Tag: suspense

  • Crítica | A Rosa Venenosa

    Crítica | A Rosa Venenosa

    Filme de George Gallo, A Rosa Venenosa reúne elementos de um noir moderno ambientado no ano de 1978, apresentando seu protagonista Carson Phillips como um homem de muitos vícios e afeito a luxúrias. O personagem de John Travolta, um investigador particular de Los Angeles, se vê obrigado por um caso a mergulhar em um antigo problema pessoal que logo desemboca em uma trama de assassinatos e eventos estranhos.

    O filme reúne vários dos clichês do noir, protagonista mal encarado, anti-herói e sem perspectivas, que se vê abordado por uma mulher atraente pedindo um favor ao detetive, tudo isso situado em cenários sujos e uma missão envolvendo mágoas do passado repleta de ambiguidades.

    A tentativa de fortalecer a aura de suspense esbarra na falta de sutileza do filme. Gallo apresenta as curvas de suspense de maneira brusca. As atuações não ajudam, ainda que o maior problema claramente seja textual e não dramatúrgico. Os personagens são bidimensionais, fora Carson, o que se agrava pelo fato do elenco reunir nomes como Morgan Freeman, Robert Patrick, Famke Janssen, Brendan Fraser, Peter Stormare etc.

    As cenas de ação são genéricas e os vilões histriônicos, caricatos e nada convincentes. A persona do médico mau que Fraser faz parece uma paródia de vilão de filmes do 007, tom esse que não tem nada haver com o restante da atmosfera de A Rosa Venenosa. A ideia e intenção do filme é ótima, mas a execução é bastante problemática, falta estofo à realização tanto na direção quanto em roteiro, resultando em última análise em mais um filme com elementos do gênero policial que permeiam o horário sabatino do Super Cine na Rede Globo.

  • Resenha | As Sobreviventes – Riley Sager

    Resenha | As Sobreviventes – Riley Sager

    O subgênero do terror conhecido como slasher foi fundamentado como um estilo a partir da década de 1970 com dois grandes clássicos do terror: O Massacre da Serra Elétrica (1974), de Tobe Hooper, e Halloween (1978), de John Carpenter. A tradução do verbo slash, retalhar, cortar, apresentam pistas do subgênero, fundamentado por um assassino serial, com ou sem máscara, que elimina um grupo de pessoas com, provavelmente, poucos sobreviventes no final.

    Evidentemente, há registros anteriores a tais marcos como Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, porém, as estruturas analíticas em torno do subgênero não haviam sido desenvolvidas. Dessa forma, os filmes citados permanecem como um dos primeiros fundadores e, posteriormente, a década de 80 daria vazão a grandes séries slasher como A Hora do Pesadelo e Sexta-Feira 13 e, na década seguinte, com Pânico.

    Escrito por Todd Ritter sob pseudônimo de Riley Sager, As Sobreviventes, lançado pela Editora Gutenberg, retoma a tradição dos slasher apresentando um depois dos massacres vistos em diversos filmes. A trama é centrada na jovem Quincy Carpenter, a única sobrevivente de um massacre terrível. Ao lado de outras duas sobreviventes de situações similares, ganharam a alcunha de sobreviventes pela mídia. Mas Quincy é a única que guarda poucas recordações de sua noite fatídica, até que novas informações trazem novas lembranças e, finalmente, a verdade.

    Sager desenvolve certo ineditismo narrativo ao apresentar um momento posterior após os filmes de horror. Compondo uma narrativa dividida entre primeira pessoa – narrada por Quincy no presente – e terceira – ao apresentar, aos poucos, os fatos acontecidos no massacre que transformou a personagem em uma sobrevivente – a tensão se desenvolve a cada capítulo. Sendo uma obra oriunda do gênero slasher, é como se, a cada nova revelação, fosse iminente a aparição de um homem mascarado e uma faca afiada. Um tipo de leitura fluída que ganha o status de page-turner, uma obra que gera intensa curiosidade por parte do leitor que o faz ler capítulo após capítulo, até o final.

    Ao selecionar uma personagem central como Quincy, uma sobrevivente de um massacre brutal, o autor é capaz, mesmo em uma trama mais próxima do suspense, introduzir uma psicologia profunda na garota diante de uma situação-limite com alto índice de trauma. Cada uma das sobreviventes reagiram a sua maneira com seu próprio passado. No caso da garota, o bloqueio neurológico não só funciona como afastamento da situação como garante ao leitor descobrir junto com a personagem os novos fatos sobre o dia fatídico.

    Se os filmes sempre pontuam as personagens focadas em um tempo determinado, um final de semana, uma festa comemorativa, a narrativa expande esse tempo, demonstrando que, apesar da grande violência, tem-se um cotidiano normal de alguém que procura recomeçar a vida, apesar do trauma vivido e da característica exploração midiática, comum aos acontecimentos e escândalos de grande repercussão.

    Um evidente amante do gênero, Sager transpõe com qualidade as bases do subgênero à sua ficção. Dessa forma, comum ao subgênero, o desenlace traz uma revelação final com reviravoltas, como manda a regra sobre a revelação do assassino, nem sempre tão imaginativa assim. Porém, os fatos são coerentes com a história, ainda que seja interessante pontuar que o leitor que não se sente confortável com o estilo slasher, talvez se incomode com o desfecho. Porém, mesmo nele, há uma interessante discussão sobre a adoração que muitos tem sobre tais massacres reais, como, por exemplo, o sempre presente interesse de muitos a respeito de famosos assassinos seriais.

