Tag: Robert Crumb

  • Crítica | Anti-Herói Americano

    Crítica | Anti-Herói Americano

    A vida do roteirista e escritor Harvey Pekar sempre foi muito conturbada e repleta de momentos absurdos, para dizer o mínimo. Anti-herói americano, se iniciam nos anos 1950 com ele pequeno, tentando pedir doces. Enquanto todos seus amigos usam fantasias de heróis da DC, o garotinho está com roupas comuns, entediado, irritado porque não deram o que ele quer. Aparentemente o mundo está contra Harv, e não há nada que o faça mudar de ideia.

    A história de Pekar é desimportante em sua premissa. Um homem intelectual, porém sem grandes credenciais, que morava em lugares ruins e tinhas hábitos pouco saudáveis. Esperto e espirituoso, mas sem uma história bonita e inspiradora para contar. Assim tanto a escolha de Paul Giamatti para fazê-lo como a participação do próprio autor fazendo a narração funcionam à perfeição para contar essa trajetória errante.

    A dupla de diretores Shari Springer Berman e Robert Pulcini consegue traduzir em tela um estilo semelhante ao das tiras de quadrinhos underground que Pekar fazia. Seja na melancolia de seus dias e rotina, como no cinismo típico de sua personalidade e humor. Giamatti brilha ao mostrar um homem digno de pena, ordinário, com a cabeça grande demais para a vida mediocrizante do sujeito comum e que sofre com problemas de saúde constantes e irritantes. A música de Mark Suozzo pontua bem esses momentos melancólicos, com metais que lembram o jazz que ele tanto amava e que facilitam a percepção do esplendor americano do titulo original, retirado das revistas que ele publicava com seu amigo, o artista Robert Crumb.

    As intervenções do próprio Harvey beiram o sensacional, aproximam o espectador do objeto biográfico de um modo bem mais simpático do que a maioria das apelações à quebra da quarta parede. Os momentos importantes da vida de Pekar são bem filmados, como o encontro dele com Crumb (interpretado aqui por James Urbaniak), recém chegado da Filadélfia. A interação deles de camaradagem e parceria é posta em tela de maneira singela, dado o total clima agridoce que o longa tem. As inabilidades sociais e o gosto por quadrinhos e música os une, para se tornar algo maior: a maior e mais elogiada parceria que o protagonista teve ao longo de sua carreira.

    O filme possui momentos absurdamente legais, como quando a versão em banda desenhada de Harvey o agride verbalmente, para que ele aja de maneira mais firme em alguns pontos do seu dia. Seu alter ego age de maneira passiva-agressiva, como em uma versão mau-caráter do Grilo Falante do filme Pinóquio da Disney.

    Em Bob & Harv: Dois Anti-Heróis Americanos, quadrinho publicado no Brasil pela Conrad, Pekar afirma que seus amigos gostavam de fazer parte das suas histórias. Entre eles, Toby Radloff se destacava. Seu papel de funcionário público de comportamento enfadonho é feito brilhantemente por Judah Friendlander, e isso se comprova quando o próprio Toby aparece em tela. Aliás, não só ele, mas também sua amada, Joyce Brabner (Hope Davis) também aparece e é introduzida de maneira abrupta, sem tato, como eram vistos os dias de Harv por ele mesmo, como frutos do enfado que é viver.

    Há momentos hilários que retratam bem seu azedume, como quando ele, Joyce e Toby vêem a comedia besteirol A Vingança dos Nerds, com ele se ofendendo com o modo como os personagens são retratados e perdendo a paciência, se estressando com a simples representação caricata de boa parte da população dos EUA. Isso dialoga com seu receio de pessoas comuns e genuínas serem exploradas econômica e estilisticamente por grandes conglomerados, como se fossem animais ou cobaias em laboratórios. Por exemplo, as redes de televisão vem a Cleveland, verificam como são os residentes e fazem piada com eles o tempo todo, por conta do estilo de vida provinciano, semelhante ao que no Brasil é popularmente chamado de bicho do mato.

