Bem-vindos a bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira), Filipe Pereira, Jackson Good (@jacksgood) e Rafael Moreira (@_rmc) retornam em mais uma edição para bater um papo sobre quadrinhos, cinema e muito mais.
Duração: 115 min. Edição: Rafael Moreira e Flávio Vieira Trilha Sonora: Rafael Moreira e Flávio Vieira
Arte do Banner: Bruno Gaspar
Nada é sagrado na cultura pop. Nunca foi, e no século XXI ficou mais longe de ser. Esse é um dos principais motivos para que o roteirista Alan Moore (V de Vingança, Constantine) odeie com tanto fervor essa cultura que ajudou a aprimorar, nos anos 80, com seu trabalho revolucionário em inesquecíveis HQ’s. Contudo uma, em especial, ainda recebe grande atenção: Watchmen, desenhada por Dave Gibbons e considerada um dos melhores títulos literários do último século. Pedir para a DC não garimpar uma obra tão farta de conteúdo como essa, seria o mesmo que mandar um cão se conter e não devorar uma pilha de ossos fresquinhos a um metro de distância. E assim em 2012 foi criada a série Antes de Watchmen, aproveitando a fama do filme de 2009, no mais absoluto respeito e devoção as subtramas que conduziram até a fatídica morte do Comediante, numa noite quente em Nova York.
Nesta edição, conhecemos mais do Dr. Manhattan, indo além de sua nostalgia e seu desprezo pela raça humana – algo equivalente ao nosso desdém por larvas e amebas. Tão poderoso quanto Deus, eis um símbolo que une perfeitamente a ciência e a religião sem conflito algum entre os dois conceitos, tal qual fossem um só regendo o universo que existe, literalmente, na palma da mão azul de Manhattan. Em Antes de Watchmen: Dr. Manhattan, Moore talvez ficaria orgulhoso ao ver seu personagem sendo tratado com tanto interesse e especulação por J. Michael Straczynski, que discute conceitos de física quântica para abrir potenciais realidades a história do personagem. Em dado momento, Manhattan percebe que se pode ver o futuro, também pode percorrer o passado e criar uma nova dimensão. Uma em que seu Eu humano ainda existe, se casou, e seus amigos “super-heróis” ainda não entraram na sua vida. Manhattan finalmente aprenderia a controlar o destino, como um relojoeiro, de fato.
E se nunca tivéssemos aceito aquele emprego, ou aquele encontro? E se nunca tivéssemos feito a coisa certa? O Watchmen original já havia discutido isso, algo replicado agora sem a mesma força de antes. Aqui, o gosto de super exploração do material original é tão latente, quanto o forte brilho azulado do Deus que não usa cueca (afinal, ele não se importa com mais nada desde que deixou sua mortalidade para trás). Antes de Watchmen é uma daquelas séries que, por melhor que seja as intenções dos criadores, sempre dá a impressão de oportunista, de sanguessuga do que sobrou de uma obra-prima – como se fizessem um documentário sobre os rascunhos da Monalisa, ou uma série de um personagem secundário de Hamlet, de Shakespeare. Straczynski e Adam Hughes surfam nos eventos que serviram de base para Watchmen, a melhor história em quadrinhos já produzida, e reviraram eventos e detalhes com fome jornalística, e certa criatividade a injetar um novo frescor a trama focada no poderoso Manhattan, e sua eterna melancolia. Talvez se fossemos onipotentes, seriamos assim também.
Antes de Watchmen: Dr. Manhattan nunca quis ser nada além disso, mas uma homenagem válida ao imbatível, ao pináculo das narrativas da nona-arte que revolucionou o modo que encaramos os gibis, antes tidos como um mero e colorido escapismo infantil, nada mais que isso. Ao seguir (muito) de perto os passos memoráveis de Moore e Gibbons, e acrescentar a uma história já repleta de camadas e subtramas algumas novas características, como a infância de Jon Osterman e o diálogo utópico dele com Ozzymandias, a conversa que iria mudar o mundo para sempre, os novos talentos a cargo dessa história clássica da DC farejam o que ainda não tinha sido explorado nesse universo desencantado e inteligente de heróis e anti-heróis, onde o bem e o mal são uma coisa só, e sem jamais tentar superar a genialidade do que veio antes. Eles entenderam que se colocar sob o ombro de gigantes, as vezes, pode ser a melhor coisa. Sorte nossa. Nada é sagrado na cultura pop.
