Tag: cinema lgbt

  • Crítica | Playdurizm

    Crítica | Playdurizm

    A relação entre fã e ídolo gera alta quantidade de fantasias, até mesmo em histórias de ficção. Playdurizm é um filme tcheco baseado nessa ideia de idolatria e fantasia. Narrando a história de Demir (vivido pelo diretor, Gem Deger), a trama apresenta um rapaz jovem, de orientação sexual LGBT, que passa seus dias vendo filmes de ação de qualidade discutível. Em um desses dias, ao acordar, percebe-se em uma realidade alternativa, dentro de um desses filmes que gosta. Passa, então, a interagir com Andrew (Austin Chunn), um ator de ação bastante canastra e seu ídolo nas telas.

    Demir estranha um pouco o lugar onde acorda, mesmo que esteja familiarizado com os cenários super coloridos que o cercam e com a lisergia luxuriosa das obras cinematográficas. Afinal, há uma diferença grande entre o que se assiste, em um cenário idealizado, e o que se vive. Como o personagem sempre demonstrou estar cansado da vida, essa alternativa parece tudo que sempre sonhou.

    Como diretor Deger faz escolhas não óbvias e bem vindas. Dribla a violência de maneira criativa, mostra o gore após algum momento de não consciência, oriundo de quedas, desmaios e outros eventos típicos de pessoas com algum nível de demência. Considerando que tudo pode ser apenas um sonho, é natural que seja assim. A transição para a sanguinolência mais direta soa natural, a evolução é bem feita e apresentada de maneira curiosa.

    Essa  é uma história de desajustados, de loucos com hábitos estranhos, que tem como animais de estimação bichos típicos de outras cidades – uma das pessoas tem um porco de estimação, mesmo morando em um apartamento. Então, estados alterados da mente influenciando em atos mundanos não é algo a se estranhar. Afinal, nada aqui parece ser de fato real.

    A trilha sonora é cheia de sons agudos, lembra os instrumentos sintéticos utilizados nos filmes slasher dos anos 80, especialmente Halloween ou suas imitações. A música embala bem esse mundo de relações proibidas, ajudando a tornar natural a mistura entre desejos reprimidos, sonhos molhados, fantasias não cumpridas e confusão mental decorrente de toda essa trama. Demir é um misto do adolescente comum com o heróis de filmes XXX que conseguem fazer o que querem. E isso torna Playdurizm um terrir sexual curiosíssimo, para além do vínculo com os gêneros identitários. É divertido e descompromissado, escapista, trata pessoas que seriam normalmente excluídas como um grupo real.

  • 10 Grandes Filmes do Cinema LGBTQ+

    10 Grandes Filmes do Cinema LGBTQ+

    “Eles nunca terminam em final feliz.”, é o que mais se ouve dessa temática que quando atinge o interesse do grande público, como no caso de Azul é a Cor Mais Quente, não pela qualidade do filme mas pela polêmica que provocou no festival de Cannes, em 2013, é algo bem raro. Os festivais o adoram, mas o cinema mainstream tem medo dele, sempre procurando a segurança de um beijo hétero para garantir uma ampla identificação lucrativa. Mas no cinema também há espaço para a figura lésbica, gay, bissexual, transexual, queer, ontem e hoje, a favor da representação e da visibilidade de quem foge dos padrões normativos. Talvez, um dia, um blockbuster com uma super-heroína drag queen alcance um bilhão nas bilheterias, e enquanto isso não vira realidade, por isso, o Vortex Cultural separou dez títulos para (re)assistirmos e celebrar a diversidade.

    Juventude Transviada (Nicholas Ray, 1955)

    O melhor filme LGBTQ+ sem ser um filme LGBTQ+. A relação de Jim Stark (a lenda James Dean) com o garoto John, interpretado por Sal Mineo, invoca um sentido dúbio que, se não claramente romântico, é ultra sugestivo a algo a mais que uma amizade masculina. Dos olhares ás intenções no filme do mestre Nicholas Ray (“Posso ficar na sua casa hoje, Jim?”), o clássico que usa as cores e o brilho do cinemascope de forma revolucionária evita a todo custo ser o Brokeback Mountain de meio século atrás, mas para bom entendedor, meia intenção já basta.

    Chá e Simpatia (Vincente Minnelli, 1956)

    Retrato do que era o bullying nos anos 50 antes de ser chamado de bullying, quando um jovem de classe média enfrenta todo tipo de dificuldade por fugir dos arquétipos padrões; por sua sexualidade cada vez mais aparente e controversa a dos seus “amigos” da escola, contando assim com o apoio de uma mulher mais velha e que acaba mudando sua vida. Apesar do absurdo final heteronormativo ao contexto mais ousado da história, Chá e Simpatia representa com perfeição, muita sutileza e um tanto além do seu tempo o quão difícil é ser diferente, ao invés de se tentar ser diferente, como ainda se julga, em uma sociedade intolerante.

    Tabu (Nagisa Oshima, 1999)

    Dois samurais, símbolos da masculinidade (seja lá o que isso quer dizer), interessados cada vez mais um pelo outro a cada cena que passa. A sabedoria do grande cineasta japonês Nagisa Oshima pode ser medida em pequenos detalhes conforme o tempo avança, como na tensão sexual metaforizada pela câmera tremida, nas reviravoltas e no suspense geral que verte dessa tensão que domina as cores, movimento e o ritmo da produção, como um todo. Um dos grandes romances da década de noventa.

    Má Educação (Pedro Almodóvar, 2004)

    No drama em torno de dois meninos separados na infância pela igreja católica, e no seu reencontro a partir de circunstâncias completamente diferentes na vida adulta, a narrativa que Pedro Almodóvar cria ao redor dos fatos verídicos e às vezes enganosos dessa história de reconciliação, e interesses dos mais variados é fantástica, fluindo um delicioso e instigante clima de imprevisibilidade, e mistério. Um filme corajoso por sua temática e inteligente na sua condução, possivelmente sendo o melhor do realizador espanhol.

    Mal dos Trópicos (Apichatpong Weerasethakul, 2004)

    O homem entregue sem limites para o desconhecido dos seus instintos. Para onde isso nos levaria num cenário propício e inconsequente para isso? Mal dos Trópicos é uma odisseia por essa possibilidade com o foco na atração passional entre dois filipinos, jovens e encarando com a maior naturalidade do mundo a sua paixão mútua, culminando na surrealista metamorfose de um deles em um animal e deixando a natureza decidir por eles o que é certo, e o que é errado. Clássico contemporâneo do impronunciável diretor asiático Apichatpong Weerasethakul. Eu falei.

    Como Diz a Bíblia (Daniel G. Karslake, 2007)

    O documentário que melhor explora no Cinema os dois lados da mesma moeda: O atacado e quem ataca, e o que melhor deixa claro o quanto esses dois valores se “enfrentam” com medo mútuo, além ou aquém do respeito pela humanidade do próximo. Surfando através de momentos e depoimentos emocionantes a respeito de igualdade, conservadorismo, liberdade, ignorância, respeito, família e aceitação, se muitos acham os filmes de Michael Moore grandes exercícios de investigação, Como Diz a Bíblia por pouco não os faz parecer amadores. Algo intensamente verdadeiro, provocador, reflexivo, chocante às vezes e sempre honesto.

    Além da Fronteira (Michael Mayer, 2012)

    Entre Romeu e Julieta havia um conflito, e entre Nimer e Roy também. Dois amantes separados por um impasse ideológico praticamente inextrincável – um é palestino, o outro israelense. Ambos tentando se enganar e viver da melhor forma possível o que sentem, à medida que a realidade que existe entre as fronteiras começa a cobrar um preço mais do que alto. O desafio era grande, e o drama é invariavelmente pesado para nos fazer sentir pelo menos 1% da dificuldade da situação. Diferente de todos os títulos dessa lista, Além da Fronteira nos lembra que não há amor sem as suas doses de dor, e sacrifício. Não neste mundo.

