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  • Resenha | Serena – Ian McEwan

    Resenha | Serena – Ian McEwan

    Não é fácil escrever, quanto mais expressar as suas ideias de um jeito memorável. Em Serena, nesse caso específico, temos algo ainda mais complicado: a dificuldade imperiosa de não se ter, entre tantos títulos primorosos de uma única carreira, nenhum para destoar a qualidade entre todos. Para o inglês Ian McEwan (autor do recente e extraordinário Enclausurado, uma parada obrigatória), inexplicavelmente verborrágico aqui, o drama de uma jovem universitária envolvida até o pescoço com a segurança nacional da Inglaterra é um pretexto desperdiçado para (tentar) nos encantar com uma história de espiões à moda antiga, e que não guarda os verdadeiros aspectos que fazem de McEwan um grande escritor de ficção contemporânea.

    De fato, a história só não é mais fraca e desinteressante, devido a resquícios ainda semi presentes da ótima e marcante prosa de McEwan, e a sua ultra realista ambientação acerca do cenário político britânico dos anos 70. Após se envolver com um amante misterioso, mas cuja aparente influência política abre as portas para Serena adentrar no mundo da espionagem governamental, a jovem de 23 anos vira a própria Alice, caindo num buraco aparentemente sem fim com criaturas que nunca sonhou encontrar, no seu dia a dia. As pessoas que regem o mundo, sempre atrás das cortinas e com suas marionetes, agora falam com Serena em salas fechadas, e a ela passam missões que a inocente agente do MI5 (Serviço de Segurança Britânico) não tem como recusar.

    Assim, no apogeu de uma grande crise política que a Inglaterra enfrentava nos anos 1970, Serena é incumbida de atrair a MI5 um grande escritor em potencial, Tom Haley, que as agências do governo espionam devido a qualidade do seu trabalho editorial. Tom é a típica peça que os governos do mundo todo (em especial, os do primeiro mundo) usam para melhorar a imagem do país em níveis intelectuais, ao invés de deixar que a reputação das grandes potências seja rebaixada a nível global. O próprio Tom reconhece ser uma marionete do sistema, mas bem depois desse plano secreto dar errado, quando espiã e espionado se veem perdidamente apaixonados e mergulhados em problemas que, talvez, nunca conseguirão sair.

    Veja bem: Não há nada de errado em um romance investigativo ser terrivelmente cafona, feito Serena. Muitos nasceram com esse gosto de mofo entre as páginas e sobrevivem muito bem, obrigado, a passagem do tempo. O curioso mesmo é perceber como McEwan, de Amsterdam, Reparação e outros títulos maravilhosos também publicados no Brasil pela Companhia das Letras, consegue cultivar o nosso desinteresse gradual por essa trama usando uma narrativa em primeira pessoa, que em tese tende a nos aprofundar e seduzir-nos no fluxo de consciência de Serena e seus vários amantes, numa realidade de paranoia institucional e poder que, aqui, jamais geram os elementos de tensão e suspense que o autor afinal planeja criar. É evidente que o autor deseja estruturar em suas tentativas frustradas de apreensão, dinamismo, quiçá uma aventura nos moldes por exemplo de O Dossiê Pelicano, um bom contraponto com a obra em questão.

    Em dado momento, ao descrever com zero entusiasmo uma tarde de sábado que os pombinhos Serena e Haley passam juntos, como se esse momento tão breve pudesse ser algo eterno, McEwan prova ser o autor perfeito para devagar sobre o nada, sobre a passagem das nuvens no céu, preenchendo capítulos inteiros com dramas que sua sensibilidade observa de longe, tal um pai indiferente as quedas de um filho recém-nascido. A longo prazo, os efeitos dessa abordagem gélida (ainda que elegante) a esse conto desalmado de espiões corrói as expectativas de qualquer um. Chega a ser impressionante a falta de inspiração que leva o livro a ser uma experiência morna, sem fôlego já bem antes do seu desfecho que, por melhor que este seja (apresentando uma reviravolta que não altera em nada o que veio antes), vencer a letargia desse enredo do autor. Até chegar à sua conclusão já é uma prova de resistência para que, no fim, possa vir algum tipo de recompensa.

    Outros autores já combateram o marasmo e o gelo de suas narrativas enfadonhas apostando em bons personagens, ou ainda, numa boa construção de mundo com arquétipos interessantes e artifícios excitantes, para tornar a leitura minimamente agradável e, de certa forma, até mesmo prazerosa para seu tipo de público – como fica sendo o famoso caso da heptalogia Harry Potter, por exemplo. Se escrever nunca foi fácil mesmo, McEwan tampouco se esforça em Serena para evitar a monotonia de suas óbvias e um tanto caricaturais reflexões sobre as relações humanas, sempre defeituosas e muito melhor desenvolvidas nas outras obras (incomparáveis) do autor, diferente desse interminável romance de 2012 e que não chega, de fato, a lugar algum. Uma pena.