A Troca (Changeling, EUA, 2008) acabou sendo um dos filmes mais diferenciados da carreira de Clint Eastwood como diretor por causa da temática progressista dentro de uma absurda história real de uma mãe que tem seu filho sequestrado e a polícia devolve outra criança no lugar.
A telefonista e mãe solteira Christine Collins tem seu único filho levado por um estranho em 1928 e a polícia de Los Angeles devolve outra criança. Com a ajuda do reverendo Gustav Briegleb, ela entra em uma luta contra toda a polícia e acaba desbancando a corrupção dentro da corporação.
O roteiro original de J. Michael Straczynski acerta ao seguir cronologicamente os fatos reais. Ao fazer sumir a criança logo no começo e ver que poucos policiais cooperam com o caso, já temos uma ideia do enorme drama que aquela mãe vai enfrentar. Ser apresentada à outra criança pela polícia com o intuito de posar para os jornais só piora a sua psiquê e estabelece o grande dilema ético do filme.
A teoria de conspiração que começa a permear a sua cabeça faz com que ela seja presa por policiais corruptos e vá parar no sanatório. A não cooperação com o médico da instituição demonstra a qualidade inquebrável da protagonista e é aí onde reside a força do roteiro. A luta incansável da protagonista só revela outros temas relevantes ao filme: ela precisou do auxílio do reverendo Gustav Briegleb para tirá-la do sanatório e ajudar na batalha dentro do tribunal contra o departamento de polícia.
A atuação de Angelina Jolie é contida em quase a totalidade do filme, conseguindo criar uma mãe arrasada e sem vida, já que está sem seu filho. Ela se sobressai principalmente nas cenas dentro do sanatório, as mais memoráveis e que mais dialogam com a premissa do filme. John Malkovich, por sua vez, dá vida ao reverendo revoltado com a corrupção imoral da polícia de Los Angeles, suas nuances e atuação não comprometem a obra.
A direção de Clint Eastwood continua sublime na composição do quadro e no posicionamento da câmera. Porém, ele opta pelo tom melodramático na direção geral dos atores, o que faz cair um pouco a qualidade de A Troca.
A fotografia de Tom Stern (que trabalha com Clint desde Dívida de Sangue) é característica de filme de época, mas não é realista; possui um tom um pouco onírico. A edição de Joel Cox (que começou a trabalhar com o diretor em Rota Suicida) em parceria de Gary Roach (edita seus filmes desde Cartas de Iwo Jima) é invisível na maior parte da narrativa, não há um plano memorável.
A Troca é dos filmes mais diferenciados de Clint Eastwood por causa da temática, que junto de Invictus e Cartas de Iwo Jima talvez seja a trilogia mais progressista do cineasta ao longo da sua carreira como diretor.
A Netflix revolucionou a forma de consumo de entretenimento doméstico ao dar à luz um serviço de stream barato e com a garantia de certa qualidade em títulos e serviço. A televisão estava perdendo seu status de janela para o mundo desde o advento do Youtube, porém a Netflix, e sua apresentação de uma nova forma de consumir e produzir conteúdo, veio para jogar a última pá de cal na TV comum, que deverá reinventar-se caso queira reverter esta situação.
Uma das grandes amostras deste poder da empresa e de suas produções originais foi a disputa pelos prêmios de TV no Globo de Ouro, desde suas primeiras indicações em 2013 até vitórias em 2015 com a pioneira House of Cards.
