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  • Crítica | A Senhora da Van

    Crítica | A Senhora da Van

    a senhora da van

    Baseado em fatos “quase” reais, conforme o espectador é avisado logo no início, o filme conta a história de uma senhora que, após se envolver num acidente de trânsito, passa a viver em sua van. A história é contada do ponto de vista do escritor e autor teatral Alan Bennett (Alex Jennings), responsável pelo roteiro.

    Em 1970, Bennett morava em Camden Town, bairro de Londres que Mary Shepherd (Maggie Smith) adotara como residência. Estacionava seu veículo em frente a alguma casa e ficava por lá durante algum tempo. Devido a seus hábitos pouco higiênicos, os moradores não gostam de sua presença e conseguem, junto à prefeitura, que não seja mais permitido estacionar naquela rua. Se a intenção era que ela deixasse o local, o efeito foi inverso. Bennett, compadecido e ao mesmo tempo curioso, permite que Mary estacione a van em sua vaga na garagem, já que ele mesmo não possui automóvel. O que era para ser temporário, uma estadia de duas ou três semanas até que Mary resolvesse sua situação, acabou durando 15 anos.

    Típica comédia inglesa, de humor leve, por vezes ácido, que se sustenta na figura sempre emblemática de Maggie Smith. Muito diferente da Condessa de Grantham, sua personagem em Downton Abbey, Smith encarna a fétida e teimosa sem-teto com a maestria de sempre. Aliás, é sua presença que faz o filme ser um pouco mais que apenas mediano, já que o roteiro é bem esquemático, sem muitos arroubos de originalidade. Talvez o único ponto fora da curva, menos convencional, seja o fato de o alter-ego de Bennett estar presente fisicamente em cena. Bennet se divide em dois, o que vive e o que escreve. Eles conversam entre si e é nessas conversas que o espectador vê reproduzidas suas dúvidas e observações sobre o comportamento incomum de Mary e sobre o relacionamento ainda mais incomum entre ela e o escritor.

    Mas apesar desse detalhe na representação de Bennett, o personagem carece de carisma. O que sobra em Mary – e que certamente deve boa parte à atuação de Smith – falta em Bennett. E nem é culpa de Jennings. O personagem é apático e gera pouca ou quase nenhuma empatia com o espectador. Mesmo sendo um bom contraponto à atitude enérgica e mandona de Mary, poderia ter sido construído com um pouco mais de tempero, o que teria agregado valor à história. Talvez o escritor seja assim na vida real, mas estamos falando de cinema, e liberdade criativa em prol do enriquecimento da narrativa é sempre bem-vinda.

    Há até um certo mistério na trama, já que se sabe muito pouco sobre o passado de Mary. Por que passou a morar na van depois do acidente? O que ela fazia antes disso? Quem é o homem que aparece algumas vezes para interpelá-la? Quem é o homem que ela visita periodicamente? Todas essas questões ficam pairando no ar até faltar cerca de vinte minutos para o final do filme. Mas nem mesmo isso faz o público se interessar mais.

    Enfim, é agradável de assistir e vai muito bem acompanhado de alguns biscoitos do chá das cinco.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Review | Sherlock: A Noiva Abominável

    Review | Sherlock: A Noiva Abominável

    sherlock-the-abominable-bride_posterO especial de 2015 do seriado Sherlock, de Mark Gattis e Steve Moffat começa rememorando uma prática comum tanto ao Holmes clássico de Arthur Conan Doyle quanto a versão da BBC One. Os eventos de His Last Vow impediriam, a princípio, uma aventura corriqueira e escapista nos mesmos cenários e moldes do seriado, o que em parte, ajudaria a “justificar” o retorno a Era Vitoriana para contar que essa história fugiria aparentemente do status quo do programa televisivo.

    O clima de conto doyliano se fortifica quando o recém-aposentado médico do exército James Watson (Martin Freeman) encontra seu possível novo colega de quarto, Sherlock Holmes (Benedict Cumberbatch), nos trajes clássicos de uma época mais sombria e acinzentada, com tons variando entre bege e marrom, servindo de resumo a uma tendência de época. A quantidade de homenagens é imensa, começando pelo comércio da Strand Magazine, revista que publicava os contos, o que determina um salto temporal entre os eventos indicados em Estudo em Vermelho e a história apresentada pelo Inspetor Lestrade (Rupert Graves), já no hall do apartamento localizado no 221B da Baker Street.

