Tag: Stieg Larsson

  • Crítica | Millenium: A Garota na Teia de Aranha

    Crítica | Millenium: A Garota na Teia de Aranha

    O significado do xadrez num filme é amplo, principalmente quando se é bem usado por cineastas interessados em aprimorar a linguagem de suas obras. Seja para invocar o poder de estratégia de um(a) personagem, quanto a fim de demonstrar (ao invés de falar, afinal, isso é Cinema) o poder de alguém sobre o(a) outro(a) jogador(a), o uso do jogo clássico de peças brancas e pretas num tablado monocromático não é gratuito, em absoluto, como bem exemplifica este vídeo do ótimo canal, em inglês, Now I See It.

    E é justamente com essa riqueza de detalhes subjetivos, só para os espectadores mais perspicazes, é claro, que a adaptação cinematográfica do quarto livro da saga Millennium começa, com a jovem Lisbeth Salander, já relativamente conhecida pelo grande público por seu forte visual punk, postura misteriosa e sua enorme tatuagem de dragão, aqui ainda criança, jogando xadrez com sua irmã logo antes da sua vida, ainda prematura, virar um inferno.

    Já fazem oito anos desde que Os Homens que Não Amavam as Mulheres, o ótimo filme de David Fincher tomou o mundo de assalto, com o material original servindo como uma luva para estabelecer ainda mais, logo após o sucesso de A Rede Social, seu cinema frio, um tanto distante, cerebral e esquematizado e, mesmo com tudo isso, hipnótico – exatamente como o livro base. Aqui não é diferente, com o exemplar de 2018 pagando tributo sim ao legado de Fincher, conseguindo entender tão bem esse mundo de grande paranoia, violência e investigações sem fim pelos quais os livros suecos da série Millennium nos atraem.

    Parece que, no mundo de Salander (agora na pele de Claire Foy, uma ótima atriz em ascensão), a neve nunca para de cair, o sol é sempre raquítico e as pessoas não irradiam nada, exceto dúvidas e muitos segredos que podem ser mortais aos desavisados. Só que algo mudou em A Garota na Teia de Aranha: ninguém é mais inocente, e a garota que só veste preto se mostra agora como um anjo da morte justiceiro com psicopatas oriundos de uma masculinidade doentia em Estocolmo, a congelante capital da Suécia – cidade perfeita para um bando de lobos sem coração, transvestidos de homens e mulheres de negócios. E quando a periculosidade começa a ganhar corpo, os serviços da hacker são mais do que necessários, de novo.

    Envolvida desta vez com cyber-terrorismo em larga escala, a partir de um projeto ambicioso demais de um ex-agente da Segurança Nacional da Suécia, e que acabou caindo em mãos erradas, Salander se envolve novamente com o jornalista Mikael Blomkvist, uma das únicas pessoas que ela confia no mundo, para desvendarem juntos as pistas de um crime que pode afetar não só a paz federal dos cidadãos, mas o mundo inteiro – uma ameaça terrorista que, uma vez envolvida, a levará direto as ameaças de um pretérito maldito. E como num livro de Ian Fleming, mas sem metade do glamour do criador de 007, temos aqui um herói de terno, uma heroína rebelde correndo contra o tempo, e arriscando a segurança que nunca tiveram para viver sob tensão, e terem aonde ver o sol nascer, uma vez mais.

    Sob a alcunha do uruguaio Fede Alvarez, reconhecido em Hollywood pelo regular remake de Evil Dead, e o bom suspense O Homem nas Trevas, de 2016, tem-se aqui o seu melhor projeto, sereno e coerente por grande parte do tempo, mas que ainda faz expor suas limitações enquanto cineasta, mantendo com muito esforço o ritmo no que poderia ser um tour de force vigoroso, principalmente em seu terceiro ato, lidando com o suspense como Michael Bay lida com carros. É evidente o gosto de “poderia ser melhor”, mas A Garota na Teia de Aranha segue à risca a cartilha de Fincher, sem aquele clima pesado (e magistralmente construído) de 2011, ainda encontrando espaço para suas ousadias próprias. Se essa fosse, de fato, uma engenhosa partida de xadrez, seria em todos os sentidos merecedora de se assistir.

