
Atenção: o artigo a seguir contêm spoilers do final da série.
O despertar cotidiano transformado dubiamente em cenas agressivas foi o primeiro encontro do público com Dexter, série do canal Showtime, programa este que, após oito temporadas, chega ao seu derradeiro fim.
Desde a retomada das séries americanas, há pouco mais de dez anos, Dexter foi – perdoem o trocadilho – uma das mais viscerais dos últimos tempos. Poucas causaram uma comoção tão grande em seu público, muitas vezes mascarando um roteiro mal executado dos últimos anos da série.
Em diversos episódios, durante estes oito anos, o público permaneceu fiel, prendendo o fôlego a cada revelação, e, tomado pela catarse. A incredulidade por se reconhecer em uma personagem que, embora com um desvio perturbador, refletia dúvidas existenciais presentes em qualquer ser humano.
A oitava temporada da série foi composta com a percepção de que seria a última. Porém, desde a quarta temporada, Dexter perdeu a excelência unânime após oscilar em histórias ou desfechos que não conseguiram se sustentar como o público esperava (a morte de Rita no final da quarta temporada foi um excelente gancho, mas o desenrolar desta trama não foi bem sustentado pelos roteiristas).
O último ano da série utiliza-se de um interessante argumento que, resgatando o passado da personagem, teria potencial para se tornar um excelente desfecho. Introduzir a doutora Evelyn Vogel como a segunda idealizadora do Código criado por Harry Morgan, aproximava Dexter de uma análise psicológica, finalizando o ciclo de sua trajetória que se iniciou com a quebra de seu sistema autômato, reconhecendo em si não um monstro, mas vislumbrando um ser humano e, por consequência, a noção dos sentimentos.
Tentando esconder as reais intenções da doutora para promover um dos ganchos da temporada, a personagem de Vogel parece estranha a princípio. Não há uma intenção declarada além de fazer de Dexter um objeto de estudo. Sua mentora ganha maior profundidade – e posteriormente um também profundo corte no pescoço – quando fala de sua família, da psicopatia de um de seus filhos que, por competição, assassinou seu próprio irmão, e do elemento traumático que o acontecimento se tornou em sua vida.
A presença da Dr. Vogel seria melhor executada se focasse na concepção do Código e de como a doutora e Harry condicionaram Dexter a um caminho específico por medo de que o garoto não conseguisse adquirir qualquer sociabilidade – elemento possível que o público reconhece temporada a temporada. Ao ser colocado dentro de um sistema pré-estabelecido, o garoto Dexter intensifica sua índole psicopata que se transforma nestes últimos oito anos.
Como há a necessidade de um mistério, um criminoso a ser perseguido, a trama explora um assassino que retira parte da massa encefálica das vítimas e um possível sucessor do Código de Harry. Além disso tudo, há ainda os desdobramentos naturais da relação Dexter / Debra na temporada.
Como série prestes a se finalizar, é questionável o porquê de abrir um leque tão amplo de histórias em vez de focar em fechar as tramas de maneira satisfatória. Se o assassino neurocirgião revela-se filho da Dr. Vogal e este elemento torna-se importante para o desfecho, o mesmo não pode ser dito de Zack, o possível pupilo.
A relação de Dexter e Debra volta aos trilhos mas, como na temporada anterior, comete cenas desnecessárias. Primeiro, é necessário refletir se havia a necessidade, na sexta temporada, de Debra se apaixonar por Dexter. Não seria o amor fraterno suficiente para que ela protegesse o irmão ao descobrir que ele era um assassino em série? A história surge de maneira tão agressiva ao público e ao mesmo tempo é menosprezada tão rapidamente que, no sétimo ano, mal é mencionada. Explicitando a relação de irmãos sem nenhum elemento sexual.
Se tais histórias no cerne da narrativa poderiam ser melhores estruturadas, retirando seus excessos, a sub-trama de Masuka parece um subterfúgio para dar destaque, no último momento, a uma personagem que sempre foi o alívio cômico. A trama ocupa parte de alguns episódios e, assim como a história de Zack, não leva a lugar algum. Masuka sempre foi o companheiro de Dexter no trabalho, nunca o enfoque. Mas, como se para não esquecê-lo, os roteiristas decidiram dar-lhe uma pequena história quando poderiam focar melhor em todos os desfechos necessários (Quinn se torna um interessante personagem que nem é lembrado para chorar a morte de Debra).
Após metade da temporada, Hannah retorna como era esperado e anunciado desde o início da produção do último ano. Sua presença dá um pouco de fôlego à trama, inserindo em Dexter a camada de um amor pleno, já que ela reconhece ambos os lados da personagem: pai e serial killer.
