Tag: Romance

  • Crítica | Como Eu Era Antes de Você

    Crítica | Como Eu Era Antes de Você

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    “Desmaiar-se, atrever-se, estar furioso, áspero, terno, liberal, esquivo, alentado, mortal, defunto, vivo, isto é amor; quem o provou bem sabe.”  Foi através desses diversos adjetivos que o poeta espanhol Lope de Vega tentou definir, em um poema, o que seria o amor; assim como em nossos cotidianos estamos sempre nos questionando as verdadeiras raízes desse sentimento. Portanto, nada mais natural imaginar que tais idealizações estão implícitas ou explicitamente presentes no mais novo trabalho de Thea Sharrock, Como Eu Era Antes de Você, baseado no romance de Jojo Moyes (a qual também assina o roteiro).

    Na obra, acompanhamos a jovem Lou Clark (Emilia Clarke), uma sonhadora que na busca de um emprego se apaixona pelo encantador Will Traynor (Sam Claflin) – que ficou tetraplégico após um acidente. O que Sam ou Lou não sabem é que, em um átimo, essa paixão mudará para sempre seus caminhos.

    Tendo o interior da Inglaterra como pano de fundo, o filme utiliza bem tudo aquilo que lhe favorece: belas paisagens, figurinos que por vezes assumem um signo incandescente dentro da narrativa, uma trilha extremamente competente e radiante, ótimas locações captadas por uma fotografia abrasada. Elementos que, somados, dão à película um tom lírico, emulando com isso uma atmosfera de “contos de fadas”.

    A obra como um todo é competente justamente por não se esconder, não almejar ser o que não é, e justamente por essa coragem consegue expor tudo aquilo que o próprio expectador almejou encontrar, quando decidiu comprar seu ingresso e tirar um tempo livre para embarcar junto nessa história.

    Guiado por uma série de protocolos do gênero, o filme consegue nos lançar sutilmente nos dilemas das personagens principais – seja através da personalidade sonhadora e desbravadora de Lou, seja perante o evidente conflito de Will que, por sua vez, busca o instante do presente, mas não consegue desvencilhar-se de seu passado. Ambos magneticamente se completam justamente por suas personalidades distintas. Lou, otimista e cativante, floresce e se transforma em um farol para Will em seus momentos mais evanescentes.

    Entre um final amargo ou uma amargura sem fim, a trama consegue ser bem equilibrada, sendo leve e ao mesmo tempo precisa e incisiva quando necessária. Demostrando o quanto amores são surpreendentes e imprevisíveis, a história contrabalanceia o mágico e o racional do dia a dia. Por fim, fica bastante marcada a força do título e sua universalidade, afinal quantos de nós em algum momento, diante de um relacionamento (real ou platônico), já não nos perguntamos como éramos antes de conhecer a pessoa amada?

    Como eu Era Antes de Você, apesar de não negar sua essência, foge de muitos clichês do gênero e prioriza uma realidade mágica tão inerentemente humana, assumindo com isso que a vida não deve, e nem pode, ser regida unicamente pela razão.

    Texto de autoria de Tiago Lopes.

  • O Filme Deve Ser Fiel ao Livro?

    O Filme Deve Ser Fiel ao Livro?

    O filme deve ser fiel ao livro

    Tirando o elefante da sala: Não.

    Na saída de qualquer filme baseado em alguma obra literária, um medo toma conta de todos aqueles que se reconhecem na obra original. O coro é de que o livro com certeza será muito melhor que o livro, que irão alterar tudo aquilo que fazia aquela literatura tão cara ao fã.

    É preciso reconhecer que, em geral, o filme deve ser diferente do livro. Há dois motivos principais para fazer esta afirmação, um de ordem técnica e outro de ordem artística:

    São mídias diferentes, com necessidades e recursos diferentes

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    O termo-chave se chama “Especificidade do Meio”, que diz que cada mídia tem possibilidades de expressão particulares, e que assim funcionam a partir de fatores técnicos e artísticos.

    Pelo motivo de que livro ou HQ são mídias diferentes do cinema, é necessário romper certas barreiras narrativas que estas peças têm. Enquanto um livro não tem uma metragem recomendada, um filme precisa ser conciso. Parafraseando Alfred Hitchcock, a metragem de um filme deve ser proporcional à capacidade da bexiga do espectador. Devido a essa necessidade, muitas vezes a produção opta por dar diferentes funções narrativas a um mesmo personagem (como o personagem de Liam Neeson em Batman Begins, interpretando Henry Ducard e Ra’s Al Ghul), assim não há a necessidade de desenvolver diversos personagens — o que é importantíssimo, pois aquilo que na literatura pode ficar crível com apenas um parágrafo, no cinema necessita de diversos minutos preciosos —  apenas para tratar de necessidades práticas da trama. Desta forma, personagens somem, outros ganham uma relevância maior e começa-se assim a descaracterização da obra original. Mais do que em qualquer outra mídia, a semiótica atua para dar significado e significância àquilo que é assistido, pois apenas assim é possível comunicar-se com o espectador. Há também outros recursos disponíveis como trilha sonora, a cinematografia e atuações, que podem eventualmente satisfazer necessidades. Algo bastante relevante, já que, enquanto o livro tem personagens que podem adquirir configurações e trejeitos bastante específicos em nossa mente, o cinema tem personagens e intérpretes. Esse alto teor de iconicidade do cinema já teria motivos suficientes para que a adaptação comumente se afastasse do livro em diversos momentos.

    Assim, como dito no livro Do Texto ao Filme: a Trama, a Cena e a Construção do Olhar no Cinema, o grande erro do espectador é querer ver não só a fábula (a história), mas também a trama (forma como a narrativa é desenvolvida).

