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  • 10 Grandes Filmes do Cinema LGBTQ+

    10 Grandes Filmes do Cinema LGBTQ+

    “Eles nunca terminam em final feliz.”, é o que mais se ouve dessa temática que quando atinge o interesse do grande público, como no caso de Azul é a Cor Mais Quente, não pela qualidade do filme mas pela polêmica que provocou no festival de Cannes, em 2013, é algo bem raro. Os festivais o adoram, mas o cinema mainstream tem medo dele, sempre procurando a segurança de um beijo hétero para garantir uma ampla identificação lucrativa. Mas no cinema também há espaço para a figura lésbica, gay, bissexual, transexual, queer, ontem e hoje, a favor da representação e da visibilidade de quem foge dos padrões normativos. Talvez, um dia, um blockbuster com uma super-heroína drag queen alcance um bilhão nas bilheterias, e enquanto isso não vira realidade, por isso, o Vortex Cultural separou dez títulos para (re)assistirmos e celebrar a diversidade.

    Juventude Transviada (Nicholas Ray, 1955)

    O melhor filme LGBTQ+ sem ser um filme LGBTQ+. A relação de Jim Stark (a lenda James Dean) com o garoto John, interpretado por Sal Mineo, invoca um sentido dúbio que, se não claramente romântico, é ultra sugestivo a algo a mais que uma amizade masculina. Dos olhares ás intenções no filme do mestre Nicholas Ray (“Posso ficar na sua casa hoje, Jim?”), o clássico que usa as cores e o brilho do cinemascope de forma revolucionária evita a todo custo ser o Brokeback Mountain de meio século atrás, mas para bom entendedor, meia intenção já basta.

    Chá e Simpatia (Vincente Minnelli, 1956)

    Retrato do que era o bullying nos anos 50 antes de ser chamado de bullying, quando um jovem de classe média enfrenta todo tipo de dificuldade por fugir dos arquétipos padrões; por sua sexualidade cada vez mais aparente e controversa a dos seus “amigos” da escola, contando assim com o apoio de uma mulher mais velha e que acaba mudando sua vida. Apesar do absurdo final heteronormativo ao contexto mais ousado da história, Chá e Simpatia representa com perfeição, muita sutileza e um tanto além do seu tempo o quão difícil é ser diferente, ao invés de se tentar ser diferente, como ainda se julga, em uma sociedade intolerante.

    Tabu (Nagisa Oshima, 1999)

    Dois samurais, símbolos da masculinidade (seja lá o que isso quer dizer), interessados cada vez mais um pelo outro a cada cena que passa. A sabedoria do grande cineasta japonês Nagisa Oshima pode ser medida em pequenos detalhes conforme o tempo avança, como na tensão sexual metaforizada pela câmera tremida, nas reviravoltas e no suspense geral que verte dessa tensão que domina as cores, movimento e o ritmo da produção, como um todo. Um dos grandes romances da década de noventa.

    Má Educação (Pedro Almodóvar, 2004)

    No drama em torno de dois meninos separados na infância pela igreja católica, e no seu reencontro a partir de circunstâncias completamente diferentes na vida adulta, a narrativa que Pedro Almodóvar cria ao redor dos fatos verídicos e às vezes enganosos dessa história de reconciliação, e interesses dos mais variados é fantástica, fluindo um delicioso e instigante clima de imprevisibilidade, e mistério. Um filme corajoso por sua temática e inteligente na sua condução, possivelmente sendo o melhor do realizador espanhol.

    Mal dos Trópicos (Apichatpong Weerasethakul, 2004)

    O homem entregue sem limites para o desconhecido dos seus instintos. Para onde isso nos levaria num cenário propício e inconsequente para isso? Mal dos Trópicos é uma odisseia por essa possibilidade com o foco na atração passional entre dois filipinos, jovens e encarando com a maior naturalidade do mundo a sua paixão mútua, culminando na surrealista metamorfose de um deles em um animal e deixando a natureza decidir por eles o que é certo, e o que é errado. Clássico contemporâneo do impronunciável diretor asiático Apichatpong Weerasethakul. Eu falei.