    Azul é a Cor Mais Quente (Abdellatif Kechiche, 2013)

    A partir de um encontro desencontrado de Adéle com Emma numa faixa de pedestres movimentada de Paris, o filme sela dois compromissos com a gente, um simples e um nada fácil: Responder a razão da cor da maioria das calças jeans no mundo merecer ser admirada (e desejada) como a mais efervescente que há, e como as paixões adolescentes podem ser adaptadas para o Cinema com toda a potência que elas nascem e porventura se mantém, e de uma forma ainda nunca vista até então, com o universo explodindo para isso em prazer, risos, lágrimas e matizes de ciano até o fim.

    Carol (Todd Haynes, 2015)

    Eleito o melhor filme LGBTQ+ pelo Instituto Britânico de Cinema, em 2015, Carol é uma grande homenagem aos grandes romances do passado, atemporais, revitalizados aqui por duas divas da Hollywood atual, Cate Blanchett e Rooney Mara, e pela visão magnifica do diretor Todd Haynes, sempre esnobado pelo Oscar. Defendendo a ideia de que arte é amor, e que amor é arte, e um não existe sem o outro, Haynes conjurou um filme-poesia numa das mais respeitosas obras cinematográficas desse século.

    Moonlight: Sob a Luz do Luar (Barry Jenkins, 2016)

    A jornada de Chiron, negro, pobre e gay pelas fases da sua vida dura é um triunfo semi obtido de tornar Cinema, por simples gestos minimalistas ou olhares de sensibilidade abismal, inúmeras noções e verdades inconvenientes ironicamente minoritárias dentro do que a sociedade já inferioriza, ou ignora. Moonlight é silencioso e todo contido em si, não poderia deixar de ser, e carrega consigo um gosto muito bom de ineditismo e de sucesso representativo oriundos de um autor tão novato, quanto Barry Jenkins.

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  • Crítica | Desobediência

    Crítica | Desobediência

    Sebastián Lelio chamou a atenção do mundo todo no ano de 2017 com o seu importante Uma Mulher Fantástica, o filme ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e faz história até hoje. Agora, o cineasta estreia em Hollywood com outro olhar acerca da sexualidade em Desobediência, um filme brilhantemente fiel a seu título.

    Ronit (Rachel Weisz) é fotógrafa em Nova York e precisa retornar a sua cidade natal depois da morte de seu pai, um rabino, mas Esti (Rachel McAdams) uma amiga do passado e que agora está casada com Dovid (Alessandro Nivola) desperta um romance antigo entre as duas e as regras dessa família judaica ortodoxa passam a ser enfrentadas.

    É clara a importância que o diretor dá às suas personagens, os planos geralmente fechados e silenciosos criam conexões muito íntimas com o elenco, esse que parece muito afiado com a direção de Lelio que prioriza gestos e demarcações físicas a seus diálogos, o que faz com que todos os sentimentos retidos e proibidos pelas personagens tenham protagonismo, tanto quando não aparecem e sabemos que estão lá, quanto aparecem e reconhecemos a força deles.

    O filme também se prova complexo na decisão de fazer de Desobediência não apenas um filme sobre romance proibido. Não é tão simples assim. As personagens têm um passado e ele se justifica pelo desenvolvimento de todo o enredo, principalmente dentro do contexto religioso que se passa a história. O papel de Nivola é o responsável por trazer esta nova camada, o local onde seu personagem se encontra é muito propício para narrativas já conhecidas, como um marido babaca, por exemplo, mas não, sua trajetória é muito mais proveitosa e significativa do que isso, sua relação direta e quase contrária a de Ronit com o falecido pai, bastante forte e chave para a temática do longa.

    Já Weisz e McAdams têm uma química belíssima, a crescente que leva à explosão da paixão das duas é muito delicada e crível, assim como quando o filme nos lembra o quão grandiosas são as decisões tomadas em um ambiente tão conservador, isso traz individualidade às personagens, fazendo presente a dureza de suas escolhas, tanto passadas quanto do presente. E como o filme se mostra muito mais sobre as desobediências do passado do que àquelas que ocorrem em tela. Um retrato quase subjetivo.

    Lelio fala sobre família, as que a vida nos permite escolher e as que nos são naturais; sobre as regras cotidianas e quais deveríamos quebrar; sobre religião e o quanto ela pode ser genuinamente o pilar de nossas vidas, mas quando devemos esquecê-la. E falando sobre tudo isso, o longa fala acima de tudo sobre amor, o amor de duas mulheres e o que veio e vem junto dele.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

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  • Crítica | Com Amor, Simon

    Crítica | Com Amor, Simon

    Eu odeio o fato do cinema americano precisar ser tão people pleasure business como acabou sendo, ou como foi engenhado pra ser, mesmo. Me refiro a essa parada de satisfazer as plateias a todo custo e evitar desconfortos, ou discussões a ponto de comprometer comercialmente uma franquia inteira, tal como ocorreu com Star Wars: Os Últimos Jedi. É um dos custos do entretenimento. Um dos custos de traduzir prazer em imagens em movimento, ao invés de preservar os culhões de um projeto de Cinema real, oficial. Com Amor, Simon é um projeto de cinema. Arriscado pela sua segmentação de público, raro por não ser mais uma comédia romântica de Nicholas Sparks, e falho por não saber ser tudo ou ao menos parte significativa do que poderia ter sido. Saudades do querido Lionel, de Dear White People

    Não há nada de errado com filmes, ou livros e games criados a partir do próprio marketing que vende-os no mainstream. Nadinha. Como não promover bem, até para um leigo em publicidade, o rótulo de uma “comédia romântica gay”, sendo o “filme” em questão um que não passa disso: Um rótulo, uma promessa. O problema, justamente, é quando a experiência não vai além das estratégias moldadas para a sua promoção; quando o produto se encerra em sua venda, algo que o universo da DC na telona amarga de forma simbólica, na cultura popular atual. Sobretudo, hoje, as pessoas compram muito pela emoção, pela validação social no status do WhatsApp do amiguinho, por exemplo, e foi também nessas peculiaridades da propaganda que Com Amor, Simon se apoiou com malandragem para ser um sucesso passageiro no competitivo mercado de cinema dos EUA, saturado de contos crepusculares sobre a relação de dois gêneros “opostos” que ninguém aguenta mais.

    A história não poderia ser mais previsível em torno de um garoto, branco, hétero (ops) e seus amiguinhos, todos de classe média e que passam pelas mesmas coisas que todo adolescente sob a influência da cultura norte-americana passa: Ansiedade, espetacularização de tudo, desconfiança familiar, estilização dos próprios sentimentos, etc. Curioso é perceber como o cineasta Greg Berlanti tentou florescer a vibe teen John Hughes para retratar os mesmos adolescentes da década de 80 que nunca mudam suas dúvidas, atritos e inseguranças nessa fase de turbulências gerais, aqui representadas na situação que muda tudo para o jovem e simpático (até demais) Simon: A primeira paixonite online (quem nunca, não é mesmo?). A faísca que ascende o motorzinho pra bombear mais rápido o coração virginal é tratada de forma objetiva pela história, até porque o romantismo anda capenga demais, e quando rola o primeiro beijinho sob os aplausos da panelinha, “ah, toda uma geração de LGBT’s jovens vai se sentir representada”, pensaram os marketeiros. E, de novo, eles estavam certos! O filme, ou melhor, o hype construído ganhou uma legião de fãs que só saíram do Tumblr e do Snapchat para irem nos multiplex de shopping glorificar algo que parece ouro, mas é de tolo. Isso é tão pós-moderno que chega a doer.

    Uma esquete de YouTube com um fiapo de roteiro que alongaram por duas horas e que emblema um par de fatores, extremamente atuais: A intolerância levemente menor do grande público por “novas” histórias com arranjos inusitados, devido talvez a falta de originalidade na ultra saudosista Hollywood de 2018, sem contar a verdadeira e cada vez maior não-necessidade dos jovens gays, e de todas as vertentes sexuais, de não precisarem, ao menos no Ocidente, se esconder mais nos armários que seus tios precisaram se refugiar, e onde tanto lutaram para seus sobrinhos não respirarem aquele ar, mofado. Com Amor, Simon encapsula a realidade do romance juvenil hoje em dia de forma realmente plena, sem exagero algum, tendo a noção realista de como as coisas são para os adultos de amanhã, e como certas normalidades se configuram para os que a vivem, algo minimamente esperado para um filme que escolhe debater na sua publicidade, sendo que na estória mesmo é tudo moldado de forma apática e inexpressiva, as paixões e a problemática que qualquer menino gay de dezessete anos é por elas imune de ser assolado.

