sobre uma cena especifica de Peões, de 2004, na qual o diretor se vale de 23 segundos de silêncio durante uma entrevista com um trabalhador, onde o inaudito é tão ou mais forte do que aquilo que foi dito. Coutinho deixa claro que entende o sofrimento que o “peão” sentia naquele momento de completo silêncio, mas que queria saber se ele conseguiria achar uma saída daquela situação. A saida do entrevistado é questionar o entrevistador da seguinte forma: “o senhor já foi peão?”. A resposta não seria outra: “Não”. Dizia Walter Benjamin que “os indivíduos silenciam-se diante de experiências desmoralizantes”, – pensador marxista bastante citado por Coutinho ao longo do documentário.

    Eduardo Coutinho, 7 de Outubro é filmado quase que integralmente em fundo preto e a figura do cineasta, sempre acompanhado dos cigarros e seu mal-humor otimista. Impossível não relembrar de uma das frases de um de seus entrevistados, “a vida é dolorida, mas foi boa”, no filme Canções. A vida é o banal que Coutinho tanto reverenciava em seus filmes. Vida são os choros e soluços de sua entrevista atrás da cortina, também em Canções. Algo que o cineasta sempre soube muito bem manipular e nos indagar se aquilo era cinema, mas que o próprio Nader nos responde: “Isto é vida, não é cinema”.

    Teremos que continuar sem Coutinho. Ainda bem que ficaram seus filmes.

    Compre: Eduardo Coutinho, 7 de Outubro

  • Crítica | Últimas Conversas

    Crítica | Últimas Conversas

    últimas conversas

    Invadir a privacidade alheia feito hospedeiro foi a sina de Eduardo Coutinho, compartilhada num mangue de estórias por nós; cúmplices. Muitos, hoje em dia, de vlogueiros a cientistas sociais, defendem que a privacidade deve, repito, Deve ser invadida (como vem sendo) para estreitar nossas laços e fazer das relações uma tela de cinema, exímia janela aberta que é (entre pessoas bem-intencionadas, detalhe). Mas caso o tal do privê seja assim, tão importante, tocando até nas vias do sagrado, Coutinho, nosso fotógrafo de almas, quebrou a quarta parede desde sempre, investigando até o fim e as facadas que recebeu o ser humano brasileiro (Cabra Marcado para Morrer), o que o move (Edifício Master) e o que alimenta (Um Dia na Vida, Canções e Peões, entre outros), virando famoso, ou celebridade anônima, por ser o menino xereta de cabelos brancos que sabe usar a curiosidade em prol de vasculhar as solitudes, mazelas e as putarias que causam ao Brasil o mérito delator de ter, entre seus melhores filmes, vários do cineasta assassinato no polimento de sua última lupa social: As Últimas Conversas d’O cara. Quem não queria narrar sua vida pra ele?

    Eu queria, mas minha vida é chata, desinteressante, normal, e ao saber disso, o cara faria abrir minhas experiências com a fúria de uma câmera IMAX na minha cara. Nos ensinou que não existe normalidade quando a mesma é filtrada pela “lupa de Coutinho”, remetendo pela metáfora ao ditado popular que Todos somos loucos, se olhados mais de perto… É que o importante à ele não era respeitar, mas tornar público, no limiar das funções da arte a realidade de um povo, usando como objeto o Cinema. Essa era a função do artista, potencializada nas vias da encenação no extraordinário Jogo de Cena, peça-chave e obelisco do Cinema mundial dos primeiros anos do séc. XXI – aula impreterível do sábio numa ação de glorificar imagens, sons e a palavra bem vivida.

    Nós não queremos que o filme acabe, simples. Se o que faz do homem comum um homem comum pode ser filmado, Coutinho tal Orson Welles grava em retrato e cinefilia a matéria-prima de um conjunto da obra que carrega, em cada exemplar, um testamento diferente. Não encaremos Últimas Conversas como obituário, dado que recolhe as visões de jovens brasileiros num terceiro mundo que desafia suas mentes globalizadas. Um genuíno ponto de partida, como todos os filmes d’O cara, bicho curioso que enquanto escrevo, não demora a perguntar pra São Pedro quem tem a culpa do aquecimento global aqui embaixo. A gente adorava as respostas do vovô. Os casos de outrora, eternizados por uma câmera eternizada por seu mestre. No dicionário de Coutinho, conclusão era reles verbete mudo. Sendo assim, ao arqueólogo do involuntário o caminho é a chegada.