    Facebook – Página e Grupo | TwitterInstagram | Spotify.

  • Resenha | A Garota Na Teia de Aranha – David Lagercrantz

    Resenha | A Garota Na Teia de Aranha – David Lagercrantz

    images.livrariasaraiva.com.br

    É importante ressaltar que este livro não veio do manuscrito inacabado que a esposa de Stieg Larsson possui, mas uma história nova licenciada pelos herdeiros: o pai e o irmão do falecido autor.

    A Garota Na Teia de Aranha é talvez um dos maiores lançamentos literários de 2015. Quase 10 anos depois do lançamento da trilogia Millennium original, o livro vem cheio de expectativas, não só por causa das novas aventuras policiais de Lisbeth Salander e Mikael Blomkvist, mas para saber se o novo autor, David Lagercrantz, estaria à altura do criador da série, o falecido Larsson.

    Após o assassinato de um cientista e a tentativa de rapto de uma criança autista superdotada, os dois protagonistas se veem no meio de uma guerra cibernética entre hackers ativistas, a NSA e uma rede criminosa russa que conta com assassinos profissionais.

    É satisfatório poder ler mais uma história com Lisbeth e Mikael. Os personagens carismáticos criados por Larsson ainda mantêm o charme dos livros originais, embora uma leve diferença nos diálogos e ações possa ser sentida quanto ao novo autor, mas nada que desabone a história ou cause desconforto nos fãs.

    Mikael continua um repórter investigativo obstinado e um homem teimoso, além de ter caráter incorruptível. Lisbeth, apesar de sumida na maior parte do livro, continua a manter todas as qualidades que a fizeram ser enigmática e roubar a cena sempre que aparece: fala pouco, se esconde, não deseja se abrir com ninguém, quanto menos ter uma relação. São dela as ações que fazem a história iniciar e ter a grande reviravolta do meio para o final.

    A narrativa é bem construída, mas pode causar estranhamento no leitor ao inverter os dois temas principais dentro do universo criado por Larsson: este livro prefere focar no ambiente tecnológico dos hackers e da computação e um pouco menos nos casos de abusos de direitos humanos. No entanto, o autor deste novo romance fornece alicerces fortes para que a história faça sentido e as principais ações estejam onde devem estar. Em suma: é uma história redonda e não há muitos erros perceptíveis para o grosso do público.

    O maior problema da narrativa se encontra na estrutura. A introdução prolonga-se mais do que deveria ocupando um terço do livro, o que acaba comprometendo um pouco o desenvolvimento da trama. Sempre que a história parece que vai engrenar, o clima morno volta como se fosse o início do livro. Os variados pontos de vista aliados às minibiografias de personagens secundários e sem importância acabam trazendo excesso de informação, ajudando a travar o andamento da narrativa.

    A escrita de Lagercrantz não compromete. Habituado a escrever livros policiais, o escritor não falha na tentativa de contar uma boa narrativa policial. O autor também tenta emular a escrita de Larsson, o que ajuda a manter uma certa linearidade na agora quadrilogia Millennium. Porém, dois fatores que merecem crítica é o fato do autor manter um pouco da verborragia do escritor da trilogia original (quem aguentava as descrições de todas as vezes que os protagonistas foram a cafeterias ou ao mercado fazer compras?) e a confusão gerada pelo excesso de informação pela quantidade de personagens e suas inúteis minibiografias.

    A edição do livro poderia ser sido mais eficiente. A leitura, que já é fluida, tornaria o livro melhor nas partes verborrágicas. As 464 páginas poderiam virar 400 facilmente e a história ficaria melhor.