    Com o apoio da leitura atenta de Stephen King, mestre que elogiou a obra como um dos thrillers do ano, As Sobreviventes, eleito uma das melhores leituras de julho no Goodreads, é uma interessante narrativa de suspense que se distância um pouco do comum, alinhando na literatura um dos subgêneros mais queridos dos filmes de terror.

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  • Crítica | Quando as Luzes Se Apagam

    Crítica | Quando as Luzes Se Apagam

    imagesSabe quando você tenta apagar aquele borrão na roupa, e acaba sujando mais? Quando as Luzes se Apagam, de David F. Sandberg, também tenta nos assustar, mas tenta tanto que por isso mesmo falha, longe do caráter experimental de um A Bruxa de Blair, o que seria bem-vindo demais aqui; Blair, vale afirmar, sendo o último grande filme de terror americano, brincando com nossas noções de perigo e instintos naturais mais básicos de uma forma realmente autêntica. A psicologia nos diz, e repete a cada sessão que não temos medo do escuro: Receamos o que pode estar escondido lá. A maioria das pessoas, pra não dizer todas teve medo de dormir sozinha, e algumas até pavor quando a única esperança de uma noite tranquila de sono, a luz do corredor, se apaga. Nós evoluímos, mas nossas paúras, não. Em caráter universal, tudo se adapta à região, mas certos gatilhos tão nossos continuam incorruptíveis de geração, à geração: Medo de bruxaria (Suspíria), do demônio (A Noite do Demônio), de fantasmas (Onibaba) ou da solidão (O Iluminado); calafrios tão inevitáveis quanto ódio e amor, iconicamente bem explorados na cadência inesquecível dos títulos mencionados acima, na licença de desenhar aqui uma certa harmonia histórica nos gêneros de horror, terror e suspense mundiais.

    Ok, então qual é a desse Quando as Luzes se Apagam, o longa, em pleno 2016, quando a realidade das coisas se mostrou mais aterrorizante que dois Chuckys montados nos ombros do Jason? Fica claro várias coisas (ironicamente) na projeção, mas principalmente uma: Como o terror que invade o ambiente doméstico provoca mais pânico que qualquer outra coisa, um pretexto imortalizado com O Exorcista e, recentemente, no regular O Homem das Trevas; se o horror dos ladrões que invadem a casa do “pobre cego” se constrói na subversão dos acontecimentos (o ceguinho não é tão impotente, como parecia), logo na primeira esquete de clubinho do terror que o filme habita, toda a desculpa que ele usa (e abusa) para nos botar medo é exposta como num dia de sol, e do jeito mais sem graça e vulgar possível, o que é pior. Assim, o filme ocupa o mesmo nível de quase tudo que M. Night Shyamalan fez desde O Sexto Sentido, já que A Visita, ótimo suspense de 2015 promoveu certa esperança.

    Subestimar a representação crescente do elemento que aterroriza que habita uma história sem pé, nem cabeça: Pecado mortal num filme mais fraco que a sua premissa – apague as luzes e uma mistura de Samara com Freddy Krueger aparece. Quando as Luzes se Apagam vem, aos trancos e barrancos, repleto de ecos do fantástico cinema de horror sul-coreano, incompatível pela qualidade com o que se faz hoje em Hollywood, arquétipos e esteriótipos que não pregam medo em ninguém, mais, são vomitados na tela sem nenhum preparo, ou cerimônia. Pior ainda é os personagens, perdidos numa atmosfera anti-climática, não acreditarem no começo na entidade que os perturba, mas mesmo assim manifestarem um medo que só se concretiza no final do filme, quando a coisa degringola de vez para uma sucessão deselegante e barulhenta de scare jumps, choro e aparições repentinas no escuro; tudo bem Supercine, ou igual aqueles vídeos com resolução 360p do YouTube. Uma tentativa inválida à beira do nonsense, com cenas que lembram Creepyshow 3, aquele terror meia-boca que só assustava crianças na década de 90. Triste.

    A melhor cena do longa oriundo do curta homônimo (e sem-graça) de 2014, surpreendentemente, vem da encenação artificial num microambiente mais parecido com um inferno neon, pontuado assim por objetos que os personagens usam no cenário cheio de manequins e sombras onde, certamente, algo irá no assustar – e assusta, num jumpscare óbvio, mas que nos faz lembrar como adoramos sentir medo, colocar a mãozinha na frente dos olhos e tudo mais… e é por isso que o filme inteiro falha, por ser um conjunto de situações onde sabemos que o pulo na cadeira, ou o grito da mulher é previsível, e portanto, não nos assusta. É como o monstro atrás de você avisar que vai te assustar- inútil, exceto se o monstro for uma ameaça pavorosa mesmo, o que não é o caso aqui, lógico, ou quando o terror é calcado tanto na imagem, quanto no som, afinal nenhum gênero consegue usufruir tão bem da capacidade audiovisual completa do Cinema tal aquele que arrepia a nossa espinha. Lembrou de Babadook, né?

