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  • Resenha | O Erro – Elle Kennedy

    Resenha | O Erro – Elle Kennedy

    Em observação às obras lançadas nos últimos anos no país, bem como a lista de livros mais vendidos, não é surpresa afirmar que o young adult se tornou um gênero importante para o mercado. O jovem foi redescoberto como um leitor e consumidor fundamental, fator que tem se retroalimentado em novos autores escrevendo diretamente para o público-alvo em uma linguagem direta e coloquial.

    A série Off Campus da canadense Ellen Kennedy mantém a tendência ao explorar o Ensino Médio americano, o famoso high school, como ambiente para apresentar personagens típicos como garotas tímidas, astros do esporte de beleza ímpar, em tramas simples e focadas no entretenimento.

    Lançada pela Paralela, selo editorial da Companhia das LetrasO Erro é o segundo volume da série intitulada no país como Amores Improváveis. A série composta por 4 livros e lançadas originalmente entre 2015 a 2016, buscava registrar narrativas de um grupo de amigos pertencentes a mesma escola, apresentando, como demonstra o título, histórias amorosas improváveis, aliadas a conquistas esportivas e a diversão tradicional de jovens sadios prestes a entrar na vida adulta.

    Na trama, Logan é o típico adolescente talentoso no esporte, dono de uma personalidade charmosa que, aliada a beleza, conquista as mulheres. Porém, o personagem está apaixonado pela namorada do melhor amigo e prevê um futuro difícil a sua frente ao lidar com esse conflito e também devido ao pai alcoólatra. Até que um dia, como se espera naturalmente, ele conhece a tímida Grace.

    A narrativa se estabelece a partir da visão padrão do colégio americano, inicialmente fortalecendo arquétipos para depois quebra-los parcialmente. O casal da trama segue a estrutura de opostos que se atraem: o mocinho famoso da escola que parece malvado e a menina comum que conquista seu coração. A história narrada pelos dois personagens alterna os ponto de vista, explorando, tanto ansiedade masculinas como femininas concentradas na juventude.

    Embora outras narrativas do gênero sempre se mantenham desequilibrada ao unir uma trama de entretenimento, humor e erotismo, Kennedy sabe dialogar com naturalidade sobre tais polos. Principalmente, por seguir a risca a métrica de que a trama apresenta adolescentes falando com leitores adolescentes. Nenhuma cena sexual envolve descrições rebuscadas, mas se alinha e descreve as sensações mais naturais que qualquer adolescente sentiria se envolvido dessa maneira, uma autenticidade funcional ao seu público-alvo.

    Focado em adolescentes, é natural que os conflitos sejam extremos, afinal, as personagens estão em uma fase de amadurecimento em que o imediatismo ainda é uma das tônicas. Embora seja perceptível a condução de alguns conflitos apenas como drama dentro da trama, o enredo fluí pelo carisma das personagens.

    O Erro é uma narrativa rápida, feita para distrair os leitores, principalmente os jovens, em uma trama direta. Aos leitores jovens, o diálogo é mais forte e pode lhes transmitir uma mensagem mais profunda, ainda que, como outros young adults o final se ancora no mítico final feliz. Um contraponto oposto de narrativas maduras que nunca poupam o leitor de dramas severos.

    Compre: O Erro – Elle Kennedy.

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  • Resenha | Como Falar com Garotas em Festas

    Resenha | Como Falar com Garotas em Festas

    Sandman encontra Machado de Assis

    Como Falar com Garotas em Festas (Quadrinhos na Cia.), escrito por Neil Gaiman e ilustrado pelos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá, é o tipo de história que só poderia ter saído mesmo do pai de Sandman. A trama roteirizada por Gaiman é construída do usual ao coletivo mitológico, sempre destacando, ou relembrando, a máxima de que nada é o que parece.

    Começa com um lugar-comum: um jovem desengonçado é convidado junto com o amigo popular para uma festa em uma república feminina. O jovem desengonçado não consegue falar com as mulheres e o amigo popular tenta animar o companheiro para a aventura com as mulheres desconhecidas. Entram, um muito confiante, o outro com baixa autoestima.

    Cada rapaz segue um caminho diferente: enquanto o popular logo parte para cima da dona da festa, o desengonçado tenta conversar o melhor possível com alguma mulher sozinha. O nervosismo o atrapalha, por isso escolhe ouvir mais do que falar. Logo percebe que a maioria das mulheres dali são intercambistas. Contudo, não fica animado como o amigo popular ao saber disso, mas desconfiado com a coincidência de todas não serem dali.

    Quando o desengonçado passa a perguntar sobre a origem delas é que Gaiman desata toda sua criatividade mitológica. Aquelas adolescentes não são apenas corpos humanos, mas seres diversos que escolheram, naquele momento, habitar um invólucro de carne para aprender sobre a vida na terra. Daí ao final, o leitor surpreende-se com as origens de cada uma. Este o grande trunfo da história: a diversidade de seres que podem se esconder em carne e osso.

    Do ponto de vista gráfico, a preferência por cores quentes, sombras em degradê e formas assimétricas, transforma a atmosfera do quadrinho em algo retirado de um sonho. Os desenhos são esguios, contornos bem definidos e um trabalho magnífico de quadros construídos em aquarela. As cenas obedecem a um rigoroso controle de roteiro e imagem, de forma que, harmonicamente, são construídos momentos de tensão, suspense e desfecho.

    HQ simples, eficaz e excelente. Mas não se engane, a simplicidade é sempre conseguida com muito esforço e experiência. Não por acaso trata-se de uma parceria entre Gaiman, pai daquela que é considerada uma rara unanimidade entre as HQ’s, Sandman, e os irmãos que ganharam um Prêmio Jabuti (o maior prêmio literário nacional), pela adaptação de “O alienista”, de Machado de Assis, em quadrinhos.

    No final da história ainda encontramos esboços dos trabalhos de Fábio Moon e Gabriel Bá. HQ mais do que recomendada.

    Texto de autoria de José Fontenele.

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  • VortCast 48 | O Que Estamos Lendo?

    VortCast 48 | O Que Estamos Lendo?

    Bem-vindos a bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira), Jackson Good (@jacksgood), Thiago Augusto Corrêa (@tdmundomente) e Rafael Moreira (@_rmc) se reúnem para mais uma série de indicações literárias que vão desde literatura fantástica a romances policiais, ficção científica a reportagens jornalísticas.

    Duração: 126 min.
    Edição: Thiago Augusto Corrêa e Flávio Vieira
    Trilha Sonora: Flávio Vieira
    Arte do Banner: 
    Bruno Gaspar

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    Indicações Literárias

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    O Sangue dos Elfos – The Witcher: Volume 3 – Andrzej Sapkowski (Compre aqui 1 | 2)
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    Batismo de Fogo – The Witcher: Volume 5 – Andrzej Sapkowski (Compre aqui 1 | 2)
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  • Resenha | Anne Frank: A Biografia Ilustrada

    Resenha | Anne Frank: A Biografia Ilustrada

    Registro fundamental da história, O Diário de Anne Frank se consagrou como um importante relato de uma testemunha vivendo sob a opressão da Segunda Guerra Mundial. Uma narrativa autoral com qualidade suficiente para se tornar também uma obra literária, tornando-se um relato de resistência e inspiração.

    Anne Frank nasceu como uma alemã livre. Quinze anos depois, quando morreu de tifo em um campo de concentração, sua vida havia se transformado por completo. A garota e sua família foram testemunhas da violência do Terceiro Reich contra qualquer um que era considerado impuro. Amadureceu e viveu parte da adolescência no anexo secreto em que a família e agregados permaneceram por dois anos fugindo do jugo alemão. Até serem traídos por um desconhecido. Durante o tempo em que permaneceu escondida, manteve um diário.

    A transformação de seu diário pessoal, escrito como forma de suportar o peso de dias terríveis, tornou-se um exemplo das diversas violências que o povo judeu, bem como outras minorias, passaram durante a guerra. Desde seu lançamento, o livro foi editado em versões diversas e até mesmo a autoria da obra foi questionada. O diário veio a tona a partir da leitura do pai de Anne, Otto Frank, único sobrevivente da família. Edições posteriores lançadas sem nenhuma edição, demonstraram que Anne era, de fato, uma garota precoce que amadureceu emocionalmente e literariamente no período de guerra.

    A força de sua história permanece em Anne Frank: A Biografia Ilustrada, lançado pela Quadrinhos da Cia, e realizada pela dupla Sid Jacobson e Ernie Colón. A obra é a quarta parceria da equipe que anteriormente trabalhou em duas edições dedicadas ao 11 de Setembro e em uma biografia de Che Guevara. Ou seja, autores que possuem um entrosamento adequado e, além disso, trabalharam anteriormente com materiais reais e histórias significativas. Dessa forma, a dupla é capaz de ir além da mera transposição de um livro para um novo formato.

    Jacobson pontua a história de Anne Frank expandido o enfoque de seu diário. Retoma a união que fundamentou a família, demonstrando como os Frank e os Hollãnder viviam antes do enlace matrimonial, bem como explica os fatos que levaram aos fatídicos acontecimentos da Guerra. A voz para narrar tais fatos é didática, mas bem inserida para criar o necessário contexto da época. Apresentando pequenos trechos do próprio diário ou outras fontes originais como cartas escritas por Otto Frank, a obra ganha maiores contornos explorando tanto o drama da família como da guerra em geral, situando os motivos fundamentais que levaram os alemães a assumir uma política agressiva de extermínio do povo judeu.

    A figura de Anne Frank é ressaltada com vigor, dando credibilidade necessária para que o leitor compreenda que a garota era um personagem diferente dentro da sociedade como um todo. Alguém que, desde a infância, foi tida como especial e diferente de outras figuras do seio familiar. Dessa forma, é coerente compreender como a garota foi capaz de usar a literatura como um meio de identificação pessoal e de alívio para seus dias massacrantes. Vivendo sob o jugo da guerra, sua maturidade foi precoce e urgente.

    A biografia, porém, tem espaço suficiente para demonstrar como cada Frank reagiu diante do mesmo problema. Dentro de uma situação sufocante, qualquer conflito natural de uma família se torna ainda mais difícil, beirando explosões que não acontecem devido ao confinamento obrigatório no anexo secreto. A história dos Frank aponta também como, em tempos obscuros, o apoio e ajuda são fundamentais para evitar maiores agressões. Além do diário ter sido guardado por uma das colaboradores de Otto, a rotina para que a família vivesse minimamente confortável dentro um espaço apertado foi apoiada pelos amigos íntimos que colocaram a própria vida em risco diante da barbárie.

    Conforme chega ao seu desfecho, quando os Frank são capturados, a biografia se torna mais vaga. Considerando que a fonte original seja o diário de Anne, é evidente que os relatos da família dentro dos campos de concentração sejam diminutos. O que Otto fez foi reunir posteriormente o relato de outros prisioneiros que estiveram ao lado de Anne. Um processo misto entre o pessoal e literário que desejava, ao menos, dar um fim digno a trajetória da família.

    A trajetória de Anne continua ainda hoje sendo uma das fortes figuras de resistência da Segunda Guerra Mundial. Seu papel como criança alemã judia com uma morte precoce, vivendo em um mundo massacrado pela guerra se mantém como um símbolo que representa um povo. O injustificado genocídio que oprimiu e dizimou um número gigantesco de judeus e outras minorias. Um fato histórico que nunca pode ser esquecido para que nunca mais se repita.

    Anne Frank: A Biografia Ilustrada foi realizada com aval da Casa de Anne Frank, instituição responsável por preservar a imagem da família e sua história. Formatada em uma outra mídia, a obra mantém a intensidade do relato original e apresenta a um novo público a relevância de uma interessante testemunha ocular de um momento sombrio da história. A edição lançada no país ainda conta com uma cronologia da família Frank, bem como apresenta sugestões de leitura para se aprofundar no tema.