    A Garota Na Teia de Aranha é um livro que deve agradar aos fãs da trilogia original, e que pode ser interessante aos fãs de romances policiais ou a quem não gosta de histórias fantásticas.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • O Caso dos Mais Vendidos

    O Caso dos Mais Vendidos

    6137-000082

    Há um grande mistério na prateleira dos romances policiais, e não se trata de uma nova onda de crimes ou de mais um serial killer. A questão está mais ligada a títulos, autores e editoras do que propriamente aos atos ilegais e aos corpos espalhados pelo caminho. Se o leitor se dispuser a olhar as listas dos mais vendidos dos gêneros Crime-Suspense-Mistério, vai certamente notar que a esmagadora maioria vem de autores estrangeiros.

    Se espiarmos a lista na Amazon, encontraremos Agatha Christie, Ian Fleming, James Paterson, Stieg Larsson, Patricia Cornwell, Nora Roberts, Harlan Coben, George Simenon e Arthur Conan-Doyle entre os primeiros. Bem depois, esbarraremos em alguns conhecidos locais. Tal observação permitiria constatar que esse tipo de literatura só sobrevive à custa de escritores norte-americanos, ingleses, escandinavos, franceses… Mas rezam as cartilhas do romance policial que as primeiras pistas não são suficientes para solucionarmos o caso.

    Deixemos de lado a hipótese derrotista (“autor policial brasileiro não vende”) e arrisquemos uma pergunta em forma de paradoxo: os estrangeiros aparecem mais na lista porque vendem mais, ou vendem mais porque aparecem mais na lista?

    A pergunta se justifica por um dado. Dos quase 61 mil títulos lançados no país em 2014, apenas 9,7% foram traduções. Quer dizer: nove em cada dez livros no mercado são assinados por autores brasileiros. Os dados são de uma pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), encomendada pela Câmara Brasileira do Livro e pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros. O estudo não detalha se essa proporção se mantém em Crime-Suspense-Mistério, e se isso acontecesse, aí sim, teríamos um resultado alarmante para os escritores nacionais: venderiam muito pouco se comparados aos colegas gringos.

    Mas não se pode afirmar isso por causa de outro fator: nos catálogos das editoras, raros são os autores nacionais nos gêneros em questão. Claro que essas informações não estão reunidas e sistematizadas, mas podem ser facilmente acessadas nos sites das editoras. Não são muitas as casas que se dedicam a esses livros (Record, Cia das Letras, L&PM, Benvirá, etc.), e elas têm historicamente priorizado a compra de direitos de tradução em vez de apostar em talentos locais. Na Suma de Letras, por exemplo, estão nomes como Michael Connelly e Stephen King (mesmo que este esteja mais para o terror que o policial). A Editora Record investe em Jo Nesbo, Andrea Camilleri e James Ellroy, e até mesmo reedita os suecos ancestrais Maj Sjöwall e Per Wahlöö. Para julho deste ano sai o novo livro de Marcos Peres, ganhador do Prêmio Sesc de Literatura e finalista do Jabuti e do Prêmio São Paulo de Literatura, o romance policial Que fim levou Juliana Klein?. Para além de Peres, André Amado e Al Gomes, quais são seus principais nomes nacionais no gênero?

    A Cia das Letras dedica fatia um pouco mais generosa às apostas brasileiras com Luiz Alfredo Garcia-Roza, Jô Soares, Raphael Montes, Tony Bellotto. A Intrínseca tem a série com o jovem Sherlock Holmes, e a Arqueiro prefere os best-sellers: é assim com os carros-chefe Dan Brown, James Patterson e Harlan Coben. Ano passado, a Arqueiro também organizou encontros de literatura policial pelas livrarias do país para promover as obras de seu catálogo.

