Tag: cinema dinamarquês

  • Crítica | Druk: Mais uma Rodada

    Crítica | Druk: Mais uma Rodada

    E se quatro professores de ensino médio, cansados de tudo, resolvessem testar um método científico para ingerir uma pequena quantidade de álcool, todo dia, a fim de melhorar suas habilidades sociais e profissionais? Receita do apocalipse individual? Sim, é claro, mas não há nada que Martin, Tommy, Nikolaj e Peter não topem para se sentir mais jovens e dispostos. Livres dos quarenta anos que pesam nas suas costas, presos a salas de aula, a rotina, a famílias que estão perdendo valor. Druk: Mais Uma Rodada é um estudo dinâmico sobre o auto engano coletivo, fomentado em grupo até o limite da sua intoxicação – não apenas alcoólica, mas ideológica, numa revitalização contemporânea do clássico Farrapo Humano. E aqui, o dinamarquês Thomas Vinterberg dirige o filme através de uma tensão crescente, e bem modulada, a fim de esclarecer a grande dúvida: de onde nasce a necessidade de uma catarse?

    Seria do mesmo lugar que surgiu a violência de William Foster, de Um Dia de Fúria, ou pior, a rebeldia de classe média alta do jovem Alexander, de Laranja Mecânica? A arte de “chutar o pau da barraca” pode ter vários gatilhos estudados a exaustão, e em Druk, eis um gatilho tão auto destrutivo, quanto passivo-agressivo. Um quarteto que quer fugir da realidade, até então livre de vícios, e mesmo que correndo o risco de levar todos com eles, destruindo lares, seus alunos, ou qualquer chance de futuro. Mads Mikkelsen se joga (como sempre) na pele de Martin, o professor desiludido que, junto de outros, só quer um buraco pra entrar e sumir. “Você não é o mesmo Martin de antes.”, admite sua esposa, cansada de secar gelo em sua relação. Mas o experimento do álcool não para, e de repente, não há mais volta. De rodada em rodada, os quatro mudam sua história, gerando dó, e tragédia. Prisioneiros das próprias armadilhas, como alguns belos closes nos dão conta de transmitir também.

    O principal, então, é o manifesto do desespero. Aquele que assalta tantos homens de meia idade sobre seu papel na sociedade, e que os leva a uma ação imediata: beber, fugir, esquecer, e isso no fim da juventude, dos sonhos de conquistar o mundo e se casar com a Beyoncé. Martin e os outros decidiram não enfrentar a vida, e se são obrigados a isso, vão enfrentar bêbados. É claro que o tiro vai sair pela culatra, mas Vinterberg, cineasta engenhoso, ainda dá espaço no filme para a redenção. Para um lembrete que a vida não para, e a armadura da coragem, se vestida, pode render bons momentos de alegria que fazem tudo valer a pena – a vida não tem sentido e menos sentido ainda tem a nossa procura por ele, exclama o final. Druk é um filme que choca mas não merece ser polêmico, dada a sua questionável apologia ao alcoolismo, e o seu retrato ultrarrealista das consequências da cachaça, e imprudência. Usa da controvérsia para subvertê-la, e nisso, é bem-sucedido. Cinema europeu por excelência e muito bem feito.

  • Crítica | Culpa

    Crítica | Culpa

    Culpa é um filme Gustav Möller, se passa na Dinamarca e começa com um telefone fixo tocando, e sendo atendido por Asger Holm (Jakob Cedergren), atendente da polícia local responsável pelo disque-emergência local. Ele recebe uma estranha ligação, de Iben Oskegard (Dessica Dinnage) em meio a tantas dessas que ocorrem no dia, ele gasta sua energia e atenção, pois parece se tratar de uma situação calamitosa, de sequestro, e raramente esse tipo de interação acaba bem, dada inclusive a dificuldade em a condição em que uma pessoa está em ligar quando está raptada.