    Desta forma, citando o mesmo livro:

    Ao cineasta, o que é do cineasta; ao escritor, o que é do escritor.

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    Há duas situações marcantes na adaptação literária ou de quadrinhos ao cinema: quando um produtor ou estúdio possui os direitos para adaptação, e busca um quinhão de fãs já estabelecidos tentando agregar novos fãs que eventualmente usam a literatura como segunda vista da obra. Nestes casos, as produções podem ser um tanto conturbadas, pois é preciso garantir representatividade (O Hobbit não possui personagens femininas, assim, a despeito da execução de seu personagem, elas eram necessárias para identificação do público); Jurassic Park, que tinha diversos contornos machistas no livro, conseguiu transformar-se numa aventura épica familiar e capaz de clamar pela responsabilidade paterna.

    Outra situação é quando um diretor tem um projeto específico por ter uma visão específica sobre uma obra. O maior exemplo recente destes é David Fincher, devido à força e qualidade de suas adaptações. Fincher é responsável pela leitura cinematográfica dos livros Zodíaco, O Curioso Caso de Benjamim Button, A Rede Social, O Clube da Luta, Os Homens que Não Amavam as Mulheres e o mais recente, Garota Exemplar. Em todos esses casos há mudanças narrativas, anulação de fatos importantes a trama e omissão de fatos que ficam apenas sugestionados ou que são revelados apenas em determinado momento, e em algumas destas adaptações a resolução da trama foi alterada. É uma temeridade defender que um diretor com ideias tão efervescentes e interessantes quando Fincher resuma-se a fazer uma versão filmada destes livros. E quanto mais autoral for o diretor, mais diferente deve ser a adaptação da obra original, pois tratam-se de obras e manifestações artísticas totalmente diferentes. A literatura tem o poder de garantir um diálogo muito grande com o seu público, permitindo que este imagine e crie muito do que ocorre na trama. Já no cinema, embora possa permitir este diálogo também, aquilo que se vê está lá porque faz parte da visão do seu novo autor (o diretor).

    Um exemplo interessante desta dinâmica ocorre com 2001: Uma Odisseia no Espaço. Apesar de roteiro e livro terem sido concebidos simultaneamente, o livro escrito por Arthur C. Clarke opta por esclarecer a visão do autor acerca de diversas questões apresentadas, o que é essencial numa mídia puramente escrita. Já o filme de Stanley Kubrick trata-se basicamente de uma experiência sensorial, aliando imagem e som em uma viagem não-verbal do conceito elaborado pelos autores. Tanto livro e filme, concebidos em paralelo, com participação dos dois autores, são estritamente diferentes, porém igualmente relevantes para o mundo das artes. O mesmo Stanley Kubrick tem em uma outra adaptação literária um manifesto de não-fidelidade, que é o caso de O Iluminado, que não só é sensivelmente diferente da obra original como também é renegada por seu autor, Stephen King. Este é apenas mais um exemplo de que a fidelidade não pode servir como cabresto para a criatividade e visão na transposição de mídias, pois tanto o livro quanto o filme são belas obras.

    Enquanto o livro se dá como um experimento mais imediato, filmes são feitos na ilha de edição, nos percalços de produção, no impacto de atuações que deram uma vida maior a este ou aquele personagem, como ocorreu com Tropa de Elite. Sendo o cinema uma arte intrinsecamente coletiva (mesmo em uma obra autoral), dá-se pela junção de diversas visões, recursos e necessidades. Se até mesmo ao analisar roteiro e o corte final do filme é possível ver diferenças gritantes, não há motivos razoáveis para exigir a dita fidelidade em adaptações literárias ao cinema.

    Tendo em mente que a qualidade de uma ou outra peça tem relação apenas com sua relevância artística, com uma execução bem feita, com uma ideia bem fundamentada, e não com fidelidade à peça original. O livro não é nosso, e o filme é a visão de uma outra pessoa. Então a melhor alternativa é aproveitar ambos esperando apenas qualidade, e não fidelidade.

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    Para saber mais, texto sobre as adaptações O Planeta dos Macacos e 2001: Uma Odisseia no Espaço:

    As adaptações cinematográficas de “2001: Uma Odisseia no Espaço” e “O Planeta dos Macacos” De Marcela Güther no Medium


    Lista de adaptações literárias:

    Crítica | Carrie: A Estranha (2013)

    Crítica | O Pequeno Príncipe

    Crítica | Insurgente

    Crítica | Cidades de Papel

    Crítica | As Vantagens de Ser Invisível

    Crítica | Lugares Escuros

    Crítica | Garota Exemplar

    Crítica | Zodíaco

    Crítica | Sobre Meninos e Lobos

    Crítica | Clube da Luta

    Crítica | O Duplo

    Crítica | A Rede Social

     

    Crítica | O Planeta dos Macacos

    Crítica | Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | Suíte Francesa

    Crítica | Suíte Francesa

    Suite Francesa - poster

    O que esperar de mais um filme sobre a Segunda Guerra? É, sem dúvida, um dos temas mais reutilizados na história do cinema. Mas o que acabamos de descobrir é que muitas vezes ele se renova antes mesmo negarmos esse conceito.