Com o intuito de não ser uma TV no computador, a Netflix amplia o poder que o espectador tinha com o uso do controle remoto e garante em suas séries a experiência do formato antes informal de maratonas. Temporadas mais curtas, em geral com 12 ou 13 episódios, recursos humanos de altíssima qualidade — contando com nomes como David Fincher, Joel Schumacher, Kevin Spacey, entre outros —, assim estabeleceu-se que mais do que séries, o público estava diante de “um filme de 13 horas”, como ficaram conhecidas. Tal título é real ao menos em intenções, mas nem sempre em formato. Em diversas de suas séries originais não foi possível reconhecer este tipo de formato, pois a edição e direção não foram capazes de instigar a audiência a manter-se por horas em frente ao computador. Neste ponto, a nova série original da Netflix criada pelos Irmãos Wachowski (Matrix, O Destino de Júpiter) é, junto com a primeira temporada de House of Cards, o melhor representante deste novo formato.
Com dificuldades de agradar a público e crítica desde seu segundo filme, Matrix, os Irmãos Andy e Lana Wachowski trazem consigo para esta série alguns dos temas mais recorrentes de seus argumentos para um montagem de conceitos de ficção científica e religiosidade, bem como uma crítica a corporações que já faz parte da filmografia do casal de irmãos.
Na trama, oito pessoas estão mentalmente ligadas e têm a capacidade de acessar lembranças, sentidos e habilidades de seus companheiros de trajetória, orientados pelo personagem Jonas (Naveen Andrews) contra os chamados “Sussurros”, membros de uma organização secreta incumbida de caçar os sensitivos ao redor do mundo. Embora possua um plot bastante parecido com o terrível Cloud Atlas – A Viagem, a equipe aproveitou-se das 12 horas de exibição para produzir uma série baseada na celebração da diversidade e na quebra de fronteiras, dedicando boa parte de seus episódios ao simples desenvolvimento de personagens, mesmo que em detrimento do pano de fundo.
A coisa não é nova e reflete ligeiramente Avatar e as ideias ficcionais sobre o planeta e uma consciência coletiva, mas aqui o que realmente conta é o nível apurado da narrativa a partir de técnicas simples como fade outs e montagem para confundir o espectador com relação a qual cenário está frequentando, bem como sobre a união destes cenários. Mas é com o acesso dos personagens aos seus companheiros, e assim a intersecção de todos os elementos narrativos e imagéticos que leva a diversos momentos de catarse, simples e extremamente emocionais.
Com os três primeiros episódios dirigidos pelos criadores da série, estes soam um tanto quanto arrastados, pois dedicam-se de maneira nada sutil a estabelecer a mitologia da série, bem como seu posicionamento político. Para tanto, lançam mão de diálogos demasiadamente expositivos capazes de causar uma certa estranheza aos espectadores mais atentos. Porém, a partir do quarto episódio, o foco é no desenvolvimento dos personagens como seres de sensibilidade única, que apesar de suscetíveis às conspirações e agruras comuns da vida, tornavam-se mais fortes diante da ação coletiva. O intuito político disso é quebrar as fronteiras geográficas e humanas, e insinuar que mais importante do que o acidente geológico, ao qual chamamos de lar, é necessário olhar para o mundo com mais sensibilidade e empatia, e que esta empatia seria a chave para a resolução dos conflitos.
E a empatia permeia toda a série, mas especialmente em seu quarto episódio, que se encerra com uma das mais belas cenas musicais da TV, não só pelo contexto bem elaborado, mas também por contar que a essa altura os personagens já eram queridos em todas suas nuances. Outra característica da série é não se prender a pudores, exibindo cenas de sexo tão ousadas quanto bonitas.
Extremamente humanista e diverso, o coração de Capheus; a força de Sun; a liderança de Will; a inteligência de Nomi; a compaixão de Kala; as dúvidas de Lito; a explosão a partir da dor de Wolfgang e a fragilidade de Riley formam, como um todo, um grande ser humano a ser celebrado.