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  • Crítica | Amor por Direito

    Crítica | Amor por Direito

    010220161609161Coincidência ou não, Amor Por Direito estreou no final de 2015, alguns meses depois da Suprema Corte dos Estados Unidos aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que só ajudou a reforçar a importância da discussão do tema de direitos civis.

    Após a descoberta de um câncer terminal, uma detetive da polícia de Nova Jersey e sua companheira registrada por união civil lutam para estender o direito da pensão após a sua morte à sua parceira.

    O roteiro bem estruturado do competente Ron Nyswaner, o mesmo de Filadélfia, se baseia no documentário de mesmo nome lançado em 2007 e que ganhou Oscar de curta-metragem. Toda a trajetória de Laurel e Stacie é muito bem conduzida ao longo do roteiro, a evolução das protagonistas é bem desenvolvida. Laurel inicia como uma mulher que esconde a sua sexualidade dos colegas do trabalho e termina como uma defensora do casamento igualitário, ao passo que Stacie vai de destemida porém retraída e acaba como uma mulher forte que aprendeu a lidar com a perda.

    Outro acerto de Nyswaner é trazer a importante discussão da luta de direitos igualitários para os dias atuais e assim levantar perguntas pertinentes. Por que a esposa de uma profissional competente não pode ter o seu direito reconhecido? A crença dos políticos deve se sobrepor aos direitos individuais? Até aonde a vontade da maioria pode prevalecer em detrimento a direitos?

    Porém, o roteiro apresenta alguns problemas. A já dramática batalha de Laurel Hester e Stacie Andree acabou ganhando um maniqueísmo desnecessário com o melodrama. Seria mais interessante trocar os vilões rasos que pouco acrescentam por personagens humanizados para justamente mostrar o absurdo que é a homofobia. O preconceito contra gays é praticado por pessoas comuns, amorosas, com falhas e não somente por vilões caricatos. O que poderia ser um grande filme político universal como o já citado Filadélfia (1993), de Jonathan Demme, Milk (2008), de Gus Van Sant, e Carol (2015), de Todd Haynes, acaba sendo um filme com questões importantes, porém limitado a uma militância que deseja catarse acima de tudo.

    A direção de Peter Sollett é sólida e o seu forte é a direção de atores, ainda mais quando dirige as duas protagonistas. Porém, ele peca ao apelar para a canastrice nas situações maniqueístas em os personagens se inserem. A composição dos enquadramentos nas cenas da praia também são o outro ponto alto.

    A atuação de Julianne Moore é de longe o melhor elemento de Amor por Direito, a evolução da personagem é bem pontuada pela atriz ao longo da narrativa, e do meio para o final do filme quando ela fica doente só reforça seu ótimo trabalho. Ellen Page como Stacie só mostrou a boa atriz que é, contribuindo para a sua versatilidade, e destaque ainda para Steve Carell que interpreta o alívio cômico Steve.

    A boa fotografia de Maryse Alberti é naturalista boa parte da obra, se permitindo um tom onírico nas belas cenas da praia e da sequencia final. A edição de Andrew Mondshein é invisível e cadenciada, mantendo o filme em um bom ritmo, se destacando igualmente nas cenas da praia e no final.

    A boa direção de arte de Patrice Andrew Davidson teve a ajuda do cenário de Joanne Ling, a cenografia de Jane Musky e o figurino de Stacey Battat, além da ótima maquiagem feita por um ótimo time que lembrou a transformação de Tom Hanks em Filadélfia.

    Amor por Direito é daqueles filmes importantes e que merecem ser assistidos mais pela importante história e os temas que levanta do que pela dramaturgia que apresenta.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Mommy

    Crítica | Mommy

    Mommy 1

    Apenas quatro anos após seu filme mais notório – Amores Imaginários –, o jovem realizador Xavier Dolan traz à luz um drama realista que põe em xeque sentimentos como impotência, desprezo por parte dos poderosos e mortalidade. Mommy inicia-se violento com um acidente em uma rodovia canadense, remetendo à constante preocupação da matriarca do clã Després, Diane (Anne Dorval), que tem de equilibrar a própria vida pessoal com os cuidados especiais dedicados ao filho. Seu estado nervoso é absolutamente compreensível, diante das agruras de Steve (Antoine-Olivier Pilon), diagnosticado com hiperatividade.

    O fino equilíbrio entre o fardo de ter de sustentar uma pessoa “inválida” e fornecer socorro se mistura à sensação constante de fim do mundo, resultado da impaciência com elementos externos ao seu próprio mundo e de possíveis ofensas à sua cria. A rotina da família mudaria em absoluto após Steve deixar o internato para retornar à casa de sua mãe.

    O modo agressivo com que a família se trata deveria pressupor desrespeito mútuo, algo questionado por personagens periféricos. A agressividade na verdade suaviza uma relação de extrema intimidade, em que impropérios servem para derrubar palavras hipócritas, escondendo também um enorme senso de preservação e proteção das duas partes. Somente Die pode “ofender” Steve, e vice-versa, sob pena de sofrer xingamentos violentos, acompanhados de adjetivações distantes do costumeiro comportamento politicamente correto.

    Os arroubos emocionais pelos quais Steve passa são registrados em estilo semidocumental por Dolan, equilibrando poucos momentos de docilidade (ainda que moderada e repleta de palavras torpes) e de extrema agressividade, tão feroz que faz de sua mãe uma vítima provável. O desespero flagrado tem uma urdição ímpar, graças à perícia no roteiro de Dolan, que não subestima o público, tampouco cai em fórmulas convencionais e conservadoras de contar histórias.

    O paradigma da solidão e desespero começa a ser quebrado aos 30 minutos de exibição com o surgimento de Kyla (Suzanne Clément), uma menina que se muda para o outro lado da rua, e que, numa extrema atitude de benevolência e altruísmo, oferece-se para auxiliar a família na árdua jornada, que mistura perversões, amoralidades e autodescobertas.

    O modo curioso como os Després usam o idioma francês é mais uma mostra do roteiro e o deslocamento compartilhado pelos iguais, como se a vida falasse de modo diferente deles, enquanto outros membros daquela microsociedade têm dificuldade ou completa inabilidade em acompanhar o ritmo daquela língua particular. Mesmo Kyla tem enormes contratempos ao se ver sozinha com o jovem, enxergando em si e no rapaz um estorvo ambíguo, que funciona bilateralmente, com bloqueios enternecidos involuntários motivados pelo inculpável portador do mal investigado.

    Os estigmas antes sugeridos ganham contornos de carnais realidades com o crescente sentimento de isolamento por parte de Steve e dos que o cercam. O ciúme que passa a sentir em relação a sua mãe faz proibi-la de ter qualquer flerte ou relação emocional e física que não seja por ele. A aproximação do espectro da solidão faz o rapaz se desesperar e agir de modo impensado até mesmo para ele, ferindo a si e, por tabela, machucando seus entes queridos.

    Os momentos finais guardam toda a melancolia anunciada no decorrer da fita, sendo absolutamente cruel para os personagens reais mostrados em tela. Depois do incidente maior, mostrado no roteiro, o fantasma da segregação finalmente paira sobre a existência dos Després, unindo dor, desespero e infelicidade dos que ficam do lado de fora do sanatório, e um pouco de entristecimento também nos poucos momentos de lucidez do protagonista. Mommy se baseia em um drama forte que depende da entrega irrestrita dos intérpretes para compor um quadro agridoce, retratando uma realidade frequente e inevitável.