    Compre: Anne Frank: A Biografia Ilustrada.

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  • Resenha | Simpatia Pelo Demônio – Bernardo Carvalho

    Resenha | Simpatia Pelo Demônio – Bernardo Carvalho

    Por que os homens lutam?

    O novo livro de Bernardo Carvalho (Reprodução), Simpatia Pelo Demônio (Companhia das Letras, 2017), apresenta o conflito entre amor e violência compreendidos na esfera íntima e coletiva do narrador: o Rato. Com isso, o autor explora a desnível que por vezes atinge o crescimento das pessoas, que, enquanto são profissionais em sua área de atuação, por outro lado, são particularmente amadoras em relacionamentos.

    No início do livro adentramos o cotidiano do Rato, o funcionário de uma agência humanitária, autor de uma tese famosa sobre violência, que trabalha mediando conflitos ao redor do mundo. Ele é escalado para ir ao Oriente Médio pagar o resgate do refém (desconhecido) de um grupo terrorista.

    Na esfera íntima, o narrador é um divorciado que mantêm uma amizade com a ex-esposa enquanto se sente insuficientemente capaz de acompanhar o crescimento da filha devido ao trabalho que ele exerce. Rato é convidado como palestrante em várias partes do mundo e, em Berlin, inicia uma amizade com um casal homossexual por conta de uma amiga em comum. Um dos rapazes, o Chihuahua, flerta com o Rato, e logo conhecemos a bissexualidade do protagonista.

    Como o autor interliga a esfera privada com a particular? Uma situação de vida ou morte. Toda a preparação e experiência do Rato não impede que ele seja surpreendido por um homem-bomba no hotel em que se hospeda no Oriente Médio. A situação extrema desata um nó de lembranças emocionais na última tentativa íntima de reavaliar o que aconteceu e arrefecer a consciência na iminência presente da morte.

    Por que os homens lutam? Esta é a resposta que Carvalho busca responder ao longo das 236 páginas do livro. É louvável a pesquisa e a exposição do autor de conceitos da geopolítica da violência bem como as relações psicológicas por trás dos relacionamentos mantidos por chantagens emocionais. Percorremos conceitos importantes sobre mediação de conflitos e também inteligência emocional, contudo, do ponto de vista estrutural, o romance peca por conta da longa digressão utilizada para desenvolver o conflito.

    A chave do bom romance é criar perguntas ao leitor e manter sempre uma suspensão de desejo para que ele se sinta impelido a ler a próxima página. Entretanto, o que o autor experimenta é apresentar logo no início o conflito principal (a vida ou morte do Rato nas mãos do homem-bomba), e ampliar a digressão emocional do momento. O efeito empático de prolongar a nossa expectativa de sobrevivência do personagem sai pela culatra por conta do longo parêntese aberto pelo autor, chegando ao ápice de nem mais nos lembrarmos o que estava acontecendo no presente do Rato, pois o desenvolvimento emocional toma a trama.

    A digressão, embora necessária, não é cultivada com parcimônia. Nos interessa mais o Chihuahua, o parceiro homossexual do Rato, um mexicano experiente em atrair parceiros e retirar deles apenas o que lhe convém. Um verdadeiro vampiro emocional. A longa digressão é formada pelo fluxo de consciência do Rato, por isso acompanhamos a evolução do Chihuahua da ingenuidade ao profissionalismo. Antes sincero, reservado, e apaixonado, para mentiroso, manipulador e libertino. Bernardo escreve uma escalada fantástica do complexo personagem e tempera o crescimento com referências artísticas, notas sobre conflitos internacionais e pontos de vista interessantes sobre relacionamentos.

    Por fim, sobra em Simpatia Pelo Demônio a dicotomia entre amor e violência e o domínio dos temas pelo autor. Personagens bem construídos, complexos questionamentos sobre conflitos pessoais, coletivos, e referências artísticas. Contudo houve um exagero na estrutura do romance que pode tornar a leitura apenas um virar de página enfadonho para sabermos se o personagem morre ou sobrevive ao final.

    Texto de autoria de José Fontenele.

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  • Resenha | Reportagens

    Resenha | Reportagens

    Joe Sacco: o jornalismo é quadrinho e vice-versa

    Joe Sacco (Palestina) talvez seja o jornalista-quadrinista mais conhecido aqui no Brasil. “Reportagens” (Quadrinhos na Cia, selo de quadrinhos da Companhia das Letras) é uma reunião especial de trabalhos dele onde o tema predominante é o conflito ou, mais especificamente, as guerras modernas. Territórios palestinos, Iraque, Chechênia, Índia camponesa, imigrantes ilegais no Mediterrâneo e julgamentos de guerra são as seis matérias que compõem o livro.

    O mérito do autor reside em unir habilmente técnicas das duas áreas de conhecimento. O jornalismo o dá o rigor da apuração: entrevista com as fontes importantes, perguntas imprescindíveis para a investigação, encontra personagens-síntese para a condução da história e adiciona pesquisa para ampliar o conhecimento do leitor sobre o tema. E, do quadrinho, os traços rígidos funcionam como uma foto informativa mesclada com as intervenções que o espaço gráfico permite; as intervenções funcionam como os enquadramentos de um filme e dotam a imagem do movimento que uma foto tradicional não teria.

    Atente que um não sobrevive sem o outro: as informações visuais não se sustentam sem as informações textuais e vice-versa. Aliás, as informações textuais da apuração dão o tom das imagens, pois temos que lembrar que as reportagens são feitas sempre tendo em vista uma quantidade certa de páginas em determinada revista ou jornal. Este o outro mérito do autor: a coesão textual, pilar da imagem.

    Outro fator interessante do trabalho de Sacco é que ele figura nos próprios quadrinhos. Por vezes o jornalismo preza a ausência do repórter ou o trata como um árbitro sempre fora do objeto de investigação, mas o autor opta por outra via talvez por intensificar a experiência de leitura e também endossar o caráter investigativo das suas matérias; assim, fica a sensação de que somos conduzidos junto com o repórter e descobrimos as informações em conjunto. A reportagem desenvolve-se naturalmente, sem amarras ao leitor.

    Quanto ao tipo de desenho, por se tratar de reportagens de caráter informativo, o autor compõe com detalhes; é minucioso nas roupas, armamentos, veículos, pessoas, relevo, interiores das casas etc, sempre com traços sóbrios. Os entrecortes dos quadros são poucos e se atém principalmente ao detalhamento de expressões faciais para intensificar e destacar emoções. Os traços em preto e branco compõem 90% do livro e transmitem, metaforicamente, ambientes rígidos, pouco amistosos e desesperançosos.

    Ao final da leitura, duas emoções distintas: prazer pelo excelente produto estético-informativo (texto e imagens) e tristeza por conta dos crimes cometidos contra os seres humanos nas áreas das reportagens. Joe Sacco é um ótimo exemplo de um jornalista apaixonado pelo ofício de repórter que utiliza uma “nova” plataforma para transmitir as informações que apura. Um trabalho belíssimo que leva o leitor a procurar as outras obras do autor.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: Reportagens – Joe Sacco.

  • Resenha | Meia-Noite e Vinte – Daniel Galera

    Resenha | Meia-Noite e Vinte – Daniel Galera

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    Em Barba Ensopada de Sangue, lançado em 2012, elogiado e denso romance vencedor do Prêmio São Paulo em 2013, Daniel Galera fundamentava mais uma boa obra em sua carreira, demonstrando um talento impar dentro da literatura contemporânea brasileira. Novamente em parceria com a editora Companhia das Letras, o autor lança novo romance, dessa vez concentrado na análise sobre tensões presentes no cenário atual.

    Meia-Noite e Vinte se alinha com o espaço contemporâneo, situado em uma Porto Alegre quente e movimentada, devido aos protestos públicos contra aumento de tarifas. Neste cenário, um grupo de amigos se reúne relembrando os feitos da universidade para velar um dos amigos, morto em um assassinato fatídico. Se o contemporâneo sempre é um objeto difícil para a análise de qualquer meio, desenvolver uma história neste espaço também requer delicadeza e alto grau de observação, fator que a prosa do autor garante em qualidade e estilo.

    A trama é focada neste grupo de amigos que estão na fase dos trinta anos de idade, vindos de feitos bem-sucedidos de um passado mistificado pela própria memória. A intenção de radiografar a geração atual apresenta personagens que cresceram na passagem do mundo analógico para o digital, extremamente conectado. Neste processo de transição, encontram-se três personagens, Aurora, Emiliano e Antero sobrevivendo numa realidade diferente daquela imaginada nos tempos áureos da juventude.

    Personagens que mesmo inseridos nessa era de revolução, compartilhando sentimentos via redes sociais, conectados com conhecidos e estranhos de todo mundo, ainda se sentem incompletos, incapazes de aceitar que a vida foi diferente dos planos imaginados, tornam-se adultos que ainda vivem uma insatisfação como se não amadurecessem por completo.

    A obra é narrada por estes três personagens, dando sequência temporal a fatos após a morte de Andrei, considerado um autor prodígio. Cada um deles é construído de maneira distinta mas com problemas que desembocam em um mesmo significado: a sensação insegura do presente, a urgência do contemporâneo e a falta de pilares para que se compreendam as motivações atuais de cada um, em um mundo cada vez aparentemente dividido. Diante deste cenário de modificações rápidas, os homens estão de joelhos, sem saber o que ou quem seguir em época em que tudo é reconfigurado e destruído constantemente. Apoiando-se na tecnologia e em pequenas transgressões daquilo que resta como matéria para se sentir vivo.

    Se em outras obras anteriores, o autor já foi reverenciado como um autor de geração por situar seus dramas em um espaço contemporâneo focado em sentimentos internos e universais, esta nova obra dá sequência a esta afirmativa observando o comportamento da geração atual à procura de refletir no leitor a mesma insatisfação. Semelhante à radiografia composta por Fernando Sabino em Encontro Marcado – não à toa, outro autor e romance considerado como representante de uma geração com o desencantamento do universo adulto – Meia-Noite e Vinte relata a velocidade do mundo em que vivemos, em excesso de signos ao nosso redor, sem parâmetros coesos para estabelecer limites e espaços. Uma sociedade à margem de um abismo em uma história escrita sob esta pressão e velocidade de cliques e likes.

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  • Resenha | Foe – J. M. Coetzee

    Resenha | Foe – J. M. Coetzee

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    Neste clássico da literatura contemporânea, publicado originalmente em 1986, o prêmio Nobel J.M. Coetzee reinventa a história de Robinson Crusoé.

    O autor desconstrói a história de Robinson Crusoé, que deixa de ser o narrador-protagonista, colocando a voz narrativa na figura de Susan Barton, náufraga que sobrevive a um motim no navio em que viajava e que acaba “aportando” na ilha de Cruso. Assim como F. Scott Fistzgerald já fizera com Nick Carraway em O grande Gatsby, deixando que o vizinho do herói conte a história de Jay Gatsby, Coetzee deixa a cargo de uma “coadjuvante” a narração das aventuras/desventuras de Crusoé.

    O livro é narrado em primeira pessoa por Susan. E o interessante é que a voz narrativa tem um tom de contador de histórias, com digressões que (felizmente) não atrapalham e se encaixam perfeitamente no contexto. É quase como uma quebra da quarta parede (se o livro fosse um filme). Há vários apartes, como se o narrador estivesse mesmo conversando com o leitor, pedindo permissão para algo ou avisando que falará disso ou daquilo mais tarde.

    “Os olhos do estranho eram verdes, o cabelo queimado tinha adquirido uma cor de palha. Julguei que teria sessenta anos. Usava (permita que eu dê minha descrição completa dele) um colete, calção até debaixo dos joelhos, como se veem marinheiros, usando no Tâmisa, e um boné alto que subia em cone, tudo feito de peles de animais trançadas, com os pelos do lado de fora, e um par de sandálias resistentes.”
    (pag.10)

    Além disso, reforçando a ideia de “contação de história”, o autor usa uma notação toda própria – todos os parágrafos são abertos com aspas, que não são fechadas ao final dele. Na segunda parte do livro, que está em formato de diário, as aspas se fecham ao final de cada dia.