    Como Diz a Bíblia (Daniel G. Karslake, 2007)

    O documentário que melhor explora no Cinema os dois lados da mesma moeda: O atacado e quem ataca, e o que melhor deixa claro o quanto esses dois valores se “enfrentam” com medo mútuo, além ou aquém do respeito pela humanidade do próximo. Surfando através de momentos e depoimentos emocionantes a respeito de igualdade, conservadorismo, liberdade, ignorância, respeito, família e aceitação, se muitos acham os filmes de Michael Moore grandes exercícios de investigação, Como Diz a Bíblia por pouco não os faz parecer amadores. Algo intensamente verdadeiro, provocador, reflexivo, chocante às vezes e sempre honesto.

    Além da Fronteira (Michael Mayer, 2012)

    Entre Romeu e Julieta havia um conflito, e entre Nimer e Roy também. Dois amantes separados por um impasse ideológico praticamente inextrincável – um é palestino, o outro israelense. Ambos tentando se enganar e viver da melhor forma possível o que sentem, à medida que a realidade que existe entre as fronteiras começa a cobrar um preço mais do que alto. O desafio era grande, e o drama é invariavelmente pesado para nos fazer sentir pelo menos 1% da dificuldade da situação. Diferente de todos os títulos dessa lista, Além da Fronteira nos lembra que não há amor sem as suas doses de dor, e sacrifício. Não neste mundo.

    Azul é a Cor Mais Quente (Abdellatif Kechiche, 2013)

    A partir de um encontro desencontrado de Adéle com Emma numa faixa de pedestres movimentada de Paris, o filme sela dois compromissos com a gente, um simples e um nada fácil: Responder a razão da cor da maioria das calças jeans no mundo merecer ser admirada (e desejada) como a mais efervescente que há, e como as paixões adolescentes podem ser adaptadas para o Cinema com toda a potência que elas nascem e porventura se mantém, e de uma forma ainda nunca vista até então, com o universo explodindo para isso em prazer, risos, lágrimas e matizes de ciano até o fim.

    Carol (Todd Haynes, 2015)

    Eleito o melhor filme LGBTQ+ pelo Instituto Britânico de Cinema, em 2015, Carol é uma grande homenagem aos grandes romances do passado, atemporais, revitalizados aqui por duas divas da Hollywood atual, Cate Blanchett e Rooney Mara, e pela visão magnifica do diretor Todd Haynes, sempre esnobado pelo Oscar. Defendendo a ideia de que arte é amor, e que amor é arte, e um não existe sem o outro, Haynes conjurou um filme-poesia numa das mais respeitosas obras cinematográficas desse século.

    Moonlight: Sob a Luz do Luar (Barry Jenkins, 2016)

    A jornada de Chiron, negro, pobre e gay pelas fases da sua vida dura é um triunfo semi obtido de tornar Cinema, por simples gestos minimalistas ou olhares de sensibilidade abismal, inúmeras noções e verdades inconvenientes ironicamente minoritárias dentro do que a sociedade já inferioriza, ou ignora. Moonlight é silencioso e todo contido em si, não poderia deixar de ser, e carrega consigo um gosto muito bom de ineditismo e de sucesso representativo oriundos de um autor tão novato, quanto Barry Jenkins.