  • Crítica | O Amor é Estranho

    Crítica | O Amor é Estranho

    O Amor é Estranho - Love is Strange - Poster Internacional

    Dois anos após a beleza poética de Deixe a Luz Acesa, o americano Ira Sachs retorna às telas versando, mais uma vez, sobre o amor. O roteiro escrito em parceria com Mauricio Zacharias aborda a história de um casal que, após 39 anos vivendo junto, decide se casar oficialmente.

    Ben e George, interpretados pelos sempre excelentes Alfred Molina e John Lithgow, são homens maduros que possuem a rotina, coerência e estabilidade de um casal que há muito se conhece. Vivem naquele momento em que podem falar a respeito de tudo com o outro e se conhecerem intimamente, sem necessidade de julgamentos, nem mesmo para reclamações cotidianas.

    Ao efetuar o matrimônio, a profissão de George sofre um abalo. Músico de uma escola católica, ele é convidado a se retirar de suas atividades por não mais seguir o código cristão estabelecido pelo local. Mesmo que sua relação nunca tenha sido um segredo para pais, filhos e professores, cientes sobre seu parceiro, a personagem reconhece a impossibilidade de ir contra uma sagrada instituição que ainda condena tais relações.

    A estrutura de vida do casal é modificada. O casamento, que deveria ser a consagração máxima deste equilíbrio, produz, inconsequentemente, uma separação física. O casal se vê obrigado a vender o apartamento em que mora e, até conseguir um bom local para viver sob novas condições financeiras, se hospeda em casas de parentes. George permanece na casa de um casal de policiais, moradores do mesmo antigo prédio; enquanto Ben vive na casa de um sobrinho, ao lado de esposa e filho.

    A distância do casal demonstra as dificuldades que qualquer relação, mesmo que longa e duradoura, pode passar. As personagens estão fora de seu ambiente natural, em um momento sensível após o casamento, e sentem-se desconfortáveis por viver uma rotina que não a delas. Um local com festas quase diárias, no caso de George; um quarto dividido com o afilhado, sem um local para dedicar-se à sua arte, caso de Ben. Dia a dia, os dois tentam superar a distância obrigatória.

    O roteiro de Sachs/Zacharias aprofunda-se nas personagens sem deslocá-las das rotinas que as cercam, demonstrando nestes locais como situa-se o universo íntimo de cada família. Tanto o casal quanto a esposa do sobrinho de Ben trabalham com a arte. Um ambiente carregado de dedicação criativa que, normalmente, necessita de um espaço próprio para desenvolver-se. Passando boa parte do tempo em casa, Ben não encontra um local adequado para inspirá-lo, algo que também impede Kate (Marisa Tomei), esposa do sobrinho, dar prosseguimento ao seu novo romance. De maneira suave, o longa também faz essa breve reverência ao labor artístico.

    A trama apresenta a história sem focá-la em um drama específico. Os conflitos são vistos com naturalidade e se destacam também em um dos diálogos de George, em uma carta dedicada à sua escola: “A vida tem seus obstáculos, mas aprendi cedo que é melhor enfrentá-los com honestidade”. Um recurso rápido e explícito de apresentar a intenção por trás da história. Uma ciência de que os problemas na vida são naturais, e de que espetáculos dramáticos a respeito devem ser evitados para serem resolvidos da melhor maneira possível.

    Sachs trabalha também com qualidade a composição das imagens. Se no filme anterior prevaleciam ambientes escuros apoiando a indecisão da personagem central, neste as cores são sempre claras e os ambientes iluminados, como se representassem pelas imagens a maturidade estável e o brilho do amor do casal.

    (Para uma análise mais completa da obra, a partir deste momento revelações do filme serão apresentadas. Sendo assim, pare imediatamente se não quiser saber sobre o desfecho da produção).

    O estilo escolhido para representar a morte de um dos pares é bonito, metafórico e simples. Impressiona pelo impacto posterior ao descobrirmos a morte por intermédio de seu sobrinho em um diálogo. Na referida cena, o casal se despede em frente à escadaria do metrô, ainda vivendo em casas separadas. A personagem que sairá de cena é quem desce as escadas rumo ao subsolo para o transporte. Bonita metáfora de travessia acompanhada por um longo fade out que parece anunciar o final do filme. Mas esta cena encontra um par com o momento final, do sobrinho caminhando de skate ao lado de uma garota. Durante a trama, o garoto revelou ao tio Ben uma paixão por uma garota desconhecida. Assim, não só inferimos que a personagem encontrou-a novamente como o passeio é apresentado de maneira hábil, com a câmera posicionada às costas deste novo casal e contra a luz do sol. Uma metáfora oposta à anterior, explicitando a sensação de paz e iluminação do garoto ao ter este encontro.

    Litgow e Molina, que sempre se destacam pelas boas interpretações, apresentam um bonito casal maduro que transparece a cumplicidade mútua e um amor raro de muito anos. O Amor é Estranho é um drama bem equilibrado que não transforma a idade ou união em uma carga desnecessária de sentimentos, produzindo a naturalidade e a capacidade de lidar com as adversidades da vida de maneira orgânica, com apurada narrativa poética.

  • Crítica | O Jogo da Imitação

    Crítica | O Jogo da Imitação

    O-Jogo-da-Imitação

    Morten Tyldum tenta fazer jus à biografia de um homem notável e peça fundamental para a computação, evolução tecnológica humana responsável pela quebra de paradigmas em vários campos. O Jogo da Imitação emula a invenção da máquina moderna, analisando delicadamente a trajetória do criptoanalista, matemático e pai da ciência computacional Alan Turing.

    Num primeiro momento, mostra-se um memorando de 1951, com um Turing – vivido por seu debochado intérprete, Benedict Cumberbatch – já resignado. A esta altura, o cientista já havia ajudado muito o seu país, realizando préstimos durante o confronto aos nazistas. Logo, o roteiro leva o protagonista para o crivo dos mandatários do exército britânico, com dificuldades em destravar um código dos inimigos, tendo no obstáculo em decifrar o Enigma um enorme problema. A persona problemática de Turing faz dele uma pessoa supostamente pouco indicada para o ofício, mas a pressa de frear a quantidade exorbitante de baixas de guerra faz o cientista e seu superior Stewart Menzies (Mark Strong) se alinharem com o mesmo propósito.

    Logo, a misantropia latente do pensador se manifesta, desagradando a cada um dos outros membros do laboratório para o qual trabalha. A equipe que estava em pé de igualdade com o cientista logo sofreu com um duplo infortúnio, sendo ambos incômodos, o cientista ao grupo e vice-versa. Alan vê na criação de sua máquina o único modo de lidar com as mensagens criptografadas, enquanto os outros tentam, em vão, distinguir o que é pronunciado em alemão. Após idas e vindas, os membros do grupo finalmente se unem em torno de um bem maior e da cooperação em completude, formando, então, a Equipe Ultra.

    Apesar de haver um problema no ritmo do filme, que algumas vezes recorre a uma monotonia latente, são os diálogos o principal aspecto positivo do roteiro de Graham Moore. O retrato da genialidade do biografado é muito bem feito, em alguns momentos muito mais inspirado que seu primo estilístico, também concorrente à premiação da Academia, A Teoria de Tudo. O Jogo da Imitação também ganha melhores ares por não ser tão preocupado em apresentar uma história chapa branca, protegendo bem menos os personagens que orbitam o herói da jornada, certamente pela distância muito maior de tempo entre a história que Tyldum narra e a atualidade.

    Mesmo contando com um elenco recheado de nomes conhecidos, nenhuma das atuações serve de comparação com a personalidade representada por Cumberbatch. Keira Knightley exibe uma performance apaixonada com sua Joan Clarke, mas nem de longe tão inspirada quanto no recente Mesmo Se Nada Der Certo. O mesmo pode ser dito de Mathew Goode, que faz o cientista Hugh Alexander, ainda que seja bastante plausível a sua face apagada, já que é uma bela escada para o trabalho do protagonista.