    O filme tem uma duração curta, de apenas 85 minutos e isso facilita o interesse do grande público nele, visto que ele passa quase todo no mesmo cenário e é bem parado,muito dependente do desempenho dramático de Cedergren, que evidentemente, não decepciona. Quase a totalidade do roteiro ele está sozinho e a câmera varia os planos em cima de si, mais até do que a quantidade de variações de angulações das lentes são as camadas de angustia que o ator imprime, acertando demais em sua performance, capturando bem a atenção de quem o assiste.

    Quando o caso vai se agravando, Holm apela para um modo mais simples de comunicação, onde a vitima só responde sim ou não. A tática é inteligente na teoria, mas na prática se mostra um artifício não tão eficaz, e ali começa a sensação do personagem de que o insucesso pode chegar. Ele guia uma equipe que persegue o carro que leva a moça, fala com a filha da raptada, consegue descobrir o veículo onde a mulher está e um possível motivo para tal. Toda a investigação é muito bem encaminhada apesar de limitação física imposta a si.

    Faz lembrar bastante dois filmes não tão antigos e de produção americana, Wheelman, com Frank Grillo, da Netflix, e Locke, com Tom Hardy, a diferença é que o senso de urgência que ocorre com Culpa é muito maior, afinal uma pessoa está prestes a morrer e o personagem enfocado está impotente, de mãos atadas e longe dela, sem conseguir de fato defende-la do destino cruel que outro ser humano abusador a causa. Essa sensação de desespero é muito facilmente passada ao espectador, e apesar de não ser um produto extraordinário em matéria de cinema, a obra de Möller acerta demais ao apelar para um caráter universal como faz.

    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram | Spotify.

  • Crítica | Quando o Dia Chegar

    Crítica | Quando o Dia Chegar

    quando-o-dia-chegar-poster

    São os anos finais da década de 60. O homem está cada vez mais perto de pisar na lua, movimentos sociais tomam conta das ruas e, em meio a uma manifestação, correm Elmer e Erik perseguidos após roubar uma loja. Cortam o grupo de hippies que levanta cartazes de paz e amor. Há, então, a apresentação de um claro contexto sociopolítico em que a história se desenvolverá. É a exigência por um mundo melhor que será, logicamente, confrontada por reacionários, enquanto as cidades cada vez mais se enchem do desejo e entoam canções como Shadow Of A Gipsy.

    Há a sombra de um cigano
    Que me segue onde quer que eu vá
    Buscando Amor enquanto viaja entre aqui e lá
    Por que é assim?

    Baseado em uma compilação de fatos reais, dirigido por Jesper W. Nielsen (Okay) e escrito por Søren Sveistrup (The Killing), Quando O Dia Chegar trata da história de dois irmãos: o mais velho, Erik (Albert Rudbeck Lindhardt), e o mais novo, Elmer (Harald Kaiser Hermann). Após sua mãe ser hospitalizada, a dupla é mandada para Gudjeberg, um orfanato do Estado, onde lhes é prometido que permanecerão somente até o natal. No prédio afastado, no meio do campo, os irmãos são confrontados com uma desumana realidade patriarcal comandada pelo punho de ferro do Diretor Heck, interpretado por Lars Mikkelsen (House of Cards). Nesse cenário, as individualidades são massacradas em prol da produção de um grupo obediente e unificado.

    Aqui em Gudjeberg você se torna parte de uma comunidade. Se não respeitar a Comunidade, ela irá punir você.

    É importante ressaltar o quão ciente dos seus temas está o texto. Não só no orfanato se encontram as pressões para a permanência de uma sociedade patriarcal. Já que, logo no início, a mãe dos garotos é acusada por um agente do Estado de não ter controle dos filhos, já que é uma mãe solteira. Para o que ela responde que seria mais fácil se recebesse o mesmo que um homem pelo mesmo trabalho. O filme já fundamenta de início sua base, mas infelizmente o roteiro não é suficiente para tratar do que vem a seguir.