    Aproveitando a deixa, na primeira parte Susan narra sua chegada à ilha de Cruso, a estadia e o resgate. Na segunda parte, narra sua busca por alguém que escreva sua história, na verdade, a história de Cruso e de Sexta-feira. Na terceira e quarta parte acompanhamos o encontro de Susan com seu autor.

    E desde o início, através de Susan, o autor brinca com as palavras, com seu uso, com seus significados, com sua utilidade:

    “Minha primeira ideia foi que Sexta-feira era como um cachorro que obedece a um único dono, mas não era assim. ‘Firewood, madeira para fogo, lenha, é a palavra que ensinei a ele’, disse Cruso. ‘Wood, madeira, ele não sabe.’ Achei estranho que Sexta-feira não entendesse que firewood era uma espécia de madeira, assim como pinewood, pinho, era uma espécie de madeira, ou poplarwood, madeira de choupo, mas deixei passar. Só depois que comemos, quando estávemos sentados olhando as estrelas, como passara a ser nosso costume, foi que falei de novo.
    ‘Quantas palavras em inglês Sexta-feira conhece?’, perguntei.
    ‘As necessárias’, Cruso respondeu. ‘Aqui não é a Inglaterra, não precisamos de muitas palavras.’”
    (pag.22)

    Esse quase desleixo de Cruso com as palavras já se manifestara quando Susan o questiona sobre a manutenção de um diário, um registro do que ocorrera a ele a e Sexta-feira. Enquanto ela julga de suma importância registrar os fatos para a posteridade – fossem ou não resgatados – a Cruso interessa apenas manter-se ocupado com seus terraços e paredes, que, segundo ele, são as únicas coisas que quer deixar para a posteridade.

    Vale destacar que a “brincadeira” com as palavras começa já no título do livro. Até se ler a sinopse, o título não faz muito sentido. Em inglês, “foe” quer dizer “adversário”. Porém – pensei comigo – se o significado do título fosse unicamente esse, teria sido traduzido, certo? Por outro lado, se a história é uma versão da aventura de Robinson Crusoé, nada mais natural que Coetzee brincar com as palavras e usar como título uma versão reduzida do nome do autor do original, Daniel Defoe. Por si só, isso já bastaria – ao menos para mim seria um significado totalmente satisfatório. Porém, Coetzee vai além. Quando Susan procura um escritor para escrever sua história, o “escolhido” é um certo sr. Foe:

    “O senhor me considera, sr. Foe, como sra. Cruso ou como uma aventureira ousada? Pense como pensar, fui eu que deitei na cama de Cruso e fechei os olhos dele, como sou eu que disponho de tudo o que Cruso deixa nesta vida, que é a história de sua ilha.”
    (pag.43) – grifo meu

    E é nessa parte do livro, em que Susan escreve cartas ao sr. Foe e descreve sua busca pelo autor, que Coetzee coloca na voz da narradora uma série de questionamentos sobre a escrita, sobre criatividade, sobre como contar histórias, sobre a arte de entreter o leitor:

    “Escrevo minhas cartas, selo, deposito-as na caixa. Um dia, quando formos embora, o senhor vai abri-las e passar os olhos por elas. ‘Melhor seria se fossem só Cruso e Sexta-feira’, vai murmurar consigo mesmo: ‘Melhor sem a mulher’. No entanto, onde o senhor estaria sem a mulher? Cruso o teria procurado por vontade própria? O senhor poderia inventar Cruso, Sexta-feira e a ilha com suas pulgas, macacos e lagartos? Acho que não. Muitos poderes o senhor tem, mas invenção não é um deles.”
    (pag.66)

    “Escrever se revela um trabalho lento. Depois da agitação do motim e da morte do capitão português, depois que conheci Cruso e vim saber um pouco da vida que ele leva, o que resta a dizer? Havia muito pouco desejo em Cruso e Sexta-feira; muito pouco desejo de escapar, muito pouco desejo por uma nova vida. Sem desejo como é possível fazer uma história?”
    (pag. 80)

    Seria leviano afirmar que Foe é meramente uma releitura da história de Robinson Crusoé feita por Coetzee. A obra é muito mais que isso. Coetzee faz dessa releitura um estopim para analisar o uso da linguagem – principalmente o uso da linguagem para se contar uma história.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

    jm-coetzee

  • Resenha | Sim, Eu Digo Sim: Uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce – Caetano W. Galindo

    Resenha | Sim, Eu Digo Sim: Uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce – Caetano W. Galindo

    sim, eu digo sim

    Caetano W. Galindo é doutor em Linguística pela USP e leciona Linguística Histórica na UFPR (Universidade Federal do Paraná). Tradutor de livros de James Joyce, David Foster Wallace, Thomas Pynchon, entre outros.

    A resenha começa com uma mini biografia do autor e não com a sinopse do livro por um motivo muito simples: o autor É o guia. Galindo é o tradutor responsável pela “versão” em português mais recentemente publicada de Ulysses – obra que eu, como tantos outros leitores, comecei inúmeras vezes sem conseguir passar do sétimo episódio. Quando da publicação da edição traduzida por Galindo, fui a um encontro na Livraria Cultura, em um Bloomsday. E, nesse dia, o tradutor, além de contar os motivos que o levaram a fazer a tradução e parte da saga em efetivamente traduzi-lo, conduziu os presentes em uma visita rápida a Ulysses, esclarecendo para a maioria de nós os motivos pelos quais esses primeiros capítulos são mais difíceis de transpor.

    Vale dizer que, depois desse dia, a vontade em fazer uma nova tentativa renasceu fortalecida. Mas ainda havia um pequeno entrave. Leitores de língua inglesa contam com o auxílio de inúmeros guias de leitura – entre eles o super detalhado Ulysses Annotated, de Don Gifford, quase tão extenso quanto o próprio Ulysses. E, uma vez que a edição da Companhia das Letras, por opção do editor e do tradutor, não possui notas de rodapé, é natural que o leitor se veja perdido em meio a inúmeras referências desconhecidas, além daquelas que ele sequer consegue identificar. Muitos dos pequenos detalhes e, por que não dizer, easter-eggs embutidos no texto por Joyce tem a ver com a época em que o livro foi escrito, com a Dublin em que vagueiam Dedalus e Bloom naquele 16 de junho de 1904. É lógico que sendo uma obra-prima, a excelência de Ulysses não depende de o leitor (re)conhecer essas referências. Mas também é óbvio que a leitura se enriquece e se torna ainda mais prazerosa caso o leitor tenha ciência delas.

    E é esse o papel do guia. Diferente de Ulysses Annotated, não é uma lista das referências, mas sim um lembrete para o leitor, do tipo “repare nisso”, “atenção aqui”, “guarde esta informação”. E Galindo vai além. Ulysses é um livro em que a forma deve servir – e serve – ao conteúdo. Ou seja, cada episódio é escrito de modo a refletir e representar estilisticamente a história e o ânimo ou desânimo dos personagens. Tomemos como exemplo o episódio 7, Éolo, que foi o mais longe que cheguei em minhas tentativas infrutíferas. Conforme explica Galindo:

    “O paralelo homérico aqui é muito menos fértil que no episódio anterior, embora sejam curiosas as escolhas de Joyce para tematizar o vento, personificado por Éolo: primeiro nas correntes de ar que sopram o tempo todo em cena, segundo nas diversas expressões idiomáticas com referência a vento e ar, terceiro, na escolha da retórica (da fala vazia, mero sopro) como arte, personificada ali pelo jornalismo, e quarto pela decisão de exemplificar em um ou outro momento praticamente todas as figuras retóricas registradas pelos manuais da época.
    O assunto é a fala vã, os entimemas, o discurso cheio de ar.
    Não é de estranhar, então, que este episódio seja o primeiro em que o estilo, a forma do romance ganhe total destaque.”
    (p.131)

    Há algo de reconfortante em saber que esse episódio não é um texto beirando o non-sense simplesmente porque o autor não escreve bem ou não sabe encadear as ideias. Foi escrito da forma que foi com um propósito e não “apenasmente” por mero capricho ou acaso. E ter ciência disso é libertador para o leitor. Não há por que se sentir culpado ao achar o texto vazio e sem nexo, já que essa é a intenção do autor.

    Cada um dos dezoito episódios é apresentado ao leitor dessa forma. Além de ser perceptível no texto a paixão de Galindo pela obra, para incrementar, há aqui e ali descrições das agruras de um tradutor que tenta – algumas vezes sem sucesso – manter ao mesmo tempo o sentido, a forma, o conteúdo, a sonoridade de jogos de palavras praticamente intraduzíveis:

    “(Nota do tradutor frustrado: enquanto Bloom escolhe o que comer, aparece a frase ‘um caixão de sanduíches de presunto fresco para o velório’. Que é, ou foi, a melhor tentativa de reproduzir um trocadilho clássico, e brilhante: ‘Ham and his descendants mustered and cred here’, que joga à perfeição com os sentidos ‘Presunto e seus descendentes, mostarda e pão’ e ‘Cam e seus descendentes dominaram este lugar e aqui procriaram’.)”
    (p.152)

    Causos assim me fizeram tomar gosto por acompanhar a coluna de Galindo enquanto ele traduzia Ulysses, e depois ao traduzir Infinite Jest, de David Foster Wallace – quase tão cheia de meandros linguísticos quanto a obra de Joyce.

    Vamos acompanhando o autor/tradutor destrinchando Ulysses para nós, reles mortais, e é difícil não pensar no tempo que Joyce empreendeu para montar a trama do livro e encaixar os easter-eggs. Tem-se a impressão de que ele escreveu e depois, durante as inúmeras reescritas e revisões, foi rearranjando a trama, plantando pistas, enfim deixando a narrativa estruturada como um quebra-cabeças ou uma caça ao tesouro. E não basta apenas ter o tempo necessário para fazer algo assim, é necessário antes de tudo pensar nesses pequenos detalhes, como o comentado no trecho abaixo. Haja criatividade!

    “Mas antes de tudo isso vem num relâmpago o nome. Penrose! A maioria dos leitores nem lembrava que ele estava tentando lembrar esse nome. E é bem assim, afinal, que essas coisas acontecem. Quando você desiste de lembrar, o nome aparece. É um episódio, como vimos, cheio de divagações sobre a memória e de ilustrações de seu funcionamento.”
    (p.156)

    E antes de iniciar este passeio guiado por Ulysses, há uma introdução bem extensa, mas não menos interessante. Nela, Galindo dedica-se a explanar o que é o livro e como está estruturado – tanto o seu quanto o de Joyce. Discorre sobre vozes narrativas, sobre estilo, sobre os temas, os personagens, as correlações com a Odisseia e outras obras, as referências, os paralelos. O autor aborda esses assuntos no mesmo tom casual de sua coluna, mas com a dose certa de academicismo. Didático e, ao mesmo tempo, divertido. É perfeitamente factível lê-la como um preâmbulo a Ulysses, antes mesmo de ler a ainda mais extensa introdução do livro, escrita por Declan Kiberd, e só então aventurar-se a seguir os passos de Bloom e Dedalus.

