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  • Resenha | Sim, Eu Digo Sim: Uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce – Caetano W. Galindo

    Resenha | Sim, Eu Digo Sim: Uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce – Caetano W. Galindo

    sim, eu digo sim

    Caetano W. Galindo é doutor em Linguística pela USP e leciona Linguística Histórica na UFPR (Universidade Federal do Paraná). Tradutor de livros de James Joyce, David Foster Wallace, Thomas Pynchon, entre outros.

    A resenha começa com uma mini biografia do autor e não com a sinopse do livro por um motivo muito simples: o autor É o guia. Galindo é o tradutor responsável pela “versão” em português mais recentemente publicada de Ulysses – obra que eu, como tantos outros leitores, comecei inúmeras vezes sem conseguir passar do sétimo episódio. Quando da publicação da edição traduzida por Galindo, fui a um encontro na Livraria Cultura, em um Bloomsday. E, nesse dia, o tradutor, além de contar os motivos que o levaram a fazer a tradução e parte da saga em efetivamente traduzi-lo, conduziu os presentes em uma visita rápida a Ulysses, esclarecendo para a maioria de nós os motivos pelos quais esses primeiros capítulos são mais difíceis de transpor.

    Vale dizer que, depois desse dia, a vontade em fazer uma nova tentativa renasceu fortalecida. Mas ainda havia um pequeno entrave. Leitores de língua inglesa contam com o auxílio de inúmeros guias de leitura – entre eles o super detalhado Ulysses Annotated, de Don Gifford, quase tão extenso quanto o próprio Ulysses. E, uma vez que a edição da Companhia das Letras, por opção do editor e do tradutor, não possui notas de rodapé, é natural que o leitor se veja perdido em meio a inúmeras referências desconhecidas, além daquelas que ele sequer consegue identificar. Muitos dos pequenos detalhes e, por que não dizer, easter-eggs embutidos no texto por Joyce tem a ver com a época em que o livro foi escrito, com a Dublin em que vagueiam Dedalus e Bloom naquele 16 de junho de 1904. É lógico que sendo uma obra-prima, a excelência de Ulysses não depende de o leitor (re)conhecer essas referências. Mas também é óbvio que a leitura se enriquece e se torna ainda mais prazerosa caso o leitor tenha ciência delas.

    E é esse o papel do guia. Diferente de Ulysses Annotated, não é uma lista das referências, mas sim um lembrete para o leitor, do tipo “repare nisso”, “atenção aqui”, “guarde esta informação”. E Galindo vai além. Ulysses é um livro em que a forma deve servir – e serve – ao conteúdo. Ou seja, cada episódio é escrito de modo a refletir e representar estilisticamente a história e o ânimo ou desânimo dos personagens. Tomemos como exemplo o episódio 7, Éolo, que foi o mais longe que cheguei em minhas tentativas infrutíferas. Conforme explica Galindo:

    “O paralelo homérico aqui é muito menos fértil que no episódio anterior, embora sejam curiosas as escolhas de Joyce para tematizar o vento, personificado por Éolo: primeiro nas correntes de ar que sopram o tempo todo em cena, segundo nas diversas expressões idiomáticas com referência a vento e ar, terceiro, na escolha da retórica (da fala vazia, mero sopro) como arte, personificada ali pelo jornalismo, e quarto pela decisão de exemplificar em um ou outro momento praticamente todas as figuras retóricas registradas pelos manuais da época.
    O assunto é a fala vã, os entimemas, o discurso cheio de ar.
    Não é de estranhar, então, que este episódio seja o primeiro em que o estilo, a forma do romance ganhe total destaque.”
    (p.131)

    Há algo de reconfortante em saber que esse episódio não é um texto beirando o non-sense simplesmente porque o autor não escreve bem ou não sabe encadear as ideias. Foi escrito da forma que foi com um propósito e não “apenasmente” por mero capricho ou acaso. E ter ciência disso é libertador para o leitor. Não há por que se sentir culpado ao achar o texto vazio e sem nexo, já que essa é a intenção do autor.

