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  • Resenha | Azul é a Cor Mais Quente

    Resenha | Azul é a Cor Mais Quente

    Azul é a Cor Mais Quente - capa

    A escritora francesa Julie Maroh abre seu livro agradecendo àqueles que a ajudaram no desenvolvimento de sua obra e destaca que esta é feita especialmente “às garotas que gostam de sorrir”. É curioso que antes de introduzir seus personagens a artista já demonstre o cunho da obra, o que denota não só a narração de um drama, mas também uma vivência calcada no real. No entanto, o caráter explícito para aí; ao se entrar na trama, o quadro muda.

    Cada quadrinho é construído de modo único, com um trabalho de cor esmeradíssimo. Mesmo os que não possuem diálogos são plenamente compreensíveis apenas através das imagens, uma vez que estas são montadas com uma sensibilidade extrema e falam por si só. Clémentine é a peça analisada, uma moça resignada, que nas primeiras páginas se declara a Emma, o amor de sua vida, e deixa para ela o seu diário, que contém cada segredo de sua vida desde os quinze anos de idade. A simbologia é óbvia, mas passa longe de ser simplória: apela para um mergulho no universo feminino, nas belas curvas visíveis, mas também na psiquê sensível e emocional do injustamente alcunhado sexo frágil.

    Logo no começo da leitura, já se notam as páginas de tom amarelado envelhecidas pelo tempo, que emulam a monotonia das folhas que outrora eram brancas. Os primeiros relatos quase não possuem distinção de cor. Os tons escolhidos por Maroh visam representar a monotonia da vida adolescente, com o seu conjunto de dramas normalmente subestimado pelos adultos sob o velho pretexto de que estas questões “se resolverão por meio da maturidade”, o que nem sempre condiz com a realidade.

    Outra sensação exposta pelos tons fracos é a repetição de pessoas: as que pouco acrescentam não possuem distinção de cor, são iguais em tom ao cenário, não possuem brilho próprio;  já as que marcam a vida de Clémentine têm outra abordagem, com a singularidade do azul em suas roupas ou olhos, e, no caso de Emma, os cabelos. Algo semelhante acontece com vida de Clem após finalmente conhecer sua amada, pois esta liberou o panteão do arco-íris sobre a narradora.

    A ausência de Clémentine é sentida (e muito) por seu antigo par. A sensação descrita pela palavra brasileira “saudade” é muito bem explorada pela narrativa, que vai e volta na linha temporal, com o presente contemplando Emma lendo os últimos escritos de Clem na casa dos pais da moça. Mesmo com a recente perda, o preconceito conservador latente não é deixado de lado pelos parentes. Sem qualquer cerimônia, “o pai” sentencia que a culpa da situação é do pecado luxurioso, mas nem assim Emma se deixa abater.

    A fascinante descoberta de Clémentine se dá de modo natural; ela não é forçada a se mostrar, pelo contrário, o destino segue seu curso sem qualquer interferência humana. O modo de ver essa postura da protagonista é diversa. Para Emma, um dos estopins da descoberta sexual de Clem, a paixão delas se dava pela alma, e pouco importaria o seu sexo. Ela tem razão, mas segundo os segredos contidos no livro a concordância entre as duas se dá em partes. Os pares masculinos de Clémentine não despertam nem de longe todo o exacerbar da libido que ocorre nas cenas mais íntimas.

    Por estar cercada por adultos conservadores e desligados da realidade que Clem acaba achando mentores quase tão jovens quanto ela. Valéntin, um amigo seu, consegue ter o discurso mais lúcido dentre os ouvidos por ela, deixando claro o óbvio fato de que “o amor não corresponde à moral que ensinam”, além de explicitar que “não existe uma fronteira bem delimitada e imóvel entre a amizade e o desejo amoroso”.