    Para quem já leu Ulysses e quer descobrir mais detalhes e usufruir ainda mais de uma releitura ou para quem, assim como eu, ainda pretendo lê-lo em sua completude pela primeira vez, este guia é um item quase obrigatório. E para quem quiser ir além do guia, a página do autor tem algumas listas valiosas que, como ele mesmo afirma, são apenas “algumas primeiras referências”.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | A Resistência – Julián Fuks

    Resenha | A Resistência – Julián Fuks

    a-resistencia-capa

    “Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adotado.”
    (pag.9)

    A frase que abre o livro já dá ao leitor uma boa ideia do que está por ler e instiga nele a curiosidade de entender qual a motivação do narrador para se expressar dessa forma. O autor, filho caçula de um casal de psicanalistas, durante todo o livro “pratica” a dicotomia entre contar a história do irmão adotado e não querer explorar o fato de que ele seja adotado. Mas é o próprio irmão que dá ao narrador a missão de escrever sua história:

    “(…) enquanto me empenhava em decifrar tudo aquilo que eu não entendi e jamais seria capaz de entender, meu irmão soltou a frase que não pude esquecer, a frase que me trouxe até aqui: Sobre isso você devia escrever um dia, sobre ser adotado, alguém precisa escrever.”
    (pag.124)

    O livro explicita principalmente a obsessão do autor com origens, talvez justificável por ser parte de uma família exilada no Brasil, fugida da ditadura na Argentina. Os capítulos alternam-se entre questionamentos sobre a origem do irmão – na tentativa de entender os motivos de ele ser como é – e a busca pelas origens de sua família – na tentativa de conhecer onde e como viviam antes de fugirem de seu país. O autor vai do macro, o drama de uma país e de um povo sob jugo de um regime militar, ao micro, o drama particular de uma família exilada cujo filho mais velho se ressente por ser adotado.

    Percebe-se no texto o cuidado do autor na escolha das palavras, o trabalho não apenas no conteúdo mas também com a estética, com a sonoridade, com o ritmo. Longe de ser pedante, Fuks consegue, mesmo sem ser coloquial demais, dar uma fluidez ao texto que torna a leitura extremamente aprazível. Adicione-se a isso os capítulos bem curtos e tem-se em mãos um page-turner, mesmo que o gênero do livro não seja um daqueles que comumente se encaixa nessa denominação.

    Em um dos capítulos, o narrador comenta sobre um nome que nunca tinha ouvido em casa, Marta Brea. Descobre, então, que era uma colega de trabalho de sua mãe. Mais que colega, era amiga e confidente. Um dia “removida” do hospital em que trabalhava e jogada num camburão sem placa. E, como era de se esperar, ninguém nunca mais soube nada sobre seu paradeiro. A chegada de uma carta muda isso, e Fuks descreve bem aquela sensação de não saber de algo sobre um acontecimento, cujas lembranças depois de um tempo aparentemente se perdem, e de repente descobrir o que realmente houve. Uma reorganização de nossas memórias face a novas informações.

    “Só quando recebeu aquela carta, trinta e quatro anos mais tarde, a carta que convertia Marta Brea em Martha María Brea, vítima do terrorismo de Estado da ditadura civil-militar, jovem psicóloga cujos restos agora identificados ratificavam seu assassinato em 1o. de junho de 1977, sessenta dias depois de seu sequestro no hospital, só quando recebeu aquela carta pôde vasculhar em seu íntimo as ruínas calcificadas do episódio, pôde enfim tocá-las, movê-las, construir com o silêncio das ruínas, e com seus traços deformados, o discurso que proferiu em sua homenagem.”
    (pag.78)

    A precisão com que descreve sentimentos familiares ao leitor, sensações que por vezes nem sabemos que há como expressar em palavras, é cirúrgica. Por assim dizer, quase invasiva. Dá ao leitor aquela sensação indescritível de o texto ter sido escrito especialmente para ele. Indescritível, aprazível e incômoda ao um mesmo tempo.

    Assim como Sebastián, o narrador, é e não é Julián, o texto todo é repleto de dualidades. Há ao longo do livro inúmeras oposições entre aquilo que é e o que poderia ter sido, ou que o narrador sonha que tenha sido. O uso da metalinguagem é recorrente quando o narrador fala do livro sendo escrito e sendo lido, sendo construído e desconstruído de acordo com o fluxo narrativo, de acordo com o que o autor quer mostrar (ou não) ao leitor.

    “Só quando já partiram meus irmãos, só quando já passamos à segunda xícara de chá, é que o tom do encontro se faz mais grave. Na noite passada meus pais leram o livro que lhes enviei, enganaram a insônia com estas páginas, por algum tempo estiveram depurando o que poderia comentar, como lidariam com esta situação um tanto exótica. É claro que não podemos fazer observações meramente literárias, ambos ressalvam como se quisessem se desculpar, durante toda a leitura sentiram uma insólita duplicidade, sentiram-se partidos entre leitores e personagens, oscilaram ao infinito entre história e história. É estranho, minha mãe diz, você diz mãe e eu vejo meu rosto, você diz que eu digo e eu ouço minha voz, mas logo o rosto se transforma e a voz se distorce, logo não me identifico mais. Não sei se essa mulher sou eu, me sinto e não me sinto representada, não sei se esses pais somos nós.”
    (pag.134)

    É principalmente nesses trechos que a dualidade da narrativa é reforçada, literalmente – ou quase. E é principalmente nesses momentos que a linha entre biografia e ficção se torna ainda mais tênue.

    “Eu sei, nós sabemos que é um livro saturado de cuidado, carregado de carinho, eu sei que a duplicidade não se restringe a nós, que o livro é duplo em cada linha.”
    (pag.137)

    Pouco importa o que é autobiográfico e o que é ficcional. Importa é que Fuks consegue mesclar ambos sem que o leitor seja capaz de distingui-los e é essa ambiguidade de conduz a narrativa e cativa o leitor.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | Monstros

    Resenha | Monstros

    Monstros-gustavo-duarteE se a baía de Santos passasse por um dia de baía de Tokyo e, como é extremamente comum, praticamente cotidiano no Japão, fosse invadida por monstros gigantes? Quais as ações e possíveis consequências deste tipo de situação? Pode-se dizer que essa seria a sinopse da HQ de Gustavo Duarte – Monstros –, que nos apresenta um primoroso trabalho que demonstra o dinamismo que um gibi desse pode e deve ter.

    O roteiro em si é bastante simples, basicamente três monstros gigantes invadem a cidade de Santos e um simpático e pacato dono de “buteco” (antes que venham me corrigir, o buteco é uma instituição adorada de cidades interioranas de Minas Gerais e São Paulo, tal como Bauru, a cidade de Duarte, portanto, se escreve assim mesmo, da forma mais caipira possível de se falar) vai resolver o problema e caçar os monstros que estão destruindo a cidade.

    Porém, o maior destaque da HQ se dá pela narrativa gráfica, já que não existe nenhum balão de diálogo. A grande característica do estilo de Duarte é justamente produzir gibis que não tenham diálogos ou descrições textuais, fazendo com que a relação entre os quadros seja o grande responsável pela condução da narrativa. Aliás, aí se encontra o ponto forte da revista, a narrativa gráfica de Duarte. É impressionante como ele consegue dar fluidez para a sua arte, que neste caso se trata de uma união entre arte e roteiro, já que o desenvolvimento da história e da trama acontece apenas nos desenhos e na relação entre eles.

    gustavo-duarte-portal-mosaicoIsso traz a discussão da própria questão da construção de uma HQ, muitas pessoas ficam atentas apenas aos quadrinhos e aos dizeres dos personagens e esquecem que a arte não se trata de um complemento, mas de elemento fundamental, não como ilustração, mas como narrativa. Basta ler antigas revistas em que todas as ações eram mostradas na arte e descritas nos balões; era muito ruim, podem acreditar. Logo, imagine Monstros como um filme mudo, você vai compreender tudo, não precisa de alguém lhe falando tudo.

    Além da narrativa gráfica, que é o ponto mais importante, o gibi se destaca pela quantidade de referências à cidade de Santos, à cultura pop e à cultura brasileira de forma geral. É interessante vermos partes da cidade como o calçadão, o porto de Santos e o Museu de Pesca serem retratados na passagem dos monstros pela cidade. Também é interessante a quantidade de referências que demonstra a própria personalidade e gostos do autor, como o símbolo do “Norusca”, tradicional time da cidade de Bauru; o símbolo da banda Ultraje a Rigor, que se faz presente em um dado momento e o mais legal neste sentido: o encontro do caçador de monstros com seus três amigos que são a caricatura do Roger (Ultraje a Rigor), Flea (Red Hot Chili Peppers) e Bi Ribeiro (Paralamas do Sucesso). Já a cultura popular é representada por referências como os “causos de pescador”, o ápice da cultura de buteco, o expoente maior do exótico, o símbolo de um local e dos vitoriosos que conseguiram sobrepujá-lo: o ovo colorido de bar (que tem um importante papel na trama). Várias referências são apresentadas, com destaque também para os seriados japoneses, inspiração primeira da HQ.

    monstros 02Enfim, vale muito a pena, mais do que recomendado o gibi de Gustavo Duarte, que se trata de um dos maiores nesta nova geração de quadrinistas brasileiros que estão se destacando no mercado. E, ao ler o gibi e comprovar toda a capacidade do autor, penso que (em tom de desabafo) deve ter acontecido alguma interferência para que Pavor Espaciar fosse tão meia boca. Mas, procurem, leiam! Monstros é muito bom.

    Compre: Monstros – Gustavo Duarte

    Texto de autoria de Douglas Biagio Puglia.

  • Resenha | O Grifo de Abdera – Lourenço Mutarelli

    Resenha | O Grifo de Abdera – Lourenço Mutarelli

    O Grifo de Abdera - Lourenço Mutarelli

    Transitando entre quadrinhos e literatura, a obra de Lourenço Mutarelli sempre permanece inventiva, partindo de conceitos tradicionais da narrativa para promover rupturas formais. Inserindo-se em suas histórias, desenvolvendo uma metanarrativa, seja como personagem explícito ou participando das adaptações cinematográficas, o autor se metamorfoseia em sua própria obra.

    Após hiato de cinco anos, o escritor retoma sua vertente narrativa e lança O Grifo de Abdera pela Companhia das Letras. A obra é uma consagração de sua biografia até então, para aqueles que desconhecem sua trajetória. Mutarelli é, na verdade, um homem múltiplo, além do mero sentido metafórico: uma persona escolhida por dois autores, Marco Tule Cornelli e Paulo Schiavinni, roteirista e desenhista, respectivamente que escolheram se unir em um pseudônimo. Tímidos para a publicidade, escolheram um terceiro amigo, Raimundo Maria da Silva, como um avatar. Este sim representante simbólico do autor Lourenço Mutarelli, aquele que o personifica em palestras, eventos e fotografias.

    É sob esta profusão de heterônimos que o autor desenvolve esta narrativa, quando um novo elemento deste jogo de espelhos surge em cena. Um personagem que, supostamente, começa a dividir os pensamentos com Marco Tulle. Embora o argumento pareça de difícil compreensão e seja relativamente exagerado, a narrativa mantém um realismo coerente que gera dúvida no leitor sobre a realidade dos fatos.

    Mas não se engane: é Mutarelli o criador deste jogo de falsos personagens. Vaidoso como qualquer autor que se preze, criou o nome dos autores fictícios a partir de anagramas do seu. A obra é dividida em três livros analisados sob pontos de vista distintos de cada personagem.

    A primeira parte, O livro do Fantasma, sustenta grande parte da ação. O escritor Tulle toma consciência de grande parte das ações cotidianas de Oliver Mulato e descobre ser capaz de interferir em suas falas. Há uma análise implícita sobre autor e suas personagens, demonstrando que, apesar de demolições pós-modernas, o criador ainda reside como ser máximo da literatura.

    A segunda parte, O livro do Duplo, seria um fac-símile de um fanzine desenvolvido por uma das personagens, demonstrando o jogo de espelhos da obra, bem como a faceta de quadrinista do autor, em traços rebuscados e bem delineados.