    O desenrolar da trama envolve ainda um sem número de referências que não são simplesmente gratuitas, como a personificação de Mycroft Holmes, executado por Gattis com uma maquiagem pesada, como figura glutona e obesa. Apesar de exagerada, esta versão serve para solidificar a rivalidade fraterna entre os personagens, além de pôr o primogênito em uma posição superior, esbanjadora, o completo inverso da vida discreta e pobre de Sherlock, que em alguns momentos, até recorria ao irmão para cumprir somas importantes do seu orçamento. É desta fonte que surgem pistas importantes, que dão rumo à investigação que o Detetive começou.

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    O desenrolar do roteiro demonstra alguns dos maiores dissabores do investigador, entre eles a descrença em figuras e seres sobrenaturais e a natural aversão à associação de fantasmas ao desfecho do caso. Outra fobia é aventada, como o uso contínuo de cocaína, aspecto dado como superado pelo personagem já em seu piloto Study in Pink. O episódio especial talvez seja o mais próximo do clássico de Nicholas Meyer Solução a Sete Por Cento em que Moffat e Gattis poderiam homenagear alguma obra de Holmes que não fosse parte do cânone.

    Mesmo as viagens temporais são plenamente justificadas dentro do argumento, bem como as tramoias envolvendo supostos mortos andantes. A textura antiga faz assinalar ainda mais os claros poderes intuitivos. O foco maior é claramente nos fantasmas do passado de Holmes, que não consegue lidar com a perda de seu adversário maior, seu nêmese. Toda  a lógica por trás dele passa pela troca de insultos e estratégias com o Moriarty de Andrew Scott. O capítulo também serve para ratificar a ideia de que o ator nasceu para executar esse papel, que é entregue com uma maestria impressionante e poucas vezes vistas em sua carreira.

    O desfecho nas cataratas de Reichenbach é simbólico para o aficionado no personagem e serve de mergulho na alma do sujeito biografado, como um estudo da própria escrita de Watson/Doyle nas novelas, contos, romances e afins. As soluções encontradas para o saudosismo são plausíveis e não excluem qualquer retorno à atividade, já que A Noiva Abominável trata também disso, dos receios dos que deveriam estar encerrados. A cena final, misturando as linhas de tempo distintas, serve para edificar a obra de Doyle como algo universal e inspiradora de tantas releituras importantes, poucas tão reverenciais, fiéis e sensíveis quanto esta.

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  • Review | In The Flesh

    Review | In The Flesh

    in-the-fleshDe certa forma, na contramão do que ficamos habituados a reconhecer como “série de zumbi” – The Walking Dead sendo o exemplo mais recente – , In the flesh deixa de lado a luta pela sobrevivência travada pelos “vivos” e foca a sobrevida dos portadores da “Síndrome de Falecimento Parcial” (Partially Deceased Syndrome – PDS). Por algum motivo desconhecido, os mortos, em 2009, saem de suas covas num evento posteriormente chamado de “A ascensão” (“The rising”). Como quaisquer zumbis que se prezem, saem em busca de humanos vivos para se alimentarem. Enquanto milícias se encarregam de proteger as pessoas, descobre-se que os zumbis sofrem de um distúrbio neurológico que os impede de reproduzir certo tipo de células cerebrais. Descoberto o medicamento que controla essa alteração, os zumbis capturados são medicados, reabilitados e reintroduzidos na sociedade, sendo enviados de volta às suas famílias.

    Com roteiro de Dominic Mitchell e direção de Johnny Campbell, a série acompanha Kieren Walker (Luke Newberry), um adolescente parcialmente falecido, em seu retorno à casa dos pais, em Roarton. Vemos o constrangimento entre eles, sem saber exatamente como agir – principalmente os pais, Sue and Steve Walker (Marie Critchley e Steve Cooper), oscilando entre a alegria de ter o filho de volta e o receio devido à sua condição. E vemos o estranhamento deles com sua aparência – os zumbis são instruídos a usarem lentes de contato e maquiagem para ficarem mais parecidos com os vivos. E conhecemos Jem Walker (Harriet Cains), irmã de Kieren, que, membro da milícia local, não faz qualquer esforço para esconder seu asco e sua desaprovação pelo retorno do irmão.

