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  • Crítica | Sobre Meninos e Lobos

    Crítica | Sobre Meninos e Lobos

    Mystic

    Nós somos a nossa infância, e Clint Eastwood quer discutir isso. Mestre em pegar histórias de força descomunal e subverter essa força com sensibilidade à flor da pele, mas diferente de Ang Lee e outros, sabe equilibrar as energias que podem surgir de tramas humanas, investigativas de algum modo, e coloridas por elementos típicos de seu cinema. A paixão por um ideal e o espírito incansável dos lutadores da vida real, no caso, aqui, o esforço imprevisível na neblina de uma morte sem explicação, num mundo de homens, descrença e intolerância, se mostram nesta produção de 2003, uma pérola sobre o que move a espiral no coração de quem faz deste mundo um mundo frio e sem volta nas nossas ações, onde nem a mais antiga e forte amizade sobrevive diante de uma tragédia de proporções gerais, tendo nos enigmas do passado a chave para um futuro mais simples. Há um futuro esperando lá fora ou é a gente que o faz? O dia é da caça, é verdade, mas o predador tem sua hora.

    Quando um dos três amigos, num belo dia, entra num carro de desconhecidos, o estrago é feito. Para sempre. Os três jamais esquecem o momento, seguidos por ele, atormentados em lembranças revividas na prática, tal um carma constante que afeta muitos além do trio que fez assinar seus nomes na calçada de cimento fresco, na rua que nunca abandonaram. Sobre passado e reminiscências, sobre os pregos e acerca dos arames que nos atam e nos fazem ser quem somos, por fim, nas tangentes das relações que também nos constroem nas sarjetas por onde andamos, construímos nosso ser social, e escondemos quem realmente somos, abertos nesse nível apenas entre quatro paredes, nas confissões entre pessoas queridas que conhecem nossas páginas secretas. Um filme de detalhes, closes e olhares que quebram essas paredes e queimam essas páginas ao ar livre, culminando, ainda assim, em mistério traduzido na imagem de um rio, tamanha esperteza de um roteiro de gênero, no caso criminal. Rio escuro e profundo, feito a alma dos envolvidos no crime insondável de uma jovem moça, numa história de gato e rato impossível de desgrudar os olhos, e da suspeita de estar assistindo a um grande filme.

    E de grandes envolvidos. É difícil destacar quem quer que seja e ser justo ao mesmo tempo, a partir de uma atuação coletiva que beira a perfeição, com atores e atrizes num esplendor de sintonia, emaranhados na teia de seus personagens. É incrível como o caldo começa a borbulhar só no olhar, novamente, de Tim Robbins, sentado num bar durante uma partida de beisebol, esporte adorado por boa parte dos americanos. A câmera se aproxima do rosto de quem entrou naquele carro há anos atrás, e na ausência de palavras conseguimos ler na face do homem o universo que este carrega nos ombros, a dar margem ao choque de mundos que se dará logo após os minutos iniciais. Quem matou? E por quê? Tudo parece brotar do nada, num vórtice de consequências onde as causas importam bem mais, na tradição dos suspenses forjados a ferro e fogo que prezam mais a razão do crime que o crime em si, como em Pacto de Sangue (1944), Alma no Lodo (1931), O Falcão Maltês (1941), Sangue de Pantera (1942), A Lei dos Marginais (1961), Fúria Sanguinária (1949) e O Homem Errado (1956), de Hitchcock. Clássicos em que a vibração e atmosfera são muito similares com as de Meninos e Lobos.

    Nota-se, também, a maneira descompromissada e quase natural de como essa atmosfera é cozinhada: como se realizar um filme para Eastwood fosse cozinhar, juntando temperos para a receita ficar no ponto. Ponto de ebulição para a história explodir na tela e no rosto de Sean Penn, o pai da vítima cujo choque do presente releva o passado para construir o amanhã, por mais negro e desumano que hoje possa ser. Na expressão de desespero de Marcia Gay Harden, cúmplice de quem tem as mãos sujas de sangue, e na tensão de Kevin Bacon na busca pelo assassino: todos são interligados numa ciranda em torno da loucura e da lucidez num bairro de classe-média onde nada relevante poderia brotar, e por isso mesmo brota. A receita é simples, e para ser simples o mestre Eastwood traduz em suspense familiar, com suas típicas mãos de seda, a desconstrução de uma amizade, mas sem nos deixar desconfortáveis na remoção das peças do quebra-cabeça, exceto, é claro, quando chega a hora dessas cabeças começarem a rolar.