    Anti-herói americano retrata bem a jornada caótica de Pekar, fazendo dele um bom exemplo de vida, ainda que não seja nada exemplar na conduta ou como figura idealizada. Mas sim de uma pessoa de verdade, com problemas reais, dificuldades comuns a toda sorte de gente, e que não se perdeu sequer em meio a fama. Pulcini e Berman fazem um trabalho bem poético, retratam com maestria o conteúdo diferenciado de Harvey, resgatam suas próprias falas e mostram que sua vida é um reflexo do seu pensamento pretensioso e egoísta. Há muita beleza na forma de abordar a vida de um ícone do underground ocidental, e muito carinho, sobretudo de Giamatti, que em tela e fora dela olha para Pekar com admiração típica de quem sofreu influência direta do artista, mostrando que a retroalimentação de cinema e quadrinhos é viva.

    https://www.youtube.com/watch?v=RzfN8lqoc4s

  • Resenha | Bob & Harv: Dois Anti-Heróis Americanos

    Resenha | Bob & Harv: Dois Anti-Heróis Americanos

    Bob e Harv: Dois Anti-Heróis Americanos apresenta o encontro do cronista Harvey Pekard com o quadrinista underground Robert Crumb em parceria de muita intensidade emocional. Lançado pela Conrad em 2006, a edição reúne tiras e narrativas maiores, além da introdução de Laerte falando sobre sua obsessão sobre ambos artistas, assumindo que boa parte de seus trabalhos tem inspiração de ambos.

    O cotidiano de Pekard é o ponto de partida das historias, muitas publicadas na revista American Splendor. Nas tramas, é mostrado como um homem simples e talentoso, que gasta seus dias trabalhando e escrevendo ou (como na imensa maioria das vezes) procrastinando, se virando com o dinheiro que consegue arrumar, normalmente visando pagar, além da comida, seus sonhos de consumo como colecionar antiguidades e raridades de artistas de Jazz e Blues.

    Crumb aparece em algumas historias, inclusive na primeira , em que Harvey fala sobre seu trabalho (a parceria foi vista também no filme biográfico Anti-herói Americano). A HQ serve como uma auto biografia bem peculiar, explorando momentos de intimidade do  autor e revelando suas conclusões sobre o mundo e a vida.

    Diante desse cotidiano e das filosofias apresentadas, o formato das historinhas caem numa repetição meio incômoda. Apresenta Harvey lidando com algo complicado, depois falando diretamente com o leitor, sempre com alguma conclusão espirituosa e super esperta. Ao menos, Pekar não se leva a serio e trata essa verborragia como um defeito. Sendo um sujeito com a vida tão errática, é ótimo que seja dessa maneira. Pois se extingue o risco de glamorizar a vida do homem comum. Em geral, o gibi registra um país formado por pessoas cínicas. O traço anárquico de Crumb ajuda a fortalecer essa sensação. Além disso, há todo o referencial politicamente incorreto típico da arte do quadrinista.

    Bob & Harv resulta em um meta quadrinho melancólico e deprimente, mas que reúne dois artistas que se gostam e se admiram mutuamente ao ponto de um ser totalmente sincero com o outro. Ainda assim, grandiosos artistas, donos de legados sobre a vida marginal urbana sui generis.

    Compre: Bob & Harv.

  • VortCast 75 | Diários de Quarentena V

    VortCast 75 | Diários de Quarentena V

    Bem-vindos a bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira), Filipe PereiraJackson Good (@jacksgood) e Rafael Moreira (@_rmc) retornam em mais uma edição para bater um papo sobre quadrinhos, cinema e muito mais.

    Duração: 115 min.
    Edição: Rafael Moreira e Flávio Vieira
    Trilha Sonora: Rafael Moreira e Flávio Vieira
    Arte do Banner:
     Bruno Gaspar

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  • Crítica | O Gato Fritz

    Crítica | O Gato Fritz

    Ralph Bakshi tem sua história ligada a arte visual de modo muito intenso. Durante os anos 1960 e 1970, ajudou a produzir muitos sucessos animados,  As Novas Aventuras do Super Mouse ou Faísca e Fumaça. Em 1971, coube a si uma responsabilidade atroz: adaptar Robert Crumb para o cinema por meio d’O Gato Fritz, uma produção repleta de dissabores e confusões.