    Cada um dos dezoito episódios é apresentado ao leitor dessa forma. Além de ser perceptível no texto a paixão de Galindo pela obra, para incrementar, há aqui e ali descrições das agruras de um tradutor que tenta – algumas vezes sem sucesso – manter ao mesmo tempo o sentido, a forma, o conteúdo, a sonoridade de jogos de palavras praticamente intraduzíveis:

    “(Nota do tradutor frustrado: enquanto Bloom escolhe o que comer, aparece a frase ‘um caixão de sanduíches de presunto fresco para o velório’. Que é, ou foi, a melhor tentativa de reproduzir um trocadilho clássico, e brilhante: ‘Ham and his descendants mustered and cred here’, que joga à perfeição com os sentidos ‘Presunto e seus descendentes, mostarda e pão’ e ‘Cam e seus descendentes dominaram este lugar e aqui procriaram’.)”
    (p.152)

    Causos assim me fizeram tomar gosto por acompanhar a coluna de Galindo enquanto ele traduzia Ulysses, e depois ao traduzir Infinite Jest, de David Foster Wallace – quase tão cheia de meandros linguísticos quanto a obra de Joyce.

    Vamos acompanhando o autor/tradutor destrinchando Ulysses para nós, reles mortais, e é difícil não pensar no tempo que Joyce empreendeu para montar a trama do livro e encaixar os easter-eggs. Tem-se a impressão de que ele escreveu e depois, durante as inúmeras reescritas e revisões, foi rearranjando a trama, plantando pistas, enfim deixando a narrativa estruturada como um quebra-cabeças ou uma caça ao tesouro. E não basta apenas ter o tempo necessário para fazer algo assim, é necessário antes de tudo pensar nesses pequenos detalhes, como o comentado no trecho abaixo. Haja criatividade!

    “Mas antes de tudo isso vem num relâmpago o nome. Penrose! A maioria dos leitores nem lembrava que ele estava tentando lembrar esse nome. E é bem assim, afinal, que essas coisas acontecem. Quando você desiste de lembrar, o nome aparece. É um episódio, como vimos, cheio de divagações sobre a memória e de ilustrações de seu funcionamento.”
    (p.156)

    E antes de iniciar este passeio guiado por Ulysses, há uma introdução bem extensa, mas não menos interessante. Nela, Galindo dedica-se a explanar o que é o livro e como está estruturado – tanto o seu quanto o de Joyce. Discorre sobre vozes narrativas, sobre estilo, sobre os temas, os personagens, as correlações com a Odisseia e outras obras, as referências, os paralelos. O autor aborda esses assuntos no mesmo tom casual de sua coluna, mas com a dose certa de academicismo. Didático e, ao mesmo tempo, divertido. É perfeitamente factível lê-la como um preâmbulo a Ulysses, antes mesmo de ler a ainda mais extensa introdução do livro, escrita por Declan Kiberd, e só então aventurar-se a seguir os passos de Bloom e Dedalus.

    Para quem já leu Ulysses e quer descobrir mais detalhes e usufruir ainda mais de uma releitura ou para quem, assim como eu, ainda pretendo lê-lo em sua completude pela primeira vez, este guia é um item quase obrigatório. E para quem quiser ir além do guia, a página do autor tem algumas listas valiosas que, como ele mesmo afirma, são apenas “algumas primeiras referências”.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | Vício Inerente – Thomas Pynchon

    Resenha | Vício Inerente – Thomas Pynchon

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    Representante do informal Clube de Autores Reclusos, Thomas Pynchon evita aparições públicas e o assédio de repórteres. Em 1997, quando foi filmado pela CNN, barganhou as imagens por uma entrevista exclusiva para o canal. Os retratos conhecidos do autor são de sua adolescência, representando um rosto jovial, tipicamente americano, com destacados dentes frontais.

    Vencedor do Prêmio Faulkner por V, do National Book Awards por Arco-Íris da Gravidade e outros prêmios de prestígios, suas obras são comumente extensas, apresentando excesso de personagens e situações em uma narrativa erudita que faz referência a diversos campos científicos. Estruturalmente, não se prende a usos normativos das palavras e recria vocábulos quando necessário. Não a toa, o crítico Harold Bloom considera sua prosa canônica entre os escritos contemporâneos americanos.

    Publicado originalmente em 2009 e lançado no país no ano seguinte pela Companhia das Letras, Vício Inerente retorna à atmosfera paranoica dos 70 e estabelece uma homenagem aos mestres da literatura policial americana, Raymond Chandler e Dashiell Hammett, em um romance que se estrutura na narrativa policial mas se insere na atmosfera pós-hippie.

