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  • Crítica | As Mil e Uma Noites: Volume 3, o Encantado

    Crítica | As Mil e Uma Noites: Volume 3, o Encantado

    Sobre a primorosa edição de O Idiota, de Fyodor Dostoiévski, pela editora Wordsworth (numa homenagem direta pela instituição ao poeta inglês), a estudiosa literária Agnès Cardinal alega com graça e razão pontuais que o mestre russo, como todos os escritores da escola realista de ficção, esforçava-se para ancorar suas obras nos eventos significativos da vida contemporânea. Deve-se celebrar, por exemplo, esse tal esmero dos filmes do alemão Wim Wenders, talvez o agente mais ferrenho desta modernidade subversiva a habituar-nos a verdadeira “rede de transformações” que foi e nos apresentou o Cinema da segunda metade do século XX, reflexo do que acontecia do lado de cá das telas; dessa ótica subversiva extraída da realidade. No questionamento das possibilidades, planta-se a semente para a Hipótese Expressionista sentir-se solta, pulular e criar um universo aonde nesta nova zona dos sonhos – neste novo e inesgotável manancial de interpretações – irá se revirar, incubar, e na defesa do lugarejo onde podem conviver caos e paz, desabrochar enfim todas as suas expressões, tão cruéis à monocromia dos fatos jornalísticos.

    Essa intervenção à realidade das coisas já passou pelo próprio Wenders, quando o mesmo injetou espiritualidade no mundano em Asas do Desejo, por John Cassavetes na obra-prima Noite de Estreia (deslocando os bastidores do teatro rumo ao próprio palco), e no caso d’As Mil e Uma Noites, a criação já foi feita e muito bem pavimentada no imaginário popular mundial; restou a Miguel Gomes recriá-la, desta vez em Portugal, não mais na Arábia – do século III, para o século XXI, d.C. O homem e sua câmera se apropriam, assim, da liberdade do volver, de um recurso anistórico para recriar e repintar apenas o que ainda importa hoje, ontem e sempre, numa manobra tão nostálgica quanto profética, e desprender suas raízes das areias do tempo, do espaço e da técnica. Se falta sobriedade, lhe sobra paixão.

    O cineasta português conseguiu o que Terry Gilliam (Brazil, Os Doze Macacos) é incapaz de concretizar numa até então impossível versão de outro clássico da literatura, Dom Quixote de La Mancha: Recriar o recriado, sob o preço do que de caudatário pode haver numa grande liberdade de expressão irresistível, ao artista, apto a articular suas noções e versões e ebulições em prol do seu olhar; do nosso olhar, e acima de tudo, de um novo olhar. Esse é o esforço mais primário desta trilogia, e principalmente, deste terceiro volume, O Encantado: Estimular o olhar. E a troco do quê?

    Pois bem: A trilogia inteira enquanto arco fechado de narração, aquém de sentido tal qual a ação do vento, do mar, é ficção maquiada, explicitamente artificial e mentirosa quando suas cores e movimentos explodem na tela. Nada, no começo, pede pelo sentido que não tem, deixando-se guiar por um diegético auto-suficiente de formação cinematográfica, longe do que sentimos ao lermos, por exemplo, a história do Mercador e o Gênio, talvez o mais divertido dos contos de Xerazáde; mãe de um surrealismo literário imbatível, típico de tão seu, e que no Cinema Gomes traduz ao público como anárquico tendo em O Encantado seu melhor desenlace enquanto experiência. Mas note, nesse fechamento de trilogia, como o elemento fantástico de um simples rito musical na praia, diferente dos outros dois filmes, acha espaço para não rivalizar com o fator mundano (já abordado nesta crítica) de um Wenders, de um Cassavetes, caso assim fossem colocados frente a frente com a normalidade de um real não-banalizado. Uma excitação do olhar, de certo, e a troco de novas possibilidades e releituras do passado.

