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  • Crítica | The Normal Heart

    Crítica | The Normal Heart

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    A AIDS como denúncia enquanto produto do meio inexplicável. Teorias da conspiração são o tipo de coisa que não falta nesse mundo, e até hoje seguem feito esporte efetivo aos incapazes de compreender a pandemia, alastrada nos anos 80, do vírus de tantos amores soropositivos, de segregação sexual. Você sente que The Normal Heart é dedicado a todas as vozes caladas no passado, esquecidas na época por seus representantes políticos (que hoje ganham ou perdem votos por apoiar o casamento homo, como se o direito fosse alienígena), e cientes de que nunca seriam lembradas. Um daqueles raros filmes gays que não tenta se heteronormatizar, não tenta se encaixar no contexto que a maioria do público gosta de ver. Se faz com total orgulho acerca de uma minoria, e realizado para ela mesma, ainda que possa ser totalmente adotado por qualquer pesquisador da raça humana e usuário do cinema para tanto.

    Se resgatar atos e fatos de um passado recente e incômodo indispõe muita gente, o telefilme do canal HBO tem a força de mil elefantes, carregada nas costas da visibilidade, da expressão, sendo tal expressão totalmente econômica e serena durante toda a projeção, além de utilizar-se como ponto central da polêmica enfermidade, já tratada antes mas não debatida ainda com tamanho realismo, seja em Clube de Compras Dallas ou em Meu Querido Companheiro, os dois melhores exemplos até então.

    A questão do direito foi mencionada acima. Direito de ser o que é? Quanto ao amor, esse é guerra. Quanto ao filme, Ryan Murphy, o cineasta, se apropria da história em mãos para tecer uma analogia própria e intrínseca ao enredo, ou seja, constrói uma obra democrática e bilateral, de pontos de interpretação diversos junto a um dínamo ligado a todos eles, ao fator ambíguo da proposta derivado de cada personagem apresentado; ora pelo representante do presidente dos Estados Unidos que se apavora na dúvida de que a AIDS poderia ser transmitida em contato hetero, ora pelos amigos, desesperados e a ponto de explodirem, do ativista da causa Ned Weeks – Mark Ruffalo, melhor atuação da carreira, com postura de Milk, de Sean Penn, e ecos do Lincoln de Daniel Day-Lewis. Weeks também não sabe direito quais procedências tomar em relação a uma doença que deixou de ser simples endemia ou caso isolado há muito, ou em quem acreditar, senão na responsável doutora Emma Brookner (Julia Roberts, a joia do filme). Em The Normal Heart, provocações só nascem de quem ainda não sabe o que lhe agrada.

    Murphy comanda o show e seu elenco com uma serenidade e um desejo de perícia, entre causa e efeito, inesperados, em especial para um cara que não detinha provas reais do seu talento, a despeito da fraca trilha sonora aqui, que perde a chance de embalar várias sequências, num incentivo voltado a uma maior profundidade sensorial. Todavia, num filme que contém a difícil cena de uma mãe, em prantos agonizantes que, junto do namorado de seu filho infectado, deve enterrar o próprio herdeiro rejeitado pelo nojo dos médicos que atestaram seu óbito, seria previsível um clima pesado, apelativo ou cético, certo? Nada mais contraditório a tal expectativa num filme acerca do amor, que aqui sofre a desconstrução a partir de quem o sente, jamais do sentimento.

    Trilhando caminho oposto aos taxativos de plantão, o explícito da obra gira em torno da necessidade de mostrar o que é preciso na tarefa de escancarar um mundo semi-proibido, sob uma economia de recursos eficiente para uma experiência serena, informativa e bem temperada, ao longo de elementos cuja intensidade vai além de um romance de Woody Allen.

  • Crítica | Um Conto do Destino

    Crítica | Um Conto do Destino

    um conto do destino

    Nova Iorque, 1895. Nesta época e local ambienta-se a história rememorada pela narradora, que a inicia com uma releitura do mito de Moisés, usando a cidade americana como o oásis da perfeição, o lugar onde o rebento do casal de protagonistas poderia viver a despeito de tudo: da deportação de seus pais imigrantes (motivada pela tuberculose) e da irrealidade dos fatos e acasos, que influi diretamente no destino da criança, solta em alto mar e sobrevivendo à tragédia. Há um tanto de fantasia em Um Conto do Destino, de Akiva Goldsman.

