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  • Crítica | As Mil e Uma Noites: Volume 3, o Encantado

    Crítica | As Mil e Uma Noites: Volume 3, o Encantado

    Sobre a primorosa edição de O Idiota, de Fyodor Dostoiévski, pela editora Wordsworth (numa homenagem direta pela instituição ao poeta inglês), a estudiosa literária Agnès Cardinal alega com graça e razão pontuais que o mestre russo, como todos os escritores da escola realista de ficção, esforçava-se para ancorar suas obras nos eventos significativos da vida contemporânea. Deve-se celebrar, por exemplo, esse tal esmero dos filmes do alemão Wim Wenders, talvez o agente mais ferrenho desta modernidade subversiva a habituar-nos a verdadeira “rede de transformações” que foi e nos apresentou o Cinema da segunda metade do século XX, reflexo do que acontecia do lado de cá das telas; dessa ótica subversiva extraída da realidade. No questionamento das possibilidades, planta-se a semente para a Hipótese Expressionista sentir-se solta, pulular e criar um universo aonde nesta nova zona dos sonhos – neste novo e inesgotável manancial de interpretações – irá se revirar, incubar, e na defesa do lugarejo onde podem conviver caos e paz, desabrochar enfim todas as suas expressões, tão cruéis à monocromia dos fatos jornalísticos.

    Essa intervenção à realidade das coisas já passou pelo próprio Wenders, quando o mesmo injetou espiritualidade no mundano em Asas do Desejo, por John Cassavetes na obra-prima Noite de Estreia (deslocando os bastidores do teatro rumo ao próprio palco), e no caso d’As Mil e Uma Noites, a criação já foi feita e muito bem pavimentada no imaginário popular mundial; restou a Miguel Gomes recriá-la, desta vez em Portugal, não mais na Arábia – do século III, para o século XXI, d.C. O homem e sua câmera se apropriam, assim, da liberdade do volver, de um recurso anistórico para recriar e repintar apenas o que ainda importa hoje, ontem e sempre, numa manobra tão nostálgica quanto profética, e desprender suas raízes das areias do tempo, do espaço e da técnica. Se falta sobriedade, lhe sobra paixão.

    O cineasta português conseguiu o que Terry Gilliam (Brazil, Os Doze Macacos) é incapaz de concretizar numa até então impossível versão de outro clássico da literatura, Dom Quixote de La Mancha: Recriar o recriado, sob o preço do que de caudatário pode haver numa grande liberdade de expressão irresistível, ao artista, apto a articular suas noções e versões e ebulições em prol do seu olhar; do nosso olhar, e acima de tudo, de um novo olhar. Esse é o esforço mais primário desta trilogia, e principalmente, deste terceiro volume, O Encantado: Estimular o olhar. E a troco do quê?

    Pois bem: A trilogia inteira enquanto arco fechado de narração, aquém de sentido tal qual a ação do vento, do mar, é ficção maquiada, explicitamente artificial e mentirosa quando suas cores e movimentos explodem na tela. Nada, no começo, pede pelo sentido que não tem, deixando-se guiar por um diegético auto-suficiente de formação cinematográfica, longe do que sentimos ao lermos, por exemplo, a história do Mercador e o Gênio, talvez o mais divertido dos contos de Xerazáde; mãe de um surrealismo literário imbatível, típico de tão seu, e que no Cinema Gomes traduz ao público como anárquico tendo em O Encantado seu melhor desenlace enquanto experiência. Mas note, nesse fechamento de trilogia, como o elemento fantástico de um simples rito musical na praia, diferente dos outros dois filmes, acha espaço para não rivalizar com o fator mundano (já abordado nesta crítica) de um Wenders, de um Cassavetes, caso assim fossem colocados frente a frente com a normalidade de um real não-banalizado. Uma excitação do olhar, de certo, e a troco de novas possibilidades e releituras do passado.

    Gomes, neste terceiro filme cheio de suas afetações e muito mais longo do que deveria ser, novamente, consegue entortar os braços do aceitável e do espetacular e fazer com que se abracem no equilíbrio entre extremos, enquanto o rei e sua contadora de histórias aparentemente entraram numa máquina do tempo e também se abraçam, sob efeito das sensações atemporais das histórias, numa roda-gigante à beira-mar. Pergunta: O(A) leitor(a) percebe a ambição de uma situação dessas? Percebe como a atmosfera intelectual e a encenação peculiar são imprescindíveis para dar credibilidade ao espectador no encaixe dantesco de um século dentro do outro, só para dar vazão a uma nova lógica (ou falta de lógica) artística? Para reverter os arranjos do filme, chega uma hora em que a ficção teatralizada dá adeus e as cores frias do mundo dos telejornais ganham a tela, cedo ou tarde. O cineasta, então, parece perder a esperança no brilho de suas noites – ou será que o mundo, quando viúvo das artes, abre-se para o profano e nada mais?