    Tapas, gritos, murros, tortura, estupro; fascismo, patriarcalismo. Tudo isso está presente no orfanato, e é tudo mostrado sem ressalvas. Ao mesmo tempo, não é o mostrar dessas ações que acarreta em peso, ou até mesmo um desenvolvimento maior das causas. Por se tratar de uma história que dura meses, o avançar da narrativa não apresenta consequências para diversas das violências, o que as tornam gratuitas e, no fim, pobres. E não só em relação a isso, mas em questões gerais há o acumulo de defeitos, como clichês que não devem ser perdoados por se estar em um “formato clássico”. Quando O Dia Chegar não se mostra capaz de aprofundar temas ou desenvolver muito os personagens além dos irmãos.

    Erik mostra desde o começo interesse pela figura sexual feminina, enquanto Elmer, o mais novo, concentra-se em seus sonhos. É interessante notar, especialmente, como a ausência de mulheres em suas vidas desencadeia nessa visão simplista do ideal mercadológico de gênero. Apesar disso, ambos se apresentam como distintos dentro do orfanato, incapazes de serem os “fantasmas” que lhes sugerem ser. A do mais velho devido ao amor pelo irmão, e a do mais novo pela sua criatividade, ambas as características geradas por incentivos da mãe.

    Heck, Lars Mikkelsen, carrega naturalidade por si só, mas o roteiro, como já afirmado, não é capaz de aproveitar isso. Surge então um personagem raso, que se apresenta como uma caricatura de si mesmo após ações inverossímeis. E o mesmo padrão se sucede para os outros adultos, com exceção da professora de linguagens Lilian (Sofie Gråbøl), que segura o conhecimento da língua, a base para a criação, que logo sente empatia por alguns dos garotos, em especial Elmer.

    É nos alunos mais velhos que se vê os já crescidos frutos da insensibilidade e ignorância, da brutalidade como finalidade meritocrática. Uma noção de que você pode ser o oprimido. Ou se aliar no que poderá aproveitar como uma posição de opressor. Um ser que, através do sofrimento, moldou-se no que lhe era desejado. Aceitando os abusos do sistema e se consolando em ter sua própria dinâmica de vigiar e punir.

    A fotografia claustrofóbica entre paredes, grades e closes, assim como a direção de arte com suas cores apagadas no orfanato, contrapõe os planos abertos da cidade e suas cores vivas. Em momentos de maior angustia, a tremida câmera na mão. Ainda que essas questões visuais passem a imagem de algo polido, a cinematografia não se vê completamente aproveitada devido a uma montagem inconsistente sobre a coerência da linguagem cinematográfica. O que torna mais fácil perceber quais intenções guiaram esse o projeto. E demonstram como a base de qualquer obra está sempre no tratamento de seus conceitos iniciais.

    É na dicotomia entre o diretor e a professora, o homem e a mulher, que encontramos o confronto de gerações e ideologias que Quando O Dia Chegar deseja tratar. O passado, o patriarcal, e o novo mundo de sensibilidades e criatividade que é o futuro, o feminino. E é nessa previsão empática que se encontra a figura do cigano. Aquilo que a humanidade deveria ter evoluído a ponto de até mesmo se tornar após tantas manifestações. Mas não foi, e ainda não é, o caso. Por enquanto, ainda somos a sombra. Mas pelo menos deixamos de simplesmente a vê-la.

    Eu sou a sombra de um cigano
    Amo o vento soprando contra minha face
    Amo sentir o ar da Liberdade
    Quando será?