    Gomes, neste terceiro filme cheio de suas afetações e muito mais longo do que deveria ser, novamente, consegue entortar os braços do aceitável e do espetacular e fazer com que se abracem no equilíbrio entre extremos, enquanto o rei e sua contadora de histórias aparentemente entraram numa máquina do tempo e também se abraçam, sob efeito das sensações atemporais das histórias, numa roda-gigante à beira-mar. Pergunta: O(A) leitor(a) percebe a ambição de uma situação dessas? Percebe como a atmosfera intelectual e a encenação peculiar são imprescindíveis para dar credibilidade ao espectador no encaixe dantesco de um século dentro do outro, só para dar vazão a uma nova lógica (ou falta de lógica) artística? Para reverter os arranjos do filme, chega uma hora em que a ficção teatralizada dá adeus e as cores frias do mundo dos telejornais ganham a tela, cedo ou tarde. O cineasta, então, parece perder a esperança no brilho de suas noites – ou será que o mundo, quando viúvo das artes, abre-se para o profano e nada mais?

    Apesar do êxito interpretativo conseguido, afinal, pela trilogia, é no último filme que, ao refletir sobre o que veio antes, sente-se (mais e mais) a falta de uma linha de raciocínio mais forte à suportar a elevadíssima carga de significados apresentados, a esmo, numa ebulição estética destituída da coerência fabulesca não imprescindível, mas que torna-se urgente a partir de certo ponto de O Encantado. Gomes merece aplausos, justiça seja feita, pela simples aproximação com belas obras feito Cemitério do Esplendor, de 2015, que carregam dimensões que dialogam como se, entre elas, o conflito e a estranheza só existissem quando invocados pela alma viva desses filmes. Um Cinema de alívio (onde a poesia como é habitual na carreira de Gomes pede licença à política), tanto o filipino quanto o português, incorporados em nacionalidade e nas suas triunfantes identidades particulares, sentidas em cada plano e emponderadas na discrição de um cosmos atemporal e quase paralelo ao denominado “real”. Uma viagem realisticamente mitológica durante Mil e Uma Noites contemporâneas de frescor exagerado, sim, mas instigantes como poucas, pelo menos no Cinema recente.

     

  • Crítica | Orgulho e Preconceito e Zumbis

    Crítica | Orgulho e Preconceito e Zumbis

    1Se o Orgulho e Preconceito de 2005 (filme de ‘inhos’: lindinho, certinho, e muito mais bobinho que o astuto livro de Jane Austen, mas acerta por não tentar ser o novo Barry Lyndon) aposta no poder do casamento entre palavra e visual clássicos e simbólicos, a soma de Austen, a escritora do belo romance de 1813, com The Walking Dead já avisa, tal em Sangue Negro, que a leveza dos campos ensolarados será inevitavelmente tingida de vermelho, cedo ou tarde*. O problema é que na sátira de 2016, sangue é jorrado tão vulgarmente quanto as influências de um dos filmes mais confusos do ano: Ao invés de se espelhar nos melhores exemplares de um sub-gênero que infecta tudo, hoje em dia, tal o ótimo A Noite dos Mortos Vivos, de 1968, deixa para se apoiar no grotesco e na banalidade da violência que a série da AMC tanto abusa, talvez para cativar um público que já não liga em assistir miolos e outras nojeiras explodindo. George Romero não queria isso, o rei dos zumbis não perderia seu valioso tempo com amálgamas que só tornam inferior seu legado de horror e terror artístico; qualidade essa que Orgulho e Preconceito e Zumbis, longa baseado na obra de humor de Seth Grahame-Smith, tenta bravamente ao menos cutucar, mas surpreende nem mesmo suas traças por não conseguir o mínimo alcance almejado.

    *nota-se a observação, acima, pois o “cedo ou tarde” simplesmente não existe, ou seja não há nenhuma busca pelo refinamento de uma trama que dialoga com conceitos ancestrais pré-globalização (a valorização da linhagem familiar) e atuais (a banalização violenta da vida humana, com pais matando filhos e vice-versa nos noticiários). Logo no começo, sente-se o paradoxo que esse paralelo não pode funcionar, numa época que não combina com a violência inevitável em torno de uma pandemia contra cavalheiros, donzelas e suas relações quase virginais. Assim, inserir zumbis nessa fórmula mais do que clássica (e clichê, de tanto que foi repetida) não revitaliza nada, e ao invés de passar verniz em mobília velha, acaba invalidando qualquer intenção de paródia ou antítese ao material original. Não à toa, o filme demorou demais para ser produzido, já que os produtores previam o desastre que estava a caminho.