    Por fim, O livro do livro, como identifica o título, seria uma análise posterior e anticlimática da ação central, como se o autor analisasse os próprios fatos e, diante daquilo que considera absurdo, tentasse convencer os leitores de que tudo é baseado em fatos reais. Mutarelli usa com qualidade uma história cotidiana, aparentemente vazia, como argumento. A intriga do Grifo de Abdera, uma moeda mística que funciona como ponto de partida, parece improvável, mas resulta em uma obra que se desenvolve tanto narrativamente quanto dialogando com a reflexão sobre composição literária.

    A prosa breve de frases curtas, compostas sempre como verbos no presente, configura a velocidade da ação, resultando em uma dinâmica na qual personagens vivem situações rápidas em uma metrópole acelerada. Uma obra que destaca um atrativo domínio narrativo.

    Compre: O Grifo de Abdera – Lourenço Mutarelli

    Lourenço Mutarelli

  • Melhores Leituras de 2015

    Melhores Leituras de 2015

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    Devido ao maior tempo dedicado a uma leitura do que assistir a um filme ou a episódios seriados de uma temporada, é natural que uma lista de Melhores Leituras seja um tanto anacrônica aos lançamentos. A isso soma-se o fato de que, ao encerrar 2014, planejei a leitura de alguns autores que desejava conhecer ou me aprofundar em suas obras, e assim chegamos às edições selecionadas abaixo como as melhores leituras do ano passado.

    Como não havia número suficiente para formatar uma única lista de livros, decidi pela abordagem mista ao introduzir e pontuar os bons quadrinhos lidos no ano. Neste aspecto, é evidente que foquei as leituras no eixo tradicional da Marvel/DC Comics, um aspecto que pretendo evitar este ano, realizando a leitura de outras obras mais autorais (possivelmente veremos esse impacto em uma futura lista deste ano, a ser publicada em 2017).

    Explicitando a falta de sincronia com lançamentos e formatos, a lista nem mesmo se ajusta à tradicional recomendação de dez itens selecionados. Mas sim doze obras, seis livros e seis HQs, para que nenhuma das boas leituras ficasse de fora. Algumas dessas indicações também foram analisadas no site logo após a leitura, dessa forma peço desculpas aos leitores por eventuais repetições de abordagem.

    Manual de Pintura e Caligrafia – José Saramago (Companhia das Letras)

    Manual de Pintura e Caligrafia - Saramago

    Narrativa de estreia do lusitano José Saramago – posteriormente, uma obra anterior seria lançada após sua morte – Manual de Pintura e Caligrafia é um vigoroso romance de estreia. O autor inverte a lógica sobre a carreira e descreve sua proposta literária logo no primeiro lançamento, contrariando manuais tradicionais de autores que sempre, em um estágio avançado da carreira, versam sobre o ofício. Misturando duas narrativas, a personagem atravessa a arte da pintura rumo à escrita, uma transição feita pelo próprio autor, transformando esta obra em um misto de metalinguagem e tese literária, ainda que os elementos narrativos que o consagraram ainda não estivessem presentes.

    Demolidor – Fim Dos Dias (Panini Comics)

    Demolidor - Fim dos Dias

    Inserido na série O Fim da Marvel Comics, Fim dos Dias é uma clara homenagem à trajetória do Homem Sem Medo. Sob a batuta de Brian Michael Bendis, a história leva Ben Ulrich a uma última reportagem quando os heróis perderam sua força como defensores. A equipe de primeira linha desenvolve uma história sem igual, simultaneamente apresentando grandes momentos e figuras de Demolidor ao mesmo tempo em que se configura como mais uma grande história de um dos personagens mais coesos do estúdio.

    Romeu e Julieta – William Shakespeare (Saraiva de Bolso, tradução de Bárbara Heliodora)

    Romeu e Julieta - Shakespeare

    Casal mais conhecido da dramaturgia de William Shakespeare, Romeu e Julieta são símbolo de amor universal, representado, transcrito e transformado em um amor perfeito. A peça considerada uma das mais líricas do autor é fundamental para destruir o conceito das personagens através dos tempos, evidenciando que o amor de dois adolescentes termina de maneira trágica devido ao frenesi impulsivo e a imaturidade. Versando com qualidade sobre a agressividade desse amor, o casal permanece no imaginário coletivo em uma bonita história trágica.

    Pantera Negra – Quem é o Pantera Negra? (Salvat / Panini Comics)

    Pantera Negra - John Romita Jr - destaque

    Anterior a modificações estruturais de personagens representativos de uma causa, a Marvel fundamentou, dois anos após a nova lei de direitos civis nos Estados Unidos, um personagem negro com uma bela mitologia. Erigido como um deus no coração de um país futurista na África, local que nunca cedeu a colonizadores, a concepção do Pantera Negra atinge versão definitiva na narrativa de Reginald Hudlin. Retomando conceitos de tradições africanas, T’Challa adquire simultaneamente uma história coesa e uma tradição tribal forte, tornando-se um importante e imponente personagem político no cenário da editora.

    O Silêncio do Túmulo – Arnaldur Indridason (Companhia das Letras)

    O Silêncio do Tumulo - Arnaldur Indridason

    Impressiona que em uma literatura normalmente considerada formulaica como a narrativa policial se possam desenvolver tantos estilos diferentes e histórias genuinamente interessantes a partir de um crime. Arnaldur Indridason compõe sua narrativa a partir de dois focos: a investigação de um esqueleto encontrado nas imediações da Reykjavík, Islândia e uma trama familiar sobre um pai abusivo. O leitor reconhece de imediato que as narrativas iram se entrecruzar e, mesmo enfocando tais tramas de modo diferente, o autor é capaz de mantê-las em um mesmo tom que, quando chega em seu ápice, desvenda o crime e revela um aspecto crítico sobre a condição social e psicológica que fomentou o assassinato. É a partir desta obra que Indridason alcança sua melhor forma.

    Gotham DPGC: No Cumprimento do Dever (Panini Comics)

    Gotham GPGC

    Ed Brubaker e Greg Rucka partiram de uma premissa interessante ao indagar como seria o contingente policial de Gotham City vivendo à sombra do Homem-Morcego. O resultado é uma revista que destaca personagens comuns vivendo em um cotidiano padrão, no qual a figura de Batman é vista com mística, sem explorar a personagem interiormente como em suas revistas mensais. A partir de dramas pessoais em meio a atentados e crimes de grandes vilões e bandidos comuns, a equipe de crimes hediondos de Gotham sobrevive diariamente nesta pesada rotina criminal. Com uma vertente narrativa genuína de histórias policiais, a equipe apresenta uma visão diferente deste universo tão explorado e querido do público.

    Here, There And Everywhere: Minha Vida Gravando os Beatles – Geoff Emerick e Howard Massey (Novo Século)

    Here There Everywhere - Minha vida gravando os beatles

    Na vasta bibliografia sobre The Beatles, dividida entre obras de jornalistas experientes, críticos renomados e personagens que pontualmente passaram pela carreira da banda, a biografia de Geoff Emerick é fundamental como uma figura de autoridade intrinsecamente ligada à banda. Responsável pela formatação da fase mais prolífica da carreira do quarteto, Emerick narra brevemente sua trajetória até conhecer a banda e nos brindar com informações daquilo que fizeram dos Beatles a banda por excelência: sua qualidade musical. Detalhes técnicos, informações e curiosidades são costuradas em uma prosa suave que nos coloca ao lado da intimidade do Fab Four sob a visão daquele que esteve acompanhando a progressão a cada ensaio e moldando o som da banda. A obra é prazerosa e nos aguça a ouvir de maneira diferente a discografia do quarteto.

    Superman – A Queda de Camelot (Panini Comics)

    Superman - A Queda de Camelot

    Publicada simultaneamente a outra grande saga de Superman, O Último Filho, esta Queda de Camelot é um longo épico dividido em duas partes. Conduzida por Kurt Busiek, um dos responsáveis pelas revistas do herói ao lado de Geoff Johns na época pós Crise Infinita no projeto Um Ano Depois. Trabalhando em linhas temporais de passado, presente e futuro, o autor cria uma história provável sobre um futuro apocalíptico ao mesmo tempo em que desenvolve o passado do vilão Arion e as crescentes ameaças do presente conhecido. O tamanho da série cria uma narrativa aventureira cíclica, composta de diversos ganchos e conduzida pela aventura, dando sequência à explícita homenagem a Era de Prata desenvolvida desde o primeiro arco de Um Ano Depois. Se O Último Filho é uma reflexão pretensiosa e fabular sobre passado e descendência, A Queda de Camelot faz da aventura o fio condutor.

    Dragão Vermelho – Thomas Harris (Record)

    Dragão Vermelho - Thomas Harris

    Um dos grandes vilões do cinema, Hannibal Lecter inicia sua trajetória nesta narrativa escrita em 1988. Thomas Harris explora com eficiência a psicologia de seu assassino e compõe um interessante laço entre o investigador Will Graham e o psicanalista canibal, o qual colabora no caso. Em um thriller psicológico aclamado por James Ellroy como um dos grandes livros do gênero, a história é pautada no desenvolvimento do caso e no suspense, demonstrando talento na composição narrativa ao criar densos personagens bizarros, inovando ao introduzir com esmero a mente criminosa em cena. Mais impressionante que esta trama é o fato do autor, após a sequência O Silêncio dos Inocentes, ter produzido duas obras sobre a personagem sem nenhum apelo e vigor equivalentes a esta obra inicial. Mesmo com uma carreira desequilibrada, Dragão Vermelho é uma narrativa impecável.

    Os Vingadores – O Mundo Dos Vingadores (Panini Comics)

    Vingadores - n 1 - Avengers World

    Responsável por assumir duas revistas dos Vingadores após oito anos sob comando de Brian Michael Bendis, Jonathan Hickman iniciava um novo ponto de partida para os Heróis Mais Poderosos da Terra, reconfigurando a equipe em sintonia com o novo processo editorial intitulado Nova Marvel. O Mundo dos Vingadores alinha novos e antigos personagens em uma renovada formação da equipe, ao mesmo tempo em que introduz novos vilões que seriam fundamentais para futuras sagas da editora. Sem medo da sombra do sucesso da passagem de Bendis, o arco é simultaneamente uma boa história como também funciona como um início para novos leitores.

    A Ditadura Envergonhada – Elio Gaspari (Intrínseca)

    Ditadura Envergonhada - Elio Gaspari

    Com intensa pesquisa em fontes diversas e uma prosa ensaística de primeira qualidade, Elio Gaspari produz uma das obras definitivas sobre a ditadura militar brasileira. Indo além da formalidade dos fatos, o autor insere um estilo narrativo próprio que aviva a época e os dramas dos conflitos vividos e seus delicados detalhes. Traçando um panorama da sociedade, observando tanto o movimento militar como os levantes contra o golpe, este é o primeiro volume de uma vasta obra sobre o período que, ainda este ano, ganha o último e definitivo desfecho.

    Batman: Cidade Castigada (Panini Comics)

    Batman - Cidade Castigada

    A saga Silêncio, anterior a Cidade Castigada, talvez tenha eclipsado a atenção voltada a esta história escrita por dois grandes parceiros: Brian Azzarello e Eduardo Risso. Se a anterior pretendia ser um grande épico em doze partes, apresentando diversões heróis e a galeria de vilões do Morcego, Cidade Castigada enfoca o Batman investigador em uma história mais eficiente e coesa que a de Jim Lee e Jeph Loeb. Gotham adquire contornos noir entre poesia e corrupção enquanto o roteiro foge de uma tradicional narrativa feita pelo morcego, acrescentando tanto uma reflexão erudita sobre a cidade quanto ampliando a limitação física do herói, sem contar uma improvável cena em que Bruce Wayne faz seu próprio jantar, desmitificando, com certo humor sem perder o tom sério da narrativa, os fatos cotidianos que o personagem, como um reflexo de um ser humano normal, executa todos os dias.