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  • Top 10 | Filmes para o Dia dos Namorados

    Top 10 | Filmes para o Dia dos Namorados

    Uma das forças de movimento do ser humano, o amor é um dos sentimentos mais arrebatadores e controversos que existe, principalmente, por conta de sua potência e de limites naturais que podem transforma-lo em passado e bruma. Presente na maioria das narrativas, os amantes são figuras primordiais e estão presentes no imaginário popular desde a composição do livro da criação, representados por Adão e Eva. Independentemente de seu fruto, os amantes são sempre um tema rico explorado pela sétima arte e, neste dia dedicado aos enamorados, Marcos Paulo, Doug Olive, Filipe Pereira, o recém-chegado Halan Everson e Thiago Augusto Corrêa se reuniram para compor mais uma lista, dessa vez, direcionada a pares unidos pela ficção (Em tempo, a última vez que a equipe se reuniu para o assunto foi no sexto Vortcast, “Ahhhh, O Amor…“. Porém, até mesmo no imaginário, o amor não é eterno posto que é chama. Uma justificativa que explica porque, dentre a lista desenvolvida, algumas obras são um misto de felicidade e tristeza simultânea. Ainda assim, a aventura de um amor é um dos grandes prazeres humanos. Não a toa a canção do quarteto de Liverpool assume que tudo que precisamos é de amor.

    Ela (Spike Jonze, 2013) – Por Marcos Paulo

    Filme de destaque no ano de 2013, conta com um Joaquin Phoenix irreconhecivelmente frágil no papel de Theodore e Scarlett Johansson como Samantha, sua sedutora assistente virtual. Em um mundo surreal, pessoas criam laços profundos com seres virtuais como solução para perda do sentido de contato e afeição em seu mundo físico. Questões sobre amor, necessidades e aquilo que nos faz humanos, são parte desta fábula criada por Spike Jonze refletindo aquilo que um relacionamento, seja como for, traz de mais especial: pertencer a algo maior.

    Azul é a Cor Mais Quente (Abdellatif Kechiche, 2013) – Por Doug Olive

    Uma grande brincadeira (levada a sério por parte do público) com o atual cinema francês. Um filme onde se opta por esquecer trilha sonora, montagem americana ou a tentação de muitos em definir essa “nova” geração. Ao invés disso, Azul é a Cor Mais Quente nos conquista substituindo o ritmo narrativo oriundo dos quadrinhos pelo nível excepcional de todas as atuações; em especial da protagonista, com seus inúmeros monólogos sem palavras. Cada gemido ou sugada de espaguete é sinal verde para a próxima cena, às vésperas de um novo riso ou choro para nos deixar órfãos da insensibilidade – tudo aflora! No universo sem contexto ou decretos de Adéle, nua do começo ao fim, nada é, mas tudo pode ser intencional transvestido de inofensivo. Um furacão que arrasou Cannes em 2012, e um arco-íris de sensações, pintado no limite entre a lucidez e a explosão emocional; uma homenagem crônica, afinal, à liberdade – la voie, la vérité, la vie, o lema político da França e das democracias pertinentes.

    Amor (Michael Haneke, 2013) – Por Filipe Pereira

    Evocando a fase adulta da terceira idade, como pano de fundo, Michael Haneke faz um verdadeiro filme de horror, exibindo as agruras da vida a dois através do drama de Amor. A história é contada a partir dos olhos de Georges, vivido pelo veterano Jean-Louis Trintignant, que assiste a degradação mental de seu par, Anne ( com a inspirada Emmanuelle Riva) que aos poucos perde a consciência e o controle de seus movimentos e de sua consciência mental, graças a uma variação rara de uma doença mental, além de fazer fortes alusões a proximidade da morte. O começo do filme já revela os momentos do último ato, com a decomposição corporal da pessoa do belo sexo, ainda que o ponto de vista seja absolutamente diferente da ideia “romântica” do que é um namoro/casamento. O modo como Georges trata sua combalida companheira passa por todos os estágios inerentes a uma junção de duas pessoas, mortificando qualquer fetiche de que a vida de um casal é repleta de sexo e desejo carnal mútuo, indo desde o carinho extremo a impaciência e esgotamento emocional, em uma monta russa emocional que não deixa qualquer espectador incólume.

