Tag: Alex Sharp

  • Crítica | Nomadland

    Crítica | Nomadland

    Se fosse um sentimento, seria timidez. Um signo, peixes, e uma comida, light. Nomadland virou o queridinho das premiações de 2021, e a resposta vaza de cada poro, ou melhor, cada enquadramento do filme. Ao adaptar o livro homônimo de Jessica Bruder, Chloé Zhao migrou a sensibilidade asiática para a América, e assim, fez um faroeste contemplativo, sem cavalos e armas porque os tempos são outros, agora que o homem volta ao oeste porque a cidade não tem mais emprego, e o que sobrou foi a tentativa de ser nômade em pleno século XXI. Nesse contexto de Depressão Econômica não-oficial, ninguém conseguiria encarnar esse drama nos olhos melhor do que, provavelmente, a maior atriz americana viva: Frances McDormand. Uma atuação feita para proteger qualquer filme atrás de si, mas Zhao faz de McDormand o seu coringa na manga, extraindo da história a força da resistência, individual e coletiva, ao debater na mais realista das ficções, os problemas talvez crônicos de uma nação e seu povo.

    Eis então um exercício de Zhao sobre os limites da sensibilidade no cinema americano, mais e mais obcecado no lucro dos filmes da Marvel, e no poder do espetáculo barulhento. A diretora claramente tenta alcançar o nível de inteligência emocional de um Ingmar Bergman, observando por exemplo as mulheres de Persona, como se o filme fosse o mais fino véu de seda, sob a luz da lua cheia. Em solo americano, isso é uma proeza, visto que o país, e seus críticos, não são reconhecidos exatamente por sua sensibilidade artística – daí o termo “artsy”, usado por eles para zoar filmes de arte europeus que não têm ação. Da mesma forma que Ang Lee filmou dois cowboys se apaixonando com extrema leveza e intimidade, Zhao faz de Nomadland um microscópio incoerente para se analisar o cidadão mais banal, refém de uma crise econômica sem fim no país mais rico do mundo (ainda), e sem uma casa própria para chamar de sua.

    E digo incoerente porque o longa, talvez pela falta de habilidade atual de Zhao, é uma experiência um tanto incompleta por pecar demais no ritmo da história. Às vezes, o drama se arrasta não a ponto de nos desinteressar, mas de enfraquecer a potência dos relatos de uma gente esquecida (muitos reais, para transmitir a sensação de documentário). Contudo, em dado momento, McDormand senta com um grupo de mulheres também entediadas para refletirem sobre a vida, os homens, o futuro, e por ser um filme de momentos pontuais, tais instantes brilham, discretos, em uma grande direção de atores que nos faz engajar com cada diálogo, cada lágrima. Nomadland é obra de detalhes, sendo que um sorriso de McDormand é mais espalhafatoso que qualquer explosão de Velozes e Furiosos. Os gestos que vemos em tela, aqui, dos refugiados em suas vans, ainda que presos num sistema injusto, pagam tributo aos deuses antigos do cinema, e que tanto contribuíram a refinar o gênero, seja com um close bem dado, ou com a força de um beijo na hora certa.

    Fato é que os Estados Unidos deixou escorrer pelos dedos a ilusão do sonho americano, e o que sobrou é um país de segundo mundo, cheio de desempregados e uma Amazon que os emprega, como gado atrás da cerca. Agindo como um retrato poderosamente leve do momento socioeconômico do país, Nomadland mostra um povo sobrevivente e cético, sem rumo sob um céu de brigadeiro, na espera da “chuva” passar. O que mais podem fazer, se rebelar contra o império? Zhao evita tais questionamentos, passa longe de um A Classe Média Vai ao Paraíso, mas conjura uma obra amparada por um silêncio esmagador, orgulhosamente introspectiva a ponto de nos tornar íntimos dos seus personagens e seus sentimentos em questão de minutos. Mesmo assim, acredito que esta não será a obra-prima de Zhao, até porque não é para tanto. Há espaço ainda para aprimorar o domínio dramático dessa jovem cineasta chinesa, mas certamente o longa a colocou no mapa, e no Olimpo de Hollywood. Veremos.