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  • Crítica | Cowboys do Espaço

    Crítica | Cowboys do Espaço

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    Um filme dirigido por Clint Eastwood e com o nome de Cowboys do Espaço poderia ser facilmente confundido com um bang bang espacial. Afinal, o ator/diretor é um dos maiores ícones do gênero de faroeste. Porém, temos aqui uma aventura espacial bem pé no chão, com fortes bases nas relações interpessoais do excepcional elenco principal.

    Na trama, Clint interpreta Frank Corvin, um veterano piloto de testes que estaria na primeira missão tripulada ao espaço, mas foi descartado junto com a sua equipe faltando pouco para a missão acontecer. Devido a um problema com um satélite, Corvin é chamado de volta pela NASA para resolver a situação, uma vez que é o único com o conhecimento necessário para a tarefa. Aproveitando-se da situação, Corvin exige que a equipe Dédalus – composta por seus três antigos companheiros interpretados por Tommy Lee Jones, James Garner e Donald Sutherland – seja reunida para que possam finalmente cumprir a missão de ir ao espaço, tal e qual deveriam ter ido no ano de 1958.

    Clint demonstra a habitual competência na direção, conduzindo bem o roteiro idealizado por Ken Kaufman e Howard Klausner. Inicialmente simples, a trama vai se desdobrando aos poucos de forma bastante natural à medida que o filme vai acontecendo, com algumas boas surpresas sendo apresentadas. O filme não se arrisca muito, segue uma estrutura bem tradicional, mas isso não pode ser considerado um defeito. Talvez essa estrutura tradicional, sem grandes inventividades, faça com que o filme seja tão divertido como é. Os diálogos são um caso à parte, uma vez que são bastante naturais, o que passa bastante credibilidade sobre a longa relação entre os personagens na tela. Porém, quando um personagem apresenta um grave problema durante o filme, a trama acaba recorrendo a uma solução final que, embora seja bem adequada e dotada de uma certa poesia – gerando uma maravilhosa imagem final para a película -, é notadamente um clichê, tornando tudo isso bastante previsível.

    O elenco é espetacular. O quarteto de protagonistas composto por Clint Eastwood, Tommy Lee Jones, James Garner e Donald Sutherland entrega atuações inspiradíssimas e realmente denotando que os personagens são conhecidos de longa data. Os diálogos são bem orgânicos e as interações muito naturais. Sutherland rouba algumas cenas com o seu personagem mulherengo que ainda se sente o galã de outrora. O elenco de apoio também é excelente, com William Devane (o diretor de vôo) e James Cromwell (o diretor de projetos escroque responsável pela ruína da missão Dédalus original se destacando como sempre, e Marcia Gay Harden, a médica que se torna interesse amoroso de Tommy Lee Jones, que, como sempre, está muito bem em cena.

    Com boas doses de humor, ótimos diálogos, um roteiro interessante e um elenco excepcional, Cowboys do Espaço se mostra como um dos bons exemplares da carreira de Clint Eastwood como diretor.

  • Crítica | Cinquenta Tons de Cinza

    Crítica | Cinquenta Tons de Cinza

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    O novo filme de Sam Taylor-Wood inicia-se com a rotina matinal de Christian Grey (Jamie Dornan). Após uma corrida, o personagem toma banho e escolhe as roupas para mais um dia de trabalho, com gravatas que retomam o título cinza. O evento quase consegue desvirtuar a atenção da trama ruim que seria apresentada, a história mundialmente conhecida, sucesso da “literatura” de E. L. James, Cinquenta Tons de Cinza. O prédio da companhia é belo, imponente, e por si só já intimidaria a calada estudante Anastasia Steele (Dakota Johnson), que precisa entrevistar, a pedido de uma amiga, o bilionário de boa aparência.

    Mais do que as roupas de trato fino e da aparência impecável, é a insensibilidade de Christian que gera na moça a impressão de que ele seria diferente de tantos outros homens de seu cotidiano. As salas grandes de cor branca também servem para desviar a atenção espiritual do seu “herói”, que abruptamente começa a se interessar pela intimidade da moça que o encara, em uma construção de relação boba e ainda mais mecânica do que a vista no livro.