     

  • Crítica | Demon

    Crítica | Demon

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    Galgando pela história dos gêneros cinematográficos, os filmes de terror tiveram um papel de extrema importância na afirmação popular do medo como objeto quase palpável, a favor de uma experiência válida para entender todas as veredas de uma arte, e não apenas as mais confortáveis. Mediante a eterna luta entre público e crítica, é do conhecimento geral da nação que poucas produções conseguiram atingir o respeito e a volúpia generalizada que o diretor William Friedkin conseguiu garantir a O Exorcista, o grande legado de sua exímia carreira de teoremas e provocações. A história da jovem menina, aos poucos possuída espiritualmente, só ganha força à medida que o gênero, e o cinema em geral, ganhou mais rapidez em produzir um sem-número de filmes de qualidade similares, tais que 40 anos depois continuam a tentar copiar (e até mesmo superar) o triunfo cultural e extra-tela de 1973.

    Uma nota histórica é válida: O Exorcista veio para formar e principalmente influenciar uma geração inteira de grandes nomes, mundo afora, que não titubeiam em reafirmar isso. Talvez a proeza do clássico se reside mais acolá, na importância maior do aprimoramento da arte, elitizado ou não, do que no debate de seu valor – para alguns discutível, para muitos absolutista. É por isso que, quando um filme como Demon, banalizado pelos próprios temas que tenta discutir (e não consegue, pois sua ficção e mitologias baseadas em símbolos do horror e suspense já não convencem há algum tempo) nasce e vem ao público, tentando fazer barulho como fez A Bruxa, de 2016 (um horror bem acima da média), já reconhece suas limitações, sua incapacidade de reciclar conceitos numa história fraca, e aposta no estilo de cinema tradicional mais previsível possível para não se comprometer demais, e passar vergonha depois, é claro.

    A surpresa, mesmo, e o que faz valer a pena de assistir a Demon vem só depois da metade do filme, antes lotado de diálogos bobos e expositivos que não chegam a lugar nenhum, quase, apenas estabelecendo contexto para as situações-chave do filme: uma visão fria e congelada de um inferno familiar (em parte, oriunda da graça de uma fotografia inteligente). Um filme que demora para explorar seu potencial, como praticamente todo terror dos anos 2000, vide exceções, tais como Martyrs, Atividade Paranormal, o sueco Deixa Ela Entrar ou o brasileiro A Encarnação do Demônio, do retumbante mestre Zé do Caixão.

    Porém, quando o tal demônio do título realmente se manifesta numa festa de casamento, com personagens saídos de algum dos sombrios filmes de Roman Polanski, um interessante e semi-desconfortável estudo de gênero começa a se formar, fluindo entre o drama, a comédia e o suspense de um filme que cresce, mas cresce às custas e à medida que aposta no poder da abordagem, ou seja, quando assume o experimentalismo formalista que o diretor Marcin Wrona propõe para uma história – de clima realmente frio, de dar calafrios – curiosa e muitas vezes religiosa e socialmente desafiadora – depende muito do tipo de espectador que você ainda é. Talvez seja esse o verdadeiro horror dos anos 2000: desafiar os valores da plateia que não se assusta mais com demônios ou banhos de sangue, mas ainda se escandaliza com a desvalorização de uma família ou cultura considerada imperturbável e eterna.

  • Review | The Following – 2ª Temporada

    Review | The Following – 2ª Temporada

    the-following-2a-temporadaEm um extra que acompanha a segunda temporada de The Following, lançado somente em DVD no país, assistimos ao painel da série da Comic Con, famosa convenção realizada em San Diego, Califórnia. O autor Kevin Williason fala com empolgação sobre o segundo ano da série e a inevitável expansão dos argumentos iniciais com maior profundidade nas personagens centrais.

    A afirmação é certeira no quesito modificação estrutural de sua narrativa. O segundo ano da série realiza um salto temporal de um ano após o desenlace visto na primeira temporada. Ryan Hardy (Kevin Bacon) está mais saudável do que sua postura entorpecida do primeiro ano, quando um assassinato ritualístico em um metro, realizado à memória de Joe Carroll, o coloca de novo na paranoia pelo serial killer.

    Ao lado de Caroll, surge outro vilão e os desdobramentos dos argumentos explorados anteriormente. A adoração pelo serial killer é tamanha a ponto de surgir um novo grupo de apoio. Diferentemente de sua seita, o grupo forma uma família real. Embora Caroll reunisse seus súditos de maneira familiar, Lili Gray, de fato, compõe uma família assassina, adotando órfãos desajustados e com potencial assassino.

    A estrutura narrativa mantém a vertente policial, porém voltada ao divertimento e ao uso excessivo de reviravoltas. A criação de uma personagem tão combativa como Caroll é interessante mas inverossímil, diminuindo a potência destruidora do assassino serial que, como o público nota desde a publicidade desta temporada, não só está vivo após sua simulada morte como desenvolveu um plano mirabolante para corroborar seu falecimento e viver no interior sem ser reconhecido.