    Não que o desastre profetizado (e ensaiado) de fato aconteça, posto que a diversão, pelo menos, é quase garantida para uma plateia que não se interessa no drama emocional de donzelas virgens assistindo o pôr-do-sol em pastos viçosos. Mesmo assim, tanto no belo filme de 2005 quanto neste, os discretos charmes e absurdos da burguesia sobrevivem, postulando uma seriedade que em Orgulho e Preconceito e Zumbis torna-se um tiro no pé para uma versão que tenta apostar na sátira, e é incapaz de fazê-la acontecer. Por exemplo: Se na história de origem, as cinco irmãs (a maioria insuportável) da família Bennet são cultivadas para se casar, unicamente, e assim viverem “felizes para sempre” com seus pretendentes, aqui elas vão à luta desde o começo, quase que perfeitas amazonas, matando seus mortos-vivos que, na melhor das hipóteses, podem representar suas gaiolas, seus donos e tradições crônicas que as enjaulavam, sob vestidos, silêncio e regras sociais britânicas ultra-rígidas. Metáfora bacana, mas super mal aproveitada.

    Mesmo esse empoderamento feminino, aqui, é subvertido pela deselegância que a violência, não apenas traz, mas sobretudo do jeito que é mostrada e até celebrada, cuja importância vital para (o fiapo d)’a trama gira em torno de momentos constrangedores, como os conflitos amorosos (ninguém liga, cadê os zumbis?!), ou a teoria do livro do apocalipse, quando o filme tenta nos fazer entender os motivos de uma pandemia zumbi no século XIX (oi?), e francamente: Esclarecimentos num filme satírico colam tanto quanto o desempenho do elenco; Sam Riley como Mr. Darcy vai atualizar sua concepção de ‘ridículo’, no mesmo ano que tivemos o palhaço do Jared Leto. Entenda como quiser… Salpicado por poucos momentos de honestidade sobre o que a obra, realmente, poderia vir a ser (sob a tutela de uma visão e condução melhores), uma saudade certamente se acentua e cresce quando percebemos o peso do equívoco na tela: Planeta Terror, de Robert Rodrigues. Foco na premissa, foco na abordagem, e de repente a soma dá certo. Não é mágica, mas um filme bom faz parecer que é.

    E dane-se a coerência do título com a obra, não é mesmo? O absurdo aqui não vem da situação, portanto, mas de como essa é desenvolvida, beirando o ofensivo; beirando a vergonha e a falta de bom-senso. E eu nem citei como tudo parece uma versão piorada dos terrores medievais do mestre Mario Bava… Mas, afinal, Orgulho e Preconceito e Zumbis é mais romance, mais drama ou terror estilo gore? Nenhuma das coisas, é lógico, e há até episódios superiores de The Walking Dead (da 1ª temporada, é lógico²). É, bem antes do final, uma reles salada mal-temperada de intenções irregulares que, inevitavelmente, só não irá direto para o inferno das paródias que saíram pela culatra de sua investida no Cinema, pois será alvejada no purgatório das ridicularizações de crítica e público, esse segundo cada vez mais atento e crítico, idem, já que aqui nem os figurinos deslumbram ninguém – o que é aquele tapa-olho na coitada da Lena Headey, diva de Game of Thrones? Conclusão: O preço do aluguel anda desumano.

     

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  • A Verborragia de Joyce – Parte 2

    A Verborragia de Joyce – Parte 2

    ulyssesegoist

    Aqui estão copilados, em onze artigos rápidos e descritivos, fracionados em duas partes, análise acerca da grande jornada decorrida das proporções de Ulysses, provável magnum opus do escritor James Joyce. Digo provável devido à inconstância de vários críticos sobre qual é a maior contribuição à literatura de Joyce: Nosso objeto de estudo abaixo, ou seria Finnegans Wake, livro que poucos se atrevem a ler pela dificuldade do exercício narrativo? Seja como for, abaixo está listada quase uma dezena de marcas que Ulysses deixa no leitor à mercê de sua composição, o que não deixa de ser um resumo honesto e um convite à leitura de quem nunca se aventurou nas entrelinhas de um dos maiores romances do século XX. Você não lê Ulysses, você estuda, e estudá-lo não é um dia no parque, é uma estadia de duas semanas em uma biblioteca. Vale pelo mesmo.