    Mas nada aplaca a vontade incontida de Clémentine. Nas primeiras interações da menina com Emma, bem mais experiente, há uma singeleza ímpar. Os pedidos de carinho expõem a carência, que não é explicitada por meio de gritos, de brados ou de panfletarismo, pelo contrário, o pedido do “beijo” vem por meio de um sussurro, tão baixo que até se duvida de sua sonoridade, reticência esta que não se dá quando analisada a sinceridade de seu interior.

    O choro de Clementine depois de ser execrada por suas amigas mostra a reação legítima de quem se sente “um pouco” ofendida e muito confusa. Ao conversar por telefone com a sua nova conhecida, ela profere palavras fortes e pejorativas, como “sapatão” e pergunta se ela não se sente culpada por ser diferente. A resposta de Emma é veemente, como já era de se esperar, e é seguida por um quadrinho onde a menina está isolada, como em uma tela em branco, recolhida dentro de seus próprios braços, buscando socorro dentro de si, onde nada encontra. Aos poucos, a mágoa dá lugar a outra aflição, a falta que a musa faz a ela, e Clem vai em busca daquela que despertou em si uma enorme curiosidade.

    Uma vez reatada a conversa amistosa, começam as confissões de ambas, como se contando uma para a outra as suas experiências fosse mais fácil lidar com as agruras da vida. De certa forma elas estão certas, pois o apoio mútuo é deveras proveitoso. O processo de autoaceitação não é instantâneo. A reticência da narradora em contar como os eventos se intercalaram é tocante e verossímil. Como era de se esperar, o medo de mudar dá lugar à revolta. O inconformismo de ter sido cega às suas próprias necessidades e a de tantos outros, além de sua inquietação, muda o seu semblante juvenil, e até parece acrescentar um pouco de maturidade ao seu repertório – de fato, acrescenta mesmo.

    Um pouco do medo de ser quem é ainda acomete Clémentine, que só consegue se livrar de verdade disso ao verbalizar o seu desejo ao dizer primeiro a Valéntin – seu amigo mais próximo desde sempre – que se sente uma pecadora por ter tais sensações, e depois finalmente se declarando a Emma, que despertou nela muito mais do que o fogo proveniente da libido, mas também uma vontade de que as duas podiam, enfim, pertencer uma a outra. Clem pergunta à sua “amiga” o porquê de ela nunca ter aberto as portas de sua casa para ela, mas faz isso já adentrando o domicílio da garota; a resposta não poderia ser outra se não a de ter a tentação de entregar-se à volúpia de fazer amor com ela. As cenas a seguir são explicitamente belas e sexualmente intrigantes, desenhadas com um zelo e um esmero únicos.

    A palavra transa é normalmente usada para designar relações sexuais, mas um dos seus significados tem ligação com a palavra “troca”. A cena em que há a primeira cópula entre as duas é sentimental e sem adornos, que faz o ato em si ter esse caráter de transa. Acompanhados pela poesia das palavras, os movimentos são também carregados de lirismo. A nudez é tocante e construída sem qualquer gratuidade, e a entrega das duas é de corpo e de alma. Era como se somente o presente existisse, como o futuro não importasse, mas o cronos pediria a conta dos atos delas.

    A taxa para que ambas fiquem juntas é pesada, pois Emma namorava outra menina e acreditava (sinceramente) que Clémentine era, na verdade, hétero, e que tudo aquilo passaria. Mesmo com toda a troca protagonizada pelas duas, mesmo com o câmbio de fluídos e de sentimentos, Emma teme ser esquecida, teme ser apenas fruto de uma fase, mas tem todos os seus temores negados pela sinceridade de seu par.

    Aos poucos, as coisas entre o casal tomam forma, e elas enfim podem ficar juntas, já que ambas não têm mais qualquer compromisso. Mas Clémentine não se permite ir mais fundo, uma vez que não tem certeza da solidez do sentimento de sua parceira. Pela primeira vez, ela tem uma atitude resoluta, totalmente baseada na realidade.