E será este mundo duplo a tensão do desfecho. Dexter tentando fugir com Hanna e Harrison-filho enquanto Oliver Saxxon / Daniel Vogel mata a própria mãe e, posteriomente, deseja matar Debra.
O antes sistemático serial killer se apresenta vulnerável ao expor o filho e se aventurar em uma fuga com uma mulher procurada pela justiça. Evidenciou-se o amor pleno que o casal tem entre si. Escolher a família em vez da pulsão assassina é mais uma transformação de Dexter que, desde a temporada anterior, ao jogar sua coleção-troféu de lâminas de sangue, nega seus rituais assassinos embora não cesse de matar (até o modus operandi muda ao evitar cerrar os mortos que são jogados ao mar).
Como exigência do público, e certo padrão narrativo errático, é necessário que o desfecho tenha ou um final feliz ou uma morte trágica que obrigatoriamente promova a emoção. Assim, Debra, que leva um tiro no penúltimo episódio, mesmo após uma breve recuperação, sofre um AVC que a deixará para sempre em coma.
O último episódio marca a jornada final da personagem e coloca um ponto final nesta trilha dupla entre a família residente (a irmã) e a fuga apaixonada (com Hannah e Harrison-filho).
A necessidade de símbolos e cenas finais épicas faz com que Dexter roube o corpo da irmã, após desligar seus aparelhos respiratórios, para realizar um último ritual de cuidado em pleno mar. Mesmo que a princípio pareça inverossímil, o ritual da água como transformação para a morte é um elemento presente na vida da personagem. Como irmão mais velho que sempre cuidou da irmã, há a necessidade de manter cuidado até o final. Por isso o ritual de que o corpo da irmã seja embebido pelo oceano.
Reconhecendo na morte de Debra uma das perdas mais importantes da sua vida, Dexter assume seu potencial destrutivo e, de maneira racional, abandona o próprio filho e a futura mulher, ciente de que sua natureza só desperta a dor e, assim, fechando a cena simbólica da morte, caminha em encontro à tempestade, como se enfrentasse a própria fúria.
Matar Dexter seria um daqueles desfechos que o público espera, como se sua morte expiasse a dor causada. A morte seria solução fácil para quem reconhece o próprio potencial destrutivo. A maior pena para o serial killer é permanecer vivo, vivendo a culpa por ter destruído todos a quem amou, Harrison pai, Rita, Hannah, Debra, seu próprio filho, e ainda ter deixado no caminho um rastro de desolação e decepção.
A cena final em que Dexter senta à mesa com um rosto impassível nos dá a sensação de que a personagem viverá o resto da vida mais isolado do que antes, vivendo da culpa dos próprios atos que destruíram aquilo que não só conheceu como amou de fato.
Uma reportagem em um portal americano mencionou que boa parte da rentabilidade de Dexter como série se devia ao seu início muito bem executado e as boas personagens que fizeram o público, mesmo em momentos ruins, acompanhá-las.
Adiciono a esta afirmação a sensação de que, em parte, a identificação do público ajudava a manter a fidelidade com a série. Reconhecendo nos passageiros sombrios de cada um certo senso de justiça em um serial killer responsável por retirar o lixo da sociedade. Além do próprio dilema de se ver na personagem principal com suas diversas descobertas emotivas e psicológicas que desestabilizaram aquilo que conhecia como si próprio. Um reconhecimento mordaz, sem dúvida, mas que justifica também o fascínio pela série, pela cumplicidade com que o público reconhece em Dexter uma figura moralmente ruim, mas dotada de sentimentos como qualquer pessoa comum.
Mesmo com oscilações, o desfecho final da série não é tão infeliz quanto se previra, até porque o desfecho é um detalhe que muitas vezes não agrada à maioria do público. Porém, fica a impressão de que gastou-se tempo demais no início da temporada desenvolvendo uma trama não significativa e depois deixaram desfechos que poderiam ser possíveis (Quinn, como citado, e Hanna / Harrison). Resultando em um final fraco mas esperado em uma temporada com poucos bons elementos.
Como série, Dexter demonstrou que há vida em outros canais fechados além da HBO e demonstrou ao máximo o talento dramático de Michael C. Hall, grande responsável pela dubiedade que tanto incomodou o público. Destacando-se em muitas cenas em que deu vazão ao drama, bem como em momentos furiosos em seu ritual de morte.
Porém, compreender a total potência da série é ainda impossível. Caberá ao tempo observar como a série será vista daqui a cinco, dez anos. Por enquanto, é válido afirmar que, enquanto exibida, Dexter foi um grande sucesso. Fica a torcida para que Michael C. Hall não caia no esquecimento e consiga ainda maiores papéis de destaque em uma promissora carreira.
A lua de Miami não mais sangra.
