Parte da mitologia que Arthur Conan Doyle empregou no seu personagem mais famoso Sherlock Holmes mora na fraternidade dele com Mycroft, o talentoso e inteligente primogênito, que segundo teorias, trabalharia para o serviço e inteligência britânica. A curiosidade sobre a natureza deste irmão sempre causou furor nos leitores da Strand Magazine. Segundo o filme de Harry Bradbeer, os dois teriam uma irmã de dezesseis anos, a bela e jovem Enola Holmes, executada aqui pela atriz em ascensão Millie Bobby Brown, a mesma que brilhou em Stranger Things.
Já nas primeiras falas há uma quebra da quarta parede, com a personagem-título narrando sua história, diferente de Sherlock que tinha sempre John Watson para explicar os seus feitos em forma de literatura. Enola é uma menina esperta e audaz, desde cedo incentivada por sua mãe Eudoria (Helena Bonham Carter), buscava por aventuras e não conseguia se encaixar dentro do conservadorismo relegado as mulheres na Era Vitoriana.
O mote da história é bem simples, a matriarca Holmes desaparece, e a menina é enviada para buscar seus irmãos, que se assustam com sua falta de modos e comportamento rebelde. Como bons filhos de seu tempo, eles decidem enviá-la a uma escola de etiqueta. De fato, a misoginia era uma característica muito vista no Detetive dentro dos contos e novelas de Doyle, e por mais que não se cite é natural imaginar que Mycroft também compartilhasse dessa ideia.
A versão que Henry Cavill e Sam Caflin fazem são retratos tão próximos da realidade e pragmatismo que não há qualquer traço de heroísmo neles, Cavill mesmo lembra pouco o personagem, tanto na escrita quanto nas versões em carne e osso. O roteiro se baseia no livro de Nancy Springer, O Caso do Marquês Desaparecido e de fato no material original essa personalidade e o apreço pela irmã são melhor trabalhados, ainda assim se nota a frieza e crueza do personagem. Talvez fosse preciso um ator com mais capacidade dramática para lidar com um papel tão complexo.
Bradbeer pega emprestado alguns elementos da série que dirigiu (Fleabag), como por exemplo, o modo mais incisivo de metalinguagem e a coincidência óbvia do protagonismo feminino. Os predicados positivos da direção param por aí. A trama de mistério envolvendo o personagem que Enola conhece no meio do filme é bem menos interessante que o jogo que sua mãe estabeleceu consigo, e a edição super moderna ajuda a deixar o filme como algo genérico, até em comparação com o estilístico Sherlock Holmes e sua continuação Sherlock Holmes: O Jogo das Sombras, ambos de Guy Ritchie.
A jornada de emancipação de Enola ganha contornos épicos graças a Millie Bobby Brown, que se dedica bastante ao papel, e que apesar do forçado sotaque britânico, consegue representar uma jovem audaz e que não se encaixa no conservadorismo de seu tempo. Possivelmente, sua história renderia ainda mais elogios se não fosse atrelada a um ícone pop e literário como é Sherlock, mas dentre as combalidas adaptações recentes do personagem, essa não é tão problemática, mesmo com o pouco apego ao material original.
Após um ano de hiato, Stranger Things retorna para uma terceira temporada, com um novo paradigma estabelecido, da puberdade chegando ao conjunto de amigos. Esta temporada se passa em 1985, se vale ainda mais das influencias da cultura pop oitentista e se fundamenta emocionalmente na relação de pai de filha entre Jim Hopper e Eleven, que estão cada um em um estado de espírito diferente, enquanto a personagem de Millie Bobby Brown começa a se aventurar com Mike (Finn Wolfhard) pelo primeiro amor, o delegado que David Harbour vive está cada vez mais deprimido, e ainda tem que lidar com os cuidados de sua filha estar descobrindo sua sexualidade aos poucos, a mesma que jamais andou de bicicleta e que jamais fez uma serie de coisas que crianças fazem.
O pedido de Jim é que Eleven mantenha a porta de seu quarto aberta ao menos 8 centímetros, e esse lembrete permeia todos os oito episódios de Stranger Things. Há um pouco de ousadia nesse roteiro, ainda mais se considerar as sementes plantadas nas temporadas anteriores. A condição de Will Byers (Noah Schnapp) como um sujeito com dificuldades de aceitação avança alguns poucos degraus, no sentido de insinuar sua sexualidade, assim como a condição de Billy (Drace Montgomery) flertar com mulheres mais velhas, e também no sentido de ser o condutor do mal, além disso, há uma boa reflexão a respeito das perdas que ocorreram antes, fazendo lembrar que apesar da serie ter um elenco infanto juvenil muito bom, a historia é feita para ser consumida por adultos.
