Tag: europa

  • Crítica | Demon

    Crítica | Demon

    1462213462_313276

    Galgando pela história dos gêneros cinematográficos, os filmes de terror tiveram um papel de extrema importância na afirmação popular do medo como objeto quase palpável, a favor de uma experiência válida para entender todas as veredas de uma arte, e não apenas as mais confortáveis. Mediante a eterna luta entre público e crítica, é do conhecimento geral da nação que poucas produções conseguiram atingir o respeito e a volúpia generalizada que o diretor William Friedkin conseguiu garantir a O Exorcista, o grande legado de sua exímia carreira de teoremas e provocações. A história da jovem menina, aos poucos possuída espiritualmente, só ganha força à medida que o gênero, e o cinema em geral, ganhou mais rapidez em produzir um sem-número de filmes de qualidade similares, tais que 40 anos depois continuam a tentar copiar (e até mesmo superar) o triunfo cultural e extra-tela de 1973.

    Uma nota histórica é válida: O Exorcista veio para formar e principalmente influenciar uma geração inteira de grandes nomes, mundo afora, que não titubeiam em reafirmar isso. Talvez a proeza do clássico se reside mais acolá, na importância maior do aprimoramento da arte, elitizado ou não, do que no debate de seu valor – para alguns discutível, para muitos absolutista. É por isso que, quando um filme como Demon, banalizado pelos próprios temas que tenta discutir (e não consegue, pois sua ficção e mitologias baseadas em símbolos do horror e suspense já não convencem há algum tempo) nasce e vem ao público, tentando fazer barulho como fez A Bruxa, de 2016 (um horror bem acima da média), já reconhece suas limitações, sua incapacidade de reciclar conceitos numa história fraca, e aposta no estilo de cinema tradicional mais previsível possível para não se comprometer demais, e passar vergonha depois, é claro.

    A surpresa, mesmo, e o que faz valer a pena de assistir a Demon vem só depois da metade do filme, antes lotado de diálogos bobos e expositivos que não chegam a lugar nenhum, quase, apenas estabelecendo contexto para as situações-chave do filme: uma visão fria e congelada de um inferno familiar (em parte, oriunda da graça de uma fotografia inteligente). Um filme que demora para explorar seu potencial, como praticamente todo terror dos anos 2000, vide exceções, tais como Martyrs, Atividade Paranormal, o sueco Deixa Ela Entrar ou o brasileiro A Encarnação do Demônio, do retumbante mestre Zé do Caixão.

    Porém, quando o tal demônio do título realmente se manifesta numa festa de casamento, com personagens saídos de algum dos sombrios filmes de Roman Polanski, um interessante e semi-desconfortável estudo de gênero começa a se formar, fluindo entre o drama, a comédia e o suspense de um filme que cresce, mas cresce às custas e à medida que aposta no poder da abordagem, ou seja, quando assume o experimentalismo formalista que o diretor Marcin Wrona propõe para uma história – de clima realmente frio, de dar calafrios – curiosa e muitas vezes religiosa e socialmente desafiadora – depende muito do tipo de espectador que você ainda é. Talvez seja esse o verdadeiro horror dos anos 2000: desafiar os valores da plateia que não se assusta mais com demônios ou banhos de sangue, mas ainda se escandaliza com a desvalorização de uma família ou cultura considerada imperturbável e eterna.

  • Crítica | O Cidadão do Ano

    Crítica | O Cidadão do Ano

    cidadão

    Vermelho é a cor mais quente. Cor que irriga os campos de neve de uma região inóspita, mas repleta daquela “sujeira debaixo do tapete” que, no Brasil, não temos vergonha de pendurar no varal. Aqui, e não só aqui, corrupção já é clichê, furar a fila também; a violência então é figurinha, se tornou banal (exportada e importada). Ontem mesmo, já cronicando, subi num ônibus e pedi licença pra sentar ao lado de uma senhora, o que fez algumas pessoas prestarem atenção em mim. Pedir licença é o que surpreende por aqui, fazer o que, mas num contexto social nórdico, onde cultural e teoricamente todos são mais educados, o sangue explode junto d’um choque incomparável ao vê-lo.

    É incomum, é gráfico e gritante, por lá e também em nível universal, já que todos ainda carregamos uma consciência de certo e errado ao presenciar certas cenas. Enquanto Cláudio de Assis filma A Febre do Rato com aquele “mais do mesmo” do Cinema nacional, tudo o que a neve esconde nas veredas do leste europeu tem impacto e mistério e atração triplicados. O Cidadão do Ano brinca com essa “ética” do impacto cultural diante do inesperado; do escândalo que depende da cultura da plateia para acontecer, lembrando a todos que a arte tem responsabilidades apenas consigo mesma.

