Vermelho é a cor mais quente. Cor que irriga os campos de neve de uma região inóspita, mas repleta daquela “sujeira debaixo do tapete” que, no Brasil, não temos vergonha de pendurar no varal. Aqui, e não só aqui, corrupção já é clichê, furar a fila também; a violência então é figurinha, se tornou banal (exportada e importada). Ontem mesmo, já cronicando, subi num ônibus e pedi licença pra sentar ao lado de uma senhora, o que fez algumas pessoas prestarem atenção em mim. Pedir licença é o que surpreende por aqui, fazer o que, mas num contexto social nórdico, onde cultural e teoricamente todos são mais educados, o sangue explode junto d’um choque incomparável ao vê-lo.
É incomum, é gráfico e gritante, por lá e também em nível universal, já que todos ainda carregamos uma consciência de certo e errado ao presenciar certas cenas. Enquanto Cláudio de Assis filma A Febre do Rato com aquele “mais do mesmo” do Cinema nacional, tudo o que a neve esconde nas veredas do leste europeu tem impacto e mistério e atração triplicados. O Cidadão do Ano brinca com essa “ética” do impacto cultural diante do inesperado; do escândalo que depende da cultura da plateia para acontecer, lembrando a todos que a arte tem responsabilidades apenas consigo mesma.
Um filme livre, absolvido de culpa e cujo vermelho e branco são cortados pelo azul da frieza emocional, num mundo gélido, glacial e deliciosamente contemporâneo, na essência otimista que a palavra carrega. A linhagem de Onde os Fracos Não Têm Vez e Drive se expande a cada ano, com um homem, por X razão (sem spoilers) decidindo ou precisando fazer justiça com mãos pesadas e ombros ainda mais! Se em Leviatã ou no ótimo Era Uma Vez em Anatólia é a injustiça que alimenta a barbárie moral entre os homens, O Cidadão do Ano atinge o nível de identificação global que o ambicioso Um Toque de Pecado alcança, indo além dos valores da região, tanto chinesa quanto sueca, e mostrando a vida como ela é: tempestuosa e competitiva à todos nós, hoje em dia.
Uma história tratada como se baseada em fatos reais, na linha entre a ficção e seu primo pobre: O tal do real. Toda noite, quando o branco escurece e Nils, um simples trabalhador montanhês, levanta da sua cama e busca vingança pela morte de seu filho, o Cinema agradece pela bela forma que o filme retrata as emoções que o regem, e nos regem durante a projeção. Nós podemos sentir tudo que o injustiçado sente, seja deixando a esposa tranquila nos lençóis de madrugada, seja em seu rosto duro, ou melhor: Endurecido! Um principiante na arte do “olho por olho, filho por filho”, Nils não tem um mestre ninja pra lhe ensinar alguns truques, nem superpoderes ou a mira (e o charme) de Clint Eastwood. Ele tem mais. Muito mais.
Nils tem a ira de um pai órfão de filho que, por onde passa, a mágoa se materializa em água. Água vermelha e, logo depois, água de cachoeira, nas cataratas que a natureza não congela, para que a natureza de um pai sinta o gosto puro de retaliação! Mas o diretor Hans Moland não faz questão de pesar seu filme na atuação de Stellan Skarsgard, talvez um dos melhores atores vivos; um monstro indiscutível em cena. O filme resiste a ser um western spaghetti na neve, apostando sua estrutura dinâmica de drama e suspense numa espiral de causas e registros culturais e regionais, até chegar ao clímax que a história merece, ainda que dominado por um homem e a violência imprevisível que ele acarretou.
Mas vai dizer que não tem uma pitada dos Coen, aqui? O humor quase surreal e a ação parecem ser inerentes a trama, surgindo do absurdo moral de quem vive a violência e a encara como um negócio; no caso, a máfia. É tanto na crueza gélida, quanto na falta de cinismo, ou seja no apelo elegante pelo explícito onde tudo é banhado e ocorre, que o filme orgulhosamente mostra sua cara, ostentando equilíbrio e sem filtros para extrair a nossa satisfação até o último minuto. Porque, assim como Nils, o Cinema também chegou muito longe, só que ainda tem muito a perder. Felizmente, O Cidadão do Ano reintegra à arte a posse da realidade, como todo bom filme faz, resultando num universo próprio, ainda que real, onde a tríplice das cores que o permeiam ditam o que sentimos, e o que podemos discutir depois dos créditos finais.