    Em Suíte Francesa, Lucille (Michelle Williams), uma recém-casada nos arredores de Bussy no centro da França, ajuda sua sogra (Kristin Scott Thomas), incrédula sobre a derrota francesa contra os alemães, a administrar os negócios de aluguel de propriedades em plena Segunda Guerra Mundial. Seu marido Gaston não dá noticias há semanas e isso passa a preocupá-la gravemente. Eis que, durante uma coleta de aluguel, as duas avistam um grupo enorme de pessoas fugindo de Paris e presenciam um ataque aéreo das forças alemãs. Após a ocupação de Bussy, a casa de Lucille e sua sogra se transforma em um alojamento para o oficial Bruno Von Falk (Mathias Schoenaerts), assim como muitas das outras casas da cidade, e ela passa a desenvolver um pequeno romance com o oficial. O filme ainda possui uma sub-trama com Bennoit (Sam Riley), um dos clientes da sogra de Lucille que não foi à guerra devido a sua perna quebrada.

    Apesar da trama simples em desenvolvimento, todas as cenas em que a tensão da invasão e ocupação alemã são dirigidas conseguem expor bem o medo e a inquietude dos moradores da cidade. Planos médios e closes em plano sequência são muito bem enquadrados para descrever uma narrativa quase que em primeira pessoa, recurso que ultimamente tem sido recorrente tanto no cinema como em produções para a televisão. Como o filme se baseia em um livro best-seller, e, portanto, uma obra que necessariamente sofre cortes e adaptações, a forma como a trama discorre deixa a entender que só alguns pontos foram destacados em detrimento da conclusão final. Se tudo ao início parece uma rígida dualidade, pequenos pedaços de tons de cinza são colocados aos poucos, encaixados progressivamente na trama a ponto de tornar o romance semelhante a uma encenação.

    Essa ambivalência de sentimentos é o trunfo da película como um todo: não chega a ser rigorosamente um clichê, mesmo sendo um filme sobre a Segunda Guerra, mas se destaca por uma trama bem escrita. O que de fato fere a perspectiva até os momentos finais do filme é saber o contexto original em que a obra foi escrita, levando-nos a crer que tudo aquilo pode de fato ser mais autêntico que muitas das que foram criadas após o período. Não se trata de uma trama simplesmente, mas de um relato de uma testemunha presente sem perspectiva naquele momento difícil, o que torna o final completamente amargo, mas justo.

    Seria possível dizer que, como em Amor Profundo, o pano de fundo em que a trama se apresenta não apresenta tanto uma mensagem como no desenvolvimento das personagens, tornando essa história congruente em qualquer período. Porém, é exatamente o contexto em que ela se encontra que faz de Suíte Francesa um filme que merece ser visto. Ele poderia ser um Charlotte Gray – Paixão Sem Fronteira, mas é bem mais crível e atraente como narrativa.

    Texto de autoria de Halan Everson.

  • Resenha | Lugares Escuros – Gillian Flynn

    Resenha | Lugares Escuros – Gillian Flynn

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    O grotesco já começa na introdução do romance de Gillian Flynn, através de uma macabra letra de canção de roda. Lugares Escuros trata da interna maldade humana e utiliza-se do trauma de sua personagem principal, Libby Day, que assistiu à morte das figuras femininas de sua família, sua mãe e irmãs, no estranho culto conhecido como Sacrifício Satânico de Kinakee, através das mãos de seu irmão mais querido, Ben Day.

    A rotina de Libby inclui a completa alienação cotidiana. Isolada do mundo, sem companhia e trabalho, vive da renda de uma poupança, guardada em virtude do trágico acontecimento, por longos 13 anos. A intimidade da moça é exposta assim que o conto se inicia, por meio da narração em primeira pessoa, tornando o leitor confidente da resignada moça, já adulta e prestes a ingressar na comum vida do americano médio.

    As detalhadas descrições de Libby mostram sua aversão às pessoas ao redor, uma visão que a aproxima da mórbida misantropia, já que exala um desprezo por hábitos e manias comuns de sociopatas e agorafóbicos. Na verdade, são reflexos da autocomiseração e do ódio próprio, graças à letargia que o crime provocou no que até então chamava de vida.

    O desprezo pelo ordinário é retratado nas poucas vezes em que Day tenta ir a público. A começar pela descrição do livro de autoajuda que autorizou outras pessoas realizarem em seu nome. Segundo ela, um arremedo de sentimentalismo barato que proporcionou a ela uma das poucas oportunidades de renda que teve na vida. Mais uma vez, essa chance retorna para assombrá-la e ajudá-la a superar a crise financeira, com uma consulta que lhe renderia alguns dólares.

    A oportunidade parecia tentadora, ao menos até ser apresentada na íntegra. Consistia em uma reunião com aficionados em crimes bizarros, o que fez Libby revelar seu mais profundo desprezo por seu irmão matricida, Benjamin, preso e jamais visitado por ela. A estrutura narrativa causa uma contradição na fala da menina, já que revela traços da intimidade pré-crime, emulando a tristeza ao comentar o fatídico crime que viveu.

    As surpresas começam quando Libby “pousa” no clube com seu pecado capital de subestimar as pessoas. A citação de cada uma é realizada por descrições genéricas, impessoalizando os membros. Um claro mecanismo de defesa da personagem, que se sente ofendida em cada discussão sobre as incongruências relativas à sua versão dos fatos quando criança, situação piorada com a presença das fotos que exibem seus entes queridos falecidos. Nem mesmo a variação do contador de história consegue ser mais difusa e perturbadora para Libby do que a sensação de, talvez, ter vivido uma mentira. Ela chega a ponto de precisar apelar a uma alternativa de fuga comumente utilizada pelos mesmos conservadores que  tanto desprezava.

    A troca do foco de protagonistas entre os capítulos causa um efeito curioso e nada inédito, chegando a irritar o leitor no início. Ainda que a sensação mude no decorrer da leitura, uma vez que o mergulho na intimidade dos Day se faz de modo gradativo e quase nada desigual, toda a estrutura favorece a Libby da contemporaneidade.