    As salas palaciais, grandiosas e suntuosas guardam espaço espiritual para que a luz mágica atravesse-as e faça delas cenários semelhantes aos dos clássicos da Disney. Até os personagens são simples, mas não necessariamente vazios, lembrando os arquétipos presentes nos contos infantis. A fotografia de Gary Capo — acostumado a filmes grandiosos, como O Último Samurai, Missão: Impossível 2, Além da Linha Vermelha  flagra ainda mais o caráter de conto de fadas da história amplificado pelos cenários da neve, com cores frias, em contraste com os corpos dos personagens, de cores quentes. A direção de arte de Peter Rogness também é competentíssima, sua experiência em dramas que equilibram emoção e beleza exuberante (Tão Forte e Tão Perto) certamente pesaram na escolha deste para trabalhar no filme.

    Peter Lake (Colin Farrell) é o filho da promessa, mas, por ser descapitalizado, tem de roubar para conseguir seu sustento. No entanto, ele em momento algum é retratado com a máscara da vilania, pelo contrário, salienta-se sua necessidade de fazer os crimes ao mostrar a miséria que vivencia e os milagres que o mantiveram vivo. A honra do personagem é tamanha que um alazão branco de capacidades homéricas aceita ajudá-lo em sua jornada — argumento semelhante aos presentes que Perseu recebeu de Atena —, referência  que se torna óbvia no decorrer da película. Russel Crowe faz o maligno “deformado” Pearly Soames, o vilão de intenções escusas que busca a morte do injustiçado herói, guardando um poder enorme e uma fúria sanguinária, a qual nem sempre é vista em histórias de princesas. A mocinha é Beverley Penn, feita pela bela ruiva Jessica Brown Findlay (de Downton Abbey), que não parece ter ligação com a nobreza mas cujos desejos e desígnios são ligados à honra e dedicação ao sonho, ao infinito e a um mundo ideal. Mesmo que, a priori, o repertório visual e o roteiro lembrem uma história infantil, a trama não poderia ser mais voltada para o público juvenil e adulto, não por tratar temas espinhosos, mas sim por subverter os clichês de fairy tales e associá-los a questões mundanas, como a guerra de classes.

    No pôster do filme, em tradução livre, diz-se que “esta não é uma história de verdade, esta é uma história de um amor de verdade“, como se em nome de mostrar tal sentimento ganhando a vida todo o restante fosse perdoado, até  mesmo a filmagem do impossível e a transposição do realismo, pois a poesia do amor é maior que a frágil barreira da verossimilhança. A realidade pode ser enfadonha e desinteressante quando comparada ao incomensurável tamanho do apego ligado ao sentimento eterno. Os exageros dramáticos do casting não são capazes de destoar do espírito da obra, nem mesmo o over-acting de Will Smith que faz o aprisionado Lúcifer, o qual, demonstrando que o mal é reduzido ao menor denominador comum, é levado à fácil associação ao mito maniqueísta cristão.

    O desenvolvimento da narrativa é tão articulado aos conceitos básicos da moral contidos nos contos de fadas que seu cunho moralista faz a mocinha sucumbir após entregar-se de corpo inteiro ao amor de sua vida, ato de consequências definitivas. A época pedia um findar trágico que abalou a percepção de Peter Lake sobre a vida, jogando-o num limbo desmemoriado e fazendo de sua imortalidade uma vivência de sofrimento na busca de uma musa que não mais existe.

    A trama é levada à contemporaneidade, e a magia do não envelhecimento de Lake só é questionada por uma das filhas dos novos tempos, Virginia — feita por Jennifer Connelly, estonteante como sempre —, a qual não compreende toda a consentaneidade que acometeu a época do início da película, não sabendo como as coisas eram mais simples e menos “discutíveis”. A modernidade destruiu um pouco a percepção do que é possível e do que não é, da possibilidade de milagres acontecerem, mas o encontro entre Lake e ela é o primeiro indício de que tal máxima pode mudar. A tangível condição médica de Abby (Ripley Sobo), a pequena menina cancerosa, também ajuda a derribar a fé de Virginia, mas é este o gatilho que faz Peter Lake retornar às suas atividades como o herói da jornada, levando-o, inclusive, a reencontrar os seus antigos aliados mesmo na urbana Nova Iorque.

    A cavalaria de Soames mudou: ele está fortemente armado e paramentado com as tecnologias contemporâneas, e sua obsessão como guardião de limiar, por fazer o destino do herói encantado algo trágico, prossegue. Em determinado momento, parece que o intuito do mal ganharia mais uma vez a batalha, ampliando a aflição e a dor do mágico protagonista, mas, como na maioria dos contos que inspiraram Um Conto do Destino, o final reúne uma mensagem edificante, igualitária e otimista, de amor correspondido e de encontro dos amantes.

    A estreia de Akiva Goldsman no cinema é emotiva, mas equilibrada, não caindo no pecado do pieguismo e evidenciando uma história que contém muito das suas influências, enquanto artista, de forma reverencial e enxuta.