    Narrado pelo animal antropomorfo que dá nome ao filme, através de uma estética que emula um pouco do cinema Noir, unido a nova linguagem que despontava por meio da Nova Hollywood que Martin Scorsese, Michael Cimino, Francis Ford Coppola e companhia inauguraram. Fritz é um músico, dono de ar arrogante, e que não suporta a presença da multidão, graças basicamente ao seu gosto mais refinado. Todo o seu comportamento é voltado ao seu processo de sedução junto às mulheres. Essa é a parte  mais espinhosa da cisão entre Bakshi e Crumb, já que o quadrinista julgava que o diretor não havia capturado a essência de suas histórias, e representou toda a questão da libertação sexual e do uso de drogas sob um ponto de vista moralista.

    Talvez Bakshi realmente não tivesse ainda a maturidade ideal para lidar com a complexidade do texto de Crumb, ainda assim o trabalho do cineasta é bastante autoral, e sua adaptação não contém um censor propriamente dito, já que nenhum personagem é alheio a loucura de ácido que são os 78 minutos de exibição, até mesmo os policiais, representados por porcos, se sentem seduzidos pela vida desregrada de Fritz e seus amigos.

    Não há qualquer crítica negativa cabível ao modo como a América é mostrada, um país com tantas culturas diferentes é naturalmente complexo para não se encaixar somente como um lugar conservador e monótono. Fritz é um passageiro do mundo, de certa forma ele é como Forrest Gump na grande história americana, uma pessoa que passa por diversos eventos, que tem contato com grupos intolerantes e acaba de certa forma participando de eventos de moral duvidosa, mesmo sem concordar com elas. Ele é retratado como fruto do meio, passivo diante da manipulação de discursos, um inconsequente que não percebe seu papel na história. Mesmo com todas as reclamações do autor original da obra, Bakshi consegue trazer um filme digno e que referencia o material de origem, e que apesar de não ser perfeito em sua abordagem, não tem pudor em mostrar uma faceta interessante da América.

  • Resenha | América

    Resenha | América

    Quase todas as vezes que se fala sobre as obras de Robert Crumb é preciso reforçar uma explicação óbvia sobre sua produção artística contracultural, e que buscava o choque da sociedade americana conservadora. Dito isso, América é mais um dos retratos do país onde nasceu e viveu Crumb durante a maior parte de sua vida, e a partir desta obra, ele ataca toda sorte de pessoas e alguns grupos sociais e culturais.

    A altura que escreveu esses contos (a compilação compreende tiras de 1970 a 1997), o país estava em ebulição e a quantidade de pautas o deixava confuso, problema semelhante ao que ocorre nos últimos anos. O boneco de neve Frosty é outro bom exemplo disso, um personagem isento de ideologia, que não consegue entender o comportamento da esquerda, e essa digestão do tema é bastante madura e digna de reflexão, nas tiras antigas o autor acaba conversando até com questões mais recentes, como a dita zona cinza do eleitorado americano, que cansado de algumas posturas da esquerda, acaba sendo cooptado por parcelas reacionárias do espectro político, como Steve Bannon e o trumpismo soube aproveitar e surgir como alternativa.

    Crumb é tão autossuficiente, que seus defeitos são aludidos por ele mesmo. A classificação para ele mesmo é de um sujeito paranoico, e ele não tem receio de parecer louco, ao desenhar a si mesmo dizendo que o governo ou uma “força maior” está querendo matá-lo, ao mesmo tempo que ele desdenha de liberais que separam o lixo em coletas, ao passo que também reclama da sujeira que os terceiro mundistas fazem ao chegar nos EUA. Em Whiteman ele faz troça com o homem branco que se julga invulnerável e super poderoso, para o autor todos esses personagens compõe a multi-identidade do país, a parte mais baixa e tosca da nação, algo completamente impossível de desassociar do que é América.

    Próximo do final, o autor exibe versões diferentes de domínio tirânico, mostrando como seria o domínio cultural, político e econômico dos povos negros e judeus, respectivamente, sob um olhar dos que dominam. O modo caricatural como agem esses “tiranos” exibe a visão preconceituosa e falsamente benevolente dos brancos, mas não só dos sulistas tipicamente racistas, passando um pouco sobre o conceito que muitos democratas fazem desses povos.

