Tag: cinema canadense

  • Crítica | Mommy

    Crítica | Mommy

    Mommy 1

    Apenas quatro anos após seu filme mais notório – Amores Imaginários –, o jovem realizador Xavier Dolan traz à luz um drama realista que põe em xeque sentimentos como impotência, desprezo por parte dos poderosos e mortalidade. Mommy inicia-se violento com um acidente em uma rodovia canadense, remetendo à constante preocupação da matriarca do clã Després, Diane (Anne Dorval), que tem de equilibrar a própria vida pessoal com os cuidados especiais dedicados ao filho. Seu estado nervoso é absolutamente compreensível, diante das agruras de Steve (Antoine-Olivier Pilon), diagnosticado com hiperatividade.

    O fino equilíbrio entre o fardo de ter de sustentar uma pessoa “inválida” e fornecer socorro se mistura à sensação constante de fim do mundo, resultado da impaciência com elementos externos ao seu próprio mundo e de possíveis ofensas à sua cria. A rotina da família mudaria em absoluto após Steve deixar o internato para retornar à casa de sua mãe.

    O modo agressivo com que a família se trata deveria pressupor desrespeito mútuo, algo questionado por personagens periféricos. A agressividade na verdade suaviza uma relação de extrema intimidade, em que impropérios servem para derrubar palavras hipócritas, escondendo também um enorme senso de preservação e proteção das duas partes. Somente Die pode “ofender” Steve, e vice-versa, sob pena de sofrer xingamentos violentos, acompanhados de adjetivações distantes do costumeiro comportamento politicamente correto.

    Os arroubos emocionais pelos quais Steve passa são registrados em estilo semidocumental por Dolan, equilibrando poucos momentos de docilidade (ainda que moderada e repleta de palavras torpes) e de extrema agressividade, tão feroz que faz de sua mãe uma vítima provável. O desespero flagrado tem uma urdição ímpar, graças à perícia no roteiro de Dolan, que não subestima o público, tampouco cai em fórmulas convencionais e conservadoras de contar histórias.

    O paradigma da solidão e desespero começa a ser quebrado aos 30 minutos de exibição com o surgimento de Kyla (Suzanne Clément), uma menina que se muda para o outro lado da rua, e que, numa extrema atitude de benevolência e altruísmo, oferece-se para auxiliar a família na árdua jornada, que mistura perversões, amoralidades e autodescobertas.

    O modo curioso como os Després usam o idioma francês é mais uma mostra do roteiro e o deslocamento compartilhado pelos iguais, como se a vida falasse de modo diferente deles, enquanto outros membros daquela microsociedade têm dificuldade ou completa inabilidade em acompanhar o ritmo daquela língua particular. Mesmo Kyla tem enormes contratempos ao se ver sozinha com o jovem, enxergando em si e no rapaz um estorvo ambíguo, que funciona bilateralmente, com bloqueios enternecidos involuntários motivados pelo inculpável portador do mal investigado.

    Os estigmas antes sugeridos ganham contornos de carnais realidades com o crescente sentimento de isolamento por parte de Steve e dos que o cercam. O ciúme que passa a sentir em relação a sua mãe faz proibi-la de ter qualquer flerte ou relação emocional e física que não seja por ele. A aproximação do espectro da solidão faz o rapaz se desesperar e agir de modo impensado até mesmo para ele, ferindo a si e, por tabela, machucando seus entes queridos.

    Os momentos finais guardam toda a melancolia anunciada no decorrer da fita, sendo absolutamente cruel para os personagens reais mostrados em tela. Depois do incidente maior, mostrado no roteiro, o fantasma da segregação finalmente paira sobre a existência dos Després, unindo dor, desespero e infelicidade dos que ficam do lado de fora do sanatório, e um pouco de entristecimento também nos poucos momentos de lucidez do protagonista. Mommy se baseia em um drama forte que depende da entrega irrestrita dos intérpretes para compor um quadro agridoce, retratando uma realidade frequente e inevitável.

  • Crítica | Amores Imaginários

    Crítica | Amores Imaginários

    cartaz

    O cinema do século XXI é um travesti com um leve complexo de inferioridade. Também é, pode-se dizer, formado por um quadrado ou triângulo de referências básicas e latentes, de vértices com nomes, ou melhor, sobrenomes: Federico Fellini, Stanley Kubrick, Jean-Luc Godard, e por aí vai. Uma trinca, no caso, que os tempos modernos homenageiam e derivam muitas de suas glórias através das intervenções desse trio responsável, sobretudo, de muito da estrutura na qual essa arte se apoia, para o bem e para o mal. E do ponto de vista francês da miscelânea atual, cada vez menos, mas ainda bem vanguardista, a passagem do tempo parece ser mais explícita na carne, e não é pra menos. Se vem de lá a película mais antiga, faz sentido as rugas serem mais fundas na terra mãe de Georges Méliès. Que responsabilidade pensa ter essa juventude; os bisnetos de Jean Renoir querendo fazer história.