    Outras editoras criam selos e coleções que só publicam autores não-brasileiros e ignoram a produção local do gênero. Nova Fronteira, Zahar, Globo Livros, Alfaguara e L&PM se concentram em títulos clássicos (com séries belíssimas de Agatha Christie, Raymond Chandler e Conan Doyle), e a Vestígio, do grupo Autêntica, investe em nomes mais contemporâneos. Na Rocco, há nomes estrangeiros e poucos nacionais no catálogo: de Benjamin Black, passando por Sophie Hannah, JK Rowling e Ruth Rendell a Patricia Melo, Luís Dill e Flávio Carneiro. A editora Planeta publicou o primeiro policial de Mario Prata (que escreveu mais um pela Leya) e um livro do paulista Roger Franchini. E pela Belas-Letras saiu, neste ano, Pólvora, do cantor Tico Santa-Cruz. Finalmente, na Editora Draco encontramos uma seleção de autores nacionais com romances e contos policiais comercializados, como Carlos Orsi e Cirilo L. Lemos. A maioria está disponível apenas em formato digital, e quem não tem um e-reader acaba não descobrindo o catálogo.

    As editoras brasileiras não abrem tanto espaço para autores nacionais por questões estéticas? Isto é: o gênero policial não funciona por aqui? As obras de Rubem Fonseca, Patrícia Mello, Marçal Aquino, entre outros, já mostraram a que vieram. Foram reconhecidas pela crítica e pelo público, e encontraram um lugar na literatura urbana contemporânea.

    As editoras brasileiras não publicam autores nacionais por razões mercadológicas? Quer dizer: o gênero não vende? Besteira. Leitores brasileiros continuam a consumir casos e mistérios, tanto em versões impressas quanto eletrônicas, apesar de estarem soterrados sob toneladas de filmes, seriados, programas de TV e outros produtos que nos impelem a descobrir os culpados dos crimes. Dias Perfeitos, de Raphael Montes, por exemplo, já foi editado em diversos países e, em breve, deve sair em Taiwan e Hong-Kong. O Matador e Elogio da Mentira, de Patricia Melo, já têm edições romenas!

    Raphael Montes

    Raphael Montes, autor de Suicídas e Dias Perfeitos

    Voltemos ao paradoxo, o mistério que nos trouxe até aqui: os estrangeiros aparecem mais na lista de best-sellers porque vendem mais, ou vendem mais porque aparecem mais na lista?

    Arriscamos dizer que as editoras brasileiras têm investido menos do que poderiam na safra de autores nacionais do gênero. As razões para isso estão mais nos temores financeiros que estéticos. Os motivos estão mais no conservadorismo e no oportunismo de mercado do que propriamente na qualidade dos originais recebidos. Afinal, para qualquer empresa, é menos arriscado vender um produto que fez sucesso lá fora ou foi agraciado com algum prêmio do que lançar um novo nome, oferecer um título inédito e original. É mais fácil pegar carona no sucesso internacional do que fomentar uma cena criativa local, que também pode ser bem lucrativa.

    Estamos tratando aqui de uma categoria específica de livros, os de Crime-Suspense-Mistério, que não é tão marginalizado quanto o Terror, por exemplo. Produções do cinema e da TV enxergam no gênero um terreno fértil de novos produtos e experiências. Não se trata de um fenômeno como o dos livros para colorir, um ponto fora da curva do mercado que já vendeu neste ano quase um milhão de exemplares, se contarmos apenas dois títulos, Jardim Secreto e Floresta Encantada, ambos de Johanna Basford, conforme dados da PublishNews. É uma raridade, um evento isolado. Estamos tratando de um gênero que existe e persiste há décadas, que está estabelecido, e que não demonstra cansaço ou perda de fôlego.

    Acreditamos que títulos de autores nacionais poderiam ter performances de vendas melhores se houvesse mais recepção de originais; se existissem mais lançamentos do gênero; se fossem investidas mais verbas de marketing e promoção; se fossem estimuladas produções derivadas das obras na TV e no cinema. Enfim, se os escritores locais tivessem mais espaço e visibilidade. Acreditamos que uma cena literária policial possa ser fomentada, já que existem muitos criadores do gênero no país. Prova maior está na quantidade de títulos lançados nos últimos anos na internet ou em formato impresso, sob o signo da autopublicação.