    O principal enfoque da obra é a maneira como o estilo do escritor conduz a trama e compõe a personagem central, o detetive Larry “Doc” Sportello, que reaparece neste romance após protagonizar Vineland e O Leilão do Lote 49. Produto do flower power da década dos anos 60, Doc é um hippie que vive de maneira modesta na cidade e representa uma cultura em decadência. Consumindo drogas freneticamente, sua personificação foge do estereótipo do detetive, sem nenhum simbolismo representativo de investigadores tradicionais.

    Pynchon faz de Doc uma paródia do policial. Se detetives usam a experiência e um certo instinto para prosseguir na investigação de casos, seu método investigativo permanece a maior parte do tempo alheio devido ao uso constante das drogas. Uma paranoia intensa compartilhada pelo público que acompanha a história a partir do ponto de vista da personagem, e que também permanece em dúvida sobre o que é real ou não dentre os absurdos em cena. Diluindo a realidade entre usos maciços de drogas e alucinógenos, a trama produz os mistérios naturais de uma história policial, e conduz o leitor a compartilhar as experiências de Doc por meio do trânsito que alterna o real e a divagação.

    O estilo narrativo se equilibra entre preciosismos e uma falta sensação de simplicidade. O autor abusa do fluxo constante de pensamentos e de construções neologistas para dar ritmo aos pensamentos frenéticos de sua personagem. Ao mesmo tempo, estrutura a história de maneira simples, gerando um choque entre a não-linearidade dos fatos, passando pelo real e o onírico e uma trama de investigação aparentemente usual.

    Por essas características, traduzir o autor e manter seu estilo com as construções gramaticais são um desafio. Coube a Caetano W. Galindo – que verteria depois Ulysses de James Joyce e Graça Infinita de David Foster Wallace – trabalhar com a obra à procura de equivalentes que mantivessem o estilo do escritor e a oralidade das personagens, para que pouco se perdesse na tradução. O trabalho é bem realizado, sendo perceptíveis as tensões entre o preciosismo de Pynchon como narrador em contraponto às falas simples das figuras que ele retrata na obra.

    O autor inova ao inserir uma estrutura narrativa em outro contexto e produz uma obra que destaca sua qualidade como escritor, ao mesmo tempo que se volta a um momento específico de décadas passadas. Vício Inerente é uma espécie de jornada transitiva entre estados da mente compartilhada coletivamente.

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  • A Verborragia de Joyce – Parte 2

    A Verborragia de Joyce – Parte 2

    ulyssesegoist

    Aqui estão copilados, em onze artigos rápidos e descritivos, fracionados em duas partes, análise acerca da grande jornada decorrida das proporções de Ulysses, provável magnum opus do escritor James Joyce. Digo provável devido à inconstância de vários críticos sobre qual é a maior contribuição à literatura de Joyce: Nosso objeto de estudo abaixo, ou seria Finnegans Wake, livro que poucos se atrevem a ler pela dificuldade do exercício narrativo? Seja como for, abaixo está listada quase uma dezena de marcas que Ulysses deixa no leitor à mercê de sua composição, o que não deixa de ser um resumo honesto e um convite à leitura de quem nunca se aventurou nas entrelinhas de um dos maiores romances do século XX. Você não lê Ulysses, você estuda, e estudá-lo não é um dia no parque, é uma estadia de duas semanas em uma biblioteca. Vale pelo mesmo.

    (20/06/2014) 7° DIA – 700 páginas: Como é difícil acompanhar o raciocínio de Joyce na primeira leitura, antes de uma releitura de um parágrafo. Difícil e injusto. É preciso reler e reler e reler, pela terceira e quarta tentativa de compreensão, em prol de um avanço na decodificação da leitura, e de uma provável epifania sobre a intenção no indescritível jogo de palavras, palavras e signos que não parecem clamar qualquer identificação, cada vez menos, aliás. Cada vez mais, a técnica penetra e alavanca o texto como tema e como alma da escrita. Está frio e ando lendo na cama, algo que Stephen Dedalus também o faria, com certeza.