    Certamente essa compilação é uma das mais controversas entre as obras de Crumb, ele parece não ter qualquer receio de parecer malvado ou mal visto por seus pares, seja a elite branca e conservadora do país, ou os dito liberais, que evitam o moralismo barato mas que tem costumes condescendentes e se julgam superiores exatamente por fugir um pouco da mentalidade conservadora, embora não façam isso por convicção.

    É quase profético que décadas antes de Donald Trump entrar para a política, o quadrinista tenha colocado ele numa história, para mostrar o quão decadente é a classe “empreendedora” dos Estados Unidos. Crumb tem coragem, ele não usa um paralelo com um empresário, literalmente desenha uma pessoa pública, em uma história pervertida que o coloca como o extremo avesso de Trump.

    América termina sem verborragia, com gravuras sem falas, mostrando possibilidades de futuro, um pouco do passado, basicamente sobre a mesma paisagem, mostrando a transformação que o homem fez no cenário, e o quão predatória pode ser a presença humana, ao passo que também mostra que o mundo não tem como ser destruído por nós, já que o planeta se refaz.

  • Resenha | Minha Vida

    Resenha | Minha Vida

    Publicado no Brasil pela Conrad Editora, Minha Vida é uma obra como tantas outras de Robert Crumb, onde ele foca sua narrativa em uma espécie de auto biografia, tomando as liberdades que passando pelo seu bel prazer. É curioso como um quadrinista tão tímido quanto Crumb consiga fazer auto ficção e de maneira tão divertida e orgânica quanto é visto nesse número. É provável que o autor usasse esse tipo de  artifício para exorcizar seus demônios, onde poderia, ao se colocar como personagem, falar e escrever abertamente sobre suas depravações, incluindo aí referencias a quanto as religiões judaico cristãs podem ser castradoras. Falando assim pode parecer sutil, mas a arte presente neste volume é mostrado de maneira escrachada em muitos pontos e visceral em alguns deles.

    Como visto em Meus Problemas Com As Mulheres, Robert Crumb não era exatamente a pessoa que lidava mais facilmente com o sexo oposto ao seu, mas aqui há um mergulho em detalhes da alma que poucos imaginariam ocorrendo em uma revista biográfica. Os primeiros amores e as primeiras parceiras sexuais exploradas na revista são reflexos da mãe do personagem, há inclusive cenas bastante fortes que massificam a ideia de Complexo de Édipo, sendo inclusive explicito em sua arte.

    Há um destaque na parte da nostalgia do autor com os quadrinhos, onde ele afirma que um dos fatores que o fazia lembrar da infãncia, quando devorava as hqs, era o cheiro dos gibis. Durante o decorrer do encadernado é mostrado um pouco das referências do artista, entre eles, Bertrand Russell.

    Esse compilado certamente ajudaria os críticos do artista a fomentar o argumento de que Robert era um sujeito misógino, pelo fato de retratar as mulheres de maneira tão objetificada, sofrendo com a agressividade masculino vez por outra, mas é importante se ater a cronologia dessas publicações, pois durante os anos 60, no auge da carreira de Bob,  o Comic Code tornava proibitivo em quadrinhos qualquer menção a sexualidade, minimamente. Crumb fazia historia ao falar de relações sexuais  que fugiam do conservadorismo, e realmente perdia um bocado a mão em alguns dos quadros, mas a intenção de subverter era muitíssimo acertada, e a ideia de subverter a cultura e ir contra a mentalidade vigente nos Estados Unidos não poderia ser feita cheia de dedos, ou com medo de soar polêmico.

    Ele ironiza também o jovem adolescente que se sente auto suficiente por ter gostos diferentes dos da maioria, como se ser “underground” fosse um carimbo de inteligência e sofisticação, e ele faz isso usando o seu próprio exemplo. Curiosamente há uma semelhança grande entre as posturas dele quando era católico e mais tarde intelectual, pois em ambos ele usava de subterfúgios para justificar o medo e a covardia que tinha por ser franzino e consequentemente ruim de briga. No entanto, o jovem Robert enquanto personagem assume que apesar de ler muito e ser um literato, seu problema era misantropia, ele não tinha intimidade com homens e mulheres e tinha receio do contato com os mesmos.