    Se a fresta estivesse menos estreita, poderíamos sonhar com embriões de uma geração criativa e produtiva no gênero policial. Clássicos e cânones como Agatha Christie e Simenon continuariam a frequentar as listas dos mais vendidos nas livrarias, mas poderiam ter vizinhos com o nosso sotaque e que narram crimes nas nossas paisagens.

    Texto de autoria de Chris Lauxx, pseudônimo dos jornalistas Rogério  Christofoletti e Ana Paula Laux, autores da enciclopédia Os Maiores  Detetives do Mundo e editores do site literaturapolicial.com

  • Resenha | Os Homens que não Amavam as Mulheres – Stieg Larsson

    Resenha | Os Homens que não Amavam as Mulheres – Stieg Larsson

    Os Homens que não Amavam as Mulheres - Stieg Larsson

    Com milhões de cópias vendidas, a trilogia Millennium – cujos volumes seguintes são, respectivamente, A Menina que Brincava com Fogo e A Rainha do Castelo de ar – fez de Stieg Larsson conhecido fora do âmbito jornalístico, e também de sua terra natal, a Suécia. O autor, que estava à frente de uma revista na qual dispunha de espaço para abordar tanto a política de seu país – neste caso, escrevera sobre a extrema direita e organizações neofascistas – como os direitos humanos, não pôde, porém, acompanhar os crescentes números de vendas de seu livro. Em 2004, foi vítima de um infarto, e, apesar de pouco tempo depois de confirmada, sua morte seguiu envolta de teorias mirabolantes em razão dos alvos recorrentes dos artigos assinados pelo escritor.

    Em Os Homens que não Amavam as Mulheres, o jornalista Mikael Blomkvist é redator e um dos sócios na revista Millennium, com grande credibilidade em seu meio profissional. No entanto, ao levar o poderoso financista Hans Erik Wennerström aos tribunais, acusando-o de corrupção e desvio de recursos, acaba por manchar sua reputação, uma vez que, mesmo dispondo de algumas provas e o depoimento de uma ‘‘fonte’’, estes se apresentaram insuficientes para a condenação do magnata. Blomkvist é julgado por difamação, sentenciado a cumprir pena, pagar uma alta quantia de perdas e danos, e é pressionado, ao lado de seus colegas de trabalho, pelo restante da imprensa. Além disso, a revista começa a perder anunciantes, influenciados pela onipotência de Wennerström em diversos ramos econômicos. Temendo que a Millennium feche as portas, Mikael decide se afastar de seu estimado projeto por certo tempo, até a situação acalmar. É neste cenário conturbado que o jornalista recebe uma estranha proposta de trabalho.

    Lisbeth Salander é a moça que entrega as correspondências e faz o cafezinho para a Milton Security, a requisitada empresa de segurança onde trabalha. Pelo menos, é o que pensa seu novo (e asqueroso) tutor, o Dr. Bjurman. Sim, tutor. Lisbeth é considerada um perigo para si e para os outros. Após passar por diversas avaliações psiquiátricas desfavoráveis a ela, foi considerada incapaz de conduzir sua própria vida, designando alguém para fazê-lo. Até então, o Dr. Palmgren, com quem tinha uma relação amistosa – uma das poucas –, cumpria muito bem seu trabalho. Dava-lhe liberdade para que ela cuidasse de si da maneira que conviesse, porém estava presente, aconselhava e conversava com a garota quando a situação parecia complicada. Era um bom homem, mas havia ‘‘saído de cena’’ meses atrás, e o substituto não causara uma boa impressão. Pouco tempo depois de assumir a tutela da moça, o homem passou a chantageá-la, para que, em troca de ter seu próprio dinheiro liberado, ela o satisfizesse sexualmente. Em duas sequências da narrativa, ele impinge o abuso, e a segunda tentativa é tão violenta que faz o leitor questionar se tamanha brutalidade pode ser real. E a resposta acerta com a mesma violência e intensidade: sim. A jovem, machucada e humilhada, recupera-se fisicamente para, enfim, arquitetar uma maneira de se livrar do estorvo que era seu tutor. E, de preferência, fazê-lo sentir dor parecida, ou pior que a sua.