Hawkins continua como palco de eventos bem estranhos, na condição de cenário suburbano, que é o lugar perfeito para ser palco das paranoias típicas da Guerra Fria, ora, se até os grandes centros sofrem desse mal, imagine os locais mais distantes das decisões que mudam o mundo, em um tempo sem internet. A questão dos russos aliás é muito bem exposta, debochando do maniqueísmo dos filmes antigos sobre o antagonismo da URSS, ao atrelar o destino de Eleven ao de ser apenas uma “garota russa com poderes telepáticos”.
O grupo de amigos não está tão coeso, enquanto Will quer jogar RPG, Max (Sadie Sink) e Lucas (Caleb McLaughlin) querem namorar (como Mike e Eleven), Dustin acaba de chegar de um acampamento onde também encontrou um par (ao menos é isso que ele diz) e passa mais tempo com Steve (Joe Keery) e Robin , a nova personagem vivida por Maya Hawke, filha de Uma Thurman e Ethan Hawke. Eles, tal qual na segunda temporada, se dividem, e isso é um presságio do futuro da franquia, e de que amizades são provadas quando ocorre a distancia entre os entes.
Da parte adulta, o núcleo que envolve Joyce (Winona Ryder), Jim, e depois, Murray Bauman (Brett Gelman), além de se estabelecer uma sub trama política, ainda que pequena, bem válida, com protesto dos cidadãos ao avanço comercial e a construção de um shopping. Enquanto os pais reclamam junto ao prefeito corrupto, os jovens desfrutam das benesses escapistas do capitalismo selvagem. Obviamente que a série dos irmãos Duffer não se preocupa em fazer uma dura crítica social as empresas multinacionais, afinal recebe até patrocínio de algumas franquias famosas, mas há ao menos boas menções a essas questões de micro cosmos e de uma realidade diferente das cidades maiores.
Só no terceiro capítulo que as crianças se deparam com o mal, então se estabelece bem o clima juvenil típico de Porkys e Picardias Estudantis (só que real, e sem hiper sexualização de adolescentes, e com adolescentes reais), e o fato de Eleven usar poderes para espionar se seus amigos discutem sobre ela faz muito sentido, pois é típico da idade. Aliás, o vilão feito por Andrey Ivchenko como uma mistura do Exterminador do Futuro, de Robert Partick e Arnold Schwarzanegger é sensacional visualmente, além de provocar momentos épicos contra Jim, que aliás, está basante piadista nesse número três.
O hiato apesar fez bem aos roteiros, ainda que tenha sido ruim pela questão das crianças crescerem demais nesse pequeno tempo, mas essa nova condição ajudou bastante a trama a evoluir, e ir para um novo nível, além disso, os rapazes e meninas parecem se entrosar cada vez mais com o passar do tempo, e a mistura das atuações bem empregadas com os efeitos especiais dos monstros e criaturas casa bem demais, mesmo com toda a paranoia típica da Guerra Fria, os pequenos dramas existenciais dos personagens fazem sentido.
O combate com o tal devorador de mentes é muito bem registrado, tanto as interações dos atores com CGI quanto os ângulos que os Duffer escolhem colocar em tela são absurdos, e Emillie Brown se mostra cada vez mais madura como atriz, representando muito bem o horror e o poder quando é exigida, algumas vezes fazendo isso num espaço bem curto de tempo. O confronto dos episódios finais reflete sobre as perdas e mortes, e tem consequências mais pesadas que as vistas nas outras temporadas, em especial quando se leva em conta seu epílogo, três meses dos acontecimentos. A última temporada de Stranger Things fecha bem a trilogia, com uma sensação de alívio, mas sem deixar um final feliz mega adocicado, ao contrário, aqui há uma sensação de perda muito grande, sem certezas sobre os rumos que os irmãos Matt e Ross Duffer farão no futuro, pois dificilmente a série parará neste terceiro ano, ainda mais depois da recepção positiva por parte do publico e da crítica.
Após uma 1ª temporada irretocável, Stranger Things voltou logo, em Agosto de 2017, mostrando seu elenco de crianças envelhecidas em um ano, tal qual se viu durante os filmes da saga de cinema Harry Potter. A segunda temporada continua focada no colégio da cidade de Hawkins, um pequeno vilarejo onde continuam acontecendo fatos bastante estranhos, e se vale ainda do seu conjunto de crianças extremamente carismáticas.
Mike Wheeler (Finn Wolfhard), Dustin Henderson (Gaten Matarazzo), Lucas Sinclair (Caleb McLaughlin) e Will Byers (Noah Schnapp) continuam bastante amigos, mas estão distantes de Eleven (Millie Bobby Brown), que está morando com o delegado Jim Hopper (David Harbour), para que os cientistas que mexeram com seu DNA não a capturem de novo, e essa paranoia é muito bem encaixada e condizente com a época de 1984, durante a Guerra Fria, que é um dos muitos temas que os irmão Duffer pegam emprestado para montar a sua mitologia.