    (20/06/2014) 7° DIA – 700 páginas: Como é difícil acompanhar o raciocínio de Joyce na primeira leitura, antes de uma releitura de um parágrafo. Difícil e injusto. É preciso reler e reler e reler, pela terceira e quarta tentativa de compreensão, em prol de um avanço na decodificação da leitura, e de uma provável epifania sobre a intenção no indescritível jogo de palavras, palavras e signos que não parecem clamar qualquer identificação, cada vez menos, aliás. Cada vez mais, a técnica penetra e alavanca o texto como tema e como alma da escrita. Está frio e ando lendo na cama, algo que Stephen Dedalus também o faria, com certeza.

    (23/06/2014) 8° DIA – 800 páginas: Joyce vai além das expectativas geradas num impensável e caótico julgamento da vida de um pobre cidadão, de orientação ética duvidosa, enquanto o escritor dificulta o julgamento das atitudes dos personagens através de uma linguagem de dificílimo acesso, justificando assim sua ambição descritiva com a forma demonstrativa da sua versão do julgamento da vida, e suas consequências numa estrutura insana e ofegante, o que me faz lembrar do método de Saramago. James Joyce vai tão longe nas implicações dessas 800 páginas – e nas suas megalomanias na conjetura promocional do conteúdo sugerido numa ousada empresa, com a literatura de Shakespeare e a poesia de Homero e Hesíodo sendo celebradas  que fica difícil imaginar as próximas dimensões que as próximas 100 páginas poderão ter.

    (26/06/2014) 9° DIA – 900 páginas: Joyce conclui que a falta de um fluxo definido e constante é menos importante do que o número elevado que contabiliza seus ganhos e méritos além-obra na narrativa mais desafiante até o momento, com uma centena de páginas realmente labiríntica e perturbadora, cortesia mais da trama que da estrutura, por enquanto, e encerra seu conjunto formulaico através de suas próprias resoluções literárias, junto a um bocado de semi-conclusões ainda aéreas, com sentidos e definições ainda a serem totalmente empregados adiante – eu espero! De fato, o melhor verbo para definir Ulysses, se isto for realmente possível, é Englobar! Mesmo com suas viciantes e hipnotizantes ambições, James Joyce parece começar a ter certa piedade do leitor a partir de certo ponto, antes de completar 1000 páginas, e abranda a narrativa, enquanto, todavia, faz borbulhar ainda mais todo o contexto (literalmente) hiper-multifacetado.

    (27/06/2014) 10° DIA – 1000 páginas: De fato, nada louvável se não for visto e pesado por uma ótica ativa, eficiente e não-preguiçosa, o décimo e décimo primeiro capítulos são os mais fáceis e acessíveis até o presente marcador de páginas acusar repartição na milésima. As analogias de Joyce com a reles vida humana, meio que rejeitando todas as suas inúmeras pretensões posteriores  irredutíveis da memória de quem as lê –, são espetaculares, no complemento de uma perspectiva sideral, cósmica e astrológica a todo um cinturão de ocorrências humanas forjadas no tempo sobre a crosta terrestre  precisa e orgulhosamente na Irlanda, propriedade intelectual de Joyce. Através de infinitas exaltações culturais e concordâncias a partir do indivíduo, rumo à identificação de um coletivo social, o autor torna sua pátria um matagal de valores, fetiches, peso moral, valor histórico e nomenclatura original – devido às suas percepções exclusivamente irlandesas e conclusões agora definitivas a respeito de uma forte e volátil, porém insolúvel, narrativa necessária às veredas que Joyce assume no decorrer da trama, regida com o máximo de fôlego prestado à regência e que também é requerido para decifrá-la.