    Compre: Serena – Ian McEwan

  • Resenha | Enclausurado – Ian McEwan

    Resenha | Enclausurado – Ian McEwan

    “Quem é Claude, esse impostor que se infiltrou como um verme na minha família e nos meus sonhos?”

    O útero é um ambiente que todos nós já habitamos, a quarentena do começo dos tempos. Vagina e umbigo são duas portas de saída que, ao cruzá-las, entramos para a trupe de um espetáculo imprevisível cujo maestro, uns chamam de acaso e outros de Deus, Buda, etc . Ao sair pela outra porta, quando o seu show acabou, Brás Cubas viu passar um desfile com todas as eras da humanidade, seus impérios e foguetes, suas guerras e obras-primas, no seminal romance de Machado de Assis. E se Cubas já se foi, sem ainda se desprender do Todo, em Enclausurado temos o exato fenômeno às avessas: um espermatozoide a caminho de virar gente, e que ainda nem se vestiu para participar desse desfile em pleno século XXI. Em suas palavras mora a descoberta do Todo, do teatro do desconhecido, tal um Cristóvão Colombo embrionário defronte ao Novo.

    O distanciamento de Ian McEwan quanto ao mundo que observa e decifra (enquanto feto) é genial, oposto portanto ao espírito de Cubas, analisando tudo o que já viveu no outro lado da existência. Neste caso, tudo ainda está para ser experimentado, mas o autor de Serena jamais opta pelo encanto virginal óbvio que poderíamos esperar. Com uma narração em primeira pessoa memorável, o próprio feto verbaliza, questiona e julga impunemente a lógica do mundo dos adultos e da sua família de intrigas usando de um sarcasmo visceral, enquanto brinca com o seu cordão umbilical, ouve qualquer suspiro que vem de fora e começa a entender que um plano para matar John, o seu pai, começa a ser arquitetado, já no final da gestação, pelo próprio corpo que o aloja, e pelo amante inescrupuloso da mãe, Claude. Como ele poderá salvar John, ou no mínimo, se vingar de um crime à beira de acontecer?

    As influências conceituais de William Shakespeare aqui são tão nítidas quanto o sol do meio-dia. Uma trama de traição e assassinato se desenrola para a agonia do filho do homem-alvo, ligado agora íntima e criticamente à sua progenitora. Antes mesmo de estrear, esse aprendiz ainda não-nascido de Hamlet já é chamado para o despertar da responsabilidade e, assim, ao conhecer a falta de limites de algumas pessoas, averiguar o mundo que está prestes a recebê-lo, sem poupar nada nem ninguém de suas reflexões de marujo de primeira viagem. Enclausurado, da editora Companhia das Letras, é desde o início uma típica obra divertida e rápida de se ler, num jogo absolutamente hipnótico de palavras a darem cabo de questões filosóficas, e um juízo existencialista que todos nós, cedo ou tarde, superficialmente ou não, acabamos deparando-nos ao longo da vida. O desespero fica sendo opcional; a realidade, não.

    O grande fôlego do livro e a sua franqueza muitas vezes irônica acerca do mundano, e os absurdos e contradições da mente e das relações humanas, tornam o romance de McEwan um dos mais criativos exemplares da capacidade argumentativa do seu autor; quiçá o melhor desde A Reparação. Sua sensibilidade choca em momentos de pura catarse observacional, e a sensação é de investigarmos junto do feto-narrador um mundo de fantasia pelo buraco da fechadura, levando em conta que habitamos essa fantasia. O corriqueiro para nós é o assombro misterioso a quem chegou agora e, por isso, olha assustado na janela. McEwan edifica, em poucas páginas, uma visão brutalmente crítica e extraordinariamente coerente de ser parte de uma sociedade complexa, e de como podemos reagir da melhor forma possível a suas circunstâncias sistemáticas a partir dos nossos próprios valores – naturais, ou não. Livraço.

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  • Crítica | Um Ato de Esperança

    Crítica | Um Ato de Esperança

    Fiona Maye e seu parceiro Jack estão claramente em crise conjugal, vivem um relacionamento onde um ignora o outro em nome de suas profissões – ela juíza, muito bem classificada e ele um professor – e já no início do filme de Richard Eyre isso é utilizado como base na historia contada pelo roteiro de Ian McEwan, e que é baseado no livro do mesmo. A personagem de Emma Thompson está envolta em um caso familiar, tema que é a especialidade de sua vara, e sua decisão  em um caso de separação de gêmeos siameses mexe com a opinião pública. Não bastasse seu trabalho estafante, seu par, interpretado por Stanley Tucci declara com todas as palavras que não está satisfeito com o pé que a relação dos dois está.

    O chamado a aventura de Um Ato Esperança demora a acontecer, e enquanto a trama real presente na sinopse não ocorre, se assiste a deterioração do casamento da eminente juíza, em uma brincadeira narrativa que desdenha da mesma por ter como trabalho resolver imbróglios familiares mas sem conseguir resolver os seus próprios.