É bem legal que Hawkins, sendo uma cidade interiorana e longe dos holofotes, faz ter semelhanças com outros lugares isolados onde fatos estranhos ocorrem, exemplo disso é Varginha, que fica no interior de Minas Gerais, palco de um suposto caso ufológico que ao menos no exterior, é bastante levado a sério. É engraçado como tanto nessa província da série da Netflix quanto na cidade mineira é fácil desacreditar os fenômenos que ocorreram, e ao menos na ficção, esse contato com o fantástico faz muito sentido e não se apela muito para a suspensão de descrença.
Jim tem uma conexão com Eleven por conta de muitos fatores, entre eles, a semelhança física entre ela e sua filha morta, que contraiu câncer e também foi careca, mas ele claramente não sabe desempenhar o papel de paternidade, já que está bastante enferrujado. Stranger Things continua apostando muito no sentimento de não pertencimento e inadequação, mas não só com as crianças ou com os que sofreram intervenção dos cientistas, mas também com os jovens e adultos. Jonathan (Charlie Heaton) já é assim desde o primeiro ano, sua mãe Joyce (Winona Ryder) que é encarada como louca por todos, e claro, os outros freaks poderosos, que são os primeiros a aparecer em cenas inéditas, e que só são desenvolvidos mais para frente, junto a 11.
As referências continuam muito fortes, o lugar onde os jogos de fliperama ocorrem, o Espaço Arcade, os jogos/filmes de Dragon’s Lair lembram os cenários típicos das cidades suburbanas dos Estados Unidos – e que abarrotaram as cidades do Brasil nos anos 90 também – além é claro de haverem novos elementos que fazem lembrar Karatê Kid, por exemplo, como o acréscimo dos novos personagens, Billy (Dacre Montgomery) e a pequena Maxine (Sadie Sink), sua meia-irmã, que funcionam como as pessoas de fora que chegam num lugar onde todos já tem entrosamento. Há também elementos de ET – O Extraterrestre, como quando Dust encontra uma criatura que veio do Mundo Invertido, e claro que as crianças não sabiam da origem deles.
No entanto, as pontas soltas do 1º ano são retomados e há consequências bem graves, e isso por si só desmistifica uma das maiores reclamações dos fãs, de que este segundo ano não parecia muito continuação de Stranger Things 1ª Temporada. A maioria dessas críticas se dá pelo fato de Eleven demorar demais para reencontrar seus amigos e isso realmente incomoda, mas como os irmãos Duffer gostam de emular os filmes, séries, desenhos e derivados dos anos 80, é natural que a historia se bifurque e tenha seu desenrolar por meio de núcleos específicos como é típico das continuações de filmes famosos, e é óbvio que alguns desses serão mais carismáticos e interessantes que outros. O que irrita de verdade é que o grupo de “delinquentes” numerados que é mostrado no início quase não aparecem até os capítulos finais, de resto, tudo faz sentido, o esconderijo/exílio de 11, os pensamentos pós traumáticos de Will, e a saudade que Mike tem tanto de seu amigo, quanto do par que lhe foi afastado a força.
Mesmo os núcleos adolescentes ficam mais legais, a parceria entre Steve (Joe Keery) e Dust por exemplo é muito divertida, assim como a aproximação de Jonathan e Nancy (Natalia Dyer) faz sentido pois foi plantada nos capítulos da primeira temporada. Mesmo quando soam forçados os romances, há base na cultura pop dos anos 70 e 80, pois nas comédias infantis, o amor era representado dessa forma, meio tosca.
A 2ª temporada serve para fortalecer toda a ideia da paranoia da Guerra Fria e do desprezo que é bem comum em meio aos que sofrem traumas. Eleven e os outros são boas versões dos judeus que sofreram experiências na época da Segunda Guerra, não só pelo óbvio – são marcados na pele – mas também por suas capacidades sobre humanas, em exageros nos resultados desses experimentos, tal qual os herois da Marvel que tinham contato com o horror atômico. Os últimos dois capítulos são ótimos, o senso de urgência se eleva consideravelmente, mostrando a pequena Eleven justificar todo o hype em cima de seu personagem. O confronto rivaliza com o final de Stranger Things 1, mas o tom de epílogo dele não poderia ser mais emocional, num baile de colégio em que os garotos tem encontro com seus alvos amorosos, tudo isso representado por atuações que variam entre o fantasioso e o lúdico na medida certa. O momento mais bonito certamente é o modo como Mike enxerga Eleven, finalmente matando a saudade entre os dois amigos, que sonhavam em se reunir, além de uma terna relação entre Nancy e Dustin, que encontra eco com a primeira cena dos dois no piloto, dá novos significados a maturidade da recém adolescente. Se Stranger Things 2 não é tão brilhante e se não tem o fator novidade a seu favor, certamente compensa isso com emoção, mostrando as relações entre os personagens infantis tendo mais sentido, assim como os laços de amizades novos e velhos amadurecem, sendo mostrados do modo carismático e belo tal qual os filmes de John Hughes ou os produzidos por Steven Spielberg, mas repaginados para os dias de hoje, com elementos que fazem com que essa se diferencia positivamente do restante de produtos infantis, mostrando obviamente uma história que não é feita para crianças dada a violência, o uso de monstro e sua classificação indicativa para maiores de 16 anos.