    (30/06/2014) 11° DIA – 1106 páginas: Hoje termina junho, e eu levei 20 anos para me preparar pra ler Ulysses, com minhas limitações culturais já em terceiro plano após a leitura do livro, após essa experiência cara e transgressora de um antes e depois inevitável. É preciso elevar o nível, se deixar refinar em processo desafiador de desconstrução, um refluxo transformador culminante ao epitáfio travestido de alívio, frescor e de gratidão embutidos no final da obra. Joyce não termina sua odisseia sem apresentar todos os seus réus ao júri que os julga, tão humanos e imperfeitos quanto qualquer outro representante da literatura do escritor, com tamanha miscelânea de perspectivas diante de uma mesma história, além das possibilidades que qualquer narrativa até agora conseguiu alcançar, até agora, em suas abordagem transitórias e com as mesmas responsabilidades na condução desta façanha em forma de livro. O lugar comum nas últimas resoluções é o assombro diante da soberania do artista, é a audácia do realismo destilado e modelado, da honestidade jogada sem qualquer cerimônia ou filtros a favor de um mural diferente e único que cada um do júri  nós – tem o livre direito de traçar, finalmente, as próprias resoluções. Por fim, Ulysses é o último delírio agridoce de uma noite de sonhos e pesadelos a afetar nossas razões, nossos princípios, padrões de comportamento e técnicas de leitura que ficam 100% obsoletas logo nas primeiras páginas deste tijolo em forma de manuscrito confidencial. Última frase marcante: “O sol brilha por você.” – página 1104 na brilhante tradução de Caetano W. Galindo.

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  • A Verborragia de Joyce – Parte 1

    A Verborragia de Joyce – Parte 1

    Ulisses - Joyce - Penguin

    Aqui estão copilados onze artigos rápidos e descritivos, fracionados em duas partes, acerca da grande jornada decorrida das proporções de Ulysses, provável magnum opus do escritor James Joyce. Digo provável devido à inconstância de vários críticos sobre qual é a maior contribuição à literatura de Joyce: Nosso objeto de estudo abaixo, ou seria Finnegans Wake, um livro que poucos se atrevem a ler pela dificuldade do exercício narrativo? Seja como for, abaixo é listada quase uma dezena de marcas que Ulysses deixa no leitor à mercê de sua composição, o que não deixa de ser um resumo honesto e um convite à leitura de quem nunca se aventurou nas entrelinhas de um dos maiores romances do século XX. Você não lê Ulysses, você estuda, e estudá-lo não é um dia no parque, é uma estadia de duas semanas em uma biblioteca. Vale pelo mesmo.

    (12/06/2014) 1° DIA – 200 páginas: Os dois primeiros capítulos se provaram de uma precisão e dispersão de significados impressionantes, mesmo que haja, no inconsciente de quem lê, a certeza perspicaz de um enredo solene nas histórias geralmente narradas em terceira pessoa, seja por Joyce ou por um narrador que ainda é inviável de se identificar. Nestas primeiras 200 páginas os dois protagonistas são apresentados de forma prática e livre, sem quaisquer preceitos. Tanto no primeiro capítulo acerca de Stephen Dedalus e sua culpa e desespero existencial, tanto na segunda parte sobre Leopold Bloom e sua curiosidade tímida a respeito de quem faz o mundo, a obra já se mostra filosoficamente pulsante, socialmente sensível, moralmente alarmante e religiosamente audaciosa e corajosa. A seguir, a investigação continua páginas adentro. É uma aventura ler Ulysses.

    (13/06/2014) 2° DIA – 300 páginas: Já é possível entender, agora, de onde vem a preocupação soberana de Joyce com a forma diversificada ao invés da responsabilidade principal com a história. A diferença entre os capítulos é gritante não através da numeração divisória, mas das diferentes narrativas recorrentes e sempre específicas. Daí a razão para o extenso tamanho da obra, pois é o meio encontrado para desenvolver, da melhor forma, os inúmeros tipos de tratamentos narrativos tecidos ao longo de contextos em constante construção, alinhados entre si, numa perfeita teia joyciana.