    Os momentos finais do encadernado se dedica a explorar a dificuldade dele em escrever, o fato de ter enjoado de se drogar, o amadurecimento tardio e algumas questões existenciais. Uma boa parte desses momentos exploram a  figura de Bunch, que foi seu par e que está inclusive na capa da revista.  É estranho porque em boa parte de suas aparições a arte final dela é péssima, e todos os outros elementos são bem desenhados, talvez fosse ali uma manifestação de rejeição por parte do homem a pessoa que ele já amou, manifestando de maneira visual a crise na relação que os dois tiveram. A passagem pelas décadas faz Crumb retratar melhor seus pares, caprichando um pouco mais no desenho, provavelmente porque foi deixando seus ressentimentos de lado.

    Robert faz nas últimas páginas um mea culpa sobre o entretenimento, ao mesmo tempo que assume que boa parte de sua obra é dedicada a isso, a distrair as pessoas, fazendo uma ode ao formato, também fala sobre as reflexões que causa nas pessoas que o lêem, e que isso (principalmente) vai além do auto culto que vem prestando nesta obra em especifico, ainda que o principal motivo deste compilado seja construir um retrato de Bob, mergulhando em sua intimidade, o que ajuda a entender a sua visão ácida do mundo.

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  • Resenha | Blues

    Resenha | Blues

    Uma das influências para os quadrinhos alternativos que Robert Crumb sempre fez eram os músicos que ele tanto adorava, e em Blues ele pôde prestar uma pequena reverência a esses artistas. Robert Johnson, Charles Patton, Jelly Roll Morton, Jimi Hendrix e tantos outros que estão presentes no álbum Blues, uma grande homenagem de Crumb a muitos de seus heróis.

    A primeira história do encadernado da Conrad mostra uma retrospectiva sobre Patton, brincando inclusive dom o sobrenome homônimo do famoso general americano da Segunda Guerra Mundial, usando a coincidência como pontapé inicial da análise da carreira do músico pouco conhecido. A história vai desde quando ele era muito moço, escravizado em campos do algodão, onde tocava viola de maneira única, até às caminhadas dele já alforriado, à procura de novos ritmos como o ragtime com a The Chatmon Family. O roteiro também comenta sua inspiração e a proximidade de Henry Sloan, motivada pelo ritmo que o músico fazia, e claro, pela vida amorosa devassa que levava, interrompida por lampejos de conversão ao protestantismo evangélico, sendo assim um símbolo dos arquétipos envolvendo o blues, já que grande parte do pano de fundo das lendas da música passam também pelo movimento gospel.

    No prefácio de Rosane Pavan, se destaca que Crumb é o historiador confiável da América, uma vez que suas histórias, apesar da aura fantástica, jamais se livra do senso crítico e ácido de um homem que analisa todo o movimento artístico com um olhar próprio. A análise dessa e de suas outras obras só tem chance de ser minimamente acertada se levar em conta esse conceito, já que a alma e modo do desenhista de olhar o cenário tanto sobre o mapa de pobreza do país, quanto a forma de se fazer arte.

    O escritor usa seus personagens para diferenciar as sensações, como quando se aprecia músicas falando sobre os hits que não deixam a lembrança do ouvinte em paz, como também aqueles que mexem com o imaginário, fazendo-o fantasiar por muitos momentos com as palavras e acordes harmônicos ali estabelecidos. Blues é pródigo nisso, não só como ritmo, mas também como parte dessa compilação que busca traçar um cenário sobre o movimento como um todo, sendo fácil de compreender mesmo para um leigo.

    Há muitas historias diferentes no encadernado, algumas bem indiferentes e não tão dignas de notas, mas até as mais simples tem algo a acrescentar dentro do mapa que Crumb procura traçar, e por mais que essa não seja a revista mais inspirada do autor, certamente é uma das que ele mais derrama sua alma e sua devoção, e apreciar o que o autor considera seminal é obviamente proveitoso.