    Texto de autoria de Leonardo Amaral.

    https://www.youtube.com/watch?v=cxJSOWJTZdI

  • Crítica | A Ovelha Negra

    Crítica | A Ovelha Negra

    ovelha-negra

    Filmes envolvendo animais dão sempre pano pra manga, e aqui não é diferente. Não que poderia, quiçá deveria ser, mas assim, d’um jeito reflexivo se dão os contornos e efeitos do nosso contato com nossos irmãos de quatro ou mais patas diante de uma humanidade que ora luta, ora acata a animalidade relutante no nosso DNA. Conflitos universais a parte, A Ovelha Negra surge nessa altura do campeonato vendo o mundo dos bichanos não pela ótica canina do fantástico Deus Branco, ou pelo viés do religioso e pagão A Grande Testemunha, de Robert Bresson, um dos melhores “filme de animais” e de que o filme em questão carrega sabiamente um grande apreço e referência, mas agora através de um olhar humano sobretudo humanitário, antes de ser provincial e tipicamente contemporâneo (o que muitos chamam ou acusam de pós-modernismo) para com esses seres indefesos nas condições impostas à, em pleno ambiente que compartilhamos, desde o caldo primordial na criação das espécies ainda não extintas; dignas de representação num Cinema de letras maiúsculas.

    Se falta com certeza uma bem-vinda trivialidade, na abordagem de um drama com ecos de um Cinema antigo em estado bruto que poucos filmes hoje conseguem copiar (A Ovelha Negra se dá com base em discussões egoístas e interesses nutridos em volta dos animais de estimação, rebanhos peludos que viram objeto de cobiça do povo de uma aldeia na Islandês), sobra o escapismo existencial de um mundo gelado, ironicamente indiferente ao próximo, numa busca à redenção emocional que, no fundo, seus habitantes não nutrem mais uns pelos outros, mas tentam preencher esse vazio com a presença das ovelhinhas e seus grandes chifres. Um vazio coletivo, como cada close no belo elenco comprova, oriundo da falta daquele brilho que, em vários lugares deste planeta, dentro e fora do filme, a humanidade já não vê mais refletido em si mesma. E se nós não conseguimos nos poupar da nossa própria maldade com o alheio, seria loucura tentar salvar outras espécies dos rotundos e irrefreáveis instintos humanos? Valeria isso a pena, em qualquer lugar?

    Pergunta essa traduzida, sem respostas óbvias, em belas imagens, pendentes a especulação de um espectador atento, nm microcosmo (nada particular à vida europeia) de neve e aldeões aonde ovelhas doentes e virulentas, prestes a ser sacrificadas, entram junto de seus protetores e algozes numa espiral de ações contra o tempo, o fim do seu tempo e acolhimento doméstico; contra o holocausto em campos de neve ou em favelas brasileiras que se dá pela forma metafórica de sempre – o que não é de todo mal quando analogias e outras manobras se dão de forma positiva, como o cineasta Grímur Hákonarson conseguiu, aqui, reconhecendo graciosa e plenamente a potência de um filme simplório, mas com grandes mensagens e rotulagens de gênero (alguém sempre fica pra trás na tentativa de salvar o mundo) por trás de uma aparência tão unilateral quanto A Ovelha Negra pareça ter. Ao invés de (também) nos perguntarmos qual tipo de rebanho queremos pertencer no futuro, e se os nossos pastores no momento são realmente os melhores para nós, talvez a simples certeza (ou não) que uma força maior nos guia, e protege, possa nos fazer dormir melhor a noite.

     

  • Crítica | Desajustados

    Crítica | Desajustados

    desajustados-fusi-2015

    Fúsi é o cara mais dócil nesse mundo. É a antítese de Travis Bickle no épico do caos Táxi Driver, e neto de Umberto Domenico, no clássico italiano de De Sica. Seus dias, contados através de miniaturas e um auto-vitimismo por sua condição social, pessoal e psicológica. Como o próprio título do filme diz (provavelmente presente em vários cursos de psicologia, por seu mergulho na personalidade de seus desajustados, no futuro), Desajustados não é, mas são vários filmes em um só; pessoas comuns que de surreal levam apenas a vida que ostentam, humildemente, no brasão emocional que, aos poucos, expõe como qualquer filme sueco pós-Mônica e o Desejo e pré-O Cidadão do Ano – filmes que resumem duas épocas do velho continente com maestria.