    O maior inconveniente da fita são os resgates ao passado, com cenas da infância de Turing, tendo de conviver com a genialidade que batia à porta e a dificuldade que tinha de ter relações com outros garotos. Tais partes da obra pouco servem ao enredo, sobrecarregando-o na maioria das vezes, visto que toda a mensagem de ódio de si do personagem principal é revelada na sua fase adulta. O molde e o costume de contar todos os meandros da vida do protagonista biografado são uma muleta desnecessária para tão rica apresentação.

    A corda bamba emocional a qual o herói se submete, convivendo com a sua cada vez mais indisfarçável condição sexual, atormenta-o por interferir diretamente em sua identidade pessoal, além de atrapalhar qualquer possibilidade de crescimento dentro dos desígnios militares. O flagrante da homoafetividade do protagonista não é feito de modo sensacionalista, pelo contrário, é usado como uma boa artimanha do roteiro para assinalar a paranoia que era parte da função dos matemáticos durante a Grande Guerra, e também o quanto sua personalidade é absolutamente solitária, fechada em si, não tanto por ódio ao outro, mas sim pela impossibilidade de se relacionar de modo minimamente saudável, dada a falta de sociabilidade tão entranhada em sua vida.

    A proximidade do gênio da computação com Winston Churchill, ainda que não seja mostrada em tela, é utilizada como modo de discutir a necessidade da guerra, porém de um modo nada óbvio. Apesar de não tratar os agressores de Turing como objetos de vilania, O Jogo da Imitação usa os aspectos da vida do matemático para ressaltar seus dotes científicos e a tristeza e miséria existencial, muito bem fundamentadas em Alan Turing: The Enigma, de Andrew Hodges. Apesar da grande quantidade de problemas na obra, o que fica na mente do público é a belíssima contribuição de Cumberbatch ao mito, assim como a generosa direção de Tyldum, que permite ao artista desenvolver seu papel sem limites, sobrepujando o formato do filme.

  • Crítica | Amores Imaginários

    Crítica | Amores Imaginários

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    O cinema do século XXI é um travesti com um leve complexo de inferioridade. Também é, pode-se dizer, formado por um quadrado ou triângulo de referências básicas e latentes, de vértices com nomes, ou melhor, sobrenomes: Federico Fellini, Stanley Kubrick, Jean-Luc Godard, e por aí vai. Uma trinca, no caso, que os tempos modernos homenageiam e derivam muitas de suas glórias através das intervenções desse trio responsável, sobretudo, de muito da estrutura na qual essa arte se apoia, para o bem e para o mal. E do ponto de vista francês da miscelânea atual, cada vez menos, mas ainda bem vanguardista, a passagem do tempo parece ser mais explícita na carne, e não é pra menos. Se vem de lá a película mais antiga, faz sentido as rugas serem mais fundas na terra mãe de Georges Méliès. Que responsabilidade pensa ter essa juventude; os bisnetos de Jean Renoir querendo fazer história.

    Xavier Dolan, após Eu Matei a Minha Mãe e o tropeção merecido de Tom na Fazenda, conheceu aqui o próprio valor, ainda não imprescindível, e confia nele como só! Tenta amassar uvas para transformá-las em vinhos de qualidade, e os sabores de sua safra inicial de nada (quase não) ofendem os paladares mais exigentes, muito menos os nutridos e sedentos por novos padrões de comportamento, e coragem a tanto, é claro. Feito um Pedro Almodóvar que fala uma língua mais globalizada e bissexual, com a bandeira protetora e bem-vinda de uma nova geração de intenções e mentalidades diversificadas, calcadas na liberdade de criação e longe de ditaduras, imposições monogâmicas ou marcas severas na testa, as cores de Amores Imaginários ilustram a alma de Oscar Wilde em tempos mais libertários que o século XIX (e por vezes de libertinagem como contraste bizarro, à gosto do freguês). De qual outra maneira, senão ambígua e irrevogável, a sugestão de um trio amoroso seria acolhida em uma versão fetichista da França dos dias de hoje, refém dos experimentalismos cheios de vida de Fellini, dos matizes do design de Kubrick, e da poética revolucionária de Godard que tanto estão presentes no DNA atual, nas veias de um cinema que começa na telona e termina no YouTube?

    Tudo batido no liquidificador das belas artes, com cuidado para elas continuarem belas, numa narrativa não linear regida pela emoção, instinto de cineasta ou seja lá o que brota da psique de quem brinca de Deus, tudo ainda meio tresloucado, imaturo no exercício, é verdade, de um jovem diretor que se perde no engatinhar das manobras entre o que a linguagem tem a oferecer, e o que a mesma tende a distorcer, ou ainda, a mistificar.

    A ética artística de Amores Imaginários, o juízo do filme, grava com ferro a identidade do longa, filmado à flor da pele com uma cinefilia pingando pela vontade de se fazer cinema a sério. Contudo, a mesma ética de Dolan tem um longo caminho a trilhar nos cumes onde pode vir a adotar préstimos, mas essa espécie de comédia romântica trágica prova que o caminho é esse, e prova isso talvez cedo, na melhor das hipóteses, por mais que sua trilha-sonora de balada eletrônica nos forneça um leve “déficit de atenção” quanto a profundidade da iniciativa de principiante. Fantásticas melodias, pontuando elementos perdidos nas várias intenções, essas carentes de uma sintonia maior que ficou na vontade, entre saltos altos, nicotina e confissões de amores não correspondidos. Um filme adolescente para o mesmo público, banhado numa imaturidade convidativa, no que acaba por ser satisfatório, por enquanto na carreira de Dolan, no prazer inenarrável de uma história contada por alguém que tem fé em ser, e que quase consegue expressar ser nesse estágio prematuro que um dia sentirá saudades, um menino prodígio.

  • Crítica | Tom na Fazenda

    Crítica | Tom na Fazenda

    Quando Xavier Dolan brinca bem de Pedro Almodóvar, Michelangelo Antonioni, Rainer Werner Fassbinder e faz ciranda-cirandinha com Pier Paolo Pasolini, todo mundo ama – e não é pra menos. As boas sacadas de imagem, o carisma, o desejo pelo mundo da moda e da música, a trilha-sonora cosmopolita e extrovertida que faz seus filmes terem uma identidade chave em meio a produção do cinema francês, tudo isso marcou até então o início do garoto prodígio, que agora volta para solo nativo, o Canadá. E, de uma hora pra outra, com um filme por ano, como Woody Allen, Dolan resolve parar de brincar e deixa o playground, se achando um cineasta maduro, sério, e todas as pretensões que o leitor/espectador possa achar mais conveniente. O criador de Amores Imaginários, o melhor da primeira fase dele, decidiu que, após três filmes, já estava na hora de ter fases, e resolveu imitar Lars Von Trier numa mistura de Anticristo com Brokeback Mountain, sendo que aqui um dos cowboys já morreu antes da história começar, anunciando a tragédia que Tom na Fazenda não assume a vergonha de ser – de existir, numa carreira até agora tão bacana e, por enquanto, promissora.

    O cara gosta de atuar, mas sem uma Monia Chokri ao lado fica difícil de convencer a dor existencial de quem perdeu o amor para a morte. O filme é totalmente assexuado, muito cérebro e pouco tesão; coração: zero. Totalmente abstracionista em conceitos e aplicações de éticas artísticas e consciências artísticas que Lawrence Anyways, de 2012 – ‘‘filme-fetiche” dos mais ocos, toscos e superficiais, que recebeu nota mínima na Escola LGBT Almodóvar de Cinema –, já dava indícios óbvios de que o processo de saturação da personalidade já havia começado, concluindo-se em Tom com cenas de dar vergonha alheia (o cara não sabe filmar a beleza de um nascer do sol) e de nos fazer duvidar da sorte de principiante que Dolan pode ter tido nos seus dois bons filmes de estreia, merecidamente ovacionados como propostas ousadas de recriação de formas, já empregadas desde sempre.

