Tag: suicídio

  • Resenha | I Am Not Okay With This

    Resenha | I Am Not Okay With This

    Considerado pela Organização Mundial da Saúde como o “mal do século” e a quarta principal causa de incapacitação no mundo, a depressão é hoje responsável pela interferência direta no cotidiano das pessoas, afetando desde a capacidade de trabalhar, estudar, como também o aproveitamento da própria vida. O Brasil hoje possui dados alarmantes de pessoas depressivas, sendo o segundo país das Américas com maior número de pessoas nesta condição, equivalentes a 5,8% da população, perdendo apenas para os EUA.

    As causas da depressão podem ser uma combinação de fatores, desde sociais como genéticos, e aliado ao fato das dificuldades no tratamento — menos de 25% dos pacientes que tomam antidepressivos continuam o tratamento por seis meses e uma grande parcela dos que param o fazem devido aos efeitos colaterais — e os preconceitos sofridos por muitos daqueles que padecem de tal transtorno, acendem um sinal de alerta sobre a importância da prevenção e da conscientização de toda a sociedade em relação à saúde mental.

    Desse modo, é natural que tais temas sejam cada vez mais discutidos em obras dos mais diversos gêneros. Algumas de forma responsável, outras não. Charles Forsman, aparentemente, se interessa muito pelo tema. Seus quadrinhos possuem um tom amargo e angustiante, além disso, tem como assinatura seu traço característico e temas que giram em torno de transtornos mentais envolvendo adolescentes e jovens adultos.

    Dono de um traço que remete diretamente aos Peanuts de Charles Schulz, Forsman se tornou conhecido com a publicação de The End of the F***ing World, publicado no Brasil pela Conrad e recentemente adaptado em uma série já cancelada pela Netflix. Curiosamente, esse traço fino e caricato, que nos remete diretamente à infância, causa uma estranheza direta pelos temas abordados. Ainda que Charlie Brown seja um personagem depressivo, Forsman eleva isso a uma leitura incômoda e difícil.

    I Am Not Okay With This, publicado pela editora Skript através do sistema de financiamento coletivo Catarse, retoma tais temas. Aqui acompanhamos a vida de Sydney, uma adolescente solitária que ganha um diário de sua orientadora estudantil como forma de expor seus sentimentos. Dessa forma, nossa relação com a personagem se dá por meio desse diário. Assim, o tom de monólogo em uma crônica episódica de sua vida permeia toda a obra. Através do diário sabemos da morte de seu pai e o quanto isso ainda afeta sua família, além das angústias, paixões e o vazio existencial da personagem.

    Ainda que a trama utilize o diário da protagonista para que conheçamos a personagem, o autor utiliza, em certos momentos, uma narrativa bifurcada na qual o viés da protagonista é sobreposto pelos fatos de certos personagens. Isso ocorre em dois momentos importantes da trama, ao demonstrar o dia-a-dia da mãe de Sydney e seu sofrimento, como também ao manter um olhar afastado envolvendo a violência sofrida por Dina, amiga e paixão da personagem.

    Ainda que utilize um diário como forma narrativa, o leitor percebe um sentimento de isolamento crescente da personagem. A cada página, um novo tijolo é posto em volta dela em relação à sociedade. Sua dificuldade de se expressar aumenta gradualmente, oprimida pelas próprias emoções. Essa dificuldade é demonstrada pelo autor sob um viés fantástico que diz muito sobre o caminho autodestrutivo da personagem. A violência, raiva e automutilação parecem ser a resposta da escuridão que aumenta lentamente e afasta Sydney de todos. Seu entorno não parece se dar conta do que está acontecendo com ela, algo tão comum atualmente. Mas o próprio diário e a narrativa bifurcada do autor demonstram que tais problemas não são exclusividades apenas dela, mas da nossa sociedade em geral.

    Em que pese os contornos obsessivos que o movimento “antispoiler” tem tomado — sem qualquer viés crítico e descolado da discussão da própria obra —, é necessário reforçar o caráter trágico do fim da obra, com a personagem sem qualquer capacidade de superar seu isolamento e optando por uma solução final. Forsman é direto. Não há nenhuma dramaticidade ou sentimentalismo. A crueza de seu trabalho atinge o ápice na página final.

    E sobre isso, não tenho condições técnicas ou intelectuais para esclarecer se a abordagem do autor foi a mais correta. Mas não me cabe ser censor da obra apenas pelo impacto que ela pode ter causado em mim. De qualquer forma, causa estranheza como a editora Skript anunciou esse quadrinho desde o seu lançamento como uma simples HQ alternativa, o que convenhamos, claramente não é só isso. Ainda assim, a resenha do Lucas, do site Melhores do Mundo, parece ter servido de alerta para que os editores se deem conta da responsabilidade que tem nas mãos e que um simples aviso na própria obra não é o suficiente.

    I Am Not Okay With This é um retrato opressivo, sombrio e contundente sobre nossos dias. Se Forsman parece não saber a melhor forma de retratar alguns temas, em contrapartida, tem muito a dizer sobre a vida de uma parcela da sociedade cujas emoções e problemas excedem sua capacidade de expressá-los.

    Se você sofre de depressão ou algum outro tipo de transtorno mental não hesite em buscar ajuda.