    E de repente você começa a torcer por Fúsi. Mágica. Quando ele arruma amizades, quando seus amigos subestimam sua integridade (por ser diferente), quando uma mulher volta a ele seu olhar numa noite fria, na neve. Questão de empatia, numa fantástica atuação de Gunnar Jónsson, um ator que também ganhou espaço em 2015 em A Ovelha Negra – dois filmes díspares, rumo a direções opostas na vastidão heterogênea de sentidos que habitam. Em Desajustados, Gunnar interpreta uma espécie de Sheldon Cooper profundo, ainda que introvertido, beirando o autismo, mas deixando sua complexidade nas mãos do espectador que ousar enxergá-la, sem as caras e bocas de The Big Bang Theory para provar seu carisma e seu lado mais adorável, na tela. O diretor Dagur Kári conduz o espetáculo no maior estilo Jean Cocteau, merecendo (em parte) a comparação por exercer a mais nobre das artes no Cinema: sugerir mais do que mostrar, tal o mestre francês fazia, mesmo contando com tantos elementos fantásticos e simbólicos para explorar.

    Um filme de condições. Sobre o pertencer ao mundo, enquanto sua ética e sua vida, não. Um filme de cortinas fechadas, tal os famosos Carol e Phoenix, mas que se inicia quando os primeiros raios de sol começam a perfurar nossa visão e invadir a escuridão existencial que permeia nossos primeiros pontos de vista. Um dos melhores estudos de personagem do Cinema recente baseado em All You Need Is Love, dos Beatles, num cenário moderno em que uma criança de 40 anos não pode brincar com uma criança de 12 ou é taxado de pedófilo, e onde uma montanha virgem de 100 quilos pode guardar tudo dentro de si, menos a capacidade de amar. Mentira, claro. Pois que seja, então: Desajustados é um belo (e inofensivo) tratado sobre mentiras e aparências, mas só as que são contadas da porta pra fora, aqui, na Dinamarca ou em qualquer parte do globo! Por dentro, afinal, tudo é mais simples.

  • Crítica | Segunda Chance

    Crítica | Segunda Chance

    Segunda Chance 1

    A reabilitação anunciada no título do filme de Susanne Bier se perde diante da imundície do apartamento investigado pelo detetive policial Andreas (Nikolaj Coster-Waldau), que adentra a casa do junk Tristan (Nikolaj Lie Kaas), que vive junto a sua parceira Sanne (May Andersen). A vida degradante dos personagens se resume a práticas sexuais na sujeira típica daquele micro universo, regada a muita bebida e heroína. A condição se agrava quando Andreas percebe a presença do recém-nascido Sofus, que chafurda em uma fralda imunda, e que claramente estranha toda a agitação no apartamento, derramando lágrimas e gritos. A partir daí, nota-se que a história será narrada a partir do choro de bebês.

    Na intimidade, o protagonista chega a um lar igualmente perturbado, ainda que a sujeira não impere no lugar. O cuidado paterno dele e – supostamente – o de sua esposa Anna (Maria Bonnevie) com seu pequeno rebento, Alexander. O altruísmo proveniente do cuidado com a criança serve de resposta e contra-ataque à melancolia do começo da fita, assinalando ainda mais o abismo entre o comportamento dos dois núcleos familiares.

    O primeiro aspecto comum entre os modos do clã é a dependência mútua de drogas, ainda que as intenções sejam completamente diferentes. Anna sofre distúrbios mentais, e lança mão de produtos tarja preta, algo originário do desespero diante de mais um trauma, beirando mais um descontrole emocional. Anna ultrapassa uma linha que mesmo a desequilibrada Sanne não cruza, e tal arremedo serve como o primeiro de muitos twists do roteiro de Anders Tomas Jensen.

    Em determinado ponto, a adoção vira a alternativa mais lógica, ainda que seja moral e eticamente discutível, para dizer o mínimo. A árdua “tarefa” mostra-se em uma cena angustiante e bem urdida, que consegue até fugir da aura comumente sensacionalista que o espírito pedia. Andreas, ao cometer sua “indiscrição”, não consegue segurar seu ímpeto, e corajosamente, não nega seu pecado a sua parceira. O vômito de Anna serve de avatar ao asco pelo “roubo”, e, claro, vira também um paralelo com a resposta física ao duro golpe de ter perdido seu filhote.