    Adaptado de uma peça de Michel Marc Bouchard, o drama é tratado de forma tão fechada e controlada, claustrofóbica, ofegante, que a emoção da história, os nervos à flor da pele a ponto de explodirem, se exala não pelo tratamento das personagens – o que não existe aqui, sendo que cada figura é fruto de estereótipos de um cinema velho, que nada condiz com a expectativa do talento ‘‘original” de Dolan –, mas sim pelo desejo que esse arremedo de história –e o pior, tratado como um arremedo – acabe o mais rápido possível, ou que alguma banda de pop-rock comece a tocar um sonzinho legal pra melhorar as coisas, pelo amor de Deus.

    O diretor (mais tarde a gente vê se é cineasta mesmo, pouquinho mais de arroz e feijão), já confiante que é o Quentin Tarantino da vez, se arrisca mais longe, muito mais alto, com Alfred Hitchcock (é aqui que a gente ri), e se não cai para a morte tipo Kim Novak para a decepção de quem o acompanhava com toda a expectativa do mundo, é atacado pelo o que vem de cima, quando já se considerava intocável. Tom na Fazenda é cinema de armário, limitado, enquanto, ilusoriamente, se enxerga arrasando na parada gay. Que “menos é mais”, todo mundo sabe. Mas que ‘‘mais” pode ser ‘‘menos’’, esperamos todos que Dolan tenha aprendido. Até porque Von Trier não é exemplo pra ninguém.

  • Crítica | Scorpio Rising

    Crítica | Scorpio Rising

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    Movido pela trilha sonora frenética, a câmera de Kenneth Anger passeia pela oficina mecânica, repleta de peças de moto espalhadas por seu espaço físico. Aquele ambiente é quase como um universo à parte, onde somente os anjos “malditos” pela sociedade podem habitar. Resgatando a iconografia visual de O Selvagem de Marlon Brando, porém muito mais contestador que o filme de 1953, Scorpio Rising consegue através de uma narrativa elaborada, que não deixa se ser simples, passar uma mensagem ao mesmo tempo conciliatória, saudosista e conteste.

    Primeiro filme que misturava elementos de motor style com uma trilha regada a rock ‘n’ roll, o curta de 1964 é normalmente esquecido pelos aficionados por motovelocidade, talvez por conter em si uma linguagem sem qualquer fala, com o som provindo da jukebox imaginária como principal elemento argumentativo, além do transitório visual que mostra o personagem principal – se é que pode se chamar de protagonista – vivido por Bruce Byron (Scorpio) customizando sua máquina, e algumas demonstrações de como a sociedade os via, através de pequenos bonecos, que emulavam as perseguições entre os policiais e aqueles marginais.

    Claro que se tratando de Kenneth Anger, a mensagem seria de discussão de símbolos. Já que os tais motociclistas selvagens seriam páreas da sociedade e avatares da rebeldia, o diretor resolveu tomar para si algo que era até óbvio, que é a erotização da figura do selvagem, que através do seu couro, seus óculos escuros e suas máquinas potentes, causa terror no conservadorismo típico do americano médio, mas que neste é ainda mais agressivo, revelando que a relação entre os membros do clube era muito mais que algo apenas fraterno, e sim camuflava uma forte atração mútua. O que impressiona é que a plausibilidade do argumento é enorme, dada a clara erotização enrustida neste arquétipo.

    Pelas paredes dos cenários é possível notar cartazes e pôsteres, de Marlon Brando e de James Dean, que além de reforçar a pulsão e tesão dos amantes de velocidade por estes, remete também a uma clara homenagem, do realizador de um cinema que também está à margem do mainstream, underground em sua essência, mas que também sabe reverenciar os alunos do método de Constantin Stanislavski, inclusive ousando ao mostrar um ato comum na rotina, tanto dos atores quanto dos nômades do asfalto, que era o uso incontrolado de drogas inalantes, sem a preocupação de tornar isto palatável para público algum; inclusive transgredindo mais que Sem Destino e seus primos, escondendo o ato de “cheirar” apenas por uma luva de couro, em plenos anos sessenta, com a contracultura em ebulição, mas ignorada pelas parcelas mais moralistas da sociedade estadunidense.

    Quando um dos personagens focados é mostrado se preparando para montar em sua motocicleta, acontece um paralelo com cenas de um filme bíblico obscuro, onde se vê Jesus passeando com seus discípulos e curando um cego. As cenas mostram o grupo de arruaceiro se esgueirando pelos becos escuros, atacando uns aos outros, em movimentações suspeitas – sendo algumas até explícitas, com cenas que remetem até a estupro, mas que são preconizadas especialmente pelo choque de ideologias, uma vez que o foco dado são em figuras icônicas e signos que remetem a autoridade, como os dos moto-clubes e da bandeira com a suástica centralizada.

    Talvez para o público menos afeito aos midgnight movies e ao cinema underground, este Scorpio Rising possa ser visto como algo ofensivo – certamente não foi este que Anger tencionou alcançar, e sim seus pares, seus iguais, os afeitos a discussão de sentidos e que não se contentam com o que a indústria produz para eles, isto muito antes da instituição do conceito de blockbuster imposto por Steven Spielberg e George Lucas. O uso da juventude transviada para ser o catalisador da mudança contém uma forte mensagem política, que em seu final toma até as rédeas de um filme denúncia, que flagra uma sociedade que oprime o indivíduo, unicamente por este ser diferente dos ditos normais, e claro, sem a necessidade tola de ter de se justificar ou de suavizar seu recado através de moralismos presentes no cinemão estadunidense.

  • Crítica | The Normal Heart

    Crítica | The Normal Heart

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    A AIDS como denúncia enquanto produto do meio inexplicável. Teorias da conspiração são o tipo de coisa que não falta nesse mundo, e até hoje seguem feito esporte efetivo aos incapazes de compreender a pandemia, alastrada nos anos 80, do vírus de tantos amores soropositivos, de segregação sexual. Você sente que The Normal Heart é dedicado a todas as vozes caladas no passado, esquecidas na época por seus representantes políticos (que hoje ganham ou perdem votos por apoiar o casamento homo, como se o direito fosse alienígena), e cientes de que nunca seriam lembradas. Um daqueles raros filmes gays que não tenta se heteronormatizar, não tenta se encaixar no contexto que a maioria do público gosta de ver. Se faz com total orgulho acerca de uma minoria, e realizado para ela mesma, ainda que possa ser totalmente adotado por qualquer pesquisador da raça humana e usuário do cinema para tanto.

    Se resgatar atos e fatos de um passado recente e incômodo indispõe muita gente, o telefilme do canal HBO tem a força de mil elefantes, carregada nas costas da visibilidade, da expressão, sendo tal expressão totalmente econômica e serena durante toda a projeção, além de utilizar-se como ponto central da polêmica enfermidade, já tratada antes mas não debatida ainda com tamanho realismo, seja em Clube de Compras Dallas ou em Meu Querido Companheiro, os dois melhores exemplos até então.

    A questão do direito foi mencionada acima. Direito de ser o que é? Quanto ao amor, esse é guerra. Quanto ao filme, Ryan Murphy, o cineasta, se apropria da história em mãos para tecer uma analogia própria e intrínseca ao enredo, ou seja, constrói uma obra democrática e bilateral, de pontos de interpretação diversos junto a um dínamo ligado a todos eles, ao fator ambíguo da proposta derivado de cada personagem apresentado; ora pelo representante do presidente dos Estados Unidos que se apavora na dúvida de que a AIDS poderia ser transmitida em contato hetero, ora pelos amigos, desesperados e a ponto de explodirem, do ativista da causa Ned Weeks – Mark Ruffalo, melhor atuação da carreira, com postura de Milk, de Sean Penn, e ecos do Lincoln de Daniel Day-Lewis. Weeks também não sabe direito quais procedências tomar em relação a uma doença que deixou de ser simples endemia ou caso isolado há muito, ou em quem acreditar, senão na responsável doutora Emma Brookner (Julia Roberts, a joia do filme). Em The Normal Heart, provocações só nascem de quem ainda não sabe o que lhe agrada.