    O casal protagoniza idas e vindas quando Emma vai ao encontro da narradora e assume que a vida sem ela não tem o mesmo gosto, o mesmo sabor, e faltam alma e sossego. Emocionadas, as moças se entregam mais uma vez aos seus desejos mais íntimos, deixando claro, ao menos para elas mesmas, o quanto a dependência uma da outra colabora para a felicidade mútua.

    Clémentine resolve apresentar sua parceira para os pais, claro, sob um disfarce de normalidade e amizade inocente, mas que em toda a sua fragilidade não consegue se resguardar dos gritos homofóbicos provenientes da família da protagonista. Ela é expulsa de casa pela cólera do seu genitor aos 17 anos, e em seu diário declara que não voltou mais a sua casa, mesmo aos 30 anos de idade.

    Maroh mostra a multiplicidade de formas de agir com relação à sexualidade, e parte das posturas relativas ao futuro das duas moças tem a ver com isso. Emma enxerga sua homossexualidade como uma bandeira, algo que ela deveria levantar e usar como arma política factualmente, enquanto Clem vê a questão como algo íntimo demais para se expor de modo escancarado. Lidar com a opinião alheia ainda é um problema grave para a menina, graças ao trauma, e, apesar dos pesares, a história não trata disso como algo necessariamente ruim ou penoso, é apenas mais um modo expositivo de lidar com a sua própria orientação sexual.

    A briga que sepulta a relação das duas tem um pouco a ver com a postura que Clémentine assume, ao menos (é claro) sob o ponto de vista de Emma, cujo julgamento está claramente abalado, e muito, pela raiva e indignação de ter sua confiança traída. A tentação a que Clem sucumbiu foi com um homem, semelhante ao medo anterior de sua parceira, o que ajudou a enraizar ainda mais a mágoa no coração da moça traída, maximizando a sensação de ter sido ludibriada.

    A relação das duas passa pelos percalços comuns aos de todas as pessoas. A vida adulta finalmente chega para Clémentine, mesmo que ela insista em esconder a maior parte da sua face real dos outros. Após começar a se automedicar, se viciar em remédios fortíssimos e começar a definhar, a moça finalmente tem um encontro com a sua amada, claro, como resultado de uma surpresa do seu sempre presente amigo Valéntin. Mas pelo torpor de ter finalmente sua musa ao seu lado, Clem tem uma complicação cardíaca, e é finalmente mostrado o porquê de sua falta em toda a trama.

    A via-crúcis do hospital é carregada de simbolismos, desde o abandono dos pais até a óbvia culpa de Emma de ter deixado a sua amada a ponto de ver decretada a morte de Clem. Sabendo disso, ainda no leito de morte, Clémentine termina os escritos do diário com uma belíssima declaração de amor que destaca a importância de Emma, salientando que esta não deve se sentir culpada, uma vez que foi ela quem a salvou de viver eternamente com medo, além de explicitar o quão indiscernível é o amor, assim como o seu poder em tornar as pessoas em seres eternos. De certo modo, o epitáfio de Clem serviu para que ela se livrasse de sua introspecção e de seu medo de se permitir.

    O trabalho de Julie Maroh em mostrar a jornada de Clementine é tocante, sentimental e realisticamente épico do ponto de vista da grandeza dos fatos e de quão encantador e harmonioso é o modo como ela executa o conto.

  • Crítica | Azul é a Cor Mais Quente

    Crítica | Azul é a Cor Mais Quente

    Azul é a Cor Mais Quente

    A adolescência é possivelmente a fase mais indefinida na vida do indivíduo, quase nenhuma certeza é concreta. O roteiro linear de Ghalia Lacroix e Abdellatif Kechiche (baseado nos quadrinhos de Julie Maroh) é pródigo em mostrar isso já no prelúdio. La Vie d’Adèle começa sem circunlóquios, mostrando o cotidiano de Adèle e discutindo algo básico ao que se tornaria a sua vida. Tal assunto é tratado por seus semelhantes como motivo de chacota, descaso e indiferença – para os mais jovens, é difícil definir algo tão abstrato quanto o amor.