    Falar de Últimas Conversas é discutir Moscou e remeter a Teodorico, o Imperador do Sertão e Jogo de Cena, de novo. Porém, o último de Coutinho nos reserva um sentimento de perda e novidade exalantes. Novidade devido ao admirável mundo novo que todo adolescente traz, dentro de si, alguns olhando para o mestre como se estivessem diante de um monge, outros para uma relíquia ultrapassada tentando entender o presente. E perda, pois os créditos finais logo vão subir depois de 90 minutos e… fim. São as Últimas Conversas! Seus registros, tão autênticos, consumidos por uma licença poética e delírio do que se extrai do audiovisual e inerentes ao ser, e forma estética. Relatos crus, mas olhando bem, apenas em sua essência, posto que jamais são no trajar mais refinado que sempre os permeia (no caso, uma montagem que expande os sentidos e não resume nada!). Coutinho era fera ferida, mas masoquista, graças a Deus. Por tudo isso, daí vem a birra do artista com a ficção, cozinhada e açucarada demais, a ponto até de perder aquele tal do caráter virginal e cru de suas obras pueris, e pueris como só.

    E quem não queria narrar sua vida a Coutinho?

    Tarde demais.

     

  • FLIP 2013 | Eduardo Coutinho e seu jogo de cena

    FLIP 2013 | Eduardo Coutinho e seu jogo de cena

    Abre-Coutinho

    Eduardo Coutinho é o grande documentarista brasileiro. Responsável por filmes como Peões, Edifício Master, Santo Forte e Jogo de Cena, Coutinho se tornou um nome central no cinema mundial ao investigar em seus filmes o olhar do diretor no documentário. Seu cinema é complexo, os últimos filmes repletos de teorização que alguém menos talentoso teria colocado em livro, mas Coutinho reflete sobre seu próprio cinema enquanto o realiza, criando uma obra única.

    O diretor é conhecidamente rabugento e arredio a entrevistas, mas a Flip acertou ao coloca-lo para conversar com Eduardo Escorel, amigo de longa data e montador de Cabra Marcado Para Morrer (além de Terra em Transe, São Bernardo e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro). Cabra é um dos filmes lendários do cinema brasileiro (nossa história tem alguns, filmes perdidos ou não terminados e que ainda assim influenciam profundamente a produção nacional): deveria ser uma ficção sobre movimentos de resistência camponesa na década de 60, mas teve suas filmagens interrompidas pelo governo militar; em 1984, Coutinho retornou aos lugarejos da Paraíba onde havia começado a filmar e fez um documentário sobre o filme que não foi.

    Mas Coutinho não é um mal-humorado, é, isso sim, um rabugento divertido. Durante 1:15 o cineasta foi escrachado e engraçado, contou sobre seu processo criativo, soltou pérolas de sabedoria ranzinza e pareceu se tornar um de seus personagens: um misto ambíguo de honestidade e atuação. Coutinho falou sobre isso, a diferença entre ter uma boa história e contar uma boa história e a todo momento chamou seus entrevistados de personagens e reforçou “é isso que eles são”. Eduardo Coutinho conta narrativas cuja matéria prima é a ficção.

    Foram exibidos dois trechos de filmes seus: a entrevista final de Peões, filme sobre os metalúrgicos da região do ABC Paulista, e um momento de Cabra Marcado Para Morrer. Depois de ambos, Coutinho contou sobre a filmagem dos longas e refletiu sobre suas próprias escolhas com clareza impressionante, talvez ele seja a pessoa mais consciente do processo cinematográfico que eu já ouvi falar (e já vi palestras de ícones como Abbas Kiarostami e Wim Wenders).

    Aos 80 anos, o diretor esbanjou energia, consciência, citações a Walter Benjamin e Marcel Mauss, Coutinho é um erudito e um teórico, mas tem a maravilhosa capacidade de condensar sua teoria em concretude. Na mesa do autógrafo, elogiei efusivamente Jogo de Cena e ele me respondeu com um entusiasmo genuíno e um sorriso afetuoso, assinou meu livro e escreveu “sem jogo de cena”, mas avisou “você sabe que isso não existe”.

    Texto de autoria de Isadora Sinay.