    Murphy comanda o show e seu elenco com uma serenidade e um desejo de perícia, entre causa e efeito, inesperados, em especial para um cara que não detinha provas reais do seu talento, a despeito da fraca trilha sonora aqui, que perde a chance de embalar várias sequências, num incentivo voltado a uma maior profundidade sensorial. Todavia, num filme que contém a difícil cena de uma mãe, em prantos agonizantes que, junto do namorado de seu filho infectado, deve enterrar o próprio herdeiro rejeitado pelo nojo dos médicos que atestaram seu óbito, seria previsível um clima pesado, apelativo ou cético, certo? Nada mais contraditório a tal expectativa num filme acerca do amor, que aqui sofre a desconstrução a partir de quem o sente, jamais do sentimento.

    Trilhando caminho oposto aos taxativos de plantão, o explícito da obra gira em torno da necessidade de mostrar o que é preciso na tarefa de escancarar um mundo semi-proibido, sob uma economia de recursos eficiente para uma experiência serena, informativa e bem temperada, ao longo de elementos cuja intensidade vai além de um romance de Woody Allen.

  • Crítica | Hoje Eu Quero Voltar Sozinho

    Crítica | Hoje Eu Quero Voltar Sozinho

    hoje eu quero voltar sozinho

    O cinema brasileiro respira um frescor jovem, assim como os jovens deste filme. Suas rugas de produção rejuvenescem na era em que a arte vive acompanhada da publicidade na casa das fórmulas comerciais, e tal efeito Benjamin Button não é em vão; é fogo de palha tanto quanto a certeza em dizer que só existe um único cinema do Oiapoque ao Chuí. Mas é claro, tudo é possível na complexa nudez das consequências, resultados de certas mentes que conseguem reunir num produto só, vulgo filho exclusivo do cenário atual, o espírito nacional de diversidade cultural e homogênea, em prol de um abraço apertado nas antíteses a uma recorrente simbiose de pretensões artísticas que tanto assombram a produção fílmica nas quatro vértices da globalização pós-moderna. Hoje Eu Quero Voltar Sozinho afirma o que é desde o título: está sozinho no pódio do que conseguiu provar, com a ajuda do público, e sem precisar morar na “irresistível” casa das fórmulas.

    O filme tem algo a dizer e evita a simplicidade tradutória da carga de conteúdos a favor de algo ainda maior a resgatar. Readquire uma honestidade que não se impõe, brilhante e tenaz como a lua, cuja clareza (não confundir com lucidez) ideológica “apenas” se apresenta como identificável à população de um país inteiro, e a novas mentalidades – vide o fenômeno inesperado que o curta-metragem, fonte do longa em questão, tornou-se. Agora sua abrangência está desnudada, mais séria, competente e responsável por um público maior, sem mais os 12 minutos que nunca foram reduzidos à ideia primordial do cineasta Daniel Ribeiro (de Café com Leite), ciente da nova responsabilidade de retratar um pedaço de uma nova geração que raramente se vê, nua e crua, no retângulo do cinema, quiçá na telinha do youtube.

    Do famoso curta que propagou a própria qualidade no velho esquema “boca a boca” (ou será o contrário?), sobrou a visão de mundo pessoal do autor e o contexto agridoce entre humor e drama. Mas o maior feito do filme de 2014, em âmbito geral, é estabelecer de vez, sem maiores provas daqui pra frente, que o povo brasileiro ainda tem razão em confiar no material que nós mesmos gestamos e agregamos ao folclore de nossos mosaicos coloridos. E no exercício de demonstrar a diferença nos vieses comuns da convivência, Ribeiro volta a usar a cegueira como metáfora da atração sexual pelo mesmo sexo, e faz a liberdade sexual interpretar a autonomia que todo adolescente quer dos pais com quem convive. É chegada a hora da independência para o garoto Leonardo (Guilherme Lobo, pequeno grande ator), mesmo que ainda seja preciso, como o filme mostra, de uma mãozinha do pai na hora de fazer a barba quase inexistente num rosto cheio de espinhas. De metáforas e analogias caindo pelas mangas, o cineasta se apoia, às vezes, em territórios de comodismo, no público que já conquistou antes, e mais: na parcela do auditório que desconhecia suas recentes investidas atrás das câmeras, mas tem sede de novas óticas originais, de quem se habilita a reproduzir traços do mundo onde vivemos.

    Todavia, por buscar ser tão lenitivo senão aos prós e contras do nosso invólucro social de todo dia, Hoje Eu Quero Voltar Sozinho vale mais em seu catálogo de valores pelo que representa para com o público do que pelo conjunto de méritos que compõe sua estrutura de produção, já debatida antes nos tempos de Glauber Rocha e Cia.

    Uma realização humilde e impecável no que se propõe a discursar, jamais debater, impondo limites para si mesma e respeitando-os até o fim da projeção, equívoco ora justificável, ora não. Até aí, essa pode ser uma questão irrevogável. Contudo, será que esses limites deveriam existir no debate que o Cinema, agora com letra maiúscula, pode vir a ser no que diz respeito às relações humanas, principalmente nos parâmetros da comunidade LGBT e de outras que também buscam igualdade social? Talvez a resposta esteja garantida na provável continuação.

  • Crítica | Um Estranho no Lago

    Crítica | Um Estranho no Lago

    Um Estranho no Lago

    Frank (Pierre Deladonchamps) passa suas tardes de verão numa praia à beira de um lago, ponto de encontro de homossexuais. Conhece e torna-se amigo de Henri (Patrick d’Assumçao), recém-separado que vai ao local apenas para desfrutar do sossego. Mas envolve-se fisicamente e se apaixona por Michel (Christophe Paou), o macho-alfa da praia, atraente e misterioso, cujo ex-namorado é encontrado afogado no lago. Frank, que presenciou o afogamento, aproxima-se do culpado com um misto de atração sexual e fascínio pelo perigo.

    Tudo se passa nessa única locação – a praia e seus arredores. Apesar de ser ao ar livre, tem-se a impressão de que os personagens estão confinados numa “casa” com alguns cômodos que incluem a área de estacionamento, a praia, o lago e o bosque que circunda o lago. O roteirista / diretor Alain Guiraudie é bem-sucedido ao estabelecer limites invisíveis entre os cenários dando a entender que o que se passa num dos “cômodos” não é visto dos demais – com exceção da praia e do lago, óbvio, por serem geograficamente indissociáveis. Sob esse aspecto, entre outros, assemelha-se bastante a uma peça de teatro.

    A história é simples. O espectador acompanha dia após dia os homens se encontrando na praia. A passagem do tempo é percebida a cada vez que Frank chega e estaciona seu Renault antigo sempre no mesmo local, apesar de não existirem vagas demarcadas. Lembra ligeiramente Feitiço do Tempo, mas lembra bastante The Rebirth – em que a rotina se repete ad aeternum e um evento inesperado perturba o cotidiano do(s) personagem(ns). Com essa perturbação, surge mais um personagem, o inspetor Damroder (Jérôme Chappatte), totalmente alheio a esse ambiente. E, justamente por ser “de fora”, invade a vida dos personagens sem parecer se importar em incomodá-los com perguntas. Questiona os frequentadores da praia a respeito do afogamento, nas entrelinhas tentando entender como funciona aquele microcosmo. E, à procura de pistas, atravessa o local de ponta a ponta sem diferenciá-lo, como se os limites insinuados pelo diretor não existissem para ele.

    Minimalismo é o que melhor descreve todos os aspectos do filme. Toda a trama é construída e desenvolvida baseada nos detalhes. O código de convivência pré-estabelecido entre os frequentadores; os olhares trocados – alguns discretos, outros nem tanto – combinando um encontro no bosque; a convenção de ver sem reparar, quebrada apenas por Eric (Mathieu Vervisch), o voyeur; o local afastado em que Henri se senta e a forma recorrente como cruza os braços enquanto conversa. E a tensão crescente entre Frank e Michel é percebida em pequenos gestos, mínimas alterações no tom de voz, ligeiras mudanças no teor das conversas.

    Cada um dos personagens materializa diferentes aspectos do relacionamento sexual, indo do desejo inseparável do sexo ao desapego total. Frank é sexual e sentimental. Michel, o garanhão que não quer muito envolvimento. Henri desfruta de seu “bromance” platônico com Frank. E Eric é o eterno frustrado. Apesar dos papéis serem facilmente identificáveis, não quer dizer que sejam caricaturas. Assim como no restante, não há excessos. A caracterização é concisa, justa e nunca condescendente.