    Tentando sobreviver em um mundo que o considera morto, Caroll deixa a persona de assassino serial de lado para se revelar um psicopata além de seu método inicial. A configuração romântica dos assassinatos de Poe é deixada de lado ao compreender que sua missão era pouca para seu gigantesco carisma. A religião entra em cena como um argumento básico para levá-lo a liderança de uma seita religiosa, um grupo pré-disposto a aceitar um líder que conduza ações ideológicas.

    Ao mesmo tempo que a série concerta problemas do ano anterior, melhorando a relação entre personagem, ela desenvolve outras situações críticas tão mal executadas como estas. Os erros e acertos se equilibram devido ao conflito maior, ainda centrado na perseguição de mocinho e bandido, porém a exploração da religiosidade beira a falta de criatividade temática. Ademais o grupo familiar de Gray é mais coeso e com maior base psicológica do que Caroll.

    O renascimento da personagem é, por si só, um clichê bobo que Williason realizou com competência em seus filmes de terror mas que, no gênero policial, é patético. Mais ousado seria explorar o séquito de Joe melhorando as falhas de seu plano em contraposição ao grupo de Gray. A série amplifica sua violência e destaca melhor os personagens centrais sem a visão maniqueísta de bem e mal, porém, para isso, desenvolve personagens de apoio para Hardy, como uma sobrinha formada na academia, além do suporte a Mike Weston auxiliando a credibilidade à caçada dos assassinos.

    Como na temporada anterior, o segundo ano é formado apenas por 16 episódios, um pedido de Kevin Bacon para não ficar longe da esposa Kyra Sedwick, a qual, na época, gravava a bem-sucedida The Closer. Talvez por um motivo um tanto egoísta, a produção de 16 episódios deu maior coesão para esta temporada que, mesmo entre erros e acertos, desenvolve uma boa progressão de expectativa e encerra mais um ciclo com um saldo mais positivo do que o ano anterior.

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  • Crítica | Sobre Meninos e Lobos

    Crítica | Sobre Meninos e Lobos

    Mystic

    Nós somos a nossa infância, e Clint Eastwood quer discutir isso. Mestre em pegar histórias de força descomunal e subverter essa força com sensibilidade à flor da pele, mas diferente de Ang Lee e outros, sabe equilibrar as energias que podem surgir de tramas humanas, investigativas de algum modo, e coloridas por elementos típicos de seu cinema. A paixão por um ideal e o espírito incansável dos lutadores da vida real, no caso, aqui, o esforço imprevisível na neblina de uma morte sem explicação, num mundo de homens, descrença e intolerância, se mostram nesta produção de 2003, uma pérola sobre o que move a espiral no coração de quem faz deste mundo um mundo frio e sem volta nas nossas ações, onde nem a mais antiga e forte amizade sobrevive diante de uma tragédia de proporções gerais, tendo nos enigmas do passado a chave para um futuro mais simples. Há um futuro esperando lá fora ou é a gente que o faz? O dia é da caça, é verdade, mas o predador tem sua hora.

    Quando um dos três amigos, num belo dia, entra num carro de desconhecidos, o estrago é feito. Para sempre. Os três jamais esquecem o momento, seguidos por ele, atormentados em lembranças revividas na prática, tal um carma constante que afeta muitos além do trio que fez assinar seus nomes na calçada de cimento fresco, na rua que nunca abandonaram. Sobre passado e reminiscências, sobre os pregos e acerca dos arames que nos atam e nos fazem ser quem somos, por fim, nas tangentes das relações que também nos constroem nas sarjetas por onde andamos, construímos nosso ser social, e escondemos quem realmente somos, abertos nesse nível apenas entre quatro paredes, nas confissões entre pessoas queridas que conhecem nossas páginas secretas. Um filme de detalhes, closes e olhares que quebram essas paredes e queimam essas páginas ao ar livre, culminando, ainda assim, em mistério traduzido na imagem de um rio, tamanha esperteza de um roteiro de gênero, no caso criminal. Rio escuro e profundo, feito a alma dos envolvidos no crime insondável de uma jovem moça, numa história de gato e rato impossível de desgrudar os olhos, e da suspeita de estar assistindo a um grande filme.

    E de grandes envolvidos. É difícil destacar quem quer que seja e ser justo ao mesmo tempo, a partir de uma atuação coletiva que beira a perfeição, com atores e atrizes num esplendor de sintonia, emaranhados na teia de seus personagens. É incrível como o caldo começa a borbulhar só no olhar, novamente, de Tim Robbins, sentado num bar durante uma partida de beisebol, esporte adorado por boa parte dos americanos. A câmera se aproxima do rosto de quem entrou naquele carro há anos atrás, e na ausência de palavras conseguimos ler na face do homem o universo que este carrega nos ombros, a dar margem ao choque de mundos que se dará logo após os minutos iniciais. Quem matou? E por quê? Tudo parece brotar do nada, num vórtice de consequências onde as causas importam bem mais, na tradição dos suspenses forjados a ferro e fogo que prezam mais a razão do crime que o crime em si, como em Pacto de Sangue (1944), Alma no Lodo (1931), O Falcão Maltês (1941), Sangue de Pantera (1942), A Lei dos Marginais (1961), Fúria Sanguinária (1949) e O Homem Errado (1956), de Hitchcock. Clássicos em que a vibração e atmosfera são muito similares com as de Meninos e Lobos.