    Aos poucos, forma-se uma atmosfera de conto de fadas pós-moderno, onde o príncipe ignora completamente a boa aparência da princesa, e ainda assim tem êxito em cooptar a atenção da amada. No entanto, os meios para alcançar esse encantamento é quase todo formado por situações constrangedoras e falas cafonas, típicas não de um homem erudito, e sim de um conquistador barato encontrado em cada bar, balada ou esquina das grandes cidades. Suas táticas de intimidação também são invertidas, já que ele usa seu dinheiro e recursos para reforçar o aspecto de homem maléfico.

    Após quase assinar um termo de confidencialidade sem ler o que está escrito nele, Anastasia mergulha em um quarto secreto, após o anúncio de Grey dizendo que “não faz amor, e sim fode com força”. No cômodo, ela vê toda sorte de brinquedos e apetrechos sexuais, ecos de uma vida mimada, cujos gostos e desejos jamais foram negados, quando a negativa não é um estado comum ou objeto aceitável.

    O auxílio visual faz momentos entediantes do livro tornarem-se dinâmicos e até aceitáveis. Grande parte da personalidade estúpida e infantil de Ana é suprimida na fita, e ela mostra muito menos rubor, por exemplo, depois dos elogios de seu primeiro parceiro sexual. No entanto, são comuns as cenas de um constrangedor romantismo, distante demais do posicionamento de dominador que Grey tenta passar.

    A beleza da nudez da Dakota Johnson faz o filme destacar-se além do ordinário comum do livro, mas não o bastante para superar o enfado que é acompanhar a lenta sedução do casal, que em termos bem conservadores tenta emular os momentos eróticos de Sete Semanas e Meia de Amor. As cenas de discussão dos termos são realizadas sob uma luz avermelhada, e tenta, em vão, sexualizar o momento, exibindo um mau gosto atroz.

    As cenas de prazer através da dor são flagradas de modo bastante conservador pela câmera, com dificuldade enorme de chocar o espectador mais antiquado e desagradando a quem vê a sexualidade como um assunto que não é tabu. O medo do choque prossegue, com a nudez pouco contemplativa de Anastasia e praticamente nenhuma sobra do corpo de Grey para o público feminino. Essa abordagem invertida em relação ao público alvo da sedução mostra inabilidades em representar fantasias e fetiches, algo que piora ainda mais nas cenas que apresentam primeiro o incômodo da moça em ter sua liberdade invadida, e depois em momentos de risadinhas constrangedoras após voar em aviões caríssimos, exibindo uma faceta bastante fútil da personagem.

    As atuações super mecânicas fazem o combalido roteiro ser ainda mais tedioso, incapaz de gerar qualquer empatia. Sequer a trilha sonora, repleta de músicas boas, consegue surpreender. Todas as faixas exibidas primam pela previsibilidade e superficialidade. As cenas em que o chicote vibra na pele da protagonista não possuem nenhuma indicação de que há sangue. Falta humanidade ao drama que é proposto, não há alma ou sentimento em quaisquer ações filmadas, nem mesmo o asco e a repulsa são bem retratadas.

    O abrupto e incômodo fim do livro é reiterado na fita, com uma cena repetida no final, claro, com sentido diferenciado. O trabalho que Taylor-Wood pouco conseguiu salvar do péssimo objeto literário em que se baseou concentra-se nos mesmos problemas éticos e defeitos sexistas e machistas. O roteiro ruim foi criticado até pela criadora da ex-fanfic, e consegue não vulgarizar, mas também não permite quase nenhuma parcela de erotismo ou sensualidade. Assim, prevalece a cafonice do argumento original, com um pouco menos de tédio, por só tomar duas horas do público, ao contrário do excessivo tempo necessário para terminar o livro.

  • Crítica | Magia Ao Luar

    Crítica | Magia Ao Luar

    Após uma longa e prolífica carreira, é absolutamente impossível desassociar a audácia e ineditismo ao ideal de um cineasta. Experimentar novos espaços e desafios diferentes do habitual é algo sempre cobrado de artistas que executam suas funções há muito tempo. A filmografia de Woody Allen é um bom exemplo a ser analisado, uma vez que o diretor já vivenciou mil infâmias fora do escopo artístico e  tantas outras declarações de que seu trabalho deveria ser cessado. Todos esses comentários são de origem e consequências discutíveis, e também foram baseadas na suposta aposentadoria  do diretor por tempo de ofício. Magia ao Luar chega sem muita pompa após um premiadíssimo filme. Não que o sucesso faça qualquer diferença para o seu realizador, que gosta de manter a discrição a reconhecer toda e qualquer canonização de suas obras.

