Bem-vindos a bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira), Filipe Pereira (@filipepereiral) e o convidado Matheus Fiore (@matheuusfiore) retornam para mais um episódio da Agenda Cultural, e comentam sobre os principais lançamentos de cinema no mês de fevereiro — com diversas indicações de filmes do Oscar —, o programa de entrevistas de Jerry Seinfeld e o quadrinho Meu Amigo Dahmer, publicação da DarkSide Books.
Duração: 94 min. Edição: Julio Assano Junior Trilha Sonora: Flávio Vieira
Arte do Banner: Bruno Gaspar
A impunidade diante de um sistema policial sempre injusto e parcial às condições classicistas e raciais de um povo são o tema principais que movem uma mãe em busca da famosa justiça com as próprias mãos em Três Anúncios Para Um Crime. Destacando o peso da memória de sua filha estuprada e morta, cuja investigação foi encerrada pela polícia local. É nessa situação difícil que a mãe coloca três anúncios na cidade, em cada um deles pedindo explicações sobre o que acontecerá agora, caso aconteça, com os criminosos protegidos sob a aparente égide das leis do Missouri. Uma ação inconformada que simboliza o codinome pelo qual o estado é mais conhecido: The Show Me State! (Estado do Prove-me!), ou seja, não é lá que um bando de policiais bundões iriam tentar fingir que está tudo normal, abafar um caso de grave feminicídio jovem para manter a normatividade pública.
Outra novidade: Dramas como esse exibido, em que a protagonista enfrenta bravamente fora (e dentro) de casa, em um compêndio de cenas às vezes hilárias e outras bastante pesadas, são situações que ocorrem todos os dias em diversos lugares de violência, inclusive com maior índice de violência do que aquela visto na película, como nos atuais estados da Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro, onde a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado por, bem, ser negro. Num mapa de violência muito além do que qualquer mãe, mesmo com cem filhos, pudesse suportar. Ao traçarmos panoramas desta magnitude, vemos como é urgente o debate da violência seja pela mídia e instituições de segurança pública que sempre abafam nossos genocídios, seja pelas plataformas modernas que podemos usar para contextualizar o problema e buscar força para soluções que só chegam, teoricamente, de quatro em quatro anos.
O cineasta Martin McDonagh, vindo de comédias de humor negro como Na Mira do Chefe, conseguiu relativamente entender e traduzir, na forma de personagens, essa aflição social vivida por todas as tribos nem tão civilizadas assim. Uma angústia por isonomia, fazendo a releitura da vida real conforme uma visão mais leve e com muita influência do cinema dos irmãos Coen, desenvolvendo com boa sustentamento um víes que muitos julgam como ofensivo ou de mal gosto: ironizar situações extremamente pesadas por si só.
Ao longo da projeção, nota-se como Três Anúncios para um Crime é um filme indeciso. Não sobre o que mostra, mas como expõe certos desdobramentos básicos, como escolher se é enfim um filme de situações, ou de personagens tão curiosos quanto. O diretor parece ter noção desse desafio, mas ao tentar equilibrar a força das suas intenções pessoais, enquanto autor fazendo cinema autoral pra premiações anuais, e a força natural de um enredo que incluiu casos de barbárie contra uma jovem mulher, e por conseguinte com sua instituição familiar, falha por não achar uma coerência particular ao conto de uma mãe contra Deus, o mundo e a realidade deste.
O autor, sendo corajoso, tenta abraçar a sociedade num projeto aberto a tanto, contando com bons agentes no enredo em ordem de esclarecer suas mensagens principais (O xerife de Woody Harrelson resume tudo aquilo que o filme expressa, sendo o elemento personificado de uma racionalização sobre tudo), mas por sua clara inexperiência com um material rico de significados, e também pela falta de sensibilidade na composição e no manejo dessa realidade mencionada antes, fica claro que a apropriação de um mundo de relações e valores cada vez mais obscurecidos e labirínticos, devido a aparente impunidade e revolta dos cidadãos perante a justiça mundana, resulta numa indecisão significativa que atrapalha a execução da obra, refletindo num filme incoerente e possivelmente fragilizado por reflexões posteriores advindas dele – as quais certamente surgirão por parte de vários espectadores, exibições afora.
Mesmo assim, desequilibrado entre seus fatores, a produção é uma dessas que, por mais formulado que seja para o Oscar, ainda consegue ser gostoso de se assistir (algumas soluções visuais são boas e mostram o domínio da iconografia que existe em McDonagh), a ponto desse mergulho narrativo, tipicamente estadunidense, e repleto de problemas universais, beirar certa diversão reflexiva. E sobre a atuação de Frances McDormand aqui? Quase duas horas de deleite total. Inestimável.
Depois do excelente Na Mira do Chefe o diretor e roteirista Martin McDonagh volta às telas com Sete Psicopatas e um Shih Tzu. Apesar do primeiro ainda ser melhor, esse segundo ainda cai bem como uma comédia de humor negro e metalinguagem a respeito do cinema e violência, que lembra os bons tempos de Guy Ritchie com Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes e Snatch – Porcos e Diamantes.
Com um excelente elenco, que junta Colin Farrell, Sam Rockwell, Christopher Walken, Woody Harrelson e outros, o filme começa com o escritor Martin (Farrell) tentando bolar uma ideia a respeito de Sete Psicopatas com histórias interessantes de vida, e com a ajuda de amigos (Rockwell e depois Walken), vai acrescentando em seu bloco de notas um psicopata com uma história mais interessante e exótica que outra.
Porém, conforme vai passando, podemos ver que a conversa dos personagens dentro do filme é cada vez mais metalinguística, e cada vez mais referencial ao próprio filme e ao que está acontecendo, subvertendo totalmente a experiência inicial do longa, que nos levava para um caminho tradicional do filme de “máfia-com-perseguição-e-vingança” (e que o próprio filme tira sarro de sua escolha).
Quando é finalizada a subversão e a história vira totalmente auto referencial e se preocupa somente com isso, um pouco da mágica e da graça acabam, tornando tudo uma paródia dos filmes violentos de Hollywood, com seus finais grandiloquentes e redenções ainda mais carregadas de emoções milimetricamente construídas. Outro ponto positivo é que em momento algum os personagens são tratados como arquétipos tradicionais de “mafioso” ou “psicopata”, o que dá espaço a piadas e situações muito boas, principalmente com Woody Harrelson, cada vez melhor.
A intenção da sátira é louvável, mas seu resultado acaba fazendo o filme perder um pouco da graça e da intenção original, apesar de garantir algumas risadas, porém, mais pela graça do escândalo do que pela inteligência da construção do clímax.