    Nota-se, também, a maneira descompromissada e quase natural de como essa atmosfera é cozinhada: como se realizar um filme para Eastwood fosse cozinhar, juntando temperos para a receita ficar no ponto. Ponto de ebulição para a história explodir na tela e no rosto de Sean Penn, o pai da vítima cujo choque do presente releva o passado para construir o amanhã, por mais negro e desumano que hoje possa ser. Na expressão de desespero de Marcia Gay Harden, cúmplice de quem tem as mãos sujas de sangue, e na tensão de Kevin Bacon na busca pelo assassino: todos são interligados numa ciranda em torno da loucura e da lucidez num bairro de classe-média onde nada relevante poderia brotar, e por isso mesmo brota. A receita é simples, e para ser simples o mestre Eastwood traduz em suspense familiar, com suas típicas mãos de seda, a desconstrução de uma amizade, mas sem nos deixar desconfortáveis na remoção das peças do quebra-cabeça, exceto, é claro, quando chega a hora dessas cabeças começarem a rolar.

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  • Resenha | O Bicho-da-Seda – Robert Galbraith

    Resenha | O Bicho-da-Seda – Robert Galbraith

    Bicho da Seda - Robert Gaibraith - capa

    Quando o romancista Owen Quine desaparece, sua esposa procura o detetive particular Cormoran Strike. Inicialmente, ela pensa apenas que o marido se afastou por alguns dias — como fez antes — e quer que Strike o encontre e o leve para casa. Mas, à medida que investiga, fica claro para Strike que há mais no sumiço de Quine do que percebe a esposa.

    A curiosidade sobre o desenrolar de um novo caso de Cormoran Strike foi o que me levou à leitura. Assim como o primeiro livro, entretém sem ser uma obra excepcional. Seu principal trunfo é ter um protagonista e um parceiro – Strike e sua secretária Robin – interessantes o bastante para despertar a vontade de continuar acompanhando suas aventuras e desventuras.

    Mas O Bicho-da-Seda consegue superar seu antecessor. Livre da necessidade de reapresentar seus personagens, Galbraith/Rowling dedicou-se mais ao desenvolvimento da narrativa, o que resultou em um texto mais enxuto, sem tantos excessos e mais eficiente no quesito investigativo. A profusão de personagens envolvidos no mistério gera certa confusão no início, mas o bom desenvolvimento de cada um deles logo extingue qualquer dúvida.

    Não que o mote do primeiro livro não seja atrativo e envolvente mas, para quem é apaixonado por livros e tem interesse pelo mundo editorial, a premissa deste chama muito mais atenção. A futilidade do universo dos personagens em O Chamado do Cuco talvez afaste alguns leitores. Em contrapartida, mesmo sendo caricatural em alguns casos, até mesmo exagerada, a caracterização dos personagens consegue trazer o leitor para dentro da história.

    Diferente de um whodunit clássico, em que o leitor apenas acompanha as investigações conduzidas pelos personagens principais, Galbraith permite que aquele conheça os pensamentos de Robin e, principalmente, Strike. Se, por um lado, deixa os personagens ainda mais próximos de quem lê a obra, por outro gera um problema narrativo. Explico-me: um dos pilares do whodunit é fornecer ao leitor as mesmas informações a que o policial/investigador/detetive tem acesso. Assim, arma-se uma espécie de competição na qual quem lê a narrativa tenta matar a charada antes que a solução seja revelada pelo narrador no clímax do livro. Contudo, informar o que os personagens estão pensando antecipa (para os leitores policiais mais experientes) a resolução do mistério, anulando o clímax. Galbraith resolveu isso reduzindo o acesso aos pensamentos no último quarto do livro. Causa uma ligeira indignação deixar de saber o que até então era informação acessível. Não chega a estragar a narrativa mas gera um certo estranhamento.

    “Francamente, qualquer um que vá se matar por causa de uma resenha ruim não deve se meter a escrever um romance, para início de conversa.”
    Elizabeth Tassel, in O Bicho-da-Seda – Robert Galbraith (p.234)

    Se há mais alguma ressalva a ser feita é justamente a Strike. Galbraith escreve fazendo parecer que apenas ele tem bons palpites que acabam por se confirmar. Tem-se a impressão de que todos a seu redor — exceto Robin, lógico — são menos capazes ou, pelo menos, comprometidos em menor grau de intensidade com a solução do mistério, seguindo sempre o caminho – ou a pista – mais fácil, não necessariamente mais coerente com a situação.

    Mas esses pequenos defeitos são rapidamente esquecidos quando se pensa na trama envolvente e no retrato conciso e sarcástico do universo editorial inglês.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | À Procura

    Crítica | À Procura

    Sob planícies geladas, destacando a alva cor que a neve produz sobre o solo, À Procura remete a um estado de tranquilidade gerado por um ambiente onde quase não se percebe a ação humana. Exceto pela habitação isolada de seus personagens, indivíduos que vivem suas vidas normalmente dentro de casas modernas, ambiente que contrasta com o extremo frio que predomina do lado externo.