    Essa Noite Você é Minha (David Mackenzie, 2011) – Por Halan Everson

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    Quando a música é parte essencial da trama de um romance, me soa muito mais agradável querer acompanhar esse tipo de filme porque certamente a música será utilizada além dos mesmos recursos batidos algo diferente do usual. E é nessa pequena pretensão de ser algo diferente que Essa Noite Você é Minha faz uso da fórmula sem ficar engessada nos clichês dela. Dirigido por David Mackenzie (do excelente Sentidos do Amor, também de 2011), acompanhamos uma fábula de romance acontecendo durante um festival de música, que não existem de hoje, mas acredito ser um dos poucos filmes dedicado a ficar exclusivamente nesse mesmo ambiente espiritual do inicio ao fim. Na trama, um líder de uma banda famosa do evento (Adam, Luke Treadaway) é algemado á uma vocalista de outra banda (Morello, Natalia Teña), que está tentando ganhar seu reconhecimento. Simples assim, essa premissa acontece derrepente e você vai junto ou não engole todo o resto. Geralmente esse tipo de filme está relacionado ao ambiente urbano fazendo essa experiência algo diferente. A música é personagem integrante da trama e realça muito dos momentos mais interessantes do filme, tanto de fundo como cantadas incluindo um incrível duo de Tainted Love feito por Teña e Treadaway. É uma excelente forma de fugir da cidade e viver um conto jovial e musical.

    A Bela e a Fera (Gary Trousdale e Kirk Wise, 1991) – Por Thiago Augusto Corrêa

    Bela e a Fera

    Considerado um dos clássicos supremos da Walt Disney Pictures, A Bela e a Fera dá continuidade as histórias adaptadas de fábulas e a trajetória de personagens femininas denominadas popularmente de princesas Disney. Composta por uma bela e simples história, a narrativa tem alcance em adultos e crianças, cada um lendo a obra de maneira diferente, conforme sua experiência. Como fábula, a história é conduzida pelo contraponto entre virtudes e vícios, deixando explícito a moral de nunca julgar pela aparência. A sensibilidade da trama e o crescimento da relação entre as personagens centrais é o principal enlace com o público, uma relação que se modifica na magnífica – e perfeitamente produzida – cena do salão de dança enquanto a canção A Bela e a Fera (Tale As Old As Time) é entoada.

    Namorados Para Sempre (Derek Cianfrance, 2010) – Por Marcos Paulo

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    Embora seu título original, Blue Valentine, pareça distante de sua tradução, o título é bastante adequado à este anti romance estrelado por Ryan Gosling e Michelle Williams, como o casal Cindy e Dean. Unidos por um acaso, a paixão do amor desintegram-se num relacionamento incapaz de se doar e amadurecer para além de um namoro juvenil, tornando os para sempre namorados. A falta de perspectiva, cobranças ocultas e a insatisfação os tornam amargurados e perdidos entre o que foram e o que gostariam de ser.

    Desencanto (David Lean, 1945) – Por Doug Olive

    desencanto

    Em 2015, o diamante em estado bruto de David Lean completa setenta anos, com o tempo o fazendo cada vez melhor, e mais relevante que nunca, no Olimpo do gênero que representa fácil e esplendorosamente bem, a medida que é lapidado pela evolução do Cinema. A fumaça do trem separando um casal, porém, ainda não abaixou na estação, enquanto os olhos de lua da atriz Celia Johnson aguardam para sempre o eterno amor do passado, naquela mesa de bar, sozinha. Mesmo com Lawrence da Arábia e A Ponte do Rio Kwai, épicos devido a escala de produção, é o sentido mais puro e cru de épico, do tipo que chega a tocar na perfeição, que torna Desencanto, primo tímido de Casablanca, um dos mais sensíveis e amargos romances da Era de Ouro em Hollywood, o testamento supremo de Lean. Chico Buarque, no álbum de 1968, canta no hino. Desencontro a definição perfeita a um dos mais doces e fatalistas romances, onde o preço do amor é cobrado a partir de suas polaridades, valor e capacidade de colorir vidas condenadas ao mundo preto e branco dos desejos não-correspondidos.

    Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (Daniel Ribeiro, 2014) – Por Filipe Pereira

    A singela historieta pensada por Daniel Ribeiro, primeiro em seu curta Eu Não Quero Voltar Sozinho, ganha ares de maturidade no belo longa Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, contando a história do duplamente excluído Leonardo (Guilherme Lobo) que, além de cego, começa a explorar vagarosamente sua sexualidade, no apogeu de sua puberdade, eclodindo uma paixão improvável com seu novo amigo, Gabriel (Fabio Audi), que também passa a descobrir os próprios desejo e pulsões de paixão e sexo na prática. A condução de atores tão jovens é belíssima, dá ainda mais sentido para a trama, relembrando filmes semelhantes de descoberta das manifestações de amor, com a obra que alude ao quadrinho de Julie Maroh, Azul é a Cor Mais Quente, ainda que a identidade da fita de Ribeiro seja carregada de brasilidade e identidade visual típica do país, unindo o formato bem urdido com um drama interessante e sensível ao extremo.

    Romances e Cigarros (John Turturro, 2005) – Por Halan Everson

    romances e cigarros

    John Turturro é um cara que é muito mais lembrado por ser coadjuvante. Pode ser por uma dessas que quando ele resolve tomar as rédeas de um projeto saiam peças tão únicas quanto esse belo romance/musical produzido com a ajuda dos Irmãos CoenJames Gandolfini vive o marido infiel de Susan Sarandon que tem um caso com Kate Winslet. É nessa simples trama de adultério que temos excelentes performances musicais dos protagonistas e dos coadjuvantes usando de uma sutil sincronia com as músicas originais enquanto cantam. Obviamente uma ideia que quebra toda a seriedade de uma discussão ou uma briga não poderia se levar a sério, e Turturro faz questão de brincar com o surreal de maneira agradável com aparição de mortos que quebram a quarta parede, conversas aleatórias numa obra e montagens de videoclipe dão o tom mais que divertido para o filme. Ele não perde o compasso entre a seriedade e os momentos de comédia em nenhuma das suas passagens, sabendo dosar cada uma da melhor forma o possível até o final.  Certamente um filme para rever varias vezes.

    Casablanca (Michael Curtiz, 1942) – Por Thiago Augusto Corrêa

    Image: FILE PHOTO: 70 Years Since The Casablanca World Premiere Casablanca

    Presente nas listas de Melhores Filmes de Todos os Tempos, Casablanca também é uma grande história de amor explorando, com a ironia característica de  Rick Blane, a beleza e a amargura de uma relação. O roteiro de Julius J. EpsteinPhilip G. EpsteinHoward Koch é uma das composições mais perfeitas da sétima arte, construindo uma gama de temas profundos sem desequilibrar nenhum aspecto narrativo. A guerra se contrapõe ao amor como metáfora fatalista de afastamento, o par central que se enlaça e se afasta representa a potência da união em contrapartida ao repertório interno de cada ser amado. A personagem de Bogart é tão miserável que é quase impossível não se identificar simultaneamente.

  • Crítica | Azul é a Cor Mais Quente

    Crítica | Azul é a Cor Mais Quente

    Azul é a Cor Mais Quente

    A adolescência é possivelmente a fase mais indefinida na vida do indivíduo, quase nenhuma certeza é concreta. O roteiro linear de Ghalia Lacroix e Abdellatif Kechiche (baseado nos quadrinhos de Julie Maroh) é pródigo em mostrar isso já no prelúdio. La Vie d’Adèle começa sem circunlóquios, mostrando o cotidiano de Adèle e discutindo algo básico ao que se tornaria a sua vida. Tal assunto é tratado por seus semelhantes como motivo de chacota, descaso e indiferença – para os mais jovens, é difícil definir algo tão abstrato quanto o amor.