    É interessante perceber como reações semelhantes em relação aos zumbis são retratadas de formas quase opostas pela família de Kieren e de Bill Macy (Steve Evets), o comandante da milícia. Se, por um lado, os Walker se esforçam por reintroduzir Kieren no cotidiano da família, tentando encará-lo como o portador de uma doença e não como um monstro em potencial, Bill, ferrenho defensor da cidade contra os “rotters”, cujo filho retorna ao mesmo estado que Kieren, apenas vê defeitos e ameaças nos outros, preferindo agir como se nada tivesse acontecido. É agoniante a forma como ele se autoengana sobre a condição do filho. E, por seu status na cidade, ninguém se atreve a contradizê-lo – qualquer semalhança com “A roupa nova do rei” (não) é mera coincidência.

    É óbvio que, apesar de toda a qualidade do roteiro, a primeira temporada não está isenta de alguns defeitos e furos. Mas nada que atrapalhe a imersão no universo da história. Possivelmente, o que mais incomoda o espectador são alguns fatos “jogados” na história sem conexão aparente com nada, como o “esquecimento azul” ou a seita de zumbis. Mas principalmente incomoda o fato de a personagem Amy Dyer (Emily Bevan) entrar sem mais nem menos na vida de Kieren – e também sair dela sem muitas explicações. O que se salva é que a personagem é cativante, apesar de aparentemente não ter razão de estar ali. E, depois de Newberry, Bevan é a melhor performance da série.

    À semelhança de Sherlock e Black Mirror, a primeira temporada tem três episódios com duração aproximada de uma hora cada um. E, assim como nas duas séries citadas, essa opção garantiu a ótima qualidade da temporada, agarrando o leitor desde a sequência inicial e mantendo-o preso à história até a cena final. Pena que não mantiveram essa escolha na segunda temporada, com seis episódios. A qualidade do roteiro decaiu e há várias inconsistências em relação à primeira temporada.

    Tem-se a impressão de que a série havia sido “pensada” apenas para uma temporada e, devido ao sucesso, uma segunda foi logo engatada já sem tanta preocupação com a qualidade nos detalhes. Além disso, os questionamentos sobre preconceito, minorias, (in)tolerância foram reduzidos a uma “caça às bruxas”, que inclui tolhimento da liberdade de ir e vir, além de trabalho compulsório – para não dizer forçado. E essa alteração de abordagem fica personificada em uma parlamentar desconhecida que aparece em Roarton sem ter sido chamada e se arvora como a autoridade máxima da cidade. Por outro lado, a motivação dos portadores passa a ter um enfoque bíblico, com ares de profecia, ao buscarem “O primeiro” para darem início à Segunda Ascensão. Em alguns momentos, nem parece a mesma série, tamanha a falta de coerência de alguns personagens.

    Mas nem tudo são defeitos na segunda temporada. Vale destacar o enfoque dado à autoaceitação. À importância de as pessoas se aceitarem como são, para então estarem em condições de cobrar a aceitação dos outros. Simon (Emmett J. Scanlan), mentor de Amy e chamado por ela de “o profeta”, é o catalisador dessa reação nos portadores de Roarton. Outro ponto a ser destacado é o arco dramático de Philip (Stephen Thompson). Muito interessante acompanhar o amadurecimento do personagem, que deixa de ser capacho do vigário e se revela um rapaz íntegro, com hombridade suficiente para assumir sua paixão por Amy em meio à repugnância (quase) generalizada pelos zumbis.