    Lisbeth é a melhor em pesquisar informações sigilosas, montar perfis e relatórios detalhados sobre supostos alvos. Até Dragan, seu chefe, se rendeu à sua perícia, mesmo ela impondo, de certa forma, seu comportamento distante, por vezes hostil. Mas seus trabalhos, quando finalizados, são de uma qualidade espantosa. E não foi diferente quando um advogado já idoso precisou dos serviços da Milton Security para descobrir dados importantes sobre um determinado jornalista; os resultados das buscas pela rede que Lisbeth fizera, de fato, deixaram o velho impressionado, tanto quanto a constatação de que a mente brilhante por trás de grande feito residia numa jovem franzina, com piercings no rosto, tatuagens, que tinha em torno de vinte e quatro anos, mas aparentava ter, no máximo, quinze.

    O desaparecimento de sua sobrinha, Harriet, fez com que Henrik Vanger permanecesse quatro décadas obcecado e obstinado a solucioná-lo. Temendo que a idade avançada não o permitisse testemunhar o fim do mistério, o industrial recorre ao jornalista decadente, esperando que este, refazendo sua investigação paralela, pudesse encontrar alguma pista sobre o destino da garota. Tendo também a cabeça de seu inimigo como pagamento, Mikael aceita (não, sem antes, relutar um bocado) o acordo com Henrik, que o apresenta como autor de sua biografia e de sua família, o clã Vanger. A presença do forasteiro desagrada muitos dos familiares, exceto Martin, irmão de Harriet e atual diretor executivo da empresa, e Cecilia, também sobrinha de Henrik, que se interessa por Mikael.

    Tanto o jornalista quanto a jovem hacker estão empenhados em suas pesquisas. Conforme avança, Mikael descobre as nuances de caráter e personalidade de todos os envolvidos com o caso, direta ou indiretamente, e mergulha na história sórdida da família, que transpõe meras brigas por poder e dinheiro. Em igual intensidade, Lisbeth acompanha o caso de longe, destrinchando a vida de Blomkvist e as relações da corporação de Vanger no meio empresarial, e até mesmo uma ligação dela com Wennerström no passado. No entanto, durante uma conversa com o advogado do velho, Mikael fica sabendo da existência de Salander e seu relatório minucioso. Atônito por ela ter transcrito um texto que estava somente em seu computador (o que, a contragosto dela, provavelmente figurou como um erro, uma vez que o ‘alvo’ teve acesso ao dossiê), e ciente de que sua investigação tomava grandes proporções e seria interessante ter alguém para ajudá-lo, ele vai até sua casa, deixando-a surpresa, numa das passagens mais curiosas do livro. A partir daí, ambos expõem suas condições para o trabalho, e eles começam a investigar o caso juntos, formando uma dupla improvável, mas entrosada e ansiosa por desvendar o mistério.

    De forma natural, tramas e personagens intercalam-se sem pressa alguma, nos dando não somente todas as informações e fatos relevantes, como também acontecimentos secundários que enriquecem e tornam a obra crível, tal qual um jornal, com suas diversas notícias, crônicas e colunas. Larsson imprime seu estilo informativo ao, por exemplo, mencionar em sua obra Olof Palme, primeiro-ministro sueco cuja morte, ocorrida em 1986, causara grande comoção no país, e também instigara o jornalista a investigar o caso paralelamente, uma vez que o autor do crime era desconhecido, e junto de outros fatos apresentados, nos dá uma noção do panorama político, e também econômico, daquele momento.