    Em muitas prateleiras – reais e virtuais – este filme provavelmente estará na seção erótica e/ou gay. Contudo, da mesma forma que Azul é a Cor Mais Quente não é um filme lésbico, mas sim um drama – ou romance, como preferir -, Um Estranho no Lago não é um filme gay, mas um thriller.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Azul é a Cor Mais Quente

    Crítica | Azul é a Cor Mais Quente

    Azul é a Cor Mais Quente

    A adolescência é possivelmente a fase mais indefinida na vida do indivíduo, quase nenhuma certeza é concreta. O roteiro linear de Ghalia Lacroix e Abdellatif Kechiche (baseado nos quadrinhos de Julie Maroh) é pródigo em mostrar isso já no prelúdio. La Vie d’Adèle começa sem circunlóquios, mostrando o cotidiano de Adèle e discutindo algo básico ao que se tornaria a sua vida. Tal assunto é tratado por seus semelhantes como motivo de chacota, descaso e indiferença – para os mais jovens, é difícil definir algo tão abstrato quanto o amor.

    Diversas são as formas como Kechiche registra as cenas de sexo. Adèle (Adèle Exarchopoulos) fantasia uma transa com um parceiro completamente diferente ao que todos à sua volta sugerem a ela. Quando finalmente cede às pressões, se decepciona, seu gozo passa longe de ser alcançado e se frustra – as lágrimas após o rompimento com esta máxima são mais que simbólicas, são reais.

    Em um protesto, seu grito é grave, masculinizado. Sua persona atrai outras garotas com este desejo em comum. A câmera registra o constrangimento de Adéle de modo belo e tocante. A garota só volta a se sentir (ligeiramente) à vontade em uma festa onde praticamente só há gays masculinos, porém ainda há uma sensação de não pertencimento àquele mundo, sentimento de inadequação. Aos poucos, ela adentra no mundo underground, mergulha em sua própria consciência e libera-se para novas experiências, mudança esta representada pelo bar temático.

    Emma (Léa Seydoux) é extremamente gentil e compreensiva com a protagonista, cumpre um papel fundamental na psiquê de Adèle. Faz bem a ela, lentamente a descontrai – como o Id, desreprimindo o Ego – ao contrário de outras moças “pilotas de caminhão” (estereotipadas e sem receio de serem assim), que afastam Adèle do que Freud chamava de Ideal do Ego – uma superação do Ego, que chega ao ápice do que este deveria ser, sem os recalques primários e secundários. A reação de suas antigas amigas à primeira aparição pública de Emma justifica plenamente os receios de Adèle, e reacende a discussão do que é ou não natural a respeito da sexualidade, e do disfarce das ações mentais secundárias e primárias em originárias.

    Em determinado momento, Adèle passa a usar muito jeans cor índigo, remetendo à tonalidade de sua “musa”. Após 71 minutos, o clímax da relação é posto em realidade numa cena de aproximadamente 7 “ternos” minutos. A predileção de Adèle pelo magistério diz muito sobre sua personalidade. Ela afirma que na escola aprendeu muito, demasiados conteúdos não passados por seus pais – não nominados – e por seus amigos. A segurança do emprego a empurra a fazer essa escolha, ela prefere não arriscar. A apresentação de Emma aos pais da personagem principal é tímida e um pouco constrangedora – a distância entre as duas casas das moças é abissal. Até mesmo no entendimento da arte como trabalho, demonstrando o quanto os adjetivos acompanham e se atrelam ao conservadorismo como também quão artificial é o comportamento destes, especialmente se comparados às ações de Emma, uma pessoa desprendida aos olhos da protagonista.

    A macarronada (prato no qual o “pai” se especializou) é um signo para a inadequação de Adèle em diferentes momentos de sua vida. As cenas tórridas são pontuadas por sua forte respiração, expressando alívio, ocorrendo somente na intimidade, momentos em que nada precisa fingir. A decadência da relação é executada cruamente, assim como a tentativa de se socializar após o fim. As reações retratadas são muito verossímeis e realistas, além, é claro, sexual e emocionante. No entanto, no auge de seu desespero, Adèle rompe com o medo de se demonstrar, se rendendo aos excessos que a carne exige.

    Soma-se a isso uma fotografia com perícia, uma direção de arte das mais caprichadas, direção de atores competente ao extremo, e um roteiro não complacente em momento algum. Os nus são magistralmente registrados e são palatáveis até para espectadores de conservadorismo não tão extremo. Emma representa para Adèle a libertação, e para o filme, um instrumento de metalinguagem, pois ela costura de forma leve suas impressões sobre a arte. Kechiche usa esse capítulo da biografia para demonstrar a arte do corpo e da alma feminina, apelando para lugares comuns, sem se descuidar das nuances inerentes a cada indivíduo de singularidade latente. O filme é belo, real, tocante e feminino, sem medo de expor sua história com o máximo de sinceridade possível.

  • Crítica | Deixe a Luz Acesa

    Crítica | Deixe a Luz Acesa

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    Logo na abertura, expõe-se de forma criativa a temática que permeará este Deixe a Luz Acesa. Com pinturas e obras de arte retratando homens nus, seminus – ou simplesmente à vontade – em seus quadros. No seu quarto longa-metragem, Ira Sachs aborda o cotidiano de uma relação homo-afetiva, mostra suas agruras e sofrimentos, tanto os comuns a qualquer tipo de casal, quanto os problemas específicos deste nicho.

    Erik – Thure Lindhardt – é um cineasta, homossexual assumido, com uma carreira voltada pra documentários que retratam quase sempre a estética e vida gay em geral. O período histórico retratado nos primeiros atos mostra o seu árduo trabalho com uma fita que retrata o histórico da vida gay de Nova York, dos anos 40 aos 90, e em paralelo a isso, Erik é mostrado procurando parceiros sexuais. Nessa “busca” são mostrados alguns estereótipos, até que em um desses encontros a relação fica mais séria.

    O roteiro aos poucos desenvolve a relação entre Erik e Paul (Zachary Both), desde o encontro casual, até o ponto em que eles resolvem assumir a relação, mas não há flores ou um mundo cor de rosa, ao contrário, os fantasmas do passado estão presentes.

    Paul enfrenta problemas sérios. No começo, tem de lidar com seu namoro (hetero) mal resolvido. Após isso “superado” e já morando com seu novo cônjuge, o personagem passa por um grave problema de abuso dos entorpecentes, fato este que o faz perder até a estreia do documentário de Erik. Paul sofre intervenção, é internado a contragosto e seu companheiro sofre junto com ele, e esse período é retratado de uma forma sensível, e que foge de pieguismos. Nenhum dos personagens é vitimizado, nem pelas circunstâncias e nem pelas pessoas.

    É impossível não notar algumas semelhanças entre o personagem principal e o diretor, se não nas situações de conflito, ao menos há um paralelo com o background de ambos. Ira Sachs é judeu, homossexual , e tem propriedade para falar do tema. Seu roteiro – auxiliado por Mauricio Zacharias – aborda temas espinhosos do cotidiano de um homem gay sexualmente ativo, e passa pelas situações comumente constrangedoras deste nicho.

    Destaque para a cena em que o protagonista descobre se é ou não soropositivo, um momento de dramaticidade comovente por parte de Thure Lindhardt. As atuações de um modo geral emprestam muita credibilidade ao filme, pois são próximas demais do cotidiano contemporâneo.

    Aos poucos, a relação entre Erik e Paul torna-se algo degradante e obsessivo, e próximo ao último ato, é mostrado como ela chega ao fim, e o destino que cada uma das partes toma. O maior esmero em Keep the Lights On é em retratar um relacionamento de forma verossímil, real e autêntica, longe dos romances idealizados e fantasiados presentes em filme de romance água com açúcar. O universo gay de Ira Sachs não é cor de rosa, é composto de carne, alma, sentimentos e verdade.