    (23/06/2014) 8° DIA – 800 páginas: Joyce vai além das expectativas geradas num impensável e caótico julgamento da vida de um pobre cidadão, de orientação ética duvidosa, enquanto o escritor dificulta o julgamento das atitudes dos personagens através de uma linguagem de dificílimo acesso, justificando assim sua ambição descritiva com a forma demonstrativa da sua versão do julgamento da vida, e suas consequências numa estrutura insana e ofegante, o que me faz lembrar do método de Saramago. James Joyce vai tão longe nas implicações dessas 800 páginas – e nas suas megalomanias na conjetura promocional do conteúdo sugerido numa ousada empresa, com a literatura de Shakespeare e a poesia de Homero e Hesíodo sendo celebradas  que fica difícil imaginar as próximas dimensões que as próximas 100 páginas poderão ter.

    (26/06/2014) 9° DIA – 900 páginas: Joyce conclui que a falta de um fluxo definido e constante é menos importante do que o número elevado que contabiliza seus ganhos e méritos além-obra na narrativa mais desafiante até o momento, com uma centena de páginas realmente labiríntica e perturbadora, cortesia mais da trama que da estrutura, por enquanto, e encerra seu conjunto formulaico através de suas próprias resoluções literárias, junto a um bocado de semi-conclusões ainda aéreas, com sentidos e definições ainda a serem totalmente empregados adiante – eu espero! De fato, o melhor verbo para definir Ulysses, se isto for realmente possível, é Englobar! Mesmo com suas viciantes e hipnotizantes ambições, James Joyce parece começar a ter certa piedade do leitor a partir de certo ponto, antes de completar 1000 páginas, e abranda a narrativa, enquanto, todavia, faz borbulhar ainda mais todo o contexto (literalmente) hiper-multifacetado.

    (27/06/2014) 10° DIA – 1000 páginas: De fato, nada louvável se não for visto e pesado por uma ótica ativa, eficiente e não-preguiçosa, o décimo e décimo primeiro capítulos são os mais fáceis e acessíveis até o presente marcador de páginas acusar repartição na milésima. As analogias de Joyce com a reles vida humana, meio que rejeitando todas as suas inúmeras pretensões posteriores  irredutíveis da memória de quem as lê –, são espetaculares, no complemento de uma perspectiva sideral, cósmica e astrológica a todo um cinturão de ocorrências humanas forjadas no tempo sobre a crosta terrestre  precisa e orgulhosamente na Irlanda, propriedade intelectual de Joyce. Através de infinitas exaltações culturais e concordâncias a partir do indivíduo, rumo à identificação de um coletivo social, o autor torna sua pátria um matagal de valores, fetiches, peso moral, valor histórico e nomenclatura original – devido às suas percepções exclusivamente irlandesas e conclusões agora definitivas a respeito de uma forte e volátil, porém insolúvel, narrativa necessária às veredas que Joyce assume no decorrer da trama, regida com o máximo de fôlego prestado à regência e que também é requerido para decifrá-la.

    (30/06/2014) 11° DIA – 1106 páginas: Hoje termina junho, e eu levei 20 anos para me preparar pra ler Ulysses, com minhas limitações culturais já em terceiro plano após a leitura do livro, após essa experiência cara e transgressora de um antes e depois inevitável. É preciso elevar o nível, se deixar refinar em processo desafiador de desconstrução, um refluxo transformador culminante ao epitáfio travestido de alívio, frescor e de gratidão embutidos no final da obra. Joyce não termina sua odisseia sem apresentar todos os seus réus ao júri que os julga, tão humanos e imperfeitos quanto qualquer outro representante da literatura do escritor, com tamanha miscelânea de perspectivas diante de uma mesma história, além das possibilidades que qualquer narrativa até agora conseguiu alcançar, até agora, em suas abordagem transitórias e com as mesmas responsabilidades na condução desta façanha em forma de livro. O lugar comum nas últimas resoluções é o assombro diante da soberania do artista, é a audácia do realismo destilado e modelado, da honestidade jogada sem qualquer cerimônia ou filtros a favor de um mural diferente e único que cada um do júri  nós – tem o livre direito de traçar, finalmente, as próprias resoluções. Por fim, Ulysses é o último delírio agridoce de uma noite de sonhos e pesadelos a afetar nossas razões, nossos princípios, padrões de comportamento e técnicas de leitura que ficam 100% obsoletas logo nas primeiras páginas deste tijolo em forma de manuscrito confidencial. Última frase marcante: “O sol brilha por você.” – página 1104 na brilhante tradução de Caetano W. Galindo.

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