    (14/06/2014) 3° DIA – 400 páginas: No decorrer argumentativo de noções de paladar e visões hipotéticas de Shakespeare e suas crias, Joyce estampa e escancara realidades cada vez mais particulares e psicológicas em nome da Irlanda. Essa visão expansiva, e um tanto marxista, se reflete na formosa citação da pág. 374: “Se Sócrates deixar sua casa hoje, ele encontrará o sábio sentado em seu limiar. Se Judas sair de sua casa nesta noite, é a Judas que seus passos tenderão”. Portanto, é de se esperar, – ou melhor, de se notar – como dimensões de temas como o preconceito social, o orgulho e o conservadorismo explícito do espírito irlandês retratado, começam então a brotar por essas páginas de maneiras cada vez mais fortes e aparentes. Vertentes que de tão subjetivas se tornam visíveis apenas a um (a) leitor (a) prudente.

    “Eu temo aquelas palavras largas que nos fazem tão infelizes”

    (15/06/2014) 4° DIA – 500 páginas: As primeiras cem páginas que se tornam o maior desafio de decodificação para mim, até agora. Joyce sabia muito bem que seu prazer de intimidar o leitor seria pleno e contínuo até metade do livro, devido à genial e ofegante dinâmica da qual se deriva todo o montante de manifestações e inquisições culturais intrínsecas e indivisíveis ao surrealismo de uma realidade nua e inquietante, como qualquer outra com conflitos de interesse. A verborragia nunca foi tão rica e enlouquecedora quanto nestas 500 páginas! Frase marcante: “Os amigos que nós amamos estão do nosso lado, e os inimigos que odiamos estão à nossa frente.”

    (18/06/2014) 5° DIA – 600 páginas: Entre paralelos e associações internas, Joyce expande ainda mais seu mosaico de personas e cria um espelho dramático entre duas fantásticas personagens centrais, não como um estudo teórico, mas um estudo prático, irracional como o vento, daí a maravilhosa verborragia joyciana. Cem páginas românticas entre o masculino e o feminino da alma humana, onde a justaposição e a aglutinação de palavras e intenções lexicais transcendem e apontam a um “mix” megalomaníaco de diversas noções, todas nobres e atemporais enquanto notavelmente ambiciosas, à maneira metodológica de costume.

    (19/06/2014) 6° DIA – 650 páginas: Joyce parece querer provar que há história de exímia qualidade edificante paralela à simetria da narrativa, no oásis verbal submetido às páginas a fio. O momento notoriamente mais sensível, “emocional-sem-ser-apologético” do livro. As intenções sexuais de Joyce já não são mais sugeridas com reles metáforas. Tudo agora é explícito e esquematizado para apenas aumentar o impacto das questões psicológicas e sexuais que emergem com uma força inédita, até agora. Frase marcante: “Um hábito repreensível na puberdade é vício e opróbrio na meia-idade”. Frase mais contextual ao momento, impossível. Ulysses se torna, então, finalmente, um complexo livro de confissões, e nós somos, obrigatoriamente, o padre.

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  • Resenha | Lugar Nenhum – Neil Gaiman (1)

    Resenha | Lugar Nenhum – Neil Gaiman (1)

    Lugar-Nenhum

    No começo da carreira que o tornaria famoso – quando a obra Sandman ainda estava sendo publicada, mas ele ainda não era conhecido por suas outras obras fora dos quadrinhos -, o promissor Neil Gaiman seria contratado pela produtora britânica de TV BBC para ser roteirizar uma serie chamada Lugar nenhum, que estreou em 1996. Mas não é sobre essa obra que falaremos hoje.

    A série contou com restrições de orçamento e alguns enganos na produção, que podem ser notados principalmente pela qualidade da direção de fotografia, que não tem uma iluminação boa. A qualidade da filmagem também não é boa e os efeitos são feitos com carinho, mas sem dinheiro. Por causa disso, Neil Gaiman não gostou do resultado da série e sempre achou que poderia fazer algo melhor. E ele de fato fez, recriando a mesma obra em outras mídias, como HQs, e lançando também um livro, em 1996 (que chegou ao Brasil em 2005).