    Um filme livre, absolvido de culpa e cujo vermelho e branco são cortados pelo azul da frieza emocional, num mundo gélido, glacial e deliciosamente contemporâneo, na essência otimista que a palavra carrega. A linhagem de Onde os Fracos Não Têm Vez e Drive se expande a cada ano, com um homem, por X razão (sem spoilers) decidindo ou precisando fazer justiça com mãos pesadas e ombros ainda mais! Se em Leviatã ou no ótimo Era Uma Vez em Anatólia é a injustiça que alimenta a barbárie moral entre os homens, O Cidadão do Ano atinge o nível de identificação global que o ambicioso Um Toque de Pecado alcança, indo além dos valores da região, tanto chinesa quanto sueca, e mostrando a vida como ela é: tempestuosa e competitiva à todos nós, hoje em dia.

    Uma história tratada como se baseada em fatos reais, na linha entre a ficção e seu primo pobre: O tal do real. Toda noite, quando o branco escurece e Nils, um simples trabalhador montanhês, levanta da sua cama e busca vingança pela morte de seu filho, o Cinema agradece pela bela forma que o filme retrata as emoções que o regem, e nos regem durante a projeção. Nós podemos sentir tudo que o injustiçado sente, seja deixando a esposa tranquila nos lençóis de madrugada, seja em seu rosto duro, ou melhor: Endurecido! Um principiante na arte do “olho por olho, filho por filho”, Nils não tem um mestre ninja pra lhe ensinar alguns truques, nem superpoderes ou a mira (e o charme) de Clint Eastwood. Ele tem mais. Muito mais.

    Nils tem a ira de um pai órfão de filho que, por onde passa, a mágoa se materializa em água. Água vermelha e, logo depois, água de cachoeira, nas cataratas que a natureza não congela, para que a natureza de um pai sinta o gosto puro de retaliação! Mas o diretor Hans Moland não faz questão de pesar seu filme na atuação de Stellan Skarsgard, talvez um dos melhores atores vivos; um monstro indiscutível em cena. O filme resiste a ser um western spaghetti na neve, apostando sua estrutura dinâmica de drama e suspense numa espiral de causas e registros culturais e regionais, até chegar ao clímax que a história merece, ainda que dominado por um homem e a violência imprevisível que ele acarretou.

    Mas vai dizer que não tem uma pitada dos Coen, aqui? O humor quase surreal e a ação parecem ser inerentes a trama, surgindo do absurdo moral de quem vive a violência e a encara como um negócio; no caso, a máfia. É tanto na crueza gélida, quanto na falta de cinismo, ou seja no apelo elegante pelo explícito onde tudo é banhado e ocorre, que o filme orgulhosamente mostra sua cara, ostentando equilíbrio e sem filtros para extrair a nossa satisfação até o último minuto. Porque, assim como Nils, o Cinema também chegou muito longe, só que ainda tem muito a perder. Felizmente, O Cidadão do Ano reintegra à arte a posse da realidade, como todo bom filme faz, resultando num universo próprio, ainda que real, onde a tríplice das cores que o permeiam ditam o que sentimos, e o que podemos discutir  depois dos créditos finais.

  • A Verborragia de Joyce – Parte 1

    A Verborragia de Joyce – Parte 1

    Ulisses - Joyce - Penguin

    Aqui estão copilados onze artigos rápidos e descritivos, fracionados em duas partes, acerca da grande jornada decorrida das proporções de Ulysses, provável magnum opus do escritor James Joyce. Digo provável devido à inconstância de vários críticos sobre qual é a maior contribuição à literatura de Joyce: Nosso objeto de estudo abaixo, ou seria Finnegans Wake, um livro que poucos se atrevem a ler pela dificuldade do exercício narrativo? Seja como for, abaixo é listada quase uma dezena de marcas que Ulysses deixa no leitor à mercê de sua composição, o que não deixa de ser um resumo honesto e um convite à leitura de quem nunca se aventurou nas entrelinhas de um dos maiores romances do século XX. Você não lê Ulysses, você estuda, e estudá-lo não é um dia no parque, é uma estadia de duas semanas em uma biblioteca. Vale pelo mesmo.