    Xavier Dolan, após Eu Matei a Minha Mãe e o tropeção merecido de Tom na Fazenda, conheceu aqui o próprio valor, ainda não imprescindível, e confia nele como só! Tenta amassar uvas para transformá-las em vinhos de qualidade, e os sabores de sua safra inicial de nada (quase não) ofendem os paladares mais exigentes, muito menos os nutridos e sedentos por novos padrões de comportamento, e coragem a tanto, é claro. Feito um Pedro Almodóvar que fala uma língua mais globalizada e bissexual, com a bandeira protetora e bem-vinda de uma nova geração de intenções e mentalidades diversificadas, calcadas na liberdade de criação e longe de ditaduras, imposições monogâmicas ou marcas severas na testa, as cores de Amores Imaginários ilustram a alma de Oscar Wilde em tempos mais libertários que o século XIX (e por vezes de libertinagem como contraste bizarro, à gosto do freguês). De qual outra maneira, senão ambígua e irrevogável, a sugestão de um trio amoroso seria acolhida em uma versão fetichista da França dos dias de hoje, refém dos experimentalismos cheios de vida de Fellini, dos matizes do design de Kubrick, e da poética revolucionária de Godard que tanto estão presentes no DNA atual, nas veias de um cinema que começa na telona e termina no YouTube?

    Tudo batido no liquidificador das belas artes, com cuidado para elas continuarem belas, numa narrativa não linear regida pela emoção, instinto de cineasta ou seja lá o que brota da psique de quem brinca de Deus, tudo ainda meio tresloucado, imaturo no exercício, é verdade, de um jovem diretor que se perde no engatinhar das manobras entre o que a linguagem tem a oferecer, e o que a mesma tende a distorcer, ou ainda, a mistificar.

    A ética artística de Amores Imaginários, o juízo do filme, grava com ferro a identidade do longa, filmado à flor da pele com uma cinefilia pingando pela vontade de se fazer cinema a sério. Contudo, a mesma ética de Dolan tem um longo caminho a trilhar nos cumes onde pode vir a adotar préstimos, mas essa espécie de comédia romântica trágica prova que o caminho é esse, e prova isso talvez cedo, na melhor das hipóteses, por mais que sua trilha-sonora de balada eletrônica nos forneça um leve “déficit de atenção” quanto a profundidade da iniciativa de principiante. Fantásticas melodias, pontuando elementos perdidos nas várias intenções, essas carentes de uma sintonia maior que ficou na vontade, entre saltos altos, nicotina e confissões de amores não correspondidos. Um filme adolescente para o mesmo público, banhado numa imaturidade convidativa, no que acaba por ser satisfatório, por enquanto na carreira de Dolan, no prazer inenarrável de uma história contada por alguém que tem fé em ser, e que quase consegue expressar ser nesse estágio prematuro que um dia sentirá saudades, um menino prodígio.

  • Crítica | Tom na Fazenda

    Crítica | Tom na Fazenda

    Quando Xavier Dolan brinca bem de Pedro Almodóvar, Michelangelo Antonioni, Rainer Werner Fassbinder e faz ciranda-cirandinha com Pier Paolo Pasolini, todo mundo ama – e não é pra menos. As boas sacadas de imagem, o carisma, o desejo pelo mundo da moda e da música, a trilha-sonora cosmopolita e extrovertida que faz seus filmes terem uma identidade chave em meio a produção do cinema francês, tudo isso marcou até então o início do garoto prodígio, que agora volta para solo nativo, o Canadá. E, de uma hora pra outra, com um filme por ano, como Woody Allen, Dolan resolve parar de brincar e deixa o playground, se achando um cineasta maduro, sério, e todas as pretensões que o leitor/espectador possa achar mais conveniente. O criador de Amores Imaginários, o melhor da primeira fase dele, decidiu que, após três filmes, já estava na hora de ter fases, e resolveu imitar Lars Von Trier numa mistura de Anticristo com Brokeback Mountain, sendo que aqui um dos cowboys já morreu antes da história começar, anunciando a tragédia que Tom na Fazenda não assume a vergonha de ser – de existir, numa carreira até agora tão bacana e, por enquanto, promissora.