    Retomando o tema central ao qual o livro se propõe, a violência contra a mulher, seja física ou psicológica, o escritor possibilita um debate necessário sobre o subjugo que o sexo feminino ainda sofre por desconhecidos, e até mesmo por parentes ou pessoas designadas a proteger e assistir, mas que utilizam de uma suposta superioridade para humilhar e infligir dor. Para criar o universo feminino de sua obra, Larsson provavelmente foi influenciado por um acontecimento passado – na juventude, o autor presenciou o estupro de uma garota, mas não pôde ajudá-la. A figura de Harriet, que Mikael e Lisbeth descobrem estar viva, aparece como mais um mártir da realidade atroz enfrentada pelo dito ‘‘sexo frágil’’. Sofrendo abusos tanto do irmão quanto do pai, a jovem havia decidido desaparecer, e agora, ao receber a visita do jornalista em sua propriedade, a viúva, que tinha um filho e havia mudado seu nome, sentiu novamente bater à sua porta o horror que vivenciara anos antes. O relato de sua penúria, por certo, faria até o mais hesitante da existência da objetificação sexual feminina rever seus conceitos.

    O discurso de Stieg Larsson é franco, quase como se estivesse escrevendo um de seus artigos, não permitindo rodeios ou amenidades. As questões são lançadas sem comiseração ao leitor, que se vê impelido a pensar como o ser humano pode ser vil em nome da própria satisfação, não só sexual, como também em ver outra pessoa sofrer ao fazer algo contra sua vontade. Uma proposta de reflexão que o autor também exercia enquanto estava vivo, e ainda que somente através de suas narrativas, era uma situação que se empenhava em mudar.

    Compre aqui: Os Homens que não Amavam as Mulheres – Stieg Larsson

    Texto de autoria de Carolina Esperança.

  • Crítica | Os Homens que Não Amavam as Mulheres (2009)

    Crítica | Os Homens que Não Amavam as Mulheres (2009)

    poster-os-homens-que-nao-amavam-as-mulheres

    O mundo é um lugar terrivelmente perigoso para aquele que não detém poder, seja do domínio físico, financeiro ou social. Dentre todas as minorias, a adição de um cromossomo X é capaz de tornar o indivíduo ainda mais propenso a toda sorte de violências, físicas e morais. O principal olhar a que o diretor Daniel Alfredson se volta é o da mulher como objeto dos desejos do mundo, e coloca o homem como potencial causador de danos. Isso é claro e reflete boa parte da realidade, onde a violência doméstica é uma realidade na vida de tantas meninas, e onde o assassinato é “uma consequência natural do estupro”.

    Baseado na obra literária de Stieg LarssonOs Homens que não Amavam Mulheres (de Niels Arden Oplev) é o primeiro de uma trilogia de filmes policiais muito bem-sucedidos em amarrar as vidas de seus dois protagonistas, Lisbeth Salander (Noomi Rapace) e Mikael Blomkvist (Michael Nyqvist), em uma trama de mistérios e dramas do passado sem jamais sugerir um abuso de coincidências, ou carregar um excesso de bagagem. A obra desenvolve seus personagens secundários em cima de estereótipos conhecidos e, mesmo aqueles que pouco aparecem, quando surgem, motivam o desenvolvimento da história.

    Traumas do passado são estabelecidos em flashbacks inseridos de forma inteligente para que o espectador conheça Lisbeth apenas o quanto Mikael a conhece, e apresentando a quem assiste as mesmas conexões emocionais que o jornalista tem com a hacker: a paixão. O repórter idealista é fascinado por seu trabalho e sua função na sociedade, e desta forma aceita ajudar o industriário Vanger a encontrar sua sobrinha Harriet, morta há mais de 40 anos, em meio a uma trama de conspiração e abusos. Inicialmente relutante, o mistério o provoca e convida Lisbeth para uma parceria, bem como ao envolvimento emocional. Enquanto isso, a hacker Lisbeth torna-se a representante máxima das mudanças de um mundo complexo e objetificante, pois ela é antes de tudo uma apaixonada. De acordo com Aristóteles, paixão é a falta daquilo que se quer, pois logo que se tem não há mais espaço para a paixão, apenas para o dia a dia e para a monotonia. E desta forma Lisbeth interessa-se mais por mistérios do que por pessoas, abandonando ambos assim que sejam dissolvidos ou saciados.