Marcando o início de J. Michael Straczynski nos roteiros de The Amazing Spiderman, De Volta ao Lar assinala o malfadado retorno de Peter Parker ao manto do herói aracnídeo, pouco depois de ele ter decidido se aposentar para usufruir biblicamente de sua esposa, a supermodelo Mary Jane Watson. A volta ao vigilantismo causou um racha no recém-consumido casamento, e Mary Jane parou de comunicar tudo ao marido, chegando a ponto de viajar a trabalho sem avisá-lo. O avião onde a mulher sairia sofre um acidente, e Parker não aceita o fato da esposa ter morrido. Movido pela culpa, ele toma seu uniforme para extrair o máximo de informações do possível paradeiro dela. Após aceitar que sua amada estava morta, Peter descobre onde estava sua prometida e a resgata, mas o trauma faz os dois se separarem de vez.
O recado na secretária eletrônica não poderia ser mais explícito ao mostrar a miséria sentimental em que o fotógrafo está. Melancólico, a resignada contraparte do herói filosofa sobre o próprio deslocamento, tanto o atual causado por seus poderes e responsabilidades, quanto na adolescência, quando nerd. Ver os meninos e meninas interagindo com o mundo é o suficiente para filosofar; qualquer situação é pretexto para ser tristemente poético.
A carência afetiva de Peter faz com que o surgimento do misterioso Ezekiel seja ainda mais assustador, especialmente pelas semelhanças de poder e aparência – o último fator, culpa do desenhista John Romita Junior, que compensa a caracterização com violência gráfica verossímil. O espirituoso homem faz perguntas, não menos intrigantes que sua persona, a respeito da identidade e da origem dos poderes do Cabeça-de-Teia. O desaparecimento repentino faz pensar, tanto o herói quanto seu público, que Zek, não passa de uma ilusão, e a dúvida ainda persistiria por um longo período.
A latência na cabeça de Parker aumenta tanto que decide visitar sua antiga escola, um lugar abandonado, distante dos tempos menos inglórios de sua própria juventude. Diante de um atentado confuso, Homem-Aranha salva as vidas do colégio, mas apresenta uma nova faceta, parte da reinvenção de sua identidade secundária que decide lecionar.
A nova postura de Peter é pontuada pelas inúmeras referências visuais a aranhas espalhadas pelos cenários de Romita Júnior. Logo, Ezekiel invade o novo ambiente do herói, sem sequer esperar por seu conforto, basicamente para afirmar novas revelações sobre o usufruir dos poderes aracnídeos, comum a ambos os personagens. Rico, Zek contrata o então professor para trabalhar para si como cientista, na verdade um pretexto para conversar sobre a ameaça de Morlun, um ser misterioso e de poderes magnânimos.
O primeiro embate entre vilão e herói é violentíssimo: corre boa parte da metrópole americana e envolve muitos inocentes. Mesmo sem seu uniforme, o Cabeça-de-Teia é perseguido implacavelmente, abrilhantando a caça pelo lápis magnífico de Romita Junior, especialista em apresentar machucados, lesões e escoriações, além de conseguir, como poucos, exibir uma destruição de pequenas e médias proporções em ambiente urbano. Tudo em perfeito equilíbrio para não tornar caricato seus traços, transformando o cenário em algo verossímil, caso uma luta entre humanos tão poderosos acontecesse no mundo real.
Os paralelos que o depressivo herói faz mentalmente são interessantes, especialmente quanto a discussão que propõe a respeito dos bullys anabolizados, que não diferem tanto dos espécimes que praticam o mal nos corredores do high school e que aterrorizam as cidades metropolitanas. O medo acomete o Aranha, e a proximidade da morte em meio à luta faz o herói tomar decisões drásticas.
O aspecto centrado por JMS à frente do título do Homem-Aranha é a origem mitológica do personagem, associando seus poderes à sua personalidade, por isso o uso irrestrito de Ezekiel e o aprofundamento na psique do personagem. De Volta Ao Lar termina com um gancho revelador que quebra paradigmas, o que em si resume a boa condução de seus autores, ao menos no começo desta parceria.