    No entanto, mesmo com tantas viradas – e com um leve problema de ritmo, que produz no leitor algumas vezes a sensação de déjà vu, apesar do tamanho do livro -, a desolação da protagonista é sem precedentes. Escancara-se uma situação de total desapego de boas sensações, sem qualquer alento para suprir a carência afetiva que lhe assalta.

    Os capítulos finais servem para aumentar a carga de adrenalina e reviver as sensações traumáticas de uma protagonista que jamais pediu por heroísmo e justiça. Pelo contrário: sempre foi conhecida como alguém solitária e que não precisava expor sua vida, excetuando a questão financeira. Se a trama de Lugares Escuros é ordinária, a fluidez da escrita de Flynn compensa o saldo do romance, tornando tudo mais aceitável, especialmente pela personagem principal, uma garota antissocial mas absolutamente crível e empática.

    Compre: Lugares Escuros – Gillian Flynn

  • Resenha | Kaori: Perfume de Vampira – Giulia Moon (2)

    Resenha | Kaori: Perfume de Vampira – Giulia Moon (2)

    Kaori - Perfume de Vampira - Giulia Moon

    H.P. Lovecraft acreditava que “a emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo”, linha de pensamento que, acredito, explica o curioso fato de que, a despeito das grandes e às vezes intransponíveis diferenças existentes entre as nações espalhadas mundo afora, alguns mitos macabros parecem ser universais, contando com versões próprias nas mais distintas culturas. Lendas relacionadas a fantasmas e mortos-vivos, por exemplo, parecem ser familiares aos folclores de quase todos os lugares. Os vampiros também estão entre as criaturas fantásticas que povoam o imaginário de povos distintos, e, apesar dos muitos produtos de qualidade duvidosa que vem deles se utilizado nos últimos tempos, a exemplo da Saga Crepúsculo e de The Vampire Diaries, esses seres ainda nos rendem histórias interessantes, como prova Kaori – Perfume de Vampira, de Giulia Moon.

    Publicado em 2009 pela Giz Editorial, o livro marca a primeira investida da autora paulista no campo romance. À época, no entanto, Moon já ganhara algum respaldo como contista, tendo lançado três coletâneas próprias – Luar de Vampiros, de 2003, Vampiros no Espelho & Outros Seres Obscuros, de 2004, e A Dama-Morcega, de 2006 – e participado de uma antologia, publicada em 2008 e intitulada Amor Vampiro, na qual também se encontravam trabalhos de outros seis autores. Foi nesta última obra, à qual submeteu o conto Dragões Tatuados, que os personagens Kaori e Samuel Jouza, protagonistas do romance que chegaria às livrarias no ano seguinte, foram apresentados ao público pela primeira vez.

    Provavelmente em razão dos muitos anos dedicados à fórmula do conto, o romance de estreia de Giulia Moon segue um modelo fragmentado, dividido em dois tempos narrativos bastante distintos: o Japão do Período Tokugawa e a São Paulo do ano de 2008. Assim, em vez de uma única história de longo fôlego, que no decorrer de suas 371 páginas correria o risco de cansar o leitor, Kaori é uma obra construída por pequenos, porém intensos sopros de tramas intercaladas.

    No primeiro cenário, a personagem-título, cujas nuances de caráter conhecemos por meio de sua interação com o artista José Calixto, tenta sobreviver no Edo bakufu, entre samurais, casas de prostituição, jogos de poder e outros aspectos que marcaram esse sangrento período da história japonesa. Fugindo do ideal infanto-juvenil que, como já mencionado, tomou conta das produções com temática vampiresca mainstream nos últimos anos, a escritora, mais alinhada com as ideias sombrias de criadores como Anne Rice e André Vianco – talvez o expoente máximo da atual ficção especulativa nacional – constrói um enredo que tem a violência e o sexo como ingredientes importantes.

    Ainda em se tratando da porcentagem da história que se desenrola no Oriente, importante frisar o trabalho de pesquisa realizado pela autora, que representou de modo natural, por meio de expressões e hábitos culturais, uma evolução de mais de dois séculos na sociedade nipônica, uma vez que o livro abrange o Xogunato desde 1647 até 1856. Contudo, faço uma ressalva ao uso exacerbado de expressões idiomáticas japonesas, que, embora venham sempre acompanhadas das necessárias notas de rodapé, por vezes soam dissonantes, incômodas em meio à prosa em português.

    Falando em português, a segunda metade da trama se passa na capital paulista e tem Samuel Jouza, que possui o estranho ofício de observar e catalogar espécies de vampiros, no centro da ação. Embora, ao menos para mim, essa fração urbana da aventura seja um tanto desinteressante em relação à parte do livro que se passa no Japão feudal, uma vez mais devo elogiar a ambientação feita pela autora. Não, a São Paulo vista no livro não é aquela em que vivo, e os personagens que por ela transitam certamente não falam como paulistanos típicos. Porém, não vejo isso como um defeito, pois acredito que uma das grandes falhas da literatura fantástica brasileira seja sua aparente incapacidade de retratar o cotidiano nos grandes centros e a fala coloquial de seu povo; quando tentam, o resultado usual é um amontoado de gírias e palavrões que soam artificiais, quando não, ridículos. Bem, Giulia Moon não incorre nesse erro. Sua linguagem é formal, por vezes “travada”, mas, assumindo-a como tal, o resultado obtido é uma leitura muito mais fluída que o pastiche de português “despojado” que povoa as páginas de algumas publicações.