    Cidades de Papel - John GreenMenção Honrosa: Cidades de Papel – John Green. Considerando o público-alvo de sua narrativa, Green surpreende com uma história pontual sobre a transição entre a adolescência e o mundo adulto e uma percepção madura de um grupo de amigos. Um romance de formação que tem potencial para se tornar significativo no crescimento do leitor jovem.

  • Resenha | Umbigo Sem Fundo

    Resenha | Umbigo Sem Fundo

    Umbigo Sem Fundo - Dash Shaw - capa - Companhia das Letras

    Após se dedicar a compor histórias curtas interligadas pelo mesmo tema, o quadrinista americano Dash Shaw realizou uma audaciosa ruptura em sua carreira: dedicou dois anos e meio para desenvolver um projeto de maior fôlego que fosse responsável por lhe transformar em uma das promessas dos quadrinhos alternativos e promover sua obra à lista de obrigatórios nos lançamentos de 2008, recebendo elogios por sua narrativa madura em contraposição a sua pouca idade.

    Dividido em três partes, Umbigo Sem Fundo é um épico familiar narrando as desventuras da família Loony e seu deslocamento interno. A trama se inicia em um reencontro obrigatório de seus membros quando os patriarcas, Maggie e David, anunciam o divórcio após 40 anos casados. Ao elaborar uma obra longa, Shaw se dedica a desenvolver a personalidade de cada integrante de sua família para criar um perfil de suas deficiências internas e analisar a falta de unidade familiar, e como cada um dos três filhos do casal lida com o término da relação dos pais.

    Registrando o cotidiano de cada um nesta semana atípica, quando todos passam a conviver novamente sob o mesmo teto, o autor aponta que não só o afastamento familiar acontece naturalmente pelo tempo como a personalidade de cada um voltada somente para si é um catalisador desta destruição. De maneira isolada, cada personagem carrega uma falta de conhecimento próprio e a incapacidade de se relacionar com os outros, demonstrando uma ausência de contato que destrói qualquer comunicação.

    Dentro do seio familiar, composto por pai, mãe e três filhos, observamos personalidades distintas que interpretam de maneira diferenciada o conceito de uma família. Dennis, o mais velho, é o mais empático com o conflito dos pais: tenta encontrar uma justificativa para o divórcio, o primogênito que vê a família como um porto seguro que aos poucos se desintegra; Claire, a filha do meio, espelha sua trajetória com a dos pais, compreendendo a separação por ser uma mãe solteira divorciada, fato que não a inibe dos medos de criar a filha adolescente Jill. Por fim, o caçula Peter representa a figura mais desgarrada da família, reconhecendo seu distanciamento e a disfunção de sua família como um crítico que não possui voz ativa em sua casa. Inseguro e tímido, seu deslocamento é tanto que seus traços são antropomorfizados em um sapo.

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    Composto em preto e branco, o quadrinista se vale de conceitos narrativos variados para promover agilidade a sua longa trama. Além de desenvolver sequências somente com imagens, dando às onomatopeias a função de expressar ações específicas, não padroniza a quantidade de quadros em cada cena. Seus traços são simples e representativos, destacando os silêncios presentes na família e transformando o ambiente, outrora acolhedor, em um local claustrofóbico. Neste aspecto, é significativo destacar como a casa, estabelecida em local praiano, sempre parece suja devido ao acúmulo de areia nos móveis, uma poeira que encobre o ambiente e os personagens como se fisicamente representasse a antiguidade do local. Igualmente, o significado do nome da família, Loony, é traduzido como “malucos” ou “doidos”, carregando até mesmo em seu registro um sinal de sua incoerência.

    Ao tentar desvendar as falhas familiares, o cerne da união do casal demonstra o significado do título da obra em uma bonita metáfora que representa a unidade do casal em tempos anteriores. Grande parte do sucesso e brilhantismo da história se deve ao fato de que Shaw evita uma conclusão, deixando o significado de seu épico a cargo do leitor e de sua bagagem, a mesma que lhe trará uma inevitável identificação com um dos membros da família

    Escrevendo em suas entrelinhas o significado implícito de sua narrativa, Umbigo Sem Fundo reflete em sua gama de personagens uma típica família entre uma bem executada e sensível densidade que revela o talento de Shaw e aponta que, no fundo, um conjunto de seres convivendo sob o mesmo teto não necessariamente representa unicidade.

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  • Resenha | Os Homens que não Amavam as Mulheres – Stieg Larsson

    Resenha | Os Homens que não Amavam as Mulheres – Stieg Larsson

    Os Homens que não Amavam as Mulheres - Stieg Larsson

    Com milhões de cópias vendidas, a trilogia Millennium – cujos volumes seguintes são, respectivamente, A Menina que Brincava com Fogo e A Rainha do Castelo de ar – fez de Stieg Larsson conhecido fora do âmbito jornalístico, e também de sua terra natal, a Suécia. O autor, que estava à frente de uma revista na qual dispunha de espaço para abordar tanto a política de seu país – neste caso, escrevera sobre a extrema direita e organizações neofascistas – como os direitos humanos, não pôde, porém, acompanhar os crescentes números de vendas de seu livro. Em 2004, foi vítima de um infarto, e, apesar de pouco tempo depois de confirmada, sua morte seguiu envolta de teorias mirabolantes em razão dos alvos recorrentes dos artigos assinados pelo escritor.

    Em Os Homens que não Amavam as Mulheres, o jornalista Mikael Blomkvist é redator e um dos sócios na revista Millennium, com grande credibilidade em seu meio profissional. No entanto, ao levar o poderoso financista Hans Erik Wennerström aos tribunais, acusando-o de corrupção e desvio de recursos, acaba por manchar sua reputação, uma vez que, mesmo dispondo de algumas provas e o depoimento de uma ‘‘fonte’’, estes se apresentaram insuficientes para a condenação do magnata. Blomkvist é julgado por difamação, sentenciado a cumprir pena, pagar uma alta quantia de perdas e danos, e é pressionado, ao lado de seus colegas de trabalho, pelo restante da imprensa. Além disso, a revista começa a perder anunciantes, influenciados pela onipotência de Wennerström em diversos ramos econômicos. Temendo que a Millennium feche as portas, Mikael decide se afastar de seu estimado projeto por certo tempo, até a situação acalmar. É neste cenário conturbado que o jornalista recebe uma estranha proposta de trabalho.

    Lisbeth Salander é a moça que entrega as correspondências e faz o cafezinho para a Milton Security, a requisitada empresa de segurança onde trabalha. Pelo menos, é o que pensa seu novo (e asqueroso) tutor, o Dr. Bjurman. Sim, tutor. Lisbeth é considerada um perigo para si e para os outros. Após passar por diversas avaliações psiquiátricas desfavoráveis a ela, foi considerada incapaz de conduzir sua própria vida, designando alguém para fazê-lo. Até então, o Dr. Palmgren, com quem tinha uma relação amistosa – uma das poucas –, cumpria muito bem seu trabalho. Dava-lhe liberdade para que ela cuidasse de si da maneira que conviesse, porém estava presente, aconselhava e conversava com a garota quando a situação parecia complicada. Era um bom homem, mas havia ‘‘saído de cena’’ meses atrás, e o substituto não causara uma boa impressão. Pouco tempo depois de assumir a tutela da moça, o homem passou a chantageá-la, para que, em troca de ter seu próprio dinheiro liberado, ela o satisfizesse sexualmente. Em duas sequências da narrativa, ele impinge o abuso, e a segunda tentativa é tão violenta que faz o leitor questionar se tamanha brutalidade pode ser real. E a resposta acerta com a mesma violência e intensidade: sim. A jovem, machucada e humilhada, recupera-se fisicamente para, enfim, arquitetar uma maneira de se livrar do estorvo que era seu tutor. E, de preferência, fazê-lo sentir dor parecida, ou pior que a sua.

    Lisbeth é a melhor em pesquisar informações sigilosas, montar perfis e relatórios detalhados sobre supostos alvos. Até Dragan, seu chefe, se rendeu à sua perícia, mesmo ela impondo, de certa forma, seu comportamento distante, por vezes hostil. Mas seus trabalhos, quando finalizados, são de uma qualidade espantosa. E não foi diferente quando um advogado já idoso precisou dos serviços da Milton Security para descobrir dados importantes sobre um determinado jornalista; os resultados das buscas pela rede que Lisbeth fizera, de fato, deixaram o velho impressionado, tanto quanto a constatação de que a mente brilhante por trás de grande feito residia numa jovem franzina, com piercings no rosto, tatuagens, que tinha em torno de vinte e quatro anos, mas aparentava ter, no máximo, quinze.

    O desaparecimento de sua sobrinha, Harriet, fez com que Henrik Vanger permanecesse quatro décadas obcecado e obstinado a solucioná-lo. Temendo que a idade avançada não o permitisse testemunhar o fim do mistério, o industrial recorre ao jornalista decadente, esperando que este, refazendo sua investigação paralela, pudesse encontrar alguma pista sobre o destino da garota. Tendo também a cabeça de seu inimigo como pagamento, Mikael aceita (não, sem antes, relutar um bocado) o acordo com Henrik, que o apresenta como autor de sua biografia e de sua família, o clã Vanger. A presença do forasteiro desagrada muitos dos familiares, exceto Martin, irmão de Harriet e atual diretor executivo da empresa, e Cecilia, também sobrinha de Henrik, que se interessa por Mikael.

    Tanto o jornalista quanto a jovem hacker estão empenhados em suas pesquisas. Conforme avança, Mikael descobre as nuances de caráter e personalidade de todos os envolvidos com o caso, direta ou indiretamente, e mergulha na história sórdida da família, que transpõe meras brigas por poder e dinheiro. Em igual intensidade, Lisbeth acompanha o caso de longe, destrinchando a vida de Blomkvist e as relações da corporação de Vanger no meio empresarial, e até mesmo uma ligação dela com Wennerström no passado. No entanto, durante uma conversa com o advogado do velho, Mikael fica sabendo da existência de Salander e seu relatório minucioso. Atônito por ela ter transcrito um texto que estava somente em seu computador (o que, a contragosto dela, provavelmente figurou como um erro, uma vez que o ‘alvo’ teve acesso ao dossiê), e ciente de que sua investigação tomava grandes proporções e seria interessante ter alguém para ajudá-lo, ele vai até sua casa, deixando-a surpresa, numa das passagens mais curiosas do livro. A partir daí, ambos expõem suas condições para o trabalho, e eles começam a investigar o caso juntos, formando uma dupla improvável, mas entrosada e ansiosa por desvendar o mistério.

    De forma natural, tramas e personagens intercalam-se sem pressa alguma, nos dando não somente todas as informações e fatos relevantes, como também acontecimentos secundários que enriquecem e tornam a obra crível, tal qual um jornal, com suas diversas notícias, crônicas e colunas. Larsson imprime seu estilo informativo ao, por exemplo, mencionar em sua obra Olof Palme, primeiro-ministro sueco cuja morte, ocorrida em 1986, causara grande comoção no país, e também instigara o jornalista a investigar o caso paralelamente, uma vez que o autor do crime era desconhecido, e junto de outros fatos apresentados, nos dá uma noção do panorama político, e também econômico, daquele momento.

    Retomando o tema central ao qual o livro se propõe, a violência contra a mulher, seja física ou psicológica, o escritor possibilita um debate necessário sobre o subjugo que o sexo feminino ainda sofre por desconhecidos, e até mesmo por parentes ou pessoas designadas a proteger e assistir, mas que utilizam de uma suposta superioridade para humilhar e infligir dor. Para criar o universo feminino de sua obra, Larsson provavelmente foi influenciado por um acontecimento passado – na juventude, o autor presenciou o estupro de uma garota, mas não pôde ajudá-la. A figura de Harriet, que Mikael e Lisbeth descobrem estar viva, aparece como mais um mártir da realidade atroz enfrentada pelo dito ‘‘sexo frágil’’. Sofrendo abusos tanto do irmão quanto do pai, a jovem havia decidido desaparecer, e agora, ao receber a visita do jornalista em sua propriedade, a viúva, que tinha um filho e havia mudado seu nome, sentiu novamente bater à sua porta o horror que vivenciara anos antes. O relato de sua penúria, por certo, faria até o mais hesitante da existência da objetificação sexual feminina rever seus conceitos.