  • Crítica | Como Falar Com Garotas em Festas

    Crítica | Como Falar Com Garotas em Festas

    John Cameron Mitchell é um realizador peculiar. Seus filmes de maneira geral se baseiam em batidas emocionais das personagens, e as tramas são mais ou menos impulsionadas de acordo com as emoções pontuadas em cada sequência; se um título mais ou menos polêmico como Shortbus girava em torno de sexo como um catalisador pra inúmeros contextos íntimos facilmente ignorados em função do sexo em si, e o aclamado Reencontrando a Felicidade (cujo título nacional é impossivelmente entreguista) apresentava o luto como algo a ser assimilado ao invés de tratado como algo nocivo, era de se esperar que uma adaptação de um conto de Neil Gaiman (um autor naturalmente generoso com os aspectos emocionais de suas obras) fosse ainda mais sensível e aflorado, de acordo com as explorações típicas de seu diretor/co-roteirista – e Como Falar Com Garotas em Festas, inspirado na história homônima de Gaiman (leia nossa resenha aqui), de fato se apresenta como um veículo perfeito para seus interesses narrativos. Nem tudo funciona o tempo todo, mas o filme traz doçura e diversão suficientes pra compensar a maneira acochambrada com a qual tenta conjugar suas diferentes partes e propostas.

    O longa introduz Enn (Alex Sharp), o protagonista, como um jovem e entusiasmado punk na Londres dos anos 70 que, na companhia de seus amigos Vic e John, inadvertidamente, após um bagunçado show no clube local (comandado por uma peculiar Nicole Kidman, no papel de Boadicea, uma punk da cena OG, em mais uma parceria com Mitchell após ser exaltada por Reencontrando a Felicidade) acaba encontrando um esquisito conluio de jovens e conhecendo Zan (Elle Fanning, arroz-de-festa em filmes habitualmente mais excêntricos do que a média), uma alienígena presente na terra junto de outros ETs por tempo limitado em função de uma “experiência”. Em busca de algo mais autêntico nas horas que restam a ela no planeta (na forma da música e da cultura punk), Zan escapa de seus pares e acompanha Enn em uma incursão pelo incerto cenário da juventude de Croydon (um epicentro artístico londrino), enquanto é perseguida pelos outros membros de sua espécie (participações menores mas não menos estranhas de nomes como Ruth Wilson, Matt Lucas e Edward Petherbridge), que pretendem interromper suas novas “experiências” para garantir a Retirada, o evento de passagem onde os membros mais velhos da raça devoram os mais jovens.

    Talvez as descrições de trama e ambientação soem mais mórbidas do que ambas realmente são, embora a bizarrice de todos estes elementos seja provavelmente maior do que se pode imaginar, mas o ponto é que Mitchell empresta leveza e doçura consideráveis a tudo que se vê ao longo do filme, de penetrações anais e perspectivas evolutivas cósmicas a um embate/confraternização entre punks terráqueos e coloridos alienígenas agregados – e mesmo que algumas coisas não combinem e não façam muito sentido, a ideia primordial de rebelião jovial contra normas e expectativas permanece intacta e, se a atmosfera geral apresenta a filosofia de vida punk como uma abordagem ideal diante da necessidade de se viver coisas mais intensas e originais, até mesmo a baderna da narrativa vem em auxílio do filme. Não há como prevenir o desperdício de subtramas e eventos que pareciam do interesse do filme, e frustra como nada é aprofundado ou examinado com maior atenção, mas é uma troca aceitável conforme Sharp e especialmente Fanning garantem um núcleo afetivo eficiente e conseguem ancorar uma obra que talvez não tenha muita certeza do que almeja configurar.

    Apesar de centralizar a ação em uma cena punk original e, portanto, baseada tanto em música quanto em atitude, Como Falar Com Garotas em Festas prioriza um ritmo ágil para contar sua história, e tanto o roteiro (de autoria de Mitchell e Philippa Goslett) quanto a montagem de Brian A. Kates estruturam o filme menos como uma corrida contra o tempo e mais como um sprint contra as perspectivas sociais-biológicas da época, a bem da verdade não muito diferentes de anos recentes; há apenas uma inserção musical significativa, dominada com ferocidade por Elle Fanning na única chance de Zan para fazer valer as paixões que carrega e divide com Enn em um palco, culminando em algo transcendental para ambos, mas esta acaba sendo suficiente – senão pela ambientação, ao menos pelo desenvolvimento das personagens.

    Traído por um ato final que não se sustenta (nem desperta muito interesse) a partir do que vimos ao longo da projeção, Como Falar Com Garotas em Festas ao menos conta com um desfecho mais cálido do que a melancolia de seus instantes derradeiros indicava. E mesmo que seja irregular e superficial demais pra ser devidamente reconhecido, é um filme simpático e pulsante que ganha apreço por seus predicados mais básicos, e pela facilidade com que transforma estranheza e lugares-comuns em manifestações genuínas de sentimentalismo e bom humor, mesmo diante de possibilidades nada alegres e bastante impessoais. Nada mal para uma rocambolesca trama amorosa entre um punk sem rumo e uma alienígena fatalista.

    Texto de autoria Henrique Rodrigues.

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