    A história de Magic in Moonlight envolve o misterioso mundo do ilusionismo, focado em Stanley (Colin Firth), cujo sobrenome de difícil pronúncia muda de acordo com a ocasião e ao seu bel prazer. Stanley é um britânico caucasiano que interpreta um mago chinês conhecido como Wei Ling Soo, que no palco é carismático ao extremo, mas que tem em sua contra-parte um sujeito pretensioso, inteligente, genial em sua área e asqueroso no trato com outros seres humanos. Em suma, um misantropo.

    O começo do filme é típico, com uma música instrumental que remete ao ano de 1928, quando Wei Ling faz um show em Berlim, e onde os préstimos de beleza surreal do personagem principal são exibidos. Após a apresentação, Howard Burkan (Simon McBurney), um velho amigo de Stanley, também mágico, vai cumprimentá-lo. Sua compleição e comportamento são o extremo inverso de Stanley, pois Howard é inseguro, tem as costas arqueadas demonstrando ser uma presa fácil se comparado com o mito que está a sua frente. Woody Allen continua com a mania de se inserir nas tramas, ainda que sua presença esteja diluída em vários personagens, com Stanley fazendo o diretor idealizado pelo público e por parte dos críticos, enquanto Howard simboliza a sua visão sobre si mesmo: um velho americano careca, que apesar de ter muito talento, não se destaca mais do que o necessário, e ainda guarda uma série de hesitações provenientes de uma autoestima bastante baixa.

    O encontro entre os dois é basicamente para bajulação por parte de Howard e para a realização de um pedido, pois o experiente ilusionista diz ao seu amigo famoso que ele presenciou uma sumidade, uma moça que parece ter poderes mediúnicos e que, mesmo com todo o conhecimento do mágico, ele não conseguiu provar que ela era uma fraude. Após a recusa em primeiro plano, Stanley resolve assumir o pedido do amigo, e vai ao encontro da suposta charlatã.

    Como era de se esperar, o protagonista exala um sarcasmo extremo ao chegar no local onde deveria começar sua investigação. Sua alcunha falsa é uma representação do desprazer dele em exercer este fútil esforço para desmascarar outrem, e sua misantropia consegue ser percebida por todos ao seu redor, que se mostram imediatamente descontentes com tal desprezo. No entanto, ele prossegue naquela empreitada.

    O fino semblante da suposta advinha também era esperado. Sophie é interpretada por Emma Stone, que apesar de não ser uma figura de beleza tão destacada quanto outras musas de Allen, ainda assim guarda uma aparência de docilidade extrema, condizente com seus poucos anos de idade e com seu jeito meigo de tratar seus clientes, o completo inverso do ilusionista disfarçado. No entanto, já no primeiro contato com o veterano, a moça se afeiçoa pela figura dele.

    Stanley é definido por Sophie como um pessimista que, como Freud, não gosta de respostas fáceis. Chega a ser neurótico e deveras derrotista. Suas crescentes piadas escondem uma enorme carência: uma vontade de ser reconhecido por seus préstimos, além do desejo de receber elogios da imprensa e de especialistas. Entre todas as revelações, a questão amorosa é a que verdadeiramente o incomoda, uma vez que ele se mostra insatisfeito sempre que se refere ao seu par. Ainda que sua fala pareça elogiosa, suas feições contradizem o discurso.

    O ceticismo de Stanley segue firme, apesar de esbarrar nos talentos dedutivos da jovem. Sua deprimente existência – e a de toda humanidade – faz  com que ele não creia nem um pouco em um mundo metafísico, onde ectoplasmas definem a subsistência das criaturas racionais. No decorrer da trama, ele fica irritadiço ao perceber cada vez mais os poderes dela. O intuito do cineasta é dar um tapa na face dos céticos pretensiosos que se consideram superiores somente por não terem fé em nada.

    Os olhos azuis da dupla contemplam o céu também azul. A noite torna-se uma mostra muito mais positiva da observação do cosmo – e consequentemente da vida – do que era mostrado até então na película, muito disso graças às falas dos caracteres flagrados pela câmera. O intuito um tanto piegas desse ato é afirmar que, afinal, a vida não é tão previsível, nem os sentimentos podem ser enquadrados em um escopo tão matemático e exato quanto a pretensão humana às vezes insiste em definir.