    O cara gosta de atuar, mas sem uma Monia Chokri ao lado fica difícil de convencer a dor existencial de quem perdeu o amor para a morte. O filme é totalmente assexuado, muito cérebro e pouco tesão; coração: zero. Totalmente abstracionista em conceitos e aplicações de éticas artísticas e consciências artísticas que Lawrence Anyways, de 2012 – ‘‘filme-fetiche” dos mais ocos, toscos e superficiais, que recebeu nota mínima na Escola LGBT Almodóvar de Cinema –, já dava indícios óbvios de que o processo de saturação da personalidade já havia começado, concluindo-se em Tom com cenas de dar vergonha alheia (o cara não sabe filmar a beleza de um nascer do sol) e de nos fazer duvidar da sorte de principiante que Dolan pode ter tido nos seus dois bons filmes de estreia, merecidamente ovacionados como propostas ousadas de recriação de formas, já empregadas desde sempre.

    Adaptado de uma peça de Michel Marc Bouchard, o drama é tratado de forma tão fechada e controlada, claustrofóbica, ofegante, que a emoção da história, os nervos à flor da pele a ponto de explodirem, se exala não pelo tratamento das personagens – o que não existe aqui, sendo que cada figura é fruto de estereótipos de um cinema velho, que nada condiz com a expectativa do talento ‘‘original” de Dolan –, mas sim pelo desejo que esse arremedo de história –e o pior, tratado como um arremedo – acabe o mais rápido possível, ou que alguma banda de pop-rock comece a tocar um sonzinho legal pra melhorar as coisas, pelo amor de Deus.

    O diretor (mais tarde a gente vê se é cineasta mesmo, pouquinho mais de arroz e feijão), já confiante que é o Quentin Tarantino da vez, se arrisca mais longe, muito mais alto, com Alfred Hitchcock (é aqui que a gente ri), e se não cai para a morte tipo Kim Novak para a decepção de quem o acompanhava com toda a expectativa do mundo, é atacado pelo o que vem de cima, quando já se considerava intocável. Tom na Fazenda é cinema de armário, limitado, enquanto, ilusoriamente, se enxerga arrasando na parada gay. Que “menos é mais”, todo mundo sabe. Mas que ‘‘mais” pode ser ‘‘menos’’, esperamos todos que Dolan tenha aprendido. Até porque Von Trier não é exemplo pra ninguém.

  • Crítica | Thanatomorphose

    Crítica | Thanatomorphose

    thanatomorphose

    Ofegante, exibindo imagens cuidadosamente erráticas, com a câmera tremendo e emulando os movimentos típicos da transa e enquadrando as faces corporais íntimas de modo peculiar, sob ângulos onde não se vê qualquer outra coisa. Thanatomorphose de Éric Falardeau mostra logo no início um dos seus dois temas, para explicitar o segundo logo após a intro citada, exibindo o casal após o sexo, interagindo enquanto o homem se fere com um prego no chão, passando a gritar loucamente, exibindo seu escasso traquejo para a atuação dramatúrgica minimamente aceitável.

    A câmera de Falardeau não tem qualquer pudor em mostrar nudez, ao contrário, ela parece caçá-la, vista a naturalidade como tal estado é retratado. Sua abordagem remete também ao bondage, uma vez que se preocupa em enquadrar tanto a naturalidade do sexo quanto a existência da dor, mesclando e tornando-as parte de um todo, de uma simbiose onde não mais consegue distinguir uma da outra. O nível desta “obsessão” é ainda mais elevado com o decorrer da trama. A personagem de Émile Beaudry começa a ver suas unhas descolarem e sangrarem levemente – o processo que correra toda a história vai ganhando seus estágios iniciais.

    Filmado sempre em ambientes fechados, a intenção do diretor é remeter a claustrofobia, sensação que se daria a um ser vivo caso fosse enclausurado dentro de um caixão, mas a protagonista não tem consciência do que ocorre consigo e com o seu corpo. Tais sensações ficariam mais evidentes caso o elenco fosse melhor, mas a vontade do realizador parece ser a de usar seus personagens como telas em branco, caricatos, para grafar a decomposição que se mostraria a posteriori. As relações, as brigas, os diálogos, tudo é muito mecânico e frio, como um pretexto para revelar a verdadeira faceta da história.

    Na sinopse oficial do filme há a definição a respeito do curioso título da obra: Thanatomorphose é um substantivo francês que significa sinais visíveis da decomposição de um organismo, causada pela morte. O modo de viver da protagonista, sem qualquer anseio ou perspectiva, remete a isso. À medida que o roteiro avança, os sinais vão ficando visíveis na folha em branco que é o seu corpo, um lugar onde é facilmente distinguível qualquer hematoma ou ferimento.

    Após o começo da transmutação, a personagem prossegue ávida por sexo, se obrigando mesmo sem condições físicas minimamente aceitáveis a se envolver em relações não degradantes. Seu apelo é tão forte que seus parceiros passam por cima da aparência nada agradável dela, ignorando até o seu estado de saúde, debilitado a olhos vistos. Com o agravar da condição, ela começa a sentir pena de si, numa autocomiseração enorme, que a faz chorar e sentir-se infame.