    O discurso de Stieg Larsson é franco, quase como se estivesse escrevendo um de seus artigos, não permitindo rodeios ou amenidades. As questões são lançadas sem comiseração ao leitor, que se vê impelido a pensar como o ser humano pode ser vil em nome da própria satisfação, não só sexual, como também em ver outra pessoa sofrer ao fazer algo contra sua vontade. Uma proposta de reflexão que o autor também exercia enquanto estava vivo, e ainda que somente através de suas narrativas, era uma situação que se empenhava em mudar.

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    Texto de autoria de Carolina Esperança.

  • Resenha | Vício Inerente – Thomas Pynchon

    Resenha | Vício Inerente – Thomas Pynchon

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    Representante do informal Clube de Autores Reclusos, Thomas Pynchon evita aparições públicas e o assédio de repórteres. Em 1997, quando foi filmado pela CNN, barganhou as imagens por uma entrevista exclusiva para o canal. Os retratos conhecidos do autor são de sua adolescência, representando um rosto jovial, tipicamente americano, com destacados dentes frontais.

    Vencedor do Prêmio Faulkner por V, do National Book Awards por Arco-Íris da Gravidade e outros prêmios de prestígios, suas obras são comumente extensas, apresentando excesso de personagens e situações em uma narrativa erudita que faz referência a diversos campos científicos. Estruturalmente, não se prende a usos normativos das palavras e recria vocábulos quando necessário. Não a toa, o crítico Harold Bloom considera sua prosa canônica entre os escritos contemporâneos americanos.

    Publicado originalmente em 2009 e lançado no país no ano seguinte pela Companhia das Letras, Vício Inerente retorna à atmosfera paranoica dos 70 e estabelece uma homenagem aos mestres da literatura policial americana, Raymond Chandler e Dashiell Hammett, em um romance que se estrutura na narrativa policial mas se insere na atmosfera pós-hippie.

    O principal enfoque da obra é a maneira como o estilo do escritor conduz a trama e compõe a personagem central, o detetive Larry “Doc” Sportello, que reaparece neste romance após protagonizar Vineland e O Leilão do Lote 49. Produto do flower power da década dos anos 60, Doc é um hippie que vive de maneira modesta na cidade e representa uma cultura em decadência. Consumindo drogas freneticamente, sua personificação foge do estereótipo do detetive, sem nenhum simbolismo representativo de investigadores tradicionais.

    Pynchon faz de Doc uma paródia do policial. Se detetives usam a experiência e um certo instinto para prosseguir na investigação de casos, seu método investigativo permanece a maior parte do tempo alheio devido ao uso constante das drogas. Uma paranoia intensa compartilhada pelo público que acompanha a história a partir do ponto de vista da personagem, e que também permanece em dúvida sobre o que é real ou não dentre os absurdos em cena. Diluindo a realidade entre usos maciços de drogas e alucinógenos, a trama produz os mistérios naturais de uma história policial, e conduz o leitor a compartilhar as experiências de Doc por meio do trânsito que alterna o real e a divagação.

    O estilo narrativo se equilibra entre preciosismos e uma falta sensação de simplicidade. O autor abusa do fluxo constante de pensamentos e de construções neologistas para dar ritmo aos pensamentos frenéticos de sua personagem. Ao mesmo tempo, estrutura a história de maneira simples, gerando um choque entre a não-linearidade dos fatos, passando pelo real e o onírico e uma trama de investigação aparentemente usual.

    Por essas características, traduzir o autor e manter seu estilo com as construções gramaticais são um desafio. Coube a Caetano W. Galindo – que verteria depois Ulysses de James Joyce e Graça Infinita de David Foster Wallace – trabalhar com a obra à procura de equivalentes que mantivessem o estilo do escritor e a oralidade das personagens, para que pouco se perdesse na tradução. O trabalho é bem realizado, sendo perceptíveis as tensões entre o preciosismo de Pynchon como narrador em contraponto às falas simples das figuras que ele retrata na obra.

    O autor inova ao inserir uma estrutura narrativa em outro contexto e produz uma obra que destaca sua qualidade como escritor, ao mesmo tempo que se volta a um momento específico de décadas passadas. Vício Inerente é uma espécie de jornada transitiva entre estados da mente compartilhada coletivamente.

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  • Resenha | O Processo – Franz Kafka

    Resenha | O Processo – Franz Kafka

    É normal que a vida pessoal de um autor permeie e seja presente em olhos vistos a sua obra. Essa máxima foi uma constante na época do apogeu de Franz Kafka, pelos idos de 1925, e sua obra é fruto deste meio. O escritor nascido em Praga era acostumado com uma figura opressora dentro do seio familiar, František via em seu genitor a figura de Pai-Patrão, que preconizava o segundo império da existência humana, explicitado pelo psicanalista MD Magno. A figura tirânica e punitiva ganhou contornos de vilania em Metamorfose e Carta ao Pai, sendo literalmente o objeto a ser deposto, enquanto em O Processo, essa autoridade suprema é representada pelo Estado absoluto e opressor, que se mune de uma autoridade imposta para extinguir a liberdade do indivíduo.

    O despotismo familiar certamente influenciou o modo como o autor retrata a perseguição a Joseph K. O narrador faz uma escolha ligada ao juízo de valor, batendo o martelo a favor da total inocência de K, grifando até suas qualidades de otimismo, assim como sua ingenuidade diante da culpa que é jogada em seu colo. A sensação de que tudo não passa de um “mal entendido” visa tratar o objeto analisado em um alguém completamente eximido de culpa. Mas a adjetivação de credulidade sem base logo é desconstruída, com as mostras de um cidadão que tem noção plena dos próprios direitos e que, a priori, não se desespera diante do problema que o aflige.

    O julgamento corre, e o protagonista consegue até ter um bom início a defender a si próprio, mas como já era esperado, ele é levado a cárcere. Uma vez na prisão, percebe o quanto o sistema é punitivo e açoitador. Pouco antes do carrasco impingir seu designado castigo, o agente da lei trata de tentar aplacar a expectativa de sofrimento que K poderia ter, o que é claramente um ato de ironia, visto que ele sentiria o prazer de causar dano a carne do acusado.

    O sistema segue reduzindo Joseph K a quase nada. Suas tentativas de reverter sua situação não encontram êxito, ao contrário, falham demais apesar do enorme esforço dele e de sua boa fala. Nada parece ser suficiente para afastar a culpa dele. Quando percebe que suas chances são mínimas, ele começa até a ouvir com atenção demasiada os conselhos para que bajule o juiz e se adeque ao regime, pois sendo subserviente, haveria ao menos a possibilidade de ter sua pena amenizada.

    O certame jurídico avança de modo complicado para o réu, e sua culpabilidade torna-se cada vez mais certa, tendo sobre si um julgo até eclesiástico, muito pautado na moral e bons costumes. A religião ajuda a oprimir K e a reprovar sua conduta, mesmo que seja discutível. Um dos sacerdotes serve para tentar aplacar a volúpia de Joseph por provar sua inocência, onde ele somente descreve a verdade de que, é praticamente impossível ele mostrar sua inocência.

    O texto original de Kafka contém algumas anotações extra-romance, como partes riscadas do manuscrito original, que evidenciam toda reticência e emoção do autor, ao por as palavras no lugar onde deveriam, e claro, optar por algumas em detrimento de outras. O motivo disto não é conhecido, uma das possibilidade aventadas seria uma “auto-censura”, o que parece provável, outra talvez seria a tentativa de tornar a fala o mais universal possível, o que seria plausível, porque por mais que O Processo seja muito ligado a sua vivência, contém em si temas muito coletivos, profundamente ligados ao bem estar comum.

    Apesar do já esperado fim de ciclo, o desfecho pelo qual passa Joseph K ainda guarda bastante surpresas, especialmente pela truculência com que é levado o arbítrio. O modo como é levado o capítulo final é a pá de cal, o último suspiro de um sujeito que perdeu tudo, sua liberdade, sua voz e até sua dignidade, em um movimento de puro desrespeito a sua existência. Kafka usa a história de seu personagem para demonstrar o quão diminuto pode ser o homem em comparação com o sistema que o cerca, sua crítica é certeira e pontual em tocar a alma do seu leitor.

  • Resenha | Bellini e o Labirinto – Tony Bellotto

    Resenha | Bellini e o Labirinto – Tony Bellotto

    O titânico Tony Bellotto iniciou sua carreira literária em 1995 com um romance policial que originou a personagem Remo Bellini, um improvável investigador particular residente na cidade de São Paulo, ouvinte voraz de blues e – como uma espécie de requisito exigido pelo gênero – um homem incompreendido e desejado por diversas mulheres.

    Três de seus oito romances apresentam o detetive Bellini. Uma dedicação comum aos escritores da narrativa policial que escolhem uma personagem-chave para suas histórias e, romance após romance, aprofundam suas dimensões, ampliam o universo que os envolve, não raro apresentando visões diferentes de pressupostos que o leitor imaginava imutáveis.

    Distante de seu personagem há mais de cinco anos, Bellotto foi convidado para escrever um roteiro de duas histórias em quadrinhos para o álbum Bellini e o Corvo, um projeto a ser lançado pela Quadrinhos da Cia, selo da Companhia das Letras, responsável pela edição de sua obra. Em textos publicados no blog da editora, foi este o estímulo que o impulsionou a retornar ao universo da personagem, como se reencontrasse  um velho amigo. Motivação suficiente para elaborar um novo romance.

    Neste hiato entre um Bellini e outro, o autor escreveu dois romances oscilantes fora do âmbito policial. Mesmo distante deste universo, a ironia da personagem e o estilo narrativo pareciam vazar para estes outros livros, como se não houvesse limitação aparente ou um apuro consciente que produzissem vozes diferenciadas a cada romance.

    Bellini e o Labirinto demonstra a evolução narrativa de Bellotto, que finalmente entrega um romance bem executado tanto em sua estrutura policial quanto na narrativa madura e equilibrada. Além de uma história investigativa, a trama utiliza-se de uma vertente comum nas sequências policiais, a de introduzir o próprio detetive como elemento da investigação, não sendo mais o policial um ser à parte que produz luz em acontecimentos de maneira imparcial. Ao dividir o foco entre a investigação padrão e o drama da personagem, a história duplica de intensidade.

    Na trama, Bellini viaja até Goiânia para investigar o desaparecimento de um famoso cantor sertanejo, mas, conforme adentra as investigações, descobre que nem tudo parece óbvio, algo que toda boa narrativa policial carrega em suas linhas.

    Bellini se tornou um personagem mais crível e coerente. Se antigamente sua erudição destoava de um estilo que se pretendia mais próximo da oralidade mas que se revelava sem muito arrojo, o amadurecimento notável da prosa do autor foi suficiente para equilibrar os elementos internos da personagem – divagações eruditas sobre mitologia, música e a vida em si – e o refinamento narrativo, que ainda mantém a intenção da linguagem coloquial mas que produz uma estabilidade que nenhuma de suas obras anteriores foi capaz.

    Aos quarenta anos de idade, a personagem de Bellini, também narrador em primeira pessoa da trama, permanece estagnada. Mora na mesma kitnet das histórias anteriores, ganha o suficiente para sobreviver e faz da música a paixão e objeto de fuga. Sem perder a ironia, sua devastação tem maior reflexo na maturidade natural da idade, que parece ter alinhado melhor as vozes narrativas citadas dentro do texto.