    A trama de À Procura envolve uma forte sensação de impotência por mostrar um pai – Mathew, vivido por Ryan Reynolds, num dos raros momentos em sua filmografia em que seus talentos são exibidos de modo conveniente – que tem suas habilidades de protetor postas à prova, fracassando de modo retumbante enquanto guardião de sua família. Na primeira conversa mais longa que seu personagem protagoniza, percebe-se um claro incômodo de quem está do outro lado da linha, forçando um sentimento de amor correspondido que não condiz com a realidade, ou com a expressão de Tina (Mireille Enos). A sensação de isolamento é novamente flagrada pela câmera num momento ainda mais evidente e palpável que o anterior.

    Um caso policial seria o motivo da discórdia, o que envolve um outro núcleo de personagens ligado à investigação criminal. O mistério quanto à origem do abismo emocional entre o antigo par logo é revelado, com informações gradativamente liberadas. Ao buscar Cass (Peyton Kennedy), Mathew se descuida, e a menina é raptada, ficando anos longe de seus parentes e tornando-se adulta, agora interpretada por Alexia Fast. O peso sobre as costas do pai é esmagador, mesmo após tantos anos. O que antes foi causado por um misto de displicência e ingenuidade provoca no emocional do sujeito uma culpa atroz, graças ao impacto gerado em seu cotidiano e, claro, nos seus sentimentos.

    O desenrolar das investigações encabeçadas por Nicole (Rosario Dawson) fazem os ecos do descuido soarem ainda mais amedrontadores na psiquê de Mathew ao ser indagado se ele teria estado em algum outro ponto antes do desparecimento de Cassandra. Mesmo a rotina dos inquéritos policiais o ofendem, uma vez que sua autoestima está abalada. O auxiliar de detetive, Jeffrey (Scott Speedman) tenta aplacar a situação, cavando ainda mais fundo dentro da cabeça do confuso pai.

    A câmera de Atom Egoyan registra o cativeiro de Cassandra, exibindo o narcisista raptor, que ao mesmo tempo que vigia sua presa, tem um espelho à sua frente, o símbolo da paranoia e da eterna autoanálise, o cuidado supremo para que nenhum detalhe fuja aos seus olhos, para que nenhum eventual acontecimento frustre seus planos. A motivação de Mika (Kevin Durand) é tão misteriosa quanto seu semblante, especialmente no que tange Cassandra. A moça é o intermediário entre uma intricada rede de exploração sexual infantil, e é ela quem faz contato com as crianças, ainda em sua cela moderna, no frio lugar exibido no começo da fita.

    A sociedade da informação se mune da alta tecnologia para praticar seus pecados morais, voltando os arquétipos pensados em 1984 por George Orwell para um dos aspectos mais podres da alma humana. Seis anos passados do incidente inicial, ambos os casos caem na rede de averiguação de Jeffrey, que logo trata de falar a mãe da menina, que enxerga na participação da filha uma monstruosidade quase tão grande quanto a que aquelas pessoas fizeram a ela, claro, culpando mais uma vez seu já débil marido.

    O viés escolhido pelo roteiro peca demais em sutileza, inserindo convenientemente os policiais no mesmo contexto dos marginais que praticam a rede de mentiras e que obviamente emboscam-nos. O mesmo se pode dizer das cenas de reencontro entre os parentes, há muito separados. Apesar de reafirmar a crueldade dos vilões, quase nada se acrescenta nos momentos de embate entre os justiceiros e os bandidos, fazendo o que deveria ser um intrigado suspense tornar-se uma desnecessária batalha maniqueísta.

    O modo como a história se fecha apresenta uma estranha sensação de que finalmente os eventos voltarão ao normal, apesar do número crescente de mortes. Além disso, a resolução é bastante estranha, como se tentasse emular a capacidade de pensamento dos que arquitetaram todo o circo emocional ao redor do rapto de Cassandra. Como em Sem Evidências, Egoyan tem em mãos uma premissa muito boa, mas apresenta uma condução equivocada, que se enrola nas próprias regras dramáticas que ele engendra.

  • Crítica | Virgínia (2011)

    Crítica | Virgínia (2011)

    A narrativa simples, cortada por uma narração e por estética típica dos filmes de terror feitos para o público juvenil, esconde uma análise sobre a decadência humana e a pretensão de espírito. Val Kilmer vive Hall Baltimore, um escritor especialista na temática de bruxas, mas que está com a sua carreira em declínio. Durante o tour de seu novo livro, ele chega a uma pequena cidade interiorana, sofrendo as agruras da fama, que fugiu de si, e as baixas vendas de seu novo produto.

    Movido por um instinto niilista e depressivo, Hall visita o que seria uma casa de Edgar Allan Poe, jogando vinho sobre o brasão do poeta e contista, revelando um ressentimento sobre a dificuldade de manter-se ativo e de produzir o próprio sustento através da venda de livros. Após tentar afogar as próprias mágoas na bebida e discutir com sua esposa, Hall decide atravessar a parte arbórea do lugarejo, encontrando, então, uma jovem e bela mulher chamada V. (Ellen Fanning), cuja cor alva destoa de todo o cenário acinzentado. O trabalho da fotografia exibe diferenciação de sentimentos através das cores que se sobressaem no ambiente, dominado por tons de grafite.