    Intercalando esses dois tempos narrativos sem gerar confusão ou desgaste, a obra prova ser um romance de estreia bem-sucedido, capaz de fazer mesmo alguém como eu, naturalmente preconceituoso em se tratando de literatura fantástica, e mais ainda no tocante a sua vertente nacional, ficar interessado por suas continuações, Kaori 2 – Coração de Vampira e Kaori e o Samurai sem Braço, de 2011 e 2012, respectivamente. Em suma, Kaori – Perfume de Vampira não é muito mais que uma história competente de terror e suspense. Mas, tendo a proposta em mente, o que mais poderia querer?

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    Texto de autoria de Alexandre “Noots” Oliveira.

  • Crítica | Amantes Eternos

    Crítica | Amantes Eternos

    Os filmes de Jim Jarmusch têm um gosto de improviso, de um autodidatismo irresistível; uma liberdade que começa com apelido de amadora, libertina, se o início não é dos melhores, rumo ao selo individual de um Cinema autoral, como já o é, unificado com o registro de uma realidade em que Jarmusch parece ligar sua câmera de repente e capturar apenas o que for indiscutivelmente real nos mundos internos de cada um. Realidades encenadas para resolver o caos “que o mundo tem de sobra para resolver no momento”, como de fato é apontado pela persona de John Hurt à frente de Tilda Swinton, enquanto o irmão de Thor (Tom Hiddleston) em Os Vingadores não busca, todavia, o consolo de quem o entende por sua condição peculiar, mas o néctar da eternidade pra colocar na mesa e sentir seu coração bater na ingestão vital. Depois de meia dúzia de Crepúsculos da vida, o mundo estava precisando de um filme de vampiros de Jim Jarmusch.

    Amantes Eternos não é promessa, mas não deixa de ser a afetividade do sueco Deixe Ela Entrar ao tom de Blue Valentine, clássico álbum de Tom Waits, cuja amizade do cantor consiste com a de Jarmusch.

    A única vez que o diretor de Daubailó usou o pretexto de fazer um filme para explorar, humilde e elegantemente, os extremos do efeito widescreen, até então, teria sido no ótimo Dead Man, o faroeste must-see dos anos 1990, quando na verdade, em Amantes Eternos, o suspense que Wes Anderson gostaria de fazer se pudesse deixar na gaveta sua fanática precisão estética, qualquer movimento de câmera por mais leve que seja, faz ditar, tal fosse a concepção do plano a encarnação do sensorial, o clima e o forte sentimento existencial do filme, por dentro da intimidade de um casal que não sabemos (enquanto visitantes de seu universo, submissos ao surreal estranhamente real de tudo o que sai e entra em cena), ao fundo, jamais, onde começa ou termina sua humanidade, a benevolência e a brutalidade de ambos; banhados em mistério perpétuo que luz alguma haverá de traduzir.

    Não seriam tais vampiros, perdidos no tempo e motivações, um retrato de uma classe de cineastas já muito marginalizados por serem autorais até os ossos? Sim, talvez ou com certeza? E com uma história frágil, de propósito e intenção ligados ao valor dispensável de vidas já perdidas há séculos de vício e penitência, resta a Jarmusch, mestre em ritmo e narrativa, nos dar uma lanterna em forma de trilha sonora e situações contextuais por entre a riqueza oculta dos antagonistas de sua produção hipersensível, mesmo que só nos seja permitido acompanhar essas almas penadas por meras duas horas, mais sob a sombra de hipóteses, do que sobre a luz de qualquer certeza. A sessão condiz e reafirma o poeta: Não há eternidade senão a eternidade que convém alimentar, para que tudo não fique ainda pior do que ficou, sem o efeito maré para voltarmos no tempo e rever nossas brevidades; ó, utopia!

    A dependência pelo mundano atinge bela e melancólica antítese na filmografia do cineasta que já explorou quase todos os vícios do ser humano moderno, impondo em Amantes Eternos, agora, várias faces do entretenimento, a música, o xadrez e a literatura feito nobres exercícios de autoafirmação. São as últimas escolhas de expressão de autonomia e direito natural de quem nem mesmo detém mais da morte como certeza e amiga fidedigna. Em certo ponto, Hiddleston e Swinton, Adão e Eva, chegam a expulsar de sua casa, velha por fora mas vintage por dentro, o exato contrário dos moradores, num modelo habitacional de Detroit, cidade dos Estados Unidos, chegam a distanciar de si a irresponsável jovem irmã de Eva (Mia Wasikowska) por aparecer e desperdiçar pescoços alheios feito café barato em bares sujos – até o néctar rubro ser jorrado em gozo pelo tapete da sala do casal. Acontece que o jardim do Éden atrai, mas tem regrinhas que poucos conseguem seguir. A sobrevivência vem a ser para esses poucos, e acima de tudo: Àqueles que sabem que estão vivos, e podem continuar assim a todo preço. A vida vicia, longo transe perante a morte que é.

  • Resenha | A Luz entre Oceanos – M. L. Stedman

    Resenha | A Luz entre Oceanos – M. L. Stedman

    Todo grande livro trata, em maior ou menor escala, daquilo que se convém chamar de moral – o que define o aceitável e o condenável na ação humana, distinguindo o bem e o mal, a virtude e o vício. E quando o conflito moral transcende o universo ficcional no qual atuam seus personagens – fazendo com que o leitor, pautado em seu próprio conjunto de valores, se pergunte se reproduziria aquelas ações ou se agiria diferente caso se encontre em situações análogas às descritas ao longo das páginas -, a excelência de um texto se confirma. É o que tenta fazer M. L. Stedman em A Luz entre Oceanos, no qual apresenta um casal de pessoas essencialmente boas tendo que tomar e lidar com as consequências de decisões moralmente ambíguas. Mas, infelizmente, o romance de estreia do autor australiano está longe de ser um grande livro.

