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  • Crítica | A Marcha

    Crítica | A Marcha

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    Em 1983, em resposta ao clima nauseabundo da época, repleto de intolerância e violência racial, jovens adolescentes iniciam uma marcha pacifíca, percorrendo mais de mil quilômetros, pelo interior da França, de Marselha a Paris. A “Marcha pela igualdade e contra o racismo”, comumente chamada de “Marche des Beurs” – Marcha dos Beurs (“beur” é a gíria politicamente incorreta para árabe) – aconteceu de 15 de outubro a 3 de dezembro e foi o primeiro movimento nacional anti-racista na França.

    Na vida real, durante a ocorrência de confrontos armados no distrito Les Minguettes (em Vénissieux, um subúrbio de Lyon) um jovem – Toumi Djaïdja, presidente da associação SOS Avenir Minguettes – foi ferido gravemente, vítima de um tiro disparado por um policial. No filme, Mohamed (Tewfik Jallab) é atingido por um tiro ao tentar salvar um mendigo, Hassan (Jamel Debbouze), da perseguição de um cão policial. Depois que Mohamed se recupera do ferimento, seus amigos esperam que ele tome alguma atitude radical. Mas, em resposta, ele surge com a ideia de uma ação apaziguadora, a tal marcha, na tentativa de reduzir a tensão entre a polícia e os jovens moradores de Les Minguettes. Com o apoio do padre Jamel Debbouze e do pastor Jean Costil – no filme, repectivamente, Dubois (Olivier Gourmet) e François (Rufus) – organiza uma caminhada de não-violência, inspirado por Martin Luther King e Mahatma Gandhi, cujas demandas são igualdade de direitos e o fim da injustiça e desigualdade social.

    Em um tom bem documental, o espectador acompanha os problemas – internos e externos – enfrentados pelos caminhantes durante a travessia. E o tom do roteiro – assinado pelo também diretor, Nabil Ben Yadir – não é apenas documental, mas bastante didático na maior parte do tempo, deixando claro que a intenção é ser reconhecido mais pelas ideias que pelas qualidades cinematográficas.

    Há que se reparar na caracterização um tanto quanto estereotipada da maioria dos personagens. Talvez tenha sido feito com o intuito de “encaixar” cada membro da troupe em um arquétipo que facilitasse a identificação com o público. No entanto, soa caricato em excesso em alguns momentos. Principalmente a figura do mendigo como o “bobo da corte”, cuja presença é bastante questionável, para não dizer quase dispensável. Apesar disso, o roteiro não se furta de mostrar que os participantes da caminhada têm, sim, falhas de caráter, medos e manias que dão verossimilhança às interações entre eles. Há bate-bocas memoráveis, tanto por miudezas do cotidiano quanto por questões sócio-políticas. Discussões em que se questiona o o nível de engajamento tanto dos personagens assim como da população em geral; ou a melhor estratégia para que essa mesma população – imigrantes ou não – dê apoio ou mesmo participe mais ativamente; além das inúmeras vezes em que os caminhantes param para decidir a continuação ou não da marcha, por N motivos.

    Lubna Azabal, no papel de Kheira, como sempre numa ótima performance. Dá complexidade à sua personagem, uma mulher árabe de temperamento forte que,em sua intransigência e sua dificuldade em aceitar a opinião alheia, é o contraponto de Mohamed. Parecendo ser mais lúcida que os demais, inicialmente acha que o pacifismo de Mohamed não dará em nada.

    Tecnicamente bem executado, A Marcha se destaca mais pela discussão que incita do que por seu valor artístico.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Incêndios

    Crítica | Incêndios

    incendies - poster

    Produção franco-canadense, de 2010, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Direção e roteiro de Denis Villeneuve. Baseado numa peça (de mesmo nome) de Wadji Mouawad. Com: Lubna Azabal, Mélissa Désormeaux-Poulin e Maxim Gaudette.

    Em Montreal, Nawal Marwan (Azabal) é mãe do casal de gêmeos Jeanne (Désormeaux-Poulin) e Simon Marwan Gaudette) e sempre tratou ambos com distanciamento. Trabalhava há mais de 15 anos como secretária de um notário, cuja esposa (assim como ele) afeiçoou-se a ela e seus filhos. Nawal faleceu e durante a leitura de seu testamento os irmãos são surpreendidos com alguns dos desejos da mãe. Ela pede para ser enterrada sem caixão, sem lápide, sem epitáfio. Deixou duas cartas, ou melhor, três. Uma a ser entregue por Simon ao pai, que não conheceram e julgavam morto. Outra a ser entregue por Jeanne ao irmão, cuja existência desconheciam. E a última a ser entregue a eles depois das outras duas chegarem a seus destinatários.

    Os irmãos reagem de forma totalmente diversa. Enquanto Simon reluta em cumprir as disposições do testamento, querendo simplesmente dar à mãe um enterro convencional e seguir com sua vida; Jeanne entrevê a possibilidade de descobrir e entender a causa do silêncio de sua mãe nas semanas que antecederam sua morte, assim como de aprender sobre sua própria origem e a de sua família. E Jeanne viaja para o Líbano a fim de iniciar sua busca pelo passado.

    Inicialmente, pode parecer que se trata de um misto de filme de detetive e road-movie. Mas é muito mais que isso. O espectador acompanha duas linhas temporais, a viagem de Jeanne à procura de informações e a jornada de Nawal desde sua juventude. A alternância entre elas não gera confusão, ao contrário, as narrativas são complementares. As revelações são feitas aos poucos, sem pressa. E o espectador descobre, junto com Jeanne, os motivos que levaram Nawal a ser tão distante e a manter esses segredos durante todo o tempo.

    A peça em que se baseia o filme foi inspirada na estória de Souha Béchara, membro da resistência libanesa, que atualmente mora em Genebra. O pano de fundo da estória é a guerra civil libanesa, os conflitos entre cristãos e muçulmanos. Sem nunca nomear quaisquer dos personagens e localidades reais envolvidas, o roteiro evita cair no lugar-comum e tomar partido. Imparcialmente, enquanto o espectador acompanha o desenrolar da estória de Nawal, presencia a violência que passou a fazer parte do dia-a-dia da população local. É como se a trajetória dela fosse um resumo do momento histórico que vivenciou tão intensamente.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.