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  • Crítica | Nomadland

    Crítica | Nomadland

    Se fosse um sentimento, seria timidez. Um signo, peixes, e uma comida, light. Nomadland virou o queridinho das premiações de 2021, e a resposta vaza de cada poro, ou melhor, cada enquadramento do filme. Ao adaptar o livro homônimo de Jessica Bruder, Chloé Zhao migrou a sensibilidade asiática para a América, e assim, fez um faroeste contemplativo, sem cavalos e armas porque os tempos são outros, agora que o homem volta ao oeste porque a cidade não tem mais emprego, e o que sobrou foi a tentativa de ser nômade em pleno século XXI. Nesse contexto de Depressão Econômica não-oficial, ninguém conseguiria encarnar esse drama nos olhos melhor do que, provavelmente, a maior atriz americana viva: Frances McDormand. Uma atuação feita para proteger qualquer filme atrás de si, mas Zhao faz de McDormand o seu coringa na manga, extraindo da história a força da resistência, individual e coletiva, ao debater na mais realista das ficções, os problemas talvez crônicos de uma nação e seu povo.

    Eis então um exercício de Zhao sobre os limites da sensibilidade no cinema americano, mais e mais obcecado no lucro dos filmes da Marvel, e no poder do espetáculo barulhento. A diretora claramente tenta alcançar o nível de inteligência emocional de um Ingmar Bergman, observando por exemplo as mulheres de Persona, como se o filme fosse o mais fino véu de seda, sob a luz da lua cheia. Em solo americano, isso é uma proeza, visto que o país, e seus críticos, não são reconhecidos exatamente por sua sensibilidade artística – daí o termo “artsy”, usado por eles para zoar filmes de arte europeus que não têm ação. Da mesma forma que Ang Lee filmou dois cowboys se apaixonando com extrema leveza e intimidade, Zhao faz de Nomadland um microscópio incoerente para se analisar o cidadão mais banal, refém de uma crise econômica sem fim no país mais rico do mundo (ainda), e sem uma casa própria para chamar de sua.

    E digo incoerente porque o longa, talvez pela falta de habilidade atual de Zhao, é uma experiência um tanto incompleta por pecar demais no ritmo da história. Às vezes, o drama se arrasta não a ponto de nos desinteressar, mas de enfraquecer a potência dos relatos de uma gente esquecida (muitos reais, para transmitir a sensação de documentário). Contudo, em dado momento, McDormand senta com um grupo de mulheres também entediadas para refletirem sobre a vida, os homens, o futuro, e por ser um filme de momentos pontuais, tais instantes brilham, discretos, em uma grande direção de atores que nos faz engajar com cada diálogo, cada lágrima. Nomadland é obra de detalhes, sendo que um sorriso de McDormand é mais espalhafatoso que qualquer explosão de Velozes e Furiosos. Os gestos que vemos em tela, aqui, dos refugiados em suas vans, ainda que presos num sistema injusto, pagam tributo aos deuses antigos do cinema, e que tanto contribuíram a refinar o gênero, seja com um close bem dado, ou com a força de um beijo na hora certa.

    Fato é que os Estados Unidos deixou escorrer pelos dedos a ilusão do sonho americano, e o que sobrou é um país de segundo mundo, cheio de desempregados e uma Amazon que os emprega, como gado atrás da cerca. Agindo como um retrato poderosamente leve do momento socioeconômico do país, Nomadland mostra um povo sobrevivente e cético, sem rumo sob um céu de brigadeiro, na espera da “chuva” passar. O que mais podem fazer, se rebelar contra o império? Zhao evita tais questionamentos, passa longe de um A Classe Média Vai ao Paraíso, mas conjura uma obra amparada por um silêncio esmagador, orgulhosamente introspectiva a ponto de nos tornar íntimos dos seus personagens e seus sentimentos em questão de minutos. Mesmo assim, acredito que esta não será a obra-prima de Zhao, até porque não é para tanto. Há espaço ainda para aprimorar o domínio dramático dessa jovem cineasta chinesa, mas certamente o longa a colocou no mapa, e no Olimpo de Hollywood. Veremos.

  • Crítica | Uivo

    Crítica | Uivo

    Quad

    A produção de Rob Epstein e Jeffrey Friedman aborda de modo mais poético e lírico a Geração Beat que Na Estrada, tomando a figura e a obra de Allen Ginsberg como temas. Howl, a obra em que o filme se baseou, abusa do lúdico e do etilismo. O registro cinematográfico é composto de cenas equivalentemente alucinógenas, salientando a sábia escolha de usar uma animação das mais primitivas – remontando aos clássicos de Walt Disney – para ilustrar as delirantes memórias do protagonista/narrador.

    Muito mais modesto que seu primo dirigido por Walter Salles, Uivo é mais competente em demonstrar as desventuras dos beats, até por não ter a pretensão de ser algo grandioso. Sua simplicidade é algo louvável, mas não o torna medíocre, muito graças à boa encarnação do (ainda não estelar) James Franco. A produção é quase artesanal, dado o seu caráter, e confessional ao extremo, competente em reproduzir a aura do escrito original.

    A variação de estilos cinematográficos garante um novo fôlego à obra, que varia entre thriller jurídico, mockumentary, beatnik, épico etc. O estourar de palavras e letras, que formam os poemas, faz um contraponto curioso com os objetos de consumo que também teimam em aparecer na tela. A falta de apego material de Ginsberg é mostrada, evidenciando os poucos bens que importavam para ele – seus óculos, sua máquina datilográfica e objetos de uso “marginal”.

    A falta de traquejo de James Franco ao ler as poesias em público é incômoda e diferente de suas boas narrações – o defeito representa o deslocamento de Allen em relação ao mundo, suas preferências carnais e a forma com que é tratado como artista iniciante em uma época em que nenhuma dessas práticas era explorada e discutida de forma igualitária e justa. Ele era um astro fora de órbita, mesmo na galáxia em que orbitavam Jack Kerouac e Neal Cassaday. A negação da existência de uma “geração” demonstra com maestria o seu pensamento. Ainda que essa declaração tenha um forte apelo, há nela algo eufemístico, visto que (ao menos no roteiro), Ginsberg deixa claro que se sentia rejeitado até mesmo pelos dois amigos, e muito por isso se deve o fato de eles não formarem um movimento, sendo apenas escritores que buscavam vender mais.

    A empatia pelo personagem é automática e nem é tanto pela belíssima poesia – utilizada de forma inteligente, pontual e nada enfadonha – mas também pela fragilidade que ele transparece.

    Para a promotoria, Howl era uma literatura suja, imoral, que propagava obscenidades, não só para os letrados, mas também ao alcance dos incautos e dos adeptos da moral e bons costumes. A disputa no tribunal não filma Ginsberg como réu; como se a batalha fosse ideológica, de dois pólos: um conservador e outro amoral e pró-arte. O que se julga é a obra e não o autor, e o resultado é favorável a ela, garantindo-lhe o direito à livre expressão.

    O final contém os destinos dos próximos a Ginsberg e resulta numa confissão positiva do autor, que, depois de muito procurar, parecer ter finalmente achado o seu lugar ao lado de seu parceiro e, claro, com seu trabalho como escritor. Uivo é um bom retrato de época e acerta demais na ambientação e no espírito daquele período.