    O fato de querer criar uma história digna do que ele imaginou e bem melhor do que o modo como a série foi feita fez com que Neil Gaiman escrevesse o seu primeiro livro, incrivelmente adaptado do roteiro que ele tinha desenvolvido na série, que pouco tempo depois foi publicado com o nome também de Lugar nenhum.

    O livro demostra o estilo literário de Neil Gaiman, muito parecido com o que ele usa em Deuses americanos e em outras obras. Podemos ver a falta de informação sobre alguns elementos da história, como em muitos contos de fantasia clássicos. Pelo fato de não ser explicado o porquê e o como, em muitos momentos a história abre para o próprio leitor imaginar o passado de lugares e personagens, o que acaba tornando bem mais fácil de criar cenários interessantes para o livro. Esse recurso é muito bem utilizado no livro porque normalmente essa é a realidade de quem vive em uma cidade (porque, por exemplo, não sabemos quem é a pessoa que tem um nome em uma placa ou local da cidade), mas ele extrapola esse desconhecimento para conceitos de historias fantásticas. Por exemplo, existe um distrito em Londres chamado Angel Islington (Anjo Islington), então Neil Gaiman extrapola o nome do lugar e diz que realmente existe um anjo chamado Islington, e depois revela pela metade detalhes sobre o passado dele em pequenas conversas entre os personagens. Isso é bem usado para passar o clima de uma sociedade dentro de outra sociedade.

    O livro também conta com um o clima bem punk inglês, porque Neil Gaiman descreve tudo de forma bem suja, com um visual sempre em farrapos e um clima bem “do it yourself“. A obra adquire uma identidade única (uma fantasia punk), além do leitor sempre ficar imaginando o visual da protagonista de forma especial, já que ela é uma gracinha.

    Outra coisa a se destacar é o trabalho de usar o próprio ambiente de Londres, que tem milhares de referências locais muito legais – até porque Neil Gaiman é inglês. Além de já estar acostumado com o ambiente por ser natural da Inglaterra, ele faz um ótimo trabalho criando ainda mais conteúdo com esses ambientes, fazendo brincadeiras e trocadilhos com nomes de lugares e personagens da cidade, e dando um background que eu não sei se são contos malucos e lendas urbanas londrinas, ou se ele tirou tudo da cabeça dele mesmo. Isso tudo para transformar todos os lugares (isso mesmo, os lugares) em personagens interessantes, imagine os personagens normais…

    São legais as mensagens que o livro passa também: a existência de uma sociedade dentro de um sociedade, de pessoas esquecidas, porque simplesmente é mais conveniente esquecer essas pessoas. Mas, apesar de tudo, por eles serem esquecidos, eles acabam sendo mais livres do que as pessoas que vivem na Londres de cima, onde todos são presos aos seus itens de consumismo, ou a vidas que eles não conseguem largar ou se adaptar, como era o personagem principal. A história chama o leitor a refletir mais sobre o mundo à sua volta, mais localmente, e sobre suas histórias de certa forma esquecidas ou que fazemos questão de não saber.

    Quanto aos personagens, temos que o principal é o que representa o personagem que guia o leitor da melhor forma possível nesse universo. O personagem principal carece de uma personalidade mais forte, mas ele foi feito para representar o londrino médio, o leitor do livro, então não podia ser alguém muito diferente do normal. Ele tem algumas características que o tornam diferente das pessoas comuns, mas só dando a ideia de que algo o diferencia e que por isso ele vai entrar na história. Os personagens restantes são personificações de lugares ou de ideias, e eles são tão marcantes quanto pensamos que eles sejam, já que Neil Gaiman deixa muito da personalidade deles para que o leitor imagine.

    Esse livro tem uma história muito bem desenvolvida, e tudo se acerta de uma forma bem mais natural do que em outras obras de Neil Gaiman, como Deuses americanos. Como este é o primeiro livro de Neil Gaiman, em resumo, Lugar Nenhum é mais obrigatório do que outras obras do autor – em minha opinião, claro.

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    Texto de autoria de Psycho Mantys.