    De um lado, há a clara preocupação de manter princípios básicos e espirituais, do outro o receio de ser encarcerado, conceitos separados por uma divisa familiar liderada por Andreas e Tristan. Claro, em lados opostos, o que dá forças para o fácil discurso proveniente da mentalidade pseudo meritocrática em relação à paternidade.

    O roteiro não aborda nada novo, de fato, só torce a realidade para uma discussão bem antiga, atualizando a questão para plateias mais moças, ávidas por uma estilização mais categórica e condizente com plateias jovens.

    Os elementos visuais dizem muito, compondo o quadro geral de modo singelo. Como as paredes de vidro, tentam emular uma falsa transparência. O argumento dos junks é refutado, mas o contraponto é pontual e presente na relação de Andreas com seu parceiro Simon (Ulrich Thomsen), que varia entre o arquétipo de mentor falido e companheiro. O segundo twist também é igualmente bem executado em relação a discussão de paradigmas, transformando os dramas em aspectos ainda mais humanos.

    A consciência de Andreas passa a assombrá-lo, assim como a culpa, que insiste em ocupar sua mente e alma apesar de sua recusa. A resiliência toma o espectador de assalto, ao se perceber que não há qualquer personagem a se agarrar, uma vez que o final revela o real caráter de cada um, repleto de crimes e imoralidades indiscutíveis.

    A dolorida verdade faz o personagem principal sentir remorso e retornar ao estado de justiça inicial. Ainda que não haja uma entrega plena, ocorre um abandono da vida pregressa. O inexorável, de que o paraíso não existe e que tampouco cabem finais felizes, é cruel, porém realista, sobrando então a rendição a um destino agridoce e levemente menos culposo, fruto de um roteiro que beira o sensacionalismo, mas entrega uma história congruente.

  • Crítica | Oslo, 31 de Agosto

    Crítica | Oslo, 31 de Agosto

    V2Wo0

    O segundo longa do norueguês/dinamarquês Joachim Trier (de Começar de Novo) começa como um rememorar, uma experiência de retorno a experiências passadas e a boas memórias, em detrimento do presente um tanto conturbado de Anders (Anders Danielsen Lie) o personagem principal da jornada. A tentativa em mudar sua condição de ex-dependente químico para um ser autônomo na sociedade parece árdua e difícil, e obviamente cheia de percalços e agruras.

    A variação do que Joseph Campbell explana em Herói de Mil Faces tem no lugar comum (Oslo) o chamado a aventura para Anders. Encarar a sua antiga rotina, seus entes queridos e entidades pretéritos é o desafio pelo qual ele deve passar. A possibilidade de se reviver os acontecimentos do passado, mesmo os mais ternos, algo doloroso para Anders, por fazê-lo lembrar das vezes em que obtinha heroína, ecstasy e outras substâncias ilegais. A aproximação das sensações mexe com o seu ímpeto e o devasta pela simples menção.

    O intuito do retorno a cidade seria uma entrevista de emprego, muito pautada, ainda que inconscientemente, na tentativa de Anders em provar para si mesmo que é capaz de recomeçar sua vida, mesmo sendo um ex-adicto, com 34 anos e com um potencial pouco explorado até então, ao contrário do que declarara ao seu “simpático” cunhado (na verdade um mala, apesar de ser bom ouvinte), ele guarda boas expectativas quanto a voltar a escrever e a se sentir útil novamente. A dificuldade que ele apresenta em receber reprimendas ou palavras negativas é bem condizente com a realidade de quem luta contra uma condição tão extrema como um vício ainda em processo de cura.