    O filme não é explicito, mas discorre sobre um drama bem comum a vida da mulher moderna, que não aceita ser dependente do marido ou de qualquer outro tipo de homem, e que tem como desafio conduzir sua vida pessoal em paralelo com seu trabalho, e mostra uma personagem bastante humana e passível de erros. O caso posterior a que se debruça envolve uma criança com leucemia, que tem chance de ter uma transfusão de medula, mas que é impedida por seus familiares Testemunhas de Jeová de o fazer, e isso gera nela um conflito mental severo.

    Tecnicamente a obra de Eyre é bastante correta. Fotografia, montagem, trilha são corretas, não atrapalham o andamento da trama, e o roteiro se desenrola sabiamente de modo gradual, permitindo assim que o principal aspecto positivo do filme se destaque, no caso, Thompson, que entrega uma atuação muito emocional, embora  seja contida e sem nenhum overacting. Aos poucos, se desenrola o caso, e a juíza passa a visitar Adam (Fionn Whitehead), o rapaz  que precisa da transfusão, e os dois se envolvem emocionalmente, ao ponto dela começar a opinar sobre o que seria melhor para o rapaz.

    O desenrolar deste relacionamento suscita discussões sérias, como qual é o limite das autoridades judiciais e como elas devem interferir nos casos julgados, além de estabelecer uma discussão moral (mas não moralista) de como se deve ou não respeitar os preceitos religiosos e a liberdade de crença, e o caso ético posto diante da mulher faz até seu grande problema pessoal deixar de ser tão urgente, embora obviamente ainda a atinja a questão de seu casamento estar falindo. O final é um pouco atrapalhado, e contradiz boa parte da construção mais madura e menos emocional, a melancolia faz o filme perder um pouco de sua força, mas a atuação de Thompson prossegue ótima mesmo com isso, assim como a escada que Tucci faz para a heroína da trama, e mesmo que não seja o melhor dos finais, ele soa lógico, e levanta elementos de discussão importante, a respeito dos limites religiosa e sobre a falência da instituição casamento.

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  • Crítica | Amor Obsessivo

    Crítica | Amor Obsessivo

    Mesmo reconhecendo que a linguagem escrita difere da cinematográfica, há aqueles que se incomodam quando sua obra predileta sofre modificações necessárias em uma adaptação. Um romance dentro de um filme é uma transposição impossível devido aos parâmetros estruturais que devem ser convertidos de maneira adequada, tudo para não perder a intenção original do autor e ser uma obra íntegra como longa-metragem.

    Baseado no romance Amor Sem Fim de Ian McEwan, Amor Obsessivo foi transposto de maneira parcial às telas. A bela linguagem formal do autor é naturalmente deixada de lado, visto que é impossível de ser inserida em um roteiro. Paralelamente a isso, a densidade dramática composta por situações simples, movidas pelo acaso e determinantes na vida de seus personagens, foi também esquecida no roteiro de Joe Penhall.

    Na trama, um acidente de balão em um parque em Londres é a situação-limite encontrada para expor o drama. Joe, um professor universitário, e outros presentes no local tentam prestar socorro às vítimas, mas são incapazes de impedir a fatalidade. É nesse momento delicado, compartilhado por estranhos, que surge Parry (Rhys Ifans), um dos socorristas que acaba se apaixonando pelo professor em um misto de amor e obsessão.

    Interpretada por Daniel Craig, a personagem de Joe foi bem reconstruída nas telas. No romance, a personagem narra a própria história enquanto a produção evita a narração em off e o transforma em um docente de uma universidade – originalmente, era um escritor científico –, um caminho correto para que, em cenas de aulas, a personagem apresente suas definições sobre o mundo, estabelecendo levemente parte do drama denso de McEwan.

    O dilema central situado na obsessão crescente de Parry perde a imparcialidade e se transforma em um drama com cenas de thriller de suspense. A força da obra original, que é a análise das relações e a fragilidade humana, é posta de lado para concentrar-se na obsessão, o tema mais banal da obra inicial.

    As mudanças são necessárias quando se trata de uma adaptação literária, mas, ao escolher somente um viés, dos diversos propostos pelo autor, a trama densa transforma-se em um fraco drama linear. Uma má execução que Christopher Hampton, roteirista de Desejo e Reparação, outro romance de McEwan, evitou: compôs um roteiro capaz de apresentar os dramas das personagem e a intenção fatalista que circunda a obra do autor. A reflexão que adensa as páginas do livro se transformou em um jogo de um homem solitário, obsessivo e doente, desintegrando a tensão das relações.

    Se comparações entre original e a adaptação enfraquecem argumentos, sempre favoráveis às obras originais, não há, com ou sem romance, profundidade suficiente que faça da produção uma história a ser recomendada. Explorando levemente o drama da obsessão, perdeu-se a profundidade original e não houve coragem suficiente que fizesse da obra uma trama de suspense. Funciona melhor como um complemento ao romance. Em outro caso, melhor optar pela obra original.