    A série é sobre zumbis, mas poderia ser sobre qualquer minoria que já foi oprimida e rechaçada na história da humanidade. Como qualquer minoria, os portadores de PDS são vítimas de preconceito e perseguição. Os habitantes de Roarton abominam os zumbis e não querem saber de sua reintegração à sociedade, mesmo que o governo assegure que a medicação evite que eles voltem a seu estado “rabbid” (raivoso). A forma com que os portadores são tratados faz lembrar bastante os primeiros anos da descoberta da AIDS, um misto de temor e intolerância.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Review | Orphan Black – 1ª Temporada

    Review | Orphan Black – 1ª Temporada

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    Imagine que você é uma pessoa desajustada, marginalizada pela sociedade e especialista em aplicar golpes para ganhar algum dinheiro e sobreviver. Agora pense como seria se, um dia, você visse alguém exatamente igual a você se matar sem motivo aparente. Em algum momento – disposto entre o momento chocante de ver alguém se atirar na frente de um trem e o de cair a ficha de que você e a suicida possuem exatamente a mesma aparência –, você pensaria em como levar vantagem com a situação.

    Para um órfão versado na arte do trambique, golpes e pequenos furtos, a falsidade ideológica não chegaria nem a ser um desafio. A pessoa que se matou era exatamente igual a você, exceto talvez pelas roupas visivelmente caras e o ar grã-finesco. O plano é simples: trocar de identidade com a indigente morta, averiguar a vida dela e seguir vivendo a rotina daquela pessoa pelo resto da vida ou, no mínimo, liquidar tudo o que há de valor em seu inventário antes que percebam que a pessoa limpando as contas e vendendo os bens não é a verdadeira dona da grana.

    Acima, estão resumidos os primeiros 15 minutos do primeiro episódio de Orphan Black, série da canadense BBC que estreou em meados de 2013 e que vem sendo um sucesso de crítica desde então. Antes de terminar o primeiro episódio, ainda, você vai descobrir que a ligação entre a indigente suicida e a personagem principal da série é muito mais íntima do que a de simples irmãs gêmeas. Sarah Manning, a protagonista, e Elizabeth Childs, a suicida, não saíram do mesmo útero, não cresceram no mesmo ambiente e ainda assim são geneticamente idênticas. Ambas as personagens são frutos de uma experiência obscura de clonagem humana, e elas não são os únicos produtos deste experimento. À medida que vai conhecendo os outros clones, Sarah descobre que alguém está caçando-a e precisa evitar que o assassino chegue até ela, sua família adotiva ou sua filha biológica.

    Ir muito além do que relatei na sinopse poderia prejudicar a experiência com a série, portanto me limitarei a contar estes aspectos da trama, que é umas das melhores séries às quais assisti recentemente. Uma mistura de drama existencialista e ficção científica, Orphan Black dosa muito bem os momentos de ação e os pontos dramáticos regados a muita reflexão das personagens e do próprio espectador no decorrer dos 10 episódios que compõem esta primeira temporada da série.

    Tatiana Maslany, a atriz que interpreta a personagem principal da trama, trabalha em suas personagens em um nível inacreditavelmente alto, com um roteiro extremamente desafiador para qualquer artista em sua posição. Durante a série, Maslany vive vários personagens diferentes e consegue, de forma extremamente competente, estabelecer e dar vida a cada um deles de uma maneira singular e orgânica. Os trejeitos de cada personagem são únicos e não se misturam nem quando um dos clones tem de se passar por outro. Assim, é visível quando Sarah vai a um evento se passando por Alison, por exemplo. Em tela, é possível distinguir cada personagem com considerável facilidade seja pelo jeito de falar, pela forma de andar ou pela postura de cada uma das diversas personagens interpretadas por ela. Um show à parte!

    Os personagens secundários também se desenvolvem bem, apesar do pouco espaço que possuem na primeira temporada. Felix Manning, o irmão adotivo de Sarah interpretado por Jordan Gavaris, destaca-se dos demais pela presença em cena e por maneirismos totalmente caricaturados. Seu personagem, um michê homossexual, participa bem da trama e ajuda bastante a personagem principal na busca dela por respostas. O personagem de Gavaris é divertido e leve, contrastando com a situação para a qual é arrastado. Outros que também aparecem bem durante os episódios são os personagens de Dylan BruceKevin Hanchard, responsáveis pelo clima mais pesado e sombrio: Paul Dierden e o Detetive Arthur Bell (interpretados por eles, respectivamente) buscam entender quem é a jovem Sarah e por que ela é tão parecida com Elizabeth, enquanto vão se aprofundando na trama e se envolvendo com a empresa responsável pela clonagem.