    A trama se desenrola na isolada ilha de Janus Rock, para a qual Tom Sherbourne, o distante protagonista da histórica, partiu em uma espécie de exílio autoimposto ao qual se submete para fugir dos fantasmas da recém-findada Primeira Guerra Mundial. Trabalhando como faroleiro, ele conhece Isabel Graysmark, que representa sua antítese: jovial, alegre e otimista. Desnecessário dizer que ambos se apaixonam. Porém, essas figuras com personalidades e experiências tão diferentes compartilham do mesmo desespero perante a incapacidade de ter filhos; desespero que os leva ao extremo de, após um acidente, tomar para criar o bebê trazido por um navegante morto que chegara às imediações, sem, contudo, informar o fato às autoridades.

    A atitude desses heróis – que, vale repetir, nos são apresentados como pessoas de boa índole, para as quais somos levados a torcer – é certamente errada, até mesmo criminosa. No entanto, o autor tenta fugir do julgamento meramente legal, preto e branco, e narra a situação em seus infinitos tons de cinza, construindo um jogo em que justiça e tragédia se chocam, sem que haja respostas fáceis à disposição. Ainda que passando por trechos demasiadamente dramáticos e que beiram o melodrama, A Luz entre Oceanos é caracterizado por um tom agridoce, nada pessimista, mas também não muito otimista, que consegue prender até mesmo um leitor não muito afeito a romances – categoria na qual me enquadro – em suas 363 páginas.

    No entanto, ainda que tenha méritos temáticos, o livro deixa muito a desejar no tocante ao estilo. Janus Rock, por exemplo, jamais passa a sensação de ilha afastada do restante do mundo, pois diálogos entrecortam praticamente todas as cenas da história, sendo raros os momentos descritivos que poderiam nos dar a impressão requerida de isolamento. A natureza dos capítulos, sempre muito curtos (são 37 ao todo, resultando numa média de menos de 10 páginas para cada um) e fragmentados em pequenas sequências, também não nos permite absorver todo o impacto de algumas situações que logo se dilui no avançar dos acontecimentos subsequentes.

    Quanto ao principal conflito do livro, o dilema entre a ação emocional e a ação “correta”, a meu ver, seria mais eficaz se Stedman não tomasse abertamente o partido de seus protagonistas, conferindo um aspecto mais profundo a essa obra que, vez por outra, soa clichê e pouco original. A Luz entre Oceanos é, enfim, um texto ágil e, considerando que se trata do primeiro livro de um autor, competente. É, de certo, uma leitura recomendada para os apreciadores do gênero. Mas, no final das contas, não passa disso – é somente mais um livro do gênero.

    Compre aqui.

    Texto de autoria de Alexandre “Noots” Oliveira.

  • Resenha | Fracasso de Público

    Resenha | Fracasso de Público

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    Talvez uma das melhores sensações relacionadas ao consumo de obras de arte seja o da surpresa. Surpresa, não de achar que algo seria ruim mas na verdade foi bom. Falo da surpresa sincera, que hoje somos praticamente privados com tanta informação abundante. Surpresa, de arriscar a comprar um livro, HQ, ingresso de cinema, sem saber absolutamente nada sobre a obra, sem nenhuma expectativa sobre ser bom ou ruim. Surpresa, com uma obra de autoria, até então, desconhecida, que não evoca nenhum sentimento em função de seus trabalhos pregressos. Quando essa obra escolhida ao acaso é também uma obra-prima, talvez isso seja o equivalente a um orgasmo cultural.

    Foi nessas condições que conheci Fracasso de Público, lançado no Brasil em 3 volumes pela Editora Gal. Comprei por indicação de um amigo, mas em função da minha mania de apenas começar uma leitura depois de ter a série completa em mãos. Qualquer palavra sobre a indicação, já havia a muito sido esquecida, e assim como o personagem Ed, eu estava completamente virgem para a obra.

    Fracasso de público é uma HQ independente com roteiro e arte de Alex Robinson, publicada originalmente em 78 capítulos, depois compilados pela editora TopShelf para um volume único de 608 páginas em 2001. A HQ é ganhadora de diversos prêmios e foi hiperbolicamente considerada pela revista Wizards americana, como a melhor HQ independente já lançada até o momento.

    A história trata de um grupo de amigos composto por: Sherman, que é atendente de uma livraria e aspirante a escritor. Ele vai morar com Stephen e Jane, um casal formado por um professor de história boa-praça, e uma quadrinista que odeia Dorothy, a atual namorada de Sherman. O já citado Ed, amigo de Sherman dos tempos de faculdade, além de ter o sonho de se tornar quadrinista, tem um sério problema de timidez com as mulheres e ainda é virgem. Dos principais, temos por último Irving Flavor, um quadrinista veterano criador do mais popular personagem “Nightstalker”, mas que hoje vive em uma situação difícil depois de problemas com a maior editora de quadrinhos, Zoom Comics.

    O roteiro nos entrega uma história cotidiana, comum, sobre a vida daqueles personagens. Boa parte do álbum se foca em seu dia-a-dia. Toda a irritação de Sherman com o emprego que detesta, as frustrações e aspirações sexuais de Ed, a vida em casal ao mesmo tempo pacata e complexa entre Jane e Stephen. Quase como um retrato da vida cotidiana de jovens com seus 20 e poucos anos na cidade de Nova York. Com suas angústias, sonhos muitas vezes distantes, realizações, alegrias ou tristezas.