J. Michael Straczynski é um escritor americano com uma lista de trabalhos bastante extensa e diversificada, que inclui roteiros para animações, áudio dramas, séries de TV, filmes, quadrinhos de heróis e graphic novels. Apesar de ser mais popularmente reconhecido por sua longa jornada nos roteiros do Espetacular Homem-Aranha (uma das séries do aranha rendeu a ele e sua equipe, inclusive, um Eisner de melhor história), talvez um de seus melhores trabalhos seja a graphic Midnight Nation. A revista, que chegou às bancas americanas pela primeira vez em 2000, é uma das mais impressionantes que eu já tive o prazer de ler, talvez A mais impressionante.
Midnight Nation – O Povo da Meia-Noite, acompanha a vida de David Grey. David é um detetive da polícia de Los Angeles que vive apenas para seu trabalho e vai, inconscientemente, afastando todos os que o cercam. Sem nenhum amigo, recentemente abandonado pela esposa e vivendo com depressão, o detetive não tem outra escolha a não ser dedicar-se aos casos sob sua responsabilidade. Em uma investigação de assassinato o policial é atacado por uma espécie de ser sobrenatural que rouba sua alma e o condena a viver em um mundo paralelo habitado por outras pessoas abandonadas pela sociedade. Acompanhado pela bela Laurel, David tem 12 meses para concluir sua jornada até Nova Iorque e reclamar sua alma perdida. O detetive e sua guia têm que enfrentar os desafios da estrada e cobrir toda a distância a pé, enquanto David vai lentamente perdendo sua consciência e se transformando em uma das criaturas que o atacou primeiramente.
É impressionante como a história criada por Straczynski pode ser tão respeitosa com pontos que critica e, ao mesmo tempo, questionar estes mesmo pontos de forma ácida e bem elaborada. A jornada do personagem principal levanta dezenas de questões sobre a sociedade e os dogmas religiosos, sem nunca se voltar à imposição da opinião do autor. Durante as páginas, o roteirista coloca de forma muito coerente questões acerca da marginalização de uma parcela da população, da forma como algumas pessoas se agarram a sua fé, de como a força de vontade de uma pessoa pode ser minada e até destruída por aqueles que a cercam, dentre outras coisas. A questão religiosa, em diversas partes da aventura, aparece de forma mascarada ou evidente e sempre fazendo menção a uma doutrina diferente. Boa parte da mensagem contida em Midnight Nation vem da arte caprichosa de Gary Frank.
A arte impressiona tanto quanto os argumentos contidos em seu roteiro. O traço primoroso de Frank, perfeitamente colorido por Matt Milla, retrata muito bem a luta interna do personagem principal. Durante o caminho, David vai se perdendo e seu espírito é quebrado pouco a pouco. Essa transformação fica evidente na expressão facial do personagem, em sua forma de se portar e na forma de falar com Laurel. Neste ponto, o traço de Frank, as cores de Milla e os diálogos de Straczynski trabalham de forma conjunta com uma coerência que eu nunca havia visto. A arte é belíssima e cumpre seu papel de passar ao leitor alguns pontos que soariam extremamente forçados no diálogo; uma excelente aula de quadrinhos.
Talvez o maior charme da história, entretanto, não tem nada haver com David ou Laurel. O personagem das primeiras páginas da revista está incluído na narração de como JMS chegou até a ideia principal contida em Midnight Nation, e esse personagem é o próprio roteirista. Em um pequeno texto narrado em duas ou três páginas, o autor da história conta sobre um período de sua vida exatamente igual à vida do personagem principal. Sem amigos com quem se importar e sem família por perto, ele conta que passou exatamente pela mesma situação de David (de uma forma um pouco menos lúdica, talvez) e que essa “aventura” o fez passar a notar que existem duas realidades em um mesmo espaço: durante o dia, o movimento e o barulho das pessoas se relacionando e interagindo, durante a noite a melancolia e o desespero dos solitários invisíveis que procuram maneiras de deixar de compor O Povo da Meia-Noite.