    A erudição, aprendida de berço, o ajudou a compor suas ideias sobre democracia, arte, escrita e o auxiliou a escolher seu ofício. O elitismo em que estava acostumado colaborou para o seu isolamento, mas não foi de forma alguma o fator preponderante para sua entrega ao vício. O contato com chegados do passado reabre nele algumas feridas, e o faz “desejar” uma recaída – que até fica em vias de ocorrer, e esta somente é impedida graças ao auto-freio do protagonista.

    Mais do que fomentar a discussão, a película de Joachim Trier busca mostrar  a faceta real de um drama infelizmente muito frequente na contemporaneidade, sem mostrar gratuidades ou fazer os caracteres de vítimas da sociedade, ao contrário, encara a questão de frente e apresenta um ponto de vista plausível e uma alternativa de vida baseado na dignidade de um ex-adicto, que busca forças para manter-se distante de seus demônios. Ao final a lente tenta evocar o otimismo ao ser reticente em mostrar a movimentação dele, mas ao consumá-la, ela se afasta, como se fosse repelida, graças as ações do combalido personagem. Antes dos anúncios de créditos, Trier aproveita para mostrar uma variação da lei da semeadura, claro, sem a mínima complacência com o espectador.

  • Crítica | Deixe a Luz Acesa

    Crítica | Deixe a Luz Acesa

    keep_the_lights_on

    Logo na abertura, expõe-se de forma criativa a temática que permeará este Deixe a Luz Acesa. Com pinturas e obras de arte retratando homens nus, seminus – ou simplesmente à vontade – em seus quadros. No seu quarto longa-metragem, Ira Sachs aborda o cotidiano de uma relação homo-afetiva, mostra suas agruras e sofrimentos, tanto os comuns a qualquer tipo de casal, quanto os problemas específicos deste nicho.

    Erik – Thure Lindhardt – é um cineasta, homossexual assumido, com uma carreira voltada pra documentários que retratam quase sempre a estética e vida gay em geral. O período histórico retratado nos primeiros atos mostra o seu árduo trabalho com uma fita que retrata o histórico da vida gay de Nova York, dos anos 40 aos 90, e em paralelo a isso, Erik é mostrado procurando parceiros sexuais. Nessa “busca” são mostrados alguns estereótipos, até que em um desses encontros a relação fica mais séria.

    O roteiro aos poucos desenvolve a relação entre Erik e Paul (Zachary Both), desde o encontro casual, até o ponto em que eles resolvem assumir a relação, mas não há flores ou um mundo cor de rosa, ao contrário, os fantasmas do passado estão presentes.

    Paul enfrenta problemas sérios. No começo, tem de lidar com seu namoro (hetero) mal resolvido. Após isso “superado” e já morando com seu novo cônjuge, o personagem passa por um grave problema de abuso dos entorpecentes, fato este que o faz perder até a estreia do documentário de Erik. Paul sofre intervenção, é internado a contragosto e seu companheiro sofre junto com ele, e esse período é retratado de uma forma sensível, e que foge de pieguismos. Nenhum dos personagens é vitimizado, nem pelas circunstâncias e nem pelas pessoas.

    É impossível não notar algumas semelhanças entre o personagem principal e o diretor, se não nas situações de conflito, ao menos há um paralelo com o background de ambos. Ira Sachs é judeu, homossexual , e tem propriedade para falar do tema. Seu roteiro – auxiliado por Mauricio Zacharias – aborda temas espinhosos do cotidiano de um homem gay sexualmente ativo, e passa pelas situações comumente constrangedoras deste nicho.

    Destaque para a cena em que o protagonista descobre se é ou não soropositivo, um momento de dramaticidade comovente por parte de Thure Lindhardt. As atuações de um modo geral emprestam muita credibilidade ao filme, pois são próximas demais do cotidiano contemporâneo.

    Aos poucos, a relação entre Erik e Paul torna-se algo degradante e obsessivo, e próximo ao último ato, é mostrado como ela chega ao fim, e o destino que cada uma das partes toma. O maior esmero em Keep the Lights On é em retratar um relacionamento de forma verossímil, real e autêntica, longe dos romances idealizados e fantasiados presentes em filme de romance água com açúcar. O universo gay de Ira Sachs não é cor de rosa, é composto de carne, alma, sentimentos e verdade.