O que aconteceu em 2014 em São Francisco, na versão de Godzillaque Gareth Edwards conduziu entrou para historia como um 11 de Setembro com horror atômico e monstros, ao menos dentro desse universo compartilhado e Godzilla II: Rei dos Monstros perde boa parte do seu tempo num drama familiar, capitaneado por Mark (Kyle Chandler) e Emma Russell (Vera Farmiga), que estão na cidade durante o ataque. Os pais perdem um filho, e logo é mostrado que eles são especialistas nas criaturas gigantes, e a transição para essa especialidade é zero, não há qualquer menção disso.
Esse início mostra muito do caráter do filme, as cenas com os monstros, tem escalas enormes e Michael Dougherty manda muito bem, como havia feito em Krampus, intercalando isso com uma inutilidade de trama humana, que traz uma empresa boazinha, chamada Monarca e que é comandada pelo caricato oriental sábio Dr. Ishiro Serizawa (Ken Watanabe) e por uma equipe terrível, formada pela dra. Ling (Ziyi Zhang) e outros personagens genéricos e sem personalidade, uma mais irritante e raso que o outro, lembrando em alguns momentos o recente Cloverfield Paradox.
No presente, a filha do casal é vivida por Millie Bobby Brown, a Eleven de Stranger Things e sua personagem, Maddison (ou Maddie) é uma menina inteligente e destemida. Por mais que suas ações sejam irreais, é mais passável ver ela discutindo com sua mãe, tentando colocar algum juízo na cabeça da adulta do que assistir todos os “veteranos” e cientistas tentando dar importância a péssima explicação sobre como os “titãs” (os monstros são tratados por essa alcunha) ajudariam a humanidade ou ajudariam a preservar a vida no planeta. Há todo um núcleo de eco terroristas, liderados pelo personagem Jonah Alan (Charles Dance), que aliás, faz lembrar uma motivação meio Thanos, mas muito capenga. Tanto Jonah quanto seus capangas são ridículos, e não servem sequer para dar alguma importância aos humanos que certamente morreriam nas brigas dos monstros. É tudo melodramático e o roteiro subestima o espectador, fingindo que os inocentes conseguiriam evacuar a maior parte das cidades.
Ao menos, da parte dos animais gigantes, há muita ação, embora haja menos tempo de tela que todo o resto do lenga lenga. A trama mostra Ghidora, Mothra, Rodan e outros monstros antes de enfim estabelecer o retorno de Godzilla. Isso ocorre com pouco menos de uma hora de exibição. O quadro tinha chances de melhorar, mas obviamente a crescente é interrompida por mais dramas humanos desnecessários, chegando ao cúmulo de um dos cientistas “culpar” Mark por uma das derrotas do lagarto radioativo, basicamente porque ele torcia contra o monstro que matou seu filho caçula. Tirando toda essa baboseira, as lutas são ótimas, não há mais tanto predomínio de lutas em lugares escuros ou com fumaça/névoa e a tensão ocorre ao menos pela expectativa de destruição, pois se importar com os humanos beira o impossível.
Godzilla II: Rei dos Monstros peca onde o novo O Predador acerta e tem êxito onde o filme de Shane Black fracassa. Se os personagens genéricos do longa de ação estivessem aqui, certamente seria um acerto e faria mais sentido dentro do desnecessário acréscimo de homens e mulheres como condutores da trama. O filme é desnecessariamente longo e dá vazão a teorias da conspiração bem risíveis, e termina com alguns bons ganchos para o conflito entre Godzilla e King Kong, mas a realidade é que este é menos justificado em trama que o anterior e que Kong: A Ilha da Caveira. Seria mais honesto dar mais tempo aos duelos entre titãs, e esquecer toda a perfumaria dos humanos, e espera-se que ocorra isso no próximo capítulo da saga que está agendada para 2020. É esperar para ver.