    Aos poucos, Stanley cede, e a partir disso, todo o seu ideário muda. A desconstrução do niilista, começa apresentando novamente a fé no Divino em virtude do que se vê. Isso chega até a surpreender o espectador, mas a surpresa dura poucos instantes, pois não demora para que o britânico intua novamente que Sophie é uma fraude. A misantropia o fez enxergar a verdade por trás da traição. Novamente, seus “maus sentimentos” o salvam, como sempre fizeram. O otimismo continua a ser visto por ele como uma ilusão e perda de tempo. Um tempo inútil, empregado para o nada, muito semelhante ao modo que muitos misantropos, como Stanley, veem o amor e sentimentos semelhantes.

    No entanto nota-se uma evolução no comportamento do protagonista. Apesar de sua arrogância e rejeição a assumir suas falhas, ele reconhece ser caústico e desagradável. Sua análise parte de um viés realista, que o faz encarar o universo da mesma maneira com que enxerga que não precisava ser tão amargo ou azedo no tratamento daqueles que vivem em seu círculo. A superioridade do amor sobre os argumentos pomposos, e uma visão poetizada desse sentir não garantem que a emoção seja retribuída. Somente as relação afetuosas pragmáticas e insossas funcionam do modo apolíneo com que Stanley conduz suas relações.

    Talvez a única advertência taxativa que se pode fazer à condução do roteiro de Woody Allen seja a mudança de postura do protagonista. Não que não seja factível ou plausível, porque aliás, é carregada de verossimilhança, mas a expectativa era de que o personagem permanecesse em sua posição arrogante, acima das vicissitudes alheias. A opção por focar na crítica é um artifício inteligente, mas não é incomum para o diretor. Mais comum ainda é a atenção às facetas humanas que na maioria das vezes são ignoradas, como o diretor faz ao abordar a ostentação depressiva em Blue Jasmine e o enorme vazio existencial dos céticos em  Magia ao Luar. Quanto a esse aspecto, o filme é perfeito em seu molde.

     

  • Crítica | O Nevoeiro

    Crítica | O Nevoeiro

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    Em 2007, Frank Darabont realizava mais uma parceria com Stephen King, adaptando o conto O Nevoeiro para os cinemas, como já havia feito anteriormente em À Espera de Um Milagre, Um Sonho de Liberdade e outros trabalhos menores. Essa parceria diz muito sobre o trabalho de Darabont, que, assim como King, procura sempre demonstrar em alguns de seus personagens a faceta repulsiva e irracional do ser humano. O Nevoeiro não é diferente disso.

    Na trama, o pintor David Drayton (Thomas Jane), é apresentado ao espectador em seu ambiente de trabalho, pintando cartazes de filmes, até ser interrompido pelo início de uma tempestade. Na manhã seguinte, David tem a proporção dos danos causados na noite anterior e decide se dirigir até a cidade com seu filho para comprar mantimentos, ante a possibilidade de uma nova tempestade mantê-los isolados. Chegando à cidade, David se dirige ao supermercado quando percebe que um forte nevoeiro parece tomar toda a cidade. As coisas parecem sair do controle quando os habitantes do vilarejo têm ciência de que existe algo em meio àquela impenetrável bruma e se refugiam no estabelecimento, onde a história se desenvolve.

    Novamente, Darabont trabalha com o terror típico de King, uma forma de análise comportamental de seus personagens. Dessa vez, o diretor explora esse microuniverso contido e trabalha cada aspecto existente nele. A atmosfera claustrofóbica cresce pouco a pouco, tomando toda as personagens da mesma forma que a névoa invade a cidade. Assim, tensões são criadas em meio a dilemas morais, políticos e religiosos.

    Essa claustrofobia causada pelo número de pessoas refugiadas em um ambiente frágil – toda a fachada do supermercado é feita de vidro, denotando o perigo iminente – pouco a pouco desmascara cada camada da sociedade ali presente. Da mesma forma que a bruma envolve o vilarejo, seus habitantes são libertos de qualquer freio moral, mostrando abertura à natureza humana. O tom pessimista da obra de Darabont questiona nossa capacidade de viver em sociedade e até onde nossos monstros internos se mantêm guardados para que possa existir um equilíbrio interno. Assim como Buñuel, em O Anjo Exterminador, e Hitchcock, em Os Pássaros, o cineasta não está disposto a explicar os motivos que ocasionaram tal ameaça, mas sim discutir questões mais importantes relativas à sociedade.