    Neste novo momento da carreira, Francis Ford Coppolla parece querer explorar emoções diversas, partes da alma humana normalmente ignoradas pelo cinemão. Ele se vale de estrelas da indústria para contar essas histórias – com Val Kilmer neste, Tim Roth em Velha Juventude e Joaquin Phoenix em Tetro – e, claro, com um orçamento irrisório, especialmente se comparado aos momentos áureos de sua carreira. Em Tetro, o baixo preço não chega a ser um problema, mas como, nesta obra, trata-se de uma história de terror, o risco da fita parecer trash é enorme, o que faz relembrar-nos dos primeiros trabalhos do realizador, como Demência 13.

    A crise econômica pela qual Baltimore sofre faz com ele passeie por seu inconsciente, tendo fantasias que se confundem com a realidade, em uma imaginação onde interage com situações espinhosas, como assassinatos, crimes envolvendo crianças, e com seu mentor, Poe (Ben Chaplin). Ao despertar, é tomado por uma mórbida curiosidade de procurar o delegado da cidade, Bobby La Grange (Bruce Dern), atrás de informações de um assassinato que acabou de acontecer. Seu motor é o tédio unido à vontade de escapar de sua própria vida. É em meio a uma conversa com Bobby que ele “tem” uma ideia para um novo livro, agindo de modo desesperado, se munindo do argumento do idoso para produzir uma sinopse de história de vampiros.

    Coppolla, nas cenas em que o escritor retorna ao mundo fantástico, prossegue com uma diferenciada abordagem, que até tenta se valer de uma criatividade narrativa, mas que esbarra em uma tosca realização, deixando de lado o que deveria ser um pedaço repleto de dualidade e dramaticidade para perder força, tornando, inclusive, digno de risos.

    Próxima do final, a temática começa a flertar com a comédia, especialmente quando o escritor adentra o mundo do líder de uma seita de góticos e satanistas chamado Flamingo (Alden Ehrenreich), que, com suas maquiagens esbranquiçadas e vestuário de couro, revela uma volúpia pela obscuridade da alma humana. Todo o arcabouço ideológico ligado ao ocultismo e ao mistério do assassinato esbarra na vontade que Virgínia tem em ser um filme de deboche, uma caricatura de muitos filmes slasher dos anos 90, usando um pretensioso protagonista para mostrar que, caso ele merecesse, nem mesmo o seu enorme ego o livraria de uma vida medíocre.

    A persona de Hall Baltimore faz, às vezes, de seu realizador, que em determinado momento da carreira entrou também em descenso, conseguindo posteriormente se reinventar, mas que, neste, exibe quase sempre vaidade e uma autorreflexão mal urdida.

  • Crítica | Amantes Eternos

    Crítica | Amantes Eternos

    Os filmes de Jim Jarmusch têm um gosto de improviso, de um autodidatismo irresistível; uma liberdade que começa com apelido de amadora, libertina, se o início não é dos melhores, rumo ao selo individual de um Cinema autoral, como já o é, unificado com o registro de uma realidade em que Jarmusch parece ligar sua câmera de repente e capturar apenas o que for indiscutivelmente real nos mundos internos de cada um. Realidades encenadas para resolver o caos “que o mundo tem de sobra para resolver no momento”, como de fato é apontado pela persona de John Hurt à frente de Tilda Swinton, enquanto o irmão de Thor (Tom Hiddleston) em Os Vingadores não busca, todavia, o consolo de quem o entende por sua condição peculiar, mas o néctar da eternidade pra colocar na mesa e sentir seu coração bater na ingestão vital. Depois de meia dúzia de Crepúsculos da vida, o mundo estava precisando de um filme de vampiros de Jim Jarmusch.

    Amantes Eternos não é promessa, mas não deixa de ser a afetividade do sueco Deixe Ela Entrar ao tom de Blue Valentine, clássico álbum de Tom Waits, cuja amizade do cantor consiste com a de Jarmusch.

    A única vez que o diretor de Daubailó usou o pretexto de fazer um filme para explorar, humilde e elegantemente, os extremos do efeito widescreen, até então, teria sido no ótimo Dead Man, o faroeste must-see dos anos 1990, quando na verdade, em Amantes Eternos, o suspense que Wes Anderson gostaria de fazer se pudesse deixar na gaveta sua fanática precisão estética, qualquer movimento de câmera por mais leve que seja, faz ditar, tal fosse a concepção do plano a encarnação do sensorial, o clima e o forte sentimento existencial do filme, por dentro da intimidade de um casal que não sabemos (enquanto visitantes de seu universo, submissos ao surreal estranhamente real de tudo o que sai e entra em cena), ao fundo, jamais, onde começa ou termina sua humanidade, a benevolência e a brutalidade de ambos; banhados em mistério perpétuo que luz alguma haverá de traduzir.

    Não seriam tais vampiros, perdidos no tempo e motivações, um retrato de uma classe de cineastas já muito marginalizados por serem autorais até os ossos? Sim, talvez ou com certeza? E com uma história frágil, de propósito e intenção ligados ao valor dispensável de vidas já perdidas há séculos de vício e penitência, resta a Jarmusch, mestre em ritmo e narrativa, nos dar uma lanterna em forma de trilha sonora e situações contextuais por entre a riqueza oculta dos antagonistas de sua produção hipersensível, mesmo que só nos seja permitido acompanhar essas almas penadas por meras duas horas, mais sob a sombra de hipóteses, do que sobre a luz de qualquer certeza. A sessão condiz e reafirma o poeta: Não há eternidade senão a eternidade que convém alimentar, para que tudo não fique ainda pior do que ficou, sem o efeito maré para voltarmos no tempo e rever nossas brevidades; ó, utopia!