A editora Mythos relançou a versão encadernada da história, em março deste ano, com capa dura e papel de altíssima qualidade. A versão da editora conta com o prefácio de Straczynski e, apesar de não ser muito barata, tenho certeza que você não se arrependerá de tê-la. Com uma história em diferentes camadas para análise, inúmeras mensagens e questões subjetivas, roteiro impecável e a arte mais bonita e funcional que eu já vi, Mignight Nation – O Povo da Meia-Noite é uma HQ belíssima que merece ser adquirida, lida e relida mais de uma vez.
As oito histórias que formam Antes de Watchmen foram lançadas nos Estados Unidos de maneira simultânea. Como o Brasil não comporta o formato de edições com vinte e cinco páginas, a Panini Comics optou pelo lançamento dos arcos fechados de cada personagem com edições mensais em estilo das edições especiais da editora: capa cartonada e papel couché.
A obra que se tornou icônica e considerada por muitos o livro sagrado dos quadrinhos é também um produto altamente rentável. Ainda mais depois da versão cinematográfica dirigida por Zack Snyder. O que explica porque, mesmo quando a história original é fechada, uma grande equipe de roteiristas e desenhistas se reuniram para apresentar novas histórias dos personagens criados por Alan Moore e David Gibbons.
Antes de Watchmen – Coruja foi o primeiro arco escolhido para o lançamento no país. Apresentando um dos grandes personagens da série original que destaca-se pelo lado humano, além de uma representação que nos traz a mente outros mascarados que fazem da noite o ambiente para a ação.
Dividida em quatro partes, a primeira é a tradicional apresentação da personagem. Daniel Dreiberg é um jovem que vive em uma família desestabilizada por um pai castrador e agressivo. A figura do herói Coruja é seu ponto de fuga e maneira para lidar com a própria realidade. A devoção ao mascarado leva-o até seu esconderijo, onde pede por um treinamento que resultará na aposentadoria do Coruja original, Hollis Mason, que entrega o manto a Daniel.
A trama avança anos a frente para outro encontro importante na vida de Daniel. Em um patrulhamento, se depara com outro encapuzado conhecido como Rorschach, nascendo uma parceria. Juntos formam uma dupla de bom e mau herói. Em meio a uma perseguição, Coruja encontra uma dominatrix de um clube de sadomasoquismo intitulada Dama do Crepúsculo que provoca a ira de Rorschach por ser uma prostituta, mas promove simpatia em Daniel. A partir desde ponto a história se divide mostrando as duas personagens de maneira paralela.
Coruja e Rorschach têm em comum um passado tortuoso. Viveram em famílias desequilibradas com pais agressores mas lidaram de maneira diferente com tais problemas. Talvez a distinção destas escolhas foi o que fez J. Michael Straczynski inserir tão ativamente a personagem de Rorschach dentro de um arco que não o seu. Se o contraste torna-se maior, os paralelos narrativos parecem falta de um argumento mais interessante.
Coruja ao lado da Dama do Crepúsculo investigam uma série de assassinatos de prostitutas, ignorados pela polícia por serem pessoas marginais à sociedade. Rorschach se revela um devoto religioso que encontra em sua paróquia e na amizade com o pastor um breve elemento de apoio. Ainda que as tramas se interliguem, não se justifica as diversas páginas dedicadas a mostrar o passado de outro mascarado que não Coruja.
Se a função desta nova imersão no universo Watchmen é apresentar um enredo anterior ao original, que se fizesse introduzindo novos elementos ou conduzindo uma boa história aventureira dos heróis (a série solo do Coruja poderia ser uma simples investigação criminal). Já que seria impossível e inadequado exigir a profundidade da obra original.
Os bons elementos da história se concentram em pequenos detalhes que dialogam com a série original, apresentando situações que antes conhecíamos apenas pela citação das personagens. São estes elementos que costuraram todos os arcos já que o epílogo anunciado no projeto nunca foi lançado.
Este também foi o último trabalho de Joe Kubert que saiu de cena em seguida.