    Dividido em capítulos curtos que cercam os eventos de maneira pontual, o romance foi bem construído entre as filosofias da personagem e a ação da obra em si. O estilo irônico do autor está apurado, mantendo a erudição, sem que isso retire a característica de sua prosa rápida sustentada pela fluidez. Destaca-se também o gosto pela utilização de nomes estranhos que causam desconforto no leitor. Alcunhas vindas de palavras estrangeiras e traduzidas em incômodas grafias abrasileiradas demonstram a tonalidade canhestra de que esta história – e seus personagens – são autenticamente brasileiros (uma das personagem do enredo chama-se Riboquinha, nome originado a partir da marca de tênis Reebok).

    Como um bom romance policial que, até então, fora somente sugerido ou emulado nas obras anteriores, Bellotto insere camadas profundas na história, consciente de que imergirão mais à frente na narrativa com maior potência, conduzindo um ato final espetacular entre o desfecho da investigação, recursos narrativos externos e reflexões inerentes da personagem central.

    Dentro de um labirinto narrativo, esta obra parece o início de uma nova fase, claramente mais madura, do autor, ciente das tensões necessárias para compor um bom romance. Após diversas histórias entre altos e baixos, Bellini e o Labirinto situa-se em seu melhor, ainda que seja cedo demais para batizar esta obra de provável Cabeça Dinossauro – em referência aos álbuns dos Titãs – de sua carreira literária.

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  • Resenha | A Sangue Frio – Truman Capote

    Resenha | A Sangue Frio – Truman Capote

    Nas primeiras linhas do relato, o jornalista Truman Capote narra as coisas comuns ao lugarejo onde será narrada sua história. No interior do Kansas, as pessoas vivem quase todas com a mesma linha de pensamento extremamente conservadora, atrelada à máxima de três pilares para uma vida boa e correta, com a valorização da família, tradição e propriedade. As pequenas predicações dos envolvidos na “história”, apesar de bastante breves, ajudam o leitor a mergulhar no mundo dos “personagens”, ajudando-o a se tornar íntimo deles.

    Apesar de não fazer isto de forma explícita, o cronista mostra um bocado de descontentamento com aquele ambiente salutar, onde o moralismo impera quase que sem precedentes. Se o espectador estiver atento, capturará isto de modo fácil ao observar o texto nas entrelinhas.

    A investigação sobre o assassinato do clã Clutter é mostrada sob diversos ângulos, tanto dos órgãos oficiais quanto de fontes oficiosas, como os vizinhos, os habitantes locais, os conhecidos e os amigos das vítimas. Cada um deles fornece um tempero a mais para a fórmula. As teorias que surgem a partir dos depoimentos de quem cercava Capote eram muitas e ajudavam-no a compor o quadro, mas não com a clareza que esperava. Apesar do andar lento para a “solução” do crime, o cronista mergulha cada vez mais fundo na intimidade dos cidadãos locais, e nota que, apesar da capa de conservadorismo usada pela maior parte das pessoas, os hábitos ditos pecaminosos são mais comuns do que parecem.

    Capote utiliza-se das palavras das pessoas e das descrições livres para definir os personagens, mas sua escrita dos relatos dá um tom de impessoalidade ímpar às testemunhas, transformando-as em figuras genéricas, seres sem rosto, gente que pode habitar qualquer lugar do mundo, causando a conflitante impressão de familiaridade no receptor. Em determinados momentos, o autor, ao acompanhar os métodos dos investigadores, acha que eles abusam de sua autoridade e utilizam-se de modos truculentos com os suspeitos, mas em momento algum faz juízo de valor dos agentes, na verdade até valida a forma de tratarem o objeto analisado, dada a frieza e calculismo com que foi executado o clã Clutter.

    O Crime:
    Perry Smith é completamente lúcido ao descrever o que fizera com a família. Seus relatos são bastante detalhados e ele não apresenta nenhuma reticência depois que começa a falar. Tudo flui de uma maneira muito natural, mesmo com todo o caráter bizarro dos acontecimentos. O sentimento de humilhação que ele sentiu (dentro, evidentemente, da lógica distorcida de sua cabeça) foi o catalisador para que o crime ocorresse e o inspirou a ter tanta criatividade em cada um dos assassinatos. Mas o que mais provocou nele vontade de cometer os homicídios foi uma disputa pessoal com Dick (Richard Hickock era o seu nome). Os testemunhos dos dois suspeitos tinham algumas discrepâncias, principalmente na autoria dos assassinatos, mas entregavam ao detetive o que ele precisava saber em relação à culpabilidade, ainda que o motivo racional do ato não tenha sido totalmente esclarecido.

    As possibilidades que motivaram Smith a agir tão friamente e que o levaram à capacidade de não se sentir culpado poderiam ser facilmente associadas a sua vivência em uma família disfuncional, mas, munido do seu trabalho de repórter, Capote não tira conclusões tão taxativas, e deixa que o seu leitor decida por si só, explanando somente o que sabe. Ainda assim, é fácil o quão próximo ele ficou do preso, e o quão estreito se tornou o convívio deles, dando margem a especulações que só viriam a se confirmar (ou não) anos depois do livro terminado.

    O capítulo A Esquina é todo dedicado ao julgamento de Perry e Dick, e às expectativas que cercam não só os acusados, mas toda a opinião pública. Hickock não sabe definir se o que fez é certo ou errado – ao menos essa é sua alegação primária – no entanto, ele faz um apelo desesperado, implora ajuda ao tribunal afirmando não ter totais condições de responder criminalmente por seus atos, seria ele incapaz de raciocinar plenamente. A morte: tom retumbante das manchetes após o julgamento exprime também a perplexidade que o autor sentiu após ver seu amigo recebendo-a. CRIME SANGRENTO TERMINA COM MORTE NA FORCA.

    Capote faz uma descrição deliciosa dos carrascos, contando cada detalhe em um tom poético. Mesmo o suor em seus corpos é parcialmente erotizado, emulando uma glamourização do ambiente marginal proveniente do cárcere. Palavras de conforto de cunho religioso são ditas após os instantes finais, mostrando que mesmo os facínoras podem receber a dádiva divina.

    Em algumas edições, há um texto pós-publicação, com um trecho de O Sistema, no qual uma forte declaração de Truman pode ser vista: “é claro que os fatores relacionados ao meio ambiente são importantes, mas acredito firmemente que exista qualquer coisa como o criminoso nato. Os geneticistas afirmam hoje que possivelmente certas pessoas nascem com uma determinada estrutura cromossômica que as predispõe a prática de crimes, e que é muito difícil interferir sobre essas tendências.

    Após dar por encerrado A Sangue Frio, Capote jamais conseguiu redigir nada tão extenso, sequer finalizou seus escritos antigos. Após a morte de Perry Smith, o literato dedicou os seus últimos dezesseis anos a redações jornalísticas e a alguns poucos contos e roteiros adaptados, não chegando nem perto de se aventurar como havia feito antes. A sentença dada ao seu amigo o marcou de tal forma que sua alma de artista também se debilitou, o que muitos dos admiradores de Capote chamam de morte prévia.

  • Resenha | Histórias Extraordinárias – Edgar Allan Poe

    Resenha | Histórias Extraordinárias – Edgar Allan Poe

    Edgar Allan Poe é um dos bastiões da literatura mundial. Sua obra serve como referência e amparo tanto para novos autores como também para amantes de uma boa leitura. Embora suas obras mais lembradas sejam as calcadas no terror, Poe também possui a alcunha de pai do gênero Policial, com seus contos de mistério escritos com maestria.

    O interessante neste gênio de vida e morte controversa é que ele não se utiliza apenas do sobrenatural e do ocultismo para provocar medo (temas esses recorrentes na literatura de terror), Por vezes, pinça os medos intrínsecos do ser humano e os utiliza como base de suas histórias. Passeia com eloquência pelas mazelas guardadas no âmago de cada um de nós, atiçando nosso medo do incompreensível, nossa impotência diante do inexplicável. A incapacidade de compreender vida e morte, a obsessão por resolver um mistério. É assustador como um simples gesto ou um repetitivo sorriso podem desencadear uma loucura sem limites com consequências doentias nas suas histórias.

    Não há como ler O Poço e o Pêndulo e não sentir a morte se aproximando milímetro a milímetro, e ora você deseja que ela chegue depressa, ora espera que ela tarde um pouco mais. Confesso que fui incapaz de ler O Barril de Amontillado sem sentir náuseas claustrofóbicas daquelas malditas catacumbas.

    Embora os sentimentos acima citados possam parecer repulsivos, você sempre vai lembrar-se, com nostalgia, daquele arrepio no momento da leitura dos contos, pois o autor causa terror no homem utilizando o próprio homem. O livro Histórias Extraordinárias, lançado pela Companhia de Bolso com tradução, seleção e apresentação de José Paulo Paes faz um apanhado de ótimos contos que passeiam entre vários aspectos da escrita de e vem a calhar tanto para um leitor iniciante quanto para um fã do escritor.

    Sempre que ouço que a obra de um artista reflete a vida do autor, me perco quando tento pensar em como foi a vida de Poe. De qualquer forma, sou eternamente grato pelo fato de que seu reflexo ainda possa chegar até nós.

    Texto de autoria de Fabio Monteiro.

  • Resenha | Fim – Fernanda Torres

    Resenha | Fim – Fernanda Torres

    Fim - Fernanda Torres - capa

    A morte é um assunto bastante abordado em meios literários e culturais em geral, sendo motivo de pauta e objeto de estudo para aqueles que ficaram. Dessa forma, a abordagem desse momento, ao qual todos nós estamos a fadados a chegar, pode ser realizada de diferentes maneiras. Alguns optam por uma recapitulação da vida do finado, demonstrando cuidado ao se trabalhar o relato sobre aqueles que estiveram ao seu lado, pontuando algumas concepções da vivência pregressa do falecido, suas obras, e em menor escala, o ponto final. O último respiro. O momento derradeiro.

    Fim, de Fernanda Torres, abrange um pouco essa questão, mas, acima de tudo, narra o fim último, aquele em que não há mais possibilidades de conserto ou redenção. O romance aborda o morrer, a morte como o inexorável, mas também a vida e nossa corrida descompassada em busca dela. Seus personagens parecem saídos de um filme de Denys Arcand, trágicos, aguardando o irreversível. Fernanda dialoga com Nelson Rodrigues, influência presente em seu texto. A narrativa também tem um quê machadiano, ao descascar as aparências e na maneira com que a trama é contada, de forma similar a Memórias Póstumas de Brás Cubas. Frise-se que esses diálogos sugerem apenas uma bagagem da autora incorporada a sua narrativa sob influência desses autores, não supondo, portanto, comparações diretas com suas bibliografias.

    Na trama, somos apresentados a cinco amigos, já acima dos 50 anos e à beira da morte. A narrativa é desenvolvida em primeira pessoa e entrecortada pelo derradeiro final com pessoas próximas ao falecido, oferecendo diversas perspectivas sobre o protagonista daquele capítulo. Fernanda é impiedosa. Fim não traz nada de sabedoria e paz que alguns dizem reservadas à velhice. Seus personagens são ressentidos, desamparados e alguns se mantêm em uma vida de esbórnia. Álvaro é solitário, dono de uma impotência que parece não afirmá-lo como homem e que também não dá sinais de preocupá-lo, além disso, abandonou seu amigo no momento em que este mais precisava; Neto é conservador, dono de um preconceito implícito que o faz seguir um modelo de vida sem possibilidade para erros, mas que quando se dá conta de sua vida já é tarde demais; Ciro, o sedutor, é repleto de falhas, passa a vida correndo em busca de algo que sabe que nunca mais terá.

    Fim é melancólico, corrosivo, sarcástico e denso em muitos momentos. Seus personagens são reflexos de todos nós e violentam alguns valores morais com uma crueldade louvável, talvez por isso tenha dividido opiniões por aí. Bela estreia, Fernanda.

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