    O trabalho de desconstrução do elenco, em raras exceções, é bastante primoroso. O roteiro contribuiu para que o filme não soe panfletário, principalmente no que tange o belo trabalho de atuação de Marcia Gay Harden, que, interpretando uma religiosa fundamentalista, de maneira gradual introduz camadas em sua personagem, transformando-a em uma criatura tão monstruosa quanto aquelas que se encontram em meio ao nevoeiro.

    O Nevoeiro é um grande filme que não toma escolhas fáceis. A condução da história e a forma como cada personagem encara esses acontecimentos ocorrem de forma realista e plausível. O tom niilista da obra segue até a sua fatídica conclusão e a cegueira partilhada por cada personagem, cada qual com suas escolhas e ideologias, dará o tom das consequências de suas escolhas.

  • Crítica | Sobre Meninos e Lobos

    Crítica | Sobre Meninos e Lobos

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    O cinema de Clint Eastwood sempre se aproximou da Tragédia: seus personagens parecem operar em um universo cruel e aparentemente sem sentido, onde ainda assim alguns desfechos se mostram inescapáveis. E talvez em nenhum de seus filmes isso seja tão claro quanto em Sobre Meninos e Lobos.

    Jimmy, Dave e Sean são amigos de infância que acabaram se afastando, mas convivem com a lembrança de quando Dave foi levado por um carro e passou três dias desaparecido, durante os quais foi repetidamente estuprado. A lembrança é carregada como trauma por Dave e como culpa pelos outros dois.

    A escolha de Dave é aleatória, qualquer um dos outros dois meninos poderiam ter sido levados, mas não foram. Ao mesmo tempo é possível questionar se Jimmy teria entrado no carro ou saído correndo, ou se os homens escolheriam um menino capaz de sair correndo. A linha fina, e por vezes invisível, entre aquilo que é possível escolher e aquilo para o qual somos inevitavelmente conduzidos parece ser o principal tema de Eastwood aqui, mais do que nunca o diretor se pergunta o que nos faz o que somos e porque.

    Os três personagens se reencontram quando a filha de Jimmy é assassinada e Sean se torna o detetive responsável pela investigação. Desde o início o espectador é levado a crer que Dave é o responsável pelo crime e Eastwood manipula com maestria o que vemos ou não, os ângulos de câmera e recortes de montagem que incriminam Dave cada vez mais. No fundo, ele está condenado antes de qualquer investigação, o espectador já o julgou quando a câmera passa dos seus olhos para a menina dançando sensualmente na mesa.

    Assim, Eastwood começa construindo uma história de vingança, um mundo razoavelmente ordenado em que o dano gerado por uma violência se desdobra em mais violência. É cruel, mas faz sentido. Aos poucos o cineasta subverte seu próprio filme e no fim o assassinato de Katie nada mais é que um azar cujas condições foram criadas por uma série de escolhas e circunstâncias aparentemente desconexas.

    Eastwood também desconstrói seus personagens conforme se aproxima deles: vemos a fraqueza em Jimmy e o trauma de Dave ganha contornos mais nítidos e a repulsa inicial causada por ele vai se transformando em compaixão e finalmente dor quando fica claro o quão inescapável é seu final.

    Em Sobre Meninos e Lobos, mais uma vez Clint Eastwood assume um filme de gênero, nesse caso o policial, e distorce seus elementos: não há lógica ou ordem moral aqui, como na maior parte dos filmes policiais, apenas personagens quebrados que agem de acordo com suas próprias limitações e tentam fazer escolhas, mas é questionável até que ponto eles realmente tem a liberdade de fazer essas escolhas.

    Ao mesmo tempo o diretor constrói seu filme com planos mais bonitos: é notável quando a câmera se afasta e vemos Sean Penn desesperado, cercado de policiais, impotente e angustiado. Em diversos momentos a câmera assume um ângulo a partir de cima, diminuindo seus personagens ou criando sombras estranhas e distorcidas, quase expressionistas. Sobre Meninos e Lobos é uma obra sobre ilusões e manipulação, e Eastwood imprime isso impecavelmente na forma do filme.

    Texto de autoria de Isadora Sinay.