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  • Resenha | Meus Problemas Com as Mulheres

    Resenha | Meus Problemas Com as Mulheres

    robert-crumb-meus-problemas-com-as-mulheresA ligação de Robert Crumb com o catolicismo no passado faz dos relatos do autor algo curioso e libertário, dada a tradição religiosa de recalcar as manifestações sexuais de seus membros. Em Meus Problemas Com As Mulheres, o autor explicita seus medos, anseios e intimidade de sua rotina libidinal, passando pela adolescência até a época em que usava LSD, que culminariam inclusive na criação da Zap Comix.

    Na obra de Crumb há muito autorreferência, no entanto, em nenhuma obra anterior o nível de confissão é tão grande quanto neste volume, dado o seu caráter direto, além de o autor ser um personagem nominalmente inserido na trama. Na primeira história, Eu Agradeço, Eu Agradeço o começo é tímido, destacando questionamentos sobre a rotina e a sorte que tem em trabalhar com algo que lhe dá prazer. A introdução é lúdica e fala despretensiosamente sobre o dia a dia, aludindo depois as mulheres de um modo sacana, mas ainda respeitoso, fechando de modo piegas, mas condizente com a trama ao destrinchar a figura da esposa e de sua filha, mostrando uma faceta pouco conhecida de Crumb, ao menos para quem consome seus quadrinhos mais ácidos.

    A visão do autor sobre as mulheres é profunda: um misto de obsessão cega, capaz de fazê-lo perder qualquer linha de bom senso, além de ativar suas maiores vergonhas como homem e artista, já que o sexo oposto sempre está em seus pensamentos, inclusive no trabalho. O quadrinista se culpa pela maneira como enxerga as mulheres, e gasta um tempo demasiado explanando seu gosto por mulheres mais fortes e robustas, como se tal peculiaridade fosse um pecado, fruto de uma condição adquirida após anos de castração involuntária, causada não só pela religião, mas pela rejeição que sofria das meninas.

    Não há somente lamentos e posicionamento na vaga de vítima: Crumb percebe o quanto podia ser repulsivo para as mulheres, muito além de sua aparência comumente refutada, mas também em seus atos. Não há um pedestal ou soberba de sua parte, ao contrário, a humanidade repleta de falhas em si chega a ser cativante por causar no leitor a possibilidade de espelhar-se. A obra potencializa, assim, causar nos mais atentos um anseio por uma autoanálise mais profunda, com argumentos mais penetrantes que grande parte da psicologia transpessoal e oportunista pregada por alguns clínicos da mente.

    É curioso ver a obra analisando o início da popularização do feminismo, e como seu pragmatismo o fazia enxergar tal movimento, assumindo parte de seus erros, associando-os à lei da semeadura, mas também explorando as contradições do discurso ao afirmar que, sem algum tipo de arrogância, o sujeito é visto como assexuado, e, portanto, insuficiente para a interação erótica.

    A acidez do argumento jocoso de Crumb encontra a maior polêmica nas últimas páginas, por tratar de modo muito franco alguns dos perfis de mulheres vistas pelo quadrinista ao longo da vida, sempre analisadas sob um ponto de vista sexualizante. Tais adjetivações não contêm pudor normalmente, e mostram o personagem-autor tentando um revide à rejeição que sofreu em seu passado adolescente.

    No quadrinho presente na última página, Robert interage com sua filha e desafia a inocência infantil da menina, sendo rude em uma situação bem boba. A referência ao choro, causado pela frustração com o pai, faz-o associar a situação como uma histeria tipicamente feminina, mostrando que a misoginia do escritor é causada pela falta de conhecimento sobre a mentalidade e psique da mulher. Uma fobia de perder a atenção de mulheres, e explicitando por sua vez a maior vergonha e o maior defeito do artista: a dificuldade de disfarçar sua incapacidade em lidar com seu objeto de adoração. Ao menos, a insegurança é mostrada como a base para a construção ética absolutamente discutível de Crumb, fruto, segundo seus próprios quadrinhos, da visão negativa que nutre de si e reforçada pelo círculo vicioso vivido pelo artista.