    Fontes e links úteis:
    https://www.cvv.org.br/
    https://www.setembroamarelo.org.br/
    https://www.paho.org/pt/topicos/depressao
    http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/no-dia-mundial-da-saude-oms-alerta-sobre-depressao/
    https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/d/depressao
    https://www2.samp.com.br/fique-por-dentro/noticias/janeiro-branco-brasil-esta-entre-os-paises-com-maior-numero-de-casos-de-depressao-e-ansiedade.htm
    SOLOMON, A. O Demônio do Meio-Dia: Uma anatomia da depressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
    DUNKER, C. O Palhaço e o Psicanalista: Como escutar os outros pode transformar vidas. São Paulo. Planeta, 2019.
    https://oilychuck.wordpress.com/
    https://melhoresdomundo.net/a-gente-lemos-i-am-not-okay-with-this-com-muitos-spoilerezes/

  • Crítica | As Virgens Suicidas

    Crítica | As Virgens Suicidas

    poster-as-virgens-suicidas-as

    Sofia, aquela menina tímida que interpretou (terrivelmente) a Mary Corleone de O Poderoso Chefão III, carrega consigo um dos nomes mais pesados da Indústria Cinematográfica do século XX: Coppola.

    Tendo isso em mente, pode-se imaginar que uma pressão enorme, tanto por parte dos profissionais desse meio quanto da expectativa dos fãs de seu pai, deve ter caído sobre ela quando foi anunciada em 1999 que dirigiria e escreveria seu primeiro longa-metragem: As Virgens Suicidas. Hoje em dia Sofia Coppola tem em seu currículo quatro longas, mas não deixa de ser válido mencionar o primeiro deles, já que para uma obra de estreia, um filme desse porte não pode nunca ser deixado em segundo plano.

    Produzido por Francis Ford Coppola e baseado em um romance homônimo de Jeffrey Eugenides, As Virgens Suicidas mostra a fase final da vida de cinco irmãs do ponto de vista de um grupo de garotos que cultivam grande fascinação por elas. É importante mencionar a diferença de idade entre elas que é de apenas um ano, o que significa que o cenário consiste em uma casa onde vivem simultaneamente cinco garotas na adolescência. Mantidas pelos pais autoritários e religiosos em isolamento domiciliar, as irmãs Lisbon tornam-se ídolos inalcançáveis para os meninos que, sendo seus vizinhos e frequentando a mesma escola, analisam e especulam sobre cada aspecto da vida delas que são capazes de observar. Da perspectiva da narração (feita por Giovani Ribisi, ator que também está presente na obra posterior da diretora, Encontros e Desencontros), um desses garotos tenta, a partir dessa obsessão, entender os motivos que as levaram a cometer suicídio (quem disser que é spoiler, leia o título do filme) de uma maneira no mínimo bizarra.

    Com uma direção inspirada e controversa, Sofia conta em um turbilhão de cores, gestos e expressões uma história poderosa e comovente. A fotografia do filme é delicada, feminina e incitante, exibindo em muitos momentos um brilho ofuscante e uma aura sonhadora. A trilha sonora é impecável, contando com a introspecção eletrônica da maravilhosa banda francesa “Air” e algumas faixas da banda de rock “Sloan”.

    O pontapé inicial do enredo é a tentativa de suicídio da irmã mais nova Cecilia, logo de cara deixando claro que a melancolia dessa história não será manipulada pelos recursos clássicos de suspense e drama que normalmente vemos em filmes que focam a natureza feminina – os girl flicks. Em vez disso, a diretora carrega sutilmente ao longo do filme a tristeza de uma vida limitada por dogmas culturais no contexto da juventude dos subúrbios americanos. Geralmente ao assistir a filmes que relatam “dramas adolescentes”, o que se vê é uma verborragia um tanto novelesca, além de conflitos banais que acabam por serem resolvidos magicamente por fórmulas igualmente banais.

    O diferencial dessa obra é que para entender o que se passa com as irmãs Lisbon, é preciso acima de tudo observar atentamente aos detalhes, que são o ponto forte desse filme. Um bom exemplo é a cena do cinema, em que o talento de Sofia consegue de uma belíssima maneira transmitir as emoções implícitas na situação proposta, e com apenas uma frase, culminar no grande clímax da história do carismático casal que lidera o elenco das personagens, Kirsten Dunst e Josh Hartnett. Alguns críticos atiraram tomates dizendo que as personagens são superficiais e mal construídas, quando na verdade, para um observador externo, é impossível definir os sentimentos e anseios que ditam o comportamento de pessoas reais e, consequentemente, o que se vê pode não fazer perfeito sentido dentro dos parâmetros de uma história linear simplesmente por não conhecer o contexto das vidas delas por completo.

    Para enxergar a realidade da (des)motivação dessas garotas é preciso imaginar o que não se vê, através de gestos e detalhes, justamente como fazem os garotos que espionam as vizinhas com binóculos para satisfazer sua curiosidade. Compreender plenamente o que se passa com elas é uma tarefa impossível, afinal sabemos que muitos pais passam a vida toda sem ter a menor pista de quem seus filhos realmente são. No final o espectador ainda se encontra sem saber exatamente o que concluir, deparando-se com um desfecho ambíguo e aberto a diversas interpretações diferentes, o que faz jus ao peso dessa história e ao realismo das circunstâncias em que ela toma forma.

    Com atuações sensíveis de Kathleen Turner e James Woods, As Virgens Suicidas é um filme que pode comover ambos os gêneros, especialmente para o cinéfilo que gosta de analisar as personagens sem que sua caracterização seja mastigada e entregue de bandeja pelo autor. Não é um filme fácil, mas não pelos motivos óbvios. É perfeitamente inteligível mesmo para o espectador mais leigo, porém exige um total envolvimento com a trama e as personagens para que se compreenda o que ele realmente tem de melhor. A princípio, na história pode parecer que existe uma falta de propósito, mas pra quem gosta do Cinema que expressa através da linguagem visual, é um prato cheio e uma deliciosa viagem de sutileza e melancolia.

    Texto de autoria de Thiago Debiazi.