    Num geral, a série é bastante dinâmica e envolvente, alternando momentos leves de descontração com violentas cenas de perseguição, e uma trama complexa envolta em uma série de mistérios. Em alguns pontos da trama, conceitos científicos são simplificados de maneira um pouco grotesca ou até desconsiderados completamente, mas isso não altera a avaliação geral da série. Orphan Black é transmitida atualmente pelo canal BBC HD e está no final da primeira temporada. A segunda deve estrear aqui no Brasil ainda este ano e, para os interessados em assistir todos os episódios da primeira, eles estão disponíveis na Netflix. A temporada mais recente já foi transmitida nos EUA (se é que você me entende), e o canal já confirmou a produção de uma terceira, que deve estrear no ano que vem.

    Apesar de ter sido ignorada pelo Emmy Awards pelo segundo ano consecutivo (sem motivo aparente e para indignação dos críticos de verdade), Orphan Black é uma das séries mais interessantes e bem feitas da atualidade, e Tatiana Maslany, vou repetir, impressiona muito pela qualidade da atuação. Certamente um must see de 2014!

  • Review | Sherlock S02 E03 – The Reichenbach Fall

    Review | Sherlock S02 E03 – The Reichenbach Fall

    the_reichenbach_fallA 1ª referência é óbvia, pois o guião tem em seu esqueleto a estrutura narrativa presente em O Problema Final. Watson volta ao cenário visto somente em A Study in Pink – o consultório da psicanalista. John tem enorme dificuldade em verbalizar o fato que o levou a procurar de novo a ajuda da doutora. A direção da obra ficou a cargo de Toby Haynes, pródigo em reger episódios de séries, entre elas, Doctor Who, Being Human, etc.

    A figura do Detetive ganhara muita fama, graças ao caso denominado Reichenbach, ultrapassando os limites da web, sendo noticiado nos grandes jornais e revistas impressas e nas redes de televisão. Os feitos de Holmes ganharam o público, e o público tornou-o uma figura popular, para desespero do recluso herói.

    Jim Moriarty se mostra um exibicionista, seu ego se eleva tanto que ele precisa ser espalhafatoso, hackeando a ponte de Londres, arrombando o museu de Londres para roubar as joias da coroa e claro, tomar seu “lugar de direito” no trono britânico, antes claro, mandando uma mensagem para Holmes, tornando-o parte integrante de seus “lunáticos” planos.

    O julgamento do criminoso é semelhante ao mostrado na peça Sherlock Holmes, de William Gillette, mas obviamente atualizada. As causas são diferentes, Moriarty quer um embate na frente de todos, por vaidade, e busca também a comprovação de qual dos dois é superior em intelecto, planejamento, raciocínio e dedução. Até o chá após o veredicto de inocência é semelhante ao mostrado no espetáculo teatral, demonstrando que apesar da rivalidade, os dois senhores são impecáveis cavalheiros.

    Andrew Scott é brilhante em sua atuação, e rouba a cena toda vez que a câmera o enquadra. Seu vilão egocêntrico é cômico, sem apelar para piadas, e consegue ser sexy sem afetação ou menção a nudez, muito por causa dos seus trejeitos andrógenos. Para o público, é impossível não simpatizar com ele, vide a decisão do júri. Ele é genial, inteligente, influente: em suma, o resumo do que todo ser humano gostaria de ser.

    A personagem Molly evidencia com toda a sua típica simplicidade como Sherlock está temeroso ao sentir que o seu fim está próximo. As coisas só pioram com a reação de uma das crianças sequestradas pelos capangas de Jim. A possibilidade dele estar envolvido com o rapto dos menores leva as autoridades superiores a Lestrade efetuarem o cárcere do investigador amador. Ao tentar defender a honra do amigo, John vai às vias de fato com um chefe da inteligência britânica, para logo após isso, fugir dos policiais com Sherlock a tira colo.

    A manobra Richard Brooks é um ardil perfeito: inverter o jogo para culpar Sherlock é brilhante. A possibilidade de envolvimento de Mycroft torna tudo ainda mais dramático. Sherlock não tem medo de se sujar, e afirma veementemente a Moriarty que, mesmo estando do lado dos anjos, ele não é um deles. A despedida de John ao amigo e cúmplice é a mais emocionante já registrada em vídeo de toda a historiografia audiovisual da dupla Holmes/Watson. É arrepiante, carregada de sentimento, e tem em si um desfecho fascinante, para poucos instantes antes dos créditos finais, apresentar um fio de esperança.