    Diversas são as formas como Kechiche registra as cenas de sexo. Adèle (Adèle Exarchopoulos) fantasia uma transa com um parceiro completamente diferente ao que todos à sua volta sugerem a ela. Quando finalmente cede às pressões, se decepciona, seu gozo passa longe de ser alcançado e se frustra – as lágrimas após o rompimento com esta máxima são mais que simbólicas, são reais.

    Em um protesto, seu grito é grave, masculinizado. Sua persona atrai outras garotas com este desejo em comum. A câmera registra o constrangimento de Adéle de modo belo e tocante. A garota só volta a se sentir (ligeiramente) à vontade em uma festa onde praticamente só há gays masculinos, porém ainda há uma sensação de não pertencimento àquele mundo, sentimento de inadequação. Aos poucos, ela adentra no mundo underground, mergulha em sua própria consciência e libera-se para novas experiências, mudança esta representada pelo bar temático.

    Emma (Léa Seydoux) é extremamente gentil e compreensiva com a protagonista, cumpre um papel fundamental na psiquê de Adèle. Faz bem a ela, lentamente a descontrai – como o Id, desreprimindo o Ego – ao contrário de outras moças “pilotas de caminhão” (estereotipadas e sem receio de serem assim), que afastam Adèle do que Freud chamava de Ideal do Ego – uma superação do Ego, que chega ao ápice do que este deveria ser, sem os recalques primários e secundários. A reação de suas antigas amigas à primeira aparição pública de Emma justifica plenamente os receios de Adèle, e reacende a discussão do que é ou não natural a respeito da sexualidade, e do disfarce das ações mentais secundárias e primárias em originárias.

    Em determinado momento, Adèle passa a usar muito jeans cor índigo, remetendo à tonalidade de sua “musa”. Após 71 minutos, o clímax da relação é posto em realidade numa cena de aproximadamente 7 “ternos” minutos. A predileção de Adèle pelo magistério diz muito sobre sua personalidade. Ela afirma que na escola aprendeu muito, demasiados conteúdos não passados por seus pais – não nominados – e por seus amigos. A segurança do emprego a empurra a fazer essa escolha, ela prefere não arriscar. A apresentação de Emma aos pais da personagem principal é tímida e um pouco constrangedora – a distância entre as duas casas das moças é abissal. Até mesmo no entendimento da arte como trabalho, demonstrando o quanto os adjetivos acompanham e se atrelam ao conservadorismo como também quão artificial é o comportamento destes, especialmente se comparados às ações de Emma, uma pessoa desprendida aos olhos da protagonista.

    A macarronada (prato no qual o “pai” se especializou) é um signo para a inadequação de Adèle em diferentes momentos de sua vida. As cenas tórridas são pontuadas por sua forte respiração, expressando alívio, ocorrendo somente na intimidade, momentos em que nada precisa fingir. A decadência da relação é executada cruamente, assim como a tentativa de se socializar após o fim. As reações retratadas são muito verossímeis e realistas, além, é claro, sexual e emocionante. No entanto, no auge de seu desespero, Adèle rompe com o medo de se demonstrar, se rendendo aos excessos que a carne exige.

    Soma-se a isso uma fotografia com perícia, uma direção de arte das mais caprichadas, direção de atores competente ao extremo, e um roteiro não complacente em momento algum. Os nus são magistralmente registrados e são palatáveis até para espectadores de conservadorismo não tão extremo. Emma representa para Adèle a libertação, e para o filme, um instrumento de metalinguagem, pois ela costura de forma leve suas impressões sobre a arte. Kechiche usa esse capítulo da biografia para demonstrar a arte do corpo e da alma feminina, apelando para lugares comuns, sem se descuidar das nuances inerentes a cada indivíduo de singularidade latente. O filme é belo, real, tocante e feminino, sem medo de expor sua história com o máximo de sinceridade possível.