    Diversas são as formas como Kechiche registra as cenas de sexo. Adèle (Adèle Exarchopoulos) fantasia uma transa com um parceiro completamente diferente ao que todos à sua volta sugerem a ela. Quando finalmente cede às pressões, se decepciona, seu gozo passa longe de ser alcançado e se frustra – as lágrimas após o rompimento com esta máxima são mais que simbólicas, são reais.

    Em um protesto, seu grito é grave, masculinizado. Sua persona atrai outras garotas com este desejo em comum. A câmera registra o constrangimento de Adéle de modo belo e tocante. A garota só volta a se sentir (ligeiramente) à vontade em uma festa onde praticamente só há gays masculinos, porém ainda há uma sensação de não pertencimento àquele mundo, sentimento de inadequação. Aos poucos, ela adentra no mundo underground, mergulha em sua própria consciência e libera-se para novas experiências, mudança esta representada pelo bar temático.

    Emma (Léa Seydoux) é extremamente gentil e compreensiva com a protagonista, cumpre um papel fundamental na psiquê de Adèle. Faz bem a ela, lentamente a descontrai – como o Id, desreprimindo o Ego – ao contrário de outras moças “pilotas de caminhão” (estereotipadas e sem receio de serem assim), que afastam Adèle do que Freud chamava de Ideal do Ego – uma superação do Ego, que chega ao ápice do que este deveria ser, sem os recalques primários e secundários. A reação de suas antigas amigas à primeira aparição pública de Emma justifica plenamente os receios de Adèle, e reacende a discussão do que é ou não natural a respeito da sexualidade, e do disfarce das ações mentais secundárias e primárias em originárias.

    Em determinado momento, Adèle passa a usar muito jeans cor índigo, remetendo à tonalidade de sua “musa”. Após 71 minutos, o clímax da relação é posto em realidade numa cena de aproximadamente 7 “ternos” minutos. A predileção de Adèle pelo magistério diz muito sobre sua personalidade. Ela afirma que na escola aprendeu muito, demasiados conteúdos não passados por seus pais – não nominados – e por seus amigos. A segurança do emprego a empurra a fazer essa escolha, ela prefere não arriscar. A apresentação de Emma aos pais da personagem principal é tímida e um pouco constrangedora – a distância entre as duas casas das moças é abissal. Até mesmo no entendimento da arte como trabalho, demonstrando o quanto os adjetivos acompanham e se atrelam ao conservadorismo como também quão artificial é o comportamento destes, especialmente se comparados às ações de Emma, uma pessoa desprendida aos olhos da protagonista.

    A macarronada (prato no qual o “pai” se especializou) é um signo para a inadequação de Adèle em diferentes momentos de sua vida. As cenas tórridas são pontuadas por sua forte respiração, expressando alívio, ocorrendo somente na intimidade, momentos em que nada precisa fingir. A decadência da relação é executada cruamente, assim como a tentativa de se socializar após o fim. As reações retratadas são muito verossímeis e realistas, além, é claro, sexual e emocionante. No entanto, no auge de seu desespero, Adèle rompe com o medo de se demonstrar, se rendendo aos excessos que a carne exige.

    Soma-se a isso uma fotografia com perícia, uma direção de arte das mais caprichadas, direção de atores competente ao extremo, e um roteiro não complacente em momento algum. Os nus são magistralmente registrados e são palatáveis até para espectadores de conservadorismo não tão extremo. Emma representa para Adèle a libertação, e para o filme, um instrumento de metalinguagem, pois ela costura de forma leve suas impressões sobre a arte. Kechiche usa esse capítulo da biografia para demonstrar a arte do corpo e da alma feminina, apelando para lugares comuns, sem se descuidar das nuances inerentes a cada indivíduo de singularidade latente. O filme é belo, real, tocante e feminino, sem medo de expor sua história com o máximo de sinceridade possível.