    Talvez esse seja o maior mérito da HQ, com influência clara de Apanhador no Campo de Centeio, ela transforma uma história sobre o nada, ou pelo menos nada realmente grande ou interessante, em um relato riquíssimo de verossimilhança e aplicabilidade. Envolvente a ponto de podermos imaginar nas situações expostas, como nós mesmos e nossos amigos.

    Alias, os personagens no decorrer da história se tornam nossos melhores amigos de infância durante aquele período. Nos chateamos, aprovamos ou desaprovamos atitudes. Temos ciúmes, gostamos mais ou menos dos pares de cada um deles. Nos sentimos parte do grupo completamente imersos e envolvidos naquele microcosmo, consumindo freneticamente cada página, pois queremos saber mais sobre os nossos fraternos. Em contraste com o sentimento de pesar cada vez maior com o desenrolar e a chegada mais próxima do fim, em que cada um seguirá seu caminho, o leitor com a sua vida, e os personagens imutados para sempre nas páginas do álbum. Esse sentimento é ajudado com o último capítulo e prólogo. Num encerramento que pode até parecer anti-climático, mas que funciona como nossa vida, em que não há grandes conclusões finais para tudo. Apenas observação e constatação do que ficou realmente marcado.

    Toda essa carga emocional e aplicabilidade, muito se deve as próprias referências do autor, é possível sentir a autorialidade latente da história, com Robinson colocando na trama muitos aspectos de sua vida para nossa apreciação. Ao sabermos, por exemplo que o autor trabalhou por sete anos em uma livraria antes de se dedicar full-time aos quadrinhos, isso só se confirma ainda mais. Além das críticas a grande industria editorial, e também aos fãs dela, por momentos chamados de zumbis. Ou também uma personagem que fala em desistir desse mercado porque está começando a pegar nojo.

    Interessante página de perguntas e respostas, que acontece entre alguns capítulos

    Além das inserções pessoais, o quadrinho é abarrotado de referencias à cultura pop em geral. Seja nos desenhos com easter eggs, citações a diálogos de filmes, discussões sobre o melhor filme de um diretor. Dentre uma lista imensa posso citar alguns: Planeta dos Macacos, Beatles, Star Wars, Peanuts, Mafalda, Woody Allen, o já citado Apanhador no Campo de Centeio, e por aí vai. Essas referências, muitas vezes podem soar jogadas em obras que o autor não constrói um cenário ideal para incluí-las, apenas para mostrar que ele conhece e gosta. Mas esse não é o caso de Fracasso de Público, onde tudo se encaixa, você consegue imaginar uma pessoa como aquela retratada, na vida real, fazendo uma citação a Star Wars por exemplo.

    Sobre a arte, ao mesmo tempo que nota-se a evolução das primeiras até as últimas páginas, ainda assim não há nada de excepcional, o que existe é consistência. Além de um esforço muito bem aplicado para dar vida e emoção aos personagens. A sequência de quadro dá ainda mais o tom autoral da história, basicamente seguindo a mente do autor, fazendo malabarismos interessantes, mesclando elementos entre cenas, ou enquadrando separado vários pontos de um mesmo ambiente para mostrar a separação entre os retratados no momento.

    Outro ponto a se ressaltar é que a HQ te leva em vários momentos para uma montanha russa emocional. Passando de sequencias hilárias, para um ou dois quadros depois sofrermos um baque de tristeza ou agonia. O autor trabalha isso muito bem, tanto a dramaticidade sem nunca forçar o tom. Como na comédia que chegam a render crises de riso. Há de se notar que é mais um dos casos em que a HQ é inspirada em nossa própria vida. Em que as situações mudam sem aviso, sem enrolação, os bons ou maus momentos podem ser iniciados ou interrompidos de maneira estanque sem nem bem percebemos o que de fato aconteceu.

    Há também, alguns momentos de tensão na história. Mas por se tratar de uma trama cotidiana, nunca será uma cena entre o super-herói enfrentando o super-vilão para salvar o mundo. Mas sim, uma cena de tensão pré-beijo por exemplo, que se estende por várias páginas, com diálogos atravessados, construindo tão bem a situação de ambiguidade que o personagem está passando. Que ao final do trecho, tive que dar uma pausa na leitura, relaxar e tomar um ar, tenso como nunca poderia imaginar por causa de um simples beijo.

    Fracasso de público é uma das melhores HQs que tive o prazer de ler. Justamente por sua simplicidade, por ser quase um retrato de uma vida que poderia muito bem ser a nossa. Uma história sem grandes reviravoltas, mas que nos faz refletir e observar sobre a nosso próprio cotidiano, nossas escolhas e atitudes, sem nunca versar por qualquer tipo de auto-ajuda, ou julgamentos moralistas, tão comuns nesse tipo de narrativa. Uma obra-prima dos quadrinhos independentes que merece ser apreciada, por qualquer público, habituado ou não com a arte sequencial.

  • Resenha | Kaori: Perfume de Vampira – Giulia Moon

    Resenha | Kaori: Perfume de Vampira – Giulia Moon

    Kaori - Perfume de Vampira - Giulia Moon

    ”[…] Naquele instante, o dragão rutilante soltou-se da pele alva da vampira e deslizou, célere, ao encontro do seu par. O dragão negro de Samuel percorreu, liberto, o corpo masculino, sua tela e sua prisão, até atingir a pele perfeita da amante, as suas nádegas, o seu ventre, o seu sexo. De repente, entre os dois corpos imersos no frenesi do amor carnal, as duas criaturas fabulosas encontraram-se, numa explosão de fogo e volúpia. […]”

    Depois desse começo quente, vou falar um pouco sobre esse livro esfuziante que li em 3 dias de tanta curiosidade pela história e fascínio pelos personagens.