    Apesar do êxito interpretativo conseguido, afinal, pela trilogia, é no último filme que, ao refletir sobre o que veio antes, sente-se (mais e mais) a falta de uma linha de raciocínio mais forte à suportar a elevadíssima carga de significados apresentados, a esmo, numa ebulição estética destituída da coerência fabulesca não imprescindível, mas que torna-se urgente a partir de certo ponto de O Encantado. Gomes merece aplausos, justiça seja feita, pela simples aproximação com belas obras feito Cemitério do Esplendor, de 2015, que carregam dimensões que dialogam como se, entre elas, o conflito e a estranheza só existissem quando invocados pela alma viva desses filmes. Um Cinema de alívio (onde a poesia como é habitual na carreira de Gomes pede licença à política), tanto o filipino quanto o português, incorporados em nacionalidade e nas suas triunfantes identidades particulares, sentidas em cada plano e emponderadas na discrição de um cosmos atemporal e quase paralelo ao denominado “real”. Uma viagem realisticamente mitológica durante Mil e Uma Noites contemporâneas de frescor exagerado, sim, mas instigantes como poucas, pelo menos no Cinema recente.

     

  • Crítica | As Mil e Uma Noites: Volume 2, o Desolado

    Crítica | As Mil e Uma Noites: Volume 2, o Desolado

    Em 2005, a Editora Globo fez a primeira tradução direta do árabe para o português do lendário e multi-interpretativo repertório de Xerazade, buscando no tratamento das histórias o ritmo, o sabor e o poder da palavra contido na prosa literária, fonte de inspiração para o alfa, e o ômega, de tempos não tão remotos, como Machado de Assis, Allan Poe e Voltaire, entre outros grandes escritores. Um trabalho que organizava as sensações de uma gema bruta para outro patamar de entendimento, muito antes de Miguel Gomes sentir a necessidade de colocar na tela uma megalomania cuja riqueza imaginativa sempre foi seu orgulho e soberana justificativa prosaica, e universalmente histórica.

    Eis que, nisso, brota a necessidade do artista contemporâneo, em 2015, de revisitar esse mundo, incorporá-lo, e assim explorá-lo de um jeito bem mais dinâmico e matizado nas composições e alegorias visuais à trilogia que esculpe, com fins pura e letargicamente modernistas e fotográficos, logo após uma primeira parte confusa e mais apressada no toque. Miguel Gomes recorre então no segundo volume de As Mil e uma Noites à uma racionalização do surrealismo pragmático e mal-desenvolvido de antes, e faz deste O Desolado uma busca mais ambiciosa ainda, portanto cara ao artista: Gomes não estava mais tão interessado pela forma, mas finalmente, pelo 1) elaborar dos blocos distintos de dados visuais de cada história, pela 2) caça à uma identidade que reúna todo esses dados numa conjuntura própria, e 3) pela percepção de como tudo pode se encaixar na sistemática que se harmoniza entre o mostrar, e o sugerir do potencial não literário, mas cinematográfico por sua vez das situações, em voga, examinadas pelo artista como se não conseguissem escapar de um laboratório de emoções.

    Para isso, Gomes aposta (também) no poderio da palavra, como na excessivamente longa cena da tribuna cheia de criaturas fantásticas, para só assim conseguir descrever, no núcleo da intenção da abordagem, um universo fragmentado entre certeza, e dúvida – agora sim, bem traduzido pela imagem. Um ‘Jardim das Delícias Terrenas’, o mais célebre e famoso quadro de Bosch cuja essência está lá, em cada pincelada, no paralelo (que só a imagem bem contada dá conta) entre ordem e caos, sempre! Assim, no desenrolar da desolação dos homens, essa desolação se mostra, primeiramente, do homem para com sua própria imagem, decadente, e em seguida, do homem para com o mundo, desgovernado a ponto de carecer então de uma lógica, de um esquema prismático não para esvaziar, encher ou transformar, mas apenas para aproximar os sentidos das histórias de Xerazade para nós, seres de outro século, e oferecer para os arquétipos de manifestação clássica daquela época, a culminação irregular, moderna e impressionista de todos eles em um só emaranhado; em uma só direção inteligente.

    O cineasta português continua enxergando “As Mil e Uma Noites” como cria irredutível de um surrealismo quase circense, mas que aqui, pelo uso mais equilibrado da dialética e da harmonia um pouco mais consciente entre gêneros (drama, comédia, suspense), se apresenta de modo bem-desenvolvido, ainda que inofensivo quanto à mídia oposta. Mesmo assim, além de ser uma boa pedida, essa segunda parte da trilogia de Gomes, como na maioria das trilogias do Cinema, pode ser julgada de imediato como superior ao antes (O Inquieto) e ao depois (O Encantado), tal o “meio do caminho” que representa bem a conexão do começo ao fim. Sobretudo, vale afirmar como os três volumes da adaptação árabe ocupam o mesmo patamar crítico, todos sempre tomando partido de qualidades diferentes, tatos paradoxais, é claro, mas no olhar da trilogia como unidade, integram e enriquem-se na fluidez estruturalmente épica do conjunto.