    (12/06/2014) 1° DIA – 200 páginas: Os dois primeiros capítulos se provaram de uma precisão e dispersão de significados impressionantes, mesmo que haja, no inconsciente de quem lê, a certeza perspicaz de um enredo solene nas histórias geralmente narradas em terceira pessoa, seja por Joyce ou por um narrador que ainda é inviável de se identificar. Nestas primeiras 200 páginas os dois protagonistas são apresentados de forma prática e livre, sem quaisquer preceitos. Tanto no primeiro capítulo acerca de Stephen Dedalus e sua culpa e desespero existencial, tanto na segunda parte sobre Leopold Bloom e sua curiosidade tímida a respeito de quem faz o mundo, a obra já se mostra filosoficamente pulsante, socialmente sensível, moralmente alarmante e religiosamente audaciosa e corajosa. A seguir, a investigação continua páginas adentro. É uma aventura ler Ulysses.

    (13/06/2014) 2° DIA – 300 páginas: Já é possível entender, agora, de onde vem a preocupação soberana de Joyce com a forma diversificada ao invés da responsabilidade principal com a história. A diferença entre os capítulos é gritante não através da numeração divisória, mas das diferentes narrativas recorrentes e sempre específicas. Daí a razão para o extenso tamanho da obra, pois é o meio encontrado para desenvolver, da melhor forma, os inúmeros tipos de tratamentos narrativos tecidos ao longo de contextos em constante construção, alinhados entre si, numa perfeita teia joyciana.

    (14/06/2014) 3° DIA – 400 páginas: No decorrer argumentativo de noções de paladar e visões hipotéticas de Shakespeare e suas crias, Joyce estampa e escancara realidades cada vez mais particulares e psicológicas em nome da Irlanda. Essa visão expansiva, e um tanto marxista, se reflete na formosa citação da pág. 374: “Se Sócrates deixar sua casa hoje, ele encontrará o sábio sentado em seu limiar. Se Judas sair de sua casa nesta noite, é a Judas que seus passos tenderão”. Portanto, é de se esperar, – ou melhor, de se notar – como dimensões de temas como o preconceito social, o orgulho e o conservadorismo explícito do espírito irlandês retratado, começam então a brotar por essas páginas de maneiras cada vez mais fortes e aparentes. Vertentes que de tão subjetivas se tornam visíveis apenas a um (a) leitor (a) prudente.

    “Eu temo aquelas palavras largas que nos fazem tão infelizes”

    (15/06/2014) 4° DIA – 500 páginas: As primeiras cem páginas que se tornam o maior desafio de decodificação para mim, até agora. Joyce sabia muito bem que seu prazer de intimidar o leitor seria pleno e contínuo até metade do livro, devido à genial e ofegante dinâmica da qual se deriva todo o montante de manifestações e inquisições culturais intrínsecas e indivisíveis ao surrealismo de uma realidade nua e inquietante, como qualquer outra com conflitos de interesse. A verborragia nunca foi tão rica e enlouquecedora quanto nestas 500 páginas! Frase marcante: “Os amigos que nós amamos estão do nosso lado, e os inimigos que odiamos estão à nossa frente.”

    (18/06/2014) 5° DIA – 600 páginas: Entre paralelos e associações internas, Joyce expande ainda mais seu mosaico de personas e cria um espelho dramático entre duas fantásticas personagens centrais, não como um estudo teórico, mas um estudo prático, irracional como o vento, daí a maravilhosa verborragia joyciana. Cem páginas românticas entre o masculino e o feminino da alma humana, onde a justaposição e a aglutinação de palavras e intenções lexicais transcendem e apontam a um “mix” megalomaníaco de diversas noções, todas nobres e atemporais enquanto notavelmente ambiciosas, à maneira metodológica de costume.

    (19/06/2014) 6° DIA – 650 páginas: Joyce parece querer provar que há história de exímia qualidade edificante paralela à simetria da narrativa, no oásis verbal submetido às páginas a fio. O momento notoriamente mais sensível, “emocional-sem-ser-apologético” do livro. As intenções sexuais de Joyce já não são mais sugeridas com reles metáforas. Tudo agora é explícito e esquematizado para apenas aumentar o impacto das questões psicológicas e sexuais que emergem com uma força inédita, até agora. Frase marcante: “Um hábito repreensível na puberdade é vício e opróbrio na meia-idade”. Frase mais contextual ao momento, impossível. Ulysses se torna, então, finalmente, um complexo livro de confissões, e nós somos, obrigatoriamente, o padre.

    Compre aqui.