    A dependência pelo mundano atinge bela e melancólica antítese na filmografia do cineasta que já explorou quase todos os vícios do ser humano moderno, impondo em Amantes Eternos, agora, várias faces do entretenimento, a música, o xadrez e a literatura feito nobres exercícios de autoafirmação. São as últimas escolhas de expressão de autonomia e direito natural de quem nem mesmo detém mais da morte como certeza e amiga fidedigna. Em certo ponto, Hiddleston e Swinton, Adão e Eva, chegam a expulsar de sua casa, velha por fora mas vintage por dentro, o exato contrário dos moradores, num modelo habitacional de Detroit, cidade dos Estados Unidos, chegam a distanciar de si a irresponsável jovem irmã de Eva (Mia Wasikowska) por aparecer e desperdiçar pescoços alheios feito café barato em bares sujos – até o néctar rubro ser jorrado em gozo pelo tapete da sala do casal. Acontece que o jardim do Éden atrai, mas tem regrinhas que poucos conseguem seguir. A sobrevivência vem a ser para esses poucos, e acima de tudo: Àqueles que sabem que estão vivos, e podem continuar assim a todo preço. A vida vicia, longo transe perante a morte que é.

  • Crítica | Anna

    Crítica | Anna

    A investigação criminal ganha contornos fantásticos em Anna (Mindscape no original) onde nos primeiros cinco minutos já é mostrado um método bem diferente de detecção. Mark Strong faz John, um detetive com um poder especial – o de se inserir na lembrança alheia, revivendo os momentos que outros viveram, como um autêntico expectador, mas passivo em seu caráter, uma vez que ele só pode observar, ao menos em um primeiro momento. O thriller sci-fi é o primeiro longa-metragem realizado pela madrilenho Jorge Dorado.

    A prática deste tipo de detecção é comum, já que a Mindscape, empresa que emprega os préstimos de John, é a principal agência de detetives do mundo, e o personagem citado é o mais conhecido dos profissionais da área. Tal fama não foi o suficiente para que ele fosse requisitado para um caso de repercussão grande, envolvendo um político. Após ter isto recusado, ele aceita o caso de uma adolescente com problemas de isolamento e suspeita de sociopatia, de nome Anna (Taissa Farmiga). Ao encontrá-la, John percebe um pessimismo que pode indicar tanto a depressão quanto o niilismo, com uma leve inclinação (consciente e voluntária da parte da moça) para o segundo, uma vez que o cinismo impera em seu discurso.

    A fotografia nas cenas de inserção muda de tom completamente, primeiro porque o ambiente fica polvilhado de uma granulação, remetendo a películas mais antigas, já que estas são lembranças de um passado não muito agradável. A cor que predomina nos cenários também muda muito, descendo uma escala de tonalidade, onde tons grafite dão lugar a amarelados, que visam remeter ao mesmo pretérito incômodo encontrado no granulado. O que ocorre na viagem ao âmago da mente da menina incorre aos motivos que a fizeram se fechar em si, e claro, nas suspeitas de ter um instinto assassino desde a infância. A orfandade claramente a abala, ainda que ela não assuma, e sua relação com Robert (Richard Delane), seu padrasto, não é das melhores, a despeito do testemunho de sua mãe, Michelle (Saskia Reeves), que não percebe com total clareza as desavenças entre os dois membros de sua família.

    Com o desenrolar da trama, os casos de violência e tentativa de assassinado vão aparecendo e cercando toda a existência de Anna, fazendo seus argumentos perderem valor graças ao que John vê, no entanto ele teima em dar mais crédito a ela do que a qualquer outro suspeito, enxergando todas as exceções segundo o julgamento desta. Seu passado trágico o faz se identificar com ela e até relevar alguns de seus “pecados”, ainda que os mais sérios ele não consiga ignorar, procurando ir a fundo, no cerne da polêmica atitude dela, pesquisando os motivos que fazem ter o inventário cibernético que tem.

    Os devaneios invadem a visão de John, dificultando a sua percepção do que é real e do que é imaginário, a natureza do seu trabalho atrapalha a visão dos fatos, fazendo-o, ironicamente, não ter clarividência sobre o que acontecia ao seu redor e sobre a arapuca que se formava acima de sua cabeça. A inversão de papéis é muitíssimo bem construída e é de uma urdição ímpar, coroada com um final que não chega a ser surpreendente, ainda que não seja completamente esperado.

    Todo o suspense e a trama só funcionam graças às atuações, não tanto a de Mark Strong, já que este serve o tempo todo de escada para a personagem título. Taissa Farmiga parece ter o mesmo talento de sua irmã, Vera Farmiga, e seu papel em Mindscape é cuidadosamente montado para intrigar e para deixar dúvida em quem o investiga, seja o detetive mental ou o público ávido por chegar a verdade, e sua persona sabe impingir todo o mistério necessário para intrigar os analistas e os investigadores citados.