  • Review | Sherlock S02 E02 – The Hounds of Baskerville

    Review | Sherlock S02 E02 – The Hounds of Baskerville

    the_hounds_of_baskervilleO episódio inicia grandioso, dando mostras em flashback do passado do clã ligado à figura canina, remetendo aí início do clássico primeiro filme de Basil Rathbone. A direção de Paul McGuigan varia entre o reverencial e o absolutamente novo e atual. Quando pressionado, Sherlock solta verdades e impropérios nada agradáveis relacionados quase sempre aos parceiros sexuais dos seus chegados, o que levanta para eles, a possibilidade de o Detetive nunca estar bem com a própria sexualidade, um equívoco enorme da parte deles, visto que Holmes faz questão de não ter quase nada de libido ativa, ao menos a olhos vistos.

    A reportagem documental, substituindo o relato escrito do manuscrito original, é um artifício interessante e explicativo, sem apelar para o didatismo forçado. Sherlock resolve destrinchar o perfil do cliente, Henry Knight (Russell Tovey) e John o reprime, pedindo para que não se exibisse, e de pronto é respondido por ele: “É isso que nós fazemos”.

    Martin Freeman melhora cada vez mais, sem ele a boa atuação de Benedict Cumberbatch jamais seria notada, ele é pó autêntico “Boswell”. Sherlock fisga Fletcher, um guia turístico local que vira o grande cão, através do orgulho bobo do rapaz, desmerecendo seu discurso, e o menino prontamente mostra o gesso com a marca da enorme pegada como prova factual. A dupla efetua um sem número de carteiradas para adentrar a base experimental Baskerville. Os paralelos e reinvenções dos personagens da novela são muito curiosos e interessantes: Stapleton, Mortimer, Barrymore, cada um tem grande significância na mensagem final.

    O roteiro de Mark Gatiss cobre inclusive os pontos óbvios do romance, tornando a história mais crível e diferenciada das outras versões. A temeridade que acomete Holmes após ver a criatura é impressionante, especialmente pelo fato dele ter descartado o impossível, e assim, ter encontrado a verdade. Sherlock que sempre se manteve afastado dos sentimentos, como o medo, treme ao falar do monstro. A possibilidade de ele estar sob efeito de alguma droga é descartado, a esta altura evidentemente, com uma demonstração dos seus dotes detetivescos, afiados mesmo nesse momento difícil.

    Tudo no episódio remete aos signos de um filme de terror: o suspense, as vítimas ensaguentadas, a criatura misteriosa. O contraste entre a modernidade dos laboratórios, sempre asseados, e a figura bestial medieval compõem um cenário perfeito. A verdadeira monstruosidade se manifesta como uma arma química, apropriação intelectual esta das mais bem pensadas, que tornam todo o conto em algo realmente temível. O trauma infantil impingido a Henry evolui e causa uma repressão nas memórias do jovem contratante, alterando seu discurso para algo fantasioso. A alucinação da névoa faz Sherlock enxergar no vilão o rosto de Jim Moriarty, o que já prepara o campo para o episódio final evidenciando quais são os reais temores do detetive consultor.

  • Resenha | Lugar Nenhum – Neil Gaiman (1)

    Resenha | Lugar Nenhum – Neil Gaiman (1)

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    No começo da carreira que o tornaria famoso – quando a obra Sandman ainda estava sendo publicada, mas ele ainda não era conhecido por suas outras obras fora dos quadrinhos -, o promissor Neil Gaiman seria contratado pela produtora britânica de TV BBC para ser roteirizar uma serie chamada Lugar nenhum, que estreou em 1996. Mas não é sobre essa obra que falaremos hoje.

    A série contou com restrições de orçamento e alguns enganos na produção, que podem ser notados principalmente pela qualidade da direção de fotografia, que não tem uma iluminação boa. A qualidade da filmagem também não é boa e os efeitos são feitos com carinho, mas sem dinheiro. Por causa disso, Neil Gaiman não gostou do resultado da série e sempre achou que poderia fazer algo melhor. E ele de fato fez, recriando a mesma obra em outras mídias, como HQs, e lançando também um livro, em 1996 (que chegou ao Brasil em 2005).