    Kaori (traduzindo, significa perfume) está mais para biografia do que um romance (mas não pensem que é só isso, existem muitas partes de aventura e ação, além de doses de erotismo), já que o livro conta as aventuras dessa vampira nipônica desde o ano de 1647 (Período Tokugawa) até 2008 (Era Heisei).

    Pra entendermos o rumo que a personagem traça e a influência causada e sofrida por ela, devemos pensar no ensinamento do mestre dela: ”O que você sabe sobre o destino? Menina tola. Ninguém é dono do seu destino se não tem poder para mudá-lo.” [página 64]. Seguindo essa linha, no livro vemos como algumas atitudes da personagem geram reações voluntárias ou involuntárias de outros, ou mesmo, como o sobrenatural é cultivado dentro da sociedade atual e nos tempos feudais.

    Cada capítulo do livro reserva uma surpresa, mínima, mas sempre presente. A própria disposição dos capítulos é diferenciada, pois temos um capítulo tratando do presente, outro, do passado (dezoito capítulos marcados em numerais arábicos [presente] e mais dezoito marcados em numerais romanos [passado], somando prólogo e epílogo, nas 371 páginas do livro), com um final, na minha opinião, bom, mas não tanto quanto eu esperava.

    Mais algumas considerações: personalidade de cada ser vivo ou ‘não morto’ bem trabalhada, exceto de um que é somente mais explorado no final; localidades bem assimiladas transportando assim o leitor para o lugar, ou mesmo, o fazendo imaginar, sentir, ”respirar” a paisagem; acho que faltaram algumas doses de comédia com alguns personagens e/ou situações; senti muita falta da situação que deveria envolver (não pensem besteira) Takezo e Samuel.

    Durante todo esse tempo somos apresentados à algumas criaturas do folclore oriental como Nekomata (No Folclore Japonês, um gato com habilidades sobrenaturais parecidas com as de uma Kitsune ou de um Tanuki.), Tengu ( São criaturas fantásticas do folclore japonês, uma espécie de duende cujas lendas possuem traços tanto da religião budista quanto xintoísta, habitam florestas e montanhas. Eram desenhados de duas formas diferentes: Os karasu tengu : com o corpo humanoide, mas uma cabeça de corvo, ou, Os konoha tengu: com feições humanas, mas dotados de asas e longos narizes. Os konoha tengu eram representados às vezes carregando uma pena. Máscaras representando seus rostos eram muito usadas em festivais.), kyuketsukis (denominação japonesa dos vampiros, composta pelos fonemas: kyu = sugador, ketsu = sangue, ki= demônio), já a outra espécie de bichos que aparecem no livro, os canis famélicos, não achei registros na cultura oriental, só os cito pra não falarem que esqueci.

    Um outro ponto interessante é a diferenciação das classes da sociedade do final do período feudal/começo do período Meiji (abertura dos portões do Japão após 250 anos fechados para o comércio externo, por interferência dos americanos, Almirante Mathew C. Perry, período que o Imperador volta ao poder, desprestígio do Xogum [general e chefe militar, encarregado da proteção do império]):

    – Mercadores (pai da Kaori, Gombei, dono de uma venda de dangôs, Dangô ya);
    – Daimyôs (Lorde Shin-nô, o típico senhor feudal [tradução de daimyô] do final do período Tokugawa);
    – Samurais (Wakabara Kodo, que demonstra muito do significado do bushidô [bushi = guerreiro, dô = caminho, portanto, caminho do guerreiro], os princípios que regiam [ou deveriam reger] a conduta do samurai).

    Algumas das figuras históricas citadas: Myamoto Musashi (considerardo o mais forte e também criador do estilo Niten Ichi Ryu [Ni = dois, Ten = céu, Ichi = Um, Ryu = Dragão ou usado para denotar quando se refere à um estilo de arte marcial, esse estilo é ensinado até hoje, sendo composto pelo combate com uso de duas armas: katana e wakyzashi] e escritor do livro Go Ring no Sho [Livro dos Cinco Anéis]); Oda Nobunaga, Hideyoshi Toyotomi e Ieyasu Tokugawa (três grandes generais responsáveis pela unificação do Japão, sendo que Ieyasu é quem cria o cargo de Xogúm e mantém por hereditariedade de 1603 até 1853, ano da chegada de Perry a Baía de Edo).

    Uma última explicação: ”mas afinal, de onde vem essa coisa de eras?” ou, ”o que é Tokugawa e Showa?” vocês devem estar pensando, eis a explicação: A família imperial japonesa mantém-se de forma contínua no trono desde o princípio do período monárquico, no século VI a.C.. Do ponto de vista religioso, os imperadores traçam sua ancestralidade até o reinado dos deuses sobre a terra, dos quais seriam descendentes e o Imperador Jinmu é o primeiro mortal da linhagem imperial. Atualmente o trono pertence ao Imperador Akihito, lá é o mesmo caso da Inglaterra, um sistema parlamentar de governo, isto é, de acordo com a Constituição de 1947 o Primeiro Ministro é quem comanda o país mesmo existindo a Família Imperial.

    Obs: Pra um melhor entendimento do livro, recomenda-se a leitura do conto Dragões Tatuados, do livro Amor Vampiro (Editora Giz, 2008).

    Compre: Kaori: Perfume de Vampira – Giulia Moon.

    Texto de autoria de Hatake Diogo.