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  • Resenha | Mr. Natural Vai Para o Hospício e Outras Histórias

    Resenha | Mr. Natural Vai Para o Hospício e Outras Histórias

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    A trajetória em quadrinhos do americano Robert Crumb é sinuosa, composta por algumas ideias dissonantes, impopular com o público médio por causa dos temas ácidos que aborda e adorado em “excesso” por quem afeito por seu tipo de arte. A publicação semanal nova-iorquina Village Voice serve de casa para os primeiros gracejos do protagonista deste encadernado, Mr. Natural – Vai Para o Hospício e Outras Histórias, fazendo a contra cultura comum aos editoriais uma rima ideológica enorme com a figura do guru espiritual, cujas aspirações envolvem o completo inverso do status quo que vigora nos Estados Unidos setentista.

    O traço do desenhista mistura estilos a princípio distintos, compondo-se a partir de figuras minimalistas, semelhantes a outros cartunistas mais “inocentes”, misturando-se com um tom de anarquia em cada expressão facial hachurada. O deboche visual é um fator importante para compor o background do profeta retirado/aposentado, tendo eco na sua postura anti-social de repudiar tietes; tampouco lhe apetece falar à maneira de um mentor, tendo asco pela figura de ídolo que foi construído anteriormente em torno de si.

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    As duas primeiras pessoas com quem trava diálogo, o professor Wanowsky, um amigo seu de longa data, Billy Bob, o rapaz que quis seguir-lhe, contém diálogos estranhos que revelam um peculiar gosto para culinária, além de uma predileção por gerar conflitos, já que permite que um esquerdista acadêmico trave contato pessoal e restrito com um jovem hippie que não tem causa para suas rebeldias.

    O deboche em cima da crença em um esoterismo barato só não é maior que a desconstrução da figura religiosa normalmente não discutida ou criticada. O argumento segue lisérgico, inserindo inclusive editores da Voice em seu drama. Para entender o desfecho desta história – Hospício – em sua completude, o ideal é já estar familiarizado com o personagem, ainda que uma leitura somente deste fascículo não faça a experiência tornar-se superficial, especialmente por Crumb se incluir dentro do escopo narrativo.

    O máximo que a literatura de Mr. Natural se permite parecer algo edificante, é na posição de enfado do personagem título com o charlatanismo que o tornou famoso, bem como a exploração dos espólios da cultura deste segmento, que com o passar do tempo, deixou a figura do mentor espiritual se perder, por desilusão ou amadurecimento das mentes que abarcavam esse pensamento. É nesse ínterim que o ancião está, sem qualquer receio pelos seus antigos pecados, resultando somente em um ser entediado que, apesar de guardar algumas semelhanças com seu autor, é certamente o personagem menos auto-biográfico dentre os mais famosos criados por Robert Crumb.

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    Após o arco maior, surgem tiras menores com elucubrações sobre a existência e um bocado de demonstrações de historinhas curtas de Mr. Natural, que ajudam a mostrar um pouco do tédio que o assolou e que foi o ponto de partida da narrativa inicial. Os contos envolvem também anúncios fakes de prostitutas e de estereótipos raciais/sexuais que debocham do politicamente incorreto, o qual ainda estava longe de seu embrião recente, servindo de argumento contra-cultura que ora atacava os poderosos, ora ajudava no coro ao oprimido.

    A obra de Crumb transgride as fronteiras do espectro ideológico “desrespeitando” os dois polos de posicionamento de estado, servindo basicamente de ataque a quase todos os lados políticos e ideológicos, trabalhando na função de desconstruir argumentos, apontando para os defeitos dos dogmas religiosos e valores éticos. Mr. Natural, no entanto, é mais ligado ao “mercado de crenças” e alude à questão do torpor causado pelo “ópio”, sem deixar de avacalhar o ateísmo hipócrita de quem tem regras morais tão rígidas quanto a dos fundamentalistas religiosos. Essa questão, ainda mais flagrante em 1970 do que hoje em dia, possui muito menos vozes dissonantes que o cenário atual, tendo em Crumb um pioneirismo importantíssimo, inclusive em relação a essa evolução.

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  • Resenha | A Mente Suja de Robert Crumb

    Resenha | A Mente Suja de Robert Crumb

    A Mente Suja de Robert Crumb - capa

    Robert Crumb, que completou 70 anos em 2013, é dono de uma carreira prolífica (e maldita), tornando-se um dos grandes quadrinistas vivos que continuam na ativa há aproximadamente 50 anos. Para comemorar o aniversário do cartunista, a editora Veneta compilou vários de seus trabalhos no álbum de luxo A Mente Suja de Robert Crumb, publicado em 2013.