  • Crítica | A Caça

    Crítica | A Caça

    a caça

    O movimento Dogma 95 é conhecido por mim, mas não contemplado com um olhar mais atento do que aquele dividido entre crítico e apaixonado por cinema. Após assistir esta produção,  observei que o diretor era Thomas Vinterberg, um dos criadores do movimento. Desde já, peço que relevem qualquer omissão que faça em relação às regras primordiais do movimento.

    Com direção de Vintenberg e estrelado por Mads Mikkelsen – vencedor do prêmio de Melhor Ator em Cannes e hoje conhecido por interpretar o psiquiatra Hannibal Lecter A Caça é uma produção excelente que funciona, além de sua história em si, como uma análise e um estudo do comportamento coletivo e das fabulações de uma mentira.

    Mikkelsen é um professor de uma creche em uma pequena cidade em que todos se conhecem e luta para sobreviver a um complicado divórcio que lhe tirou a guarda do filho. Em um desses arroubos infantis, uma de suas alunas projeta uma pequena paixão no professor e, ao ser reeprendida por ele ao tentar beijá-lo, desenvolve a mentira de que o professor teria lhe mostrado as partes íntimas.

    A trama escolhe nos apresentar a história de maneira natural e coerente, sem nenhum apelo e nem escolha de lados. Parte de um gesto simbólico de uma pequena garota para uma mentira que conquista maiores dimensões e destrói a vida do professor.

    Mesmo que ao professor tenha sido confiada a educação dos filhos, a cordialidade e a amizade que a comunidade tem por ele são destruídas pela potência do rumor que promove uma histeria no coletivo, que começa a vê-lo como um monstro.

    O tema que serve como base da história é um dos mais polêmicos da atualidade, presente em notícias diárias de adultos que abusaram sexualmente de infantes. Se o assunto por si só tem uma pesada carga, a trama demonstra que até mesmo uma acusação neste teor é o suficiente para produzir uma raiva coletiva e desestabilizar o acusado. É inegável que trata-se de um crime hediondo; contudo, é interessante ressaltar que, em casos como este, a necessidade pública de fazer justiça ultrapassa a punição de uma lei e produz uma massa que deseja, literalmente, liquidar o acusador.

    A personagem julgada pela própria sociedade, sem oportunidade real de defesa, perde sua base. Aos poucos, vemos um homem equilibrado que tentava seguir sua vida após um divórcio ser destruído por uma opinião histérica pública. A composição de Mikkelsen para o papel demonstra que é um ator de grande intensidade vista em pequenas expressões. Sua dor é interna, minimalista nos gestos, se acumula em um crescendo que explode em uma das melhores cenas do longa, realizada em contraste tanto pelo espaço cênico, que demonstra o sagrado e o blasfemo, como é o auge da libertação emotiva.

    Em outro aspecto, há a mentira criada pela criança, motivo que desequilibra toda a vida do professor. Adentrando um pouco o escopo da psicologia, há estudos que afirmam que seres humanos são capazes de mentir desde a infância. O filme demonstra como uma mentira branca, uma pequena criatividade na hora de expor os fatos, pode ser fatal na vida dos ofendidos.

    A naturalidade da narrativa, que nunca transforma o tema em polêmica como normalmente é visto, e a boa credibilidade de suas personagens fazem de A Caça um reflexo e uma análise incrível sobre a força da mentira e o julgamento de um coletivo, nunca desequilibrando sua trama bem composta e sem nenhuma crítica prévia.

    Ao expor um acusado frente uma multidão que não acredita nele e o repreende, observamos uma angustiante sensação de que a verdade nem sempre é prerrogativa que a massa deseja ouvir. E a angústia da personagem permanece no espectador, que reconhece que há certas dúvidas que jamais se dissipam, mesmo na clareza dos fatos. É devastador.