    O fato de querer criar uma história digna do que ele imaginou e bem melhor do que o modo como a série foi feita fez com que Neil Gaiman escrevesse o seu primeiro livro, incrivelmente adaptado do roteiro que ele tinha desenvolvido na série, que pouco tempo depois foi publicado com o nome também de Lugar nenhum.

    O livro demostra o estilo literário de Neil Gaiman, muito parecido com o que ele usa em Deuses americanos e em outras obras. Podemos ver a falta de informação sobre alguns elementos da história, como em muitos contos de fantasia clássicos. Pelo fato de não ser explicado o porquê e o como, em muitos momentos a história abre para o próprio leitor imaginar o passado de lugares e personagens, o que acaba tornando bem mais fácil de criar cenários interessantes para o livro. Esse recurso é muito bem utilizado no livro porque normalmente essa é a realidade de quem vive em uma cidade (porque, por exemplo, não sabemos quem é a pessoa que tem um nome em uma placa ou local da cidade), mas ele extrapola esse desconhecimento para conceitos de historias fantásticas. Por exemplo, existe um distrito em Londres chamado Angel Islington (Anjo Islington), então Neil Gaiman extrapola o nome do lugar e diz que realmente existe um anjo chamado Islington, e depois revela pela metade detalhes sobre o passado dele em pequenas conversas entre os personagens. Isso é bem usado para passar o clima de uma sociedade dentro de outra sociedade.

    O livro também conta com um o clima bem punk inglês, porque Neil Gaiman descreve tudo de forma bem suja, com um visual sempre em farrapos e um clima bem “do it yourself“. A obra adquire uma identidade única (uma fantasia punk), além do leitor sempre ficar imaginando o visual da protagonista de forma especial, já que ela é uma gracinha.

    Outra coisa a se destacar é o trabalho de usar o próprio ambiente de Londres, que tem milhares de referências locais muito legais – até porque Neil Gaiman é inglês. Além de já estar acostumado com o ambiente por ser natural da Inglaterra, ele faz um ótimo trabalho criando ainda mais conteúdo com esses ambientes, fazendo brincadeiras e trocadilhos com nomes de lugares e personagens da cidade, e dando um background que eu não sei se são contos malucos e lendas urbanas londrinas, ou se ele tirou tudo da cabeça dele mesmo. Isso tudo para transformar todos os lugares (isso mesmo, os lugares) em personagens interessantes, imagine os personagens normais…

    São legais as mensagens que o livro passa também: a existência de uma sociedade dentro de um sociedade, de pessoas esquecidas, porque simplesmente é mais conveniente esquecer essas pessoas. Mas, apesar de tudo, por eles serem esquecidos, eles acabam sendo mais livres do que as pessoas que vivem na Londres de cima, onde todos são presos aos seus itens de consumismo, ou a vidas que eles não conseguem largar ou se adaptar, como era o personagem principal. A história chama o leitor a refletir mais sobre o mundo à sua volta, mais localmente, e sobre suas histórias de certa forma esquecidas ou que fazemos questão de não saber.

    Quanto aos personagens, temos que o principal é o que representa o personagem que guia o leitor da melhor forma possível nesse universo. O personagem principal carece de uma personalidade mais forte, mas ele foi feito para representar o londrino médio, o leitor do livro, então não podia ser alguém muito diferente do normal. Ele tem algumas características que o tornam diferente das pessoas comuns, mas só dando a ideia de que algo o diferencia e que por isso ele vai entrar na história. Os personagens restantes são personificações de lugares ou de ideias, e eles são tão marcantes quanto pensamos que eles sejam, já que Neil Gaiman deixa muito da personalidade deles para que o leitor imagine.

    Esse livro tem uma história muito bem desenvolvida, e tudo se acerta de uma forma bem mais natural do que em outras obras de Neil Gaiman, como Deuses americanos. Como este é o primeiro livro de Neil Gaiman, em resumo, Lugar Nenhum é mais obrigatório do que outras obras do autor – em minha opinião, claro.

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    Texto de autoria de Psycho Mantys.