    O autor foi um dos grandes nomes da contracultura norte-americana durante a década de 60, tendo trabalhos memoráveis publicados na revista Zap Comix, na qual se destacou pelos seus trabalhos sobre sexo, violência, drogas e outros temas sociais e morais. Graças a esses trabalhos de aspecto combativo frente à censura e à repressão existente nos Estados Unidos da época, Crumb se tornou um ícone do movimento de contracultura, sendo influência e referência — não só em questões criativas ou artísticas, como também em relação à atitude para uma série de outros artistas internacionais e também nacionais, como Angeli, Adão Iturrusgarai, Glauco e tantos outros.

    Ora, essas influências não vieram senão por mérito exclusivo do próprio Crumb ao renegar um status quo vigente para colocar no papel todas as suas perversões e fantasias sexuais em personagens como Fritz, The Cat; Snoid; Mr. Natural; Horny Harriet Hotpants; Johnny Fuckerfaster e outros, expondo de forma escandalosa personagens provocativos e rompendo qualquer aspecto moralista ou conservador.

    O álbum reúne o “melhor do pior”, já que, ao ler a publicação da Veneta, inevitavelmente você ficará chocado, constrangido ou abalado em algum momento, o que deixa claro que ainda vivemos sob um moralismo bastante pungente, tal qual àquele do American Way of Life. A rebeldia do autor quebrou barreiras e pressões sociais e políticas, pois ele colocou o dedo na ferida ao mostrar toda a hipocrisia da sociedade, e tudo isso está presente neste álbum.

    Contando com histórias como As Aventuras do Nariz-de-Pica, sobre um rapaz que é perseguido por mulheres devido ao seu membro nasal; Joe Blow, que conta a história sobre uma família norte-americana que pratica o incesto com intenção de melhor educar sexualmente seus filhos; Folias Anais, sobre um personagem que vive dentro de uma bunda; Rebolado Africano conta com a personagem Josephine, uma taxista que carrega seus passageiros em sua nádega, mas que decide participar de um concurso que elegerá a melhor bunda da América; entre outros conceitos “doentios”.

    A importância de Robert Crumb para os quadrinhos e à arte em geral é tremenda. Enquanto as histórias em quadrinhos caminhavam rumo a discursos moralistas e cada vez mais infantis, o artista rompeu tudo isso e pegou o caminho contrário, explorando temas proibitivos na época em que a paranoia macartista ainda era bastante presente e num momento em que a Comics Code Authority ainda vigorava como forma de autocensura de boa parte das editoras da época.

    A Mente Suja de Robert Crumb deve ser lido e analisado conforme o contexto de publicação de cada uma dessas tiras. Do contrário, cairemos no erro grotesco de avaliar o álbum como apenas uma grande sucessão de piadas sobre o comportamento neurótico do autor que envolve misoginia, piadas bizarras e muito fetiche, o que de fato não é só isso. Crumb vem de uma época em que a sociedade inteira condenava os quadrinhos, muito graças às declarações de Fredric Wertham em seu livro A Sedução dos Inocentes, no qual declarava abertamente que os quadrinhos levavam os jovens para o caminho da violência e da lascívia. Posteriormente, as próprias editoras se autocensuravam com a criação do Comics Code, por “sugestão” do próprio congresso norte-americano. Se isso não fosse o bastante, a sociedade vivia um período extremamente moralista e conservador. Esse cenário foi fundamental para Crumb ser quem é e publicar o que publicou. Seu rompimento com essas visões de mundo era necessário, fazia parte das neuroses do cartunista e também de seu discurso transgressor e anti-establishment.

    A editora Veneta tem se consolidado como uma das melhores editoras de quadrinhos ao publicar materiais de alta qualidade e com ótimo acabamento. O álbum conta ainda com um prefácio genial de Rogério de Campos, editor da Veneta. A Mente Suja de Robert Crumb é uma das grandes publicações de 2013, além de ser leitura fundamental de um dos autores mais transgressores dos quadrinhos.

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