    Logo a sensação de mal-estar dá lugar ao desespero total, uma vez que sua pele entra em decomposição. Mesmo as manifestações sexuais mais leves como a masturbação causam em si um dano enorme, com a câmera registrando o seu sangue escorrendo pelo lençol branco, em mais uma travessura com as cores que Falardeau faz com sua fita. O asco predominante apavora muito mais do que qualquer propensão ao susto, a ojeriza é maximizada pela maquiagem que de tão singular, torna-se não catalogável e impossível de ser associada a algo caricato, visto o quase ineditismo com que é feito em seres “vivos”.

    Na meia-hora final a putrefação é tanta que as tomadas evitam ser dadas de corpo inteiro, a lente registra o corpo desnudo da protagonista em doses homeopáticas, focando em parcelas muito pequenas do corpo da moça. Mesmo quase não tendo mais vida ou feições humanas, ela ainda busca o prazer carnal, unindo a volúpia ao grotesco, passando a mensagem de que ambos estão inexoravelmente ligados, ainda que sua realização seja tão grotesca quanto o goire das cenas de auto-mutilação. Assim como a degradação de seu corpo, sua moral também se deteriora, e mesmo crimes homicidas deixam de ser um tabu, a única coisa que segue intocável é a sua ninfomania e a luxúria, cada vez mais difíceis de lidar graças a sua compleição cada vez mais degradante. A vontade maior presente na obra é chocar por meio do grotesco, resgatando o exploitation em uma amálgama entre pornografia e decomposição acelerada, em que a utilização de elementos sonoros serve tão bem a trama quanto suas tomadas de impressionante esplendedor visual. Thanatomorphose é um filme forte, imprescindível para o fã ávido pelo cinema extremo e contém em si uma forte mensagem, que a despeito das péssimas atuações, é passada pela linguagem cinematográfica universal, embalada pela sinistra trilha de violino que corta toda a película.

  • Crítica | Incêndios

    Crítica | Incêndios

    incendies - poster

    Produção franco-canadense, de 2010, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Direção e roteiro de Denis Villeneuve. Baseado numa peça (de mesmo nome) de Wadji Mouawad. Com: Lubna Azabal, Mélissa Désormeaux-Poulin e Maxim Gaudette.

    Em Montreal, Nawal Marwan (Azabal) é mãe do casal de gêmeos Jeanne (Désormeaux-Poulin) e Simon Marwan Gaudette) e sempre tratou ambos com distanciamento. Trabalhava há mais de 15 anos como secretária de um notário, cuja esposa (assim como ele) afeiçoou-se a ela e seus filhos. Nawal faleceu e durante a leitura de seu testamento os irmãos são surpreendidos com alguns dos desejos da mãe. Ela pede para ser enterrada sem caixão, sem lápide, sem epitáfio. Deixou duas cartas, ou melhor, três. Uma a ser entregue por Simon ao pai, que não conheceram e julgavam morto. Outra a ser entregue por Jeanne ao irmão, cuja existência desconheciam. E a última a ser entregue a eles depois das outras duas chegarem a seus destinatários.

    Os irmãos reagem de forma totalmente diversa. Enquanto Simon reluta em cumprir as disposições do testamento, querendo simplesmente dar à mãe um enterro convencional e seguir com sua vida; Jeanne entrevê a possibilidade de descobrir e entender a causa do silêncio de sua mãe nas semanas que antecederam sua morte, assim como de aprender sobre sua própria origem e a de sua família. E Jeanne viaja para o Líbano a fim de iniciar sua busca pelo passado.

    Inicialmente, pode parecer que se trata de um misto de filme de detetive e road-movie. Mas é muito mais que isso. O espectador acompanha duas linhas temporais, a viagem de Jeanne à procura de informações e a jornada de Nawal desde sua juventude. A alternância entre elas não gera confusão, ao contrário, as narrativas são complementares. As revelações são feitas aos poucos, sem pressa. E o espectador descobre, junto com Jeanne, os motivos que levaram Nawal a ser tão distante e a manter esses segredos durante todo o tempo.

    A peça em que se baseia o filme foi inspirada na estória de Souha Béchara, membro da resistência libanesa, que atualmente mora em Genebra. O pano de fundo da estória é a guerra civil libanesa, os conflitos entre cristãos e muçulmanos. Sem nunca nomear quaisquer dos personagens e localidades reais envolvidas, o roteiro evita cair no lugar-comum e tomar partido. Imparcialmente, enquanto o espectador acompanha o desenrolar da estória de Nawal, presencia a violência que passou a fazer parte do dia-a-dia da população local. É como se a trajetória dela fosse um resumo do momento histórico que vivenciou tão intensamente.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.