    É um filme sintético em todas suas características, e usa-se disso para resolver de forma coerente o desfecho do repórter Mikael e do mistério, que para muitos pode soar menos impactante do que deveria. Falta, porém, um fechamento melhor para Lisbeth Salander que, apesar de ser o real fio condutor e a síntese de toda trama, sai assim como veio. O motivo disso é a forma como o filme se monta sobre uma trilogia, esperando para desenvolver outros aspectos da personagem em algum outro momento. Neste ponto, a versão americana, de David Fincher, se mostra melhor sucedida no retrato dos dois protagonistas, fazendo com que as pequenas mudanças da trama ou detalhes de suas jornadas trabalhem mais em função de Lisbeth e seu arco-íris de emoções, tão complexo em sua formação, mas primário na forma como se expõe.

    Com uma fotografia mais quente do que se poderia esperar, o longa prefere utilizar-se da cenografia para dar às paisagens suecas o tom inóspito e potencialmente perigoso que a narrativa exige. Em Estocolmo, personagens são sufocados pela simples proximidade de pessoas; já na ilha onde ocorre boa parte da trama, a solidão é desoladora, e mesmo a mínima cabana que age de quartel general para as investigações da dupla mostra-se maior em seu interior do que exteriormente. Ao olhar em volta, tudo parecerá longínquo, trabalhoso e misterioso demais. Esta cidade fantasma ressalta a ideia de que somente pessoas com motivações prioritariamente introspectivas seriam capazes de se atrair por qualquer coisa que resida sob aquela neve e segredos.

    Reprimida por aqueles que a rodeiam, Lisbeth torna-se uma pessoa agressiva e de difícil convivência, e encontra em seus processos mentais um ponto de fuga para a gigantesca pressão do mundo em lhe frustrar e machucar. Eis que então o sexo é outra constante na trama, especialmente por ser um ato polissêmico, de natureza complexa, porém de fácil aplicação, capaz de atuar como barganha, método coercivo e compensação afetiva, que exemplifica a forma como age o sexo na mente daquele que é violentado.

    Enquanto para o autor da violência o ato não passa de alguns segundos dentre toda uma vida, para quem sofre da violência é um ato que persegue e assombra. Não à toa, vítimas de estupro relatam duvidar da veracidade do ato, colocando a violência para dentro de suas mentes, aceitando posições de inferioridade e trazendo pra dentro de si dragões que lhes rasgam ao sair.

    Velado, latente e introspectivo, o machismo é uma condição não aparente que desperta uma forma corrosiva de convivência onde a moral está no centro do jogo. É permitida a quebra da moral (resumida naquilo que se faz em seus porões, longe da vigilância do mundo), não a quebra da aparência, pois a aparência é essencial para o prejulgamento social. Enquanto emoldura o violento em um quadro como uma caricatura fascista, ajuda a esconder os demônios pessoais que a sociedade compartilha ao fomentar, mesmo que com palavras, todo tipo de misoginia, discriminação e violência.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Millennium: A Trilogia de Livros Ideológica

    Millennium: A Trilogia de Livros Ideológica

    24033216_4

    Atenção: este review contém spoilers dos três livros. Siga por sua conta e risco.

    A trilogia Millennium foi escrita pelo sueco Stieg Larsson nos anos 2000 e lançada na Suécia em 2005, pouco depois de sua morte, se tornando rapidamente um sucesso mundial de vendas. Ela também inspirou quatro filmes, três suecos e um americano e uma minissérie de tv sueca que na verdade são os filmes acrescentados de material extra.

    Sinopse: a vida atribulada do jornalista econômico Mikael Blomkvist e da hacker Lisbeth Salander se cruzam para resolver um dos maiores mistérios de uma família industrial sueca, como também do maior segredo de estado do governo sueco.

    Logo no início do primeiro livro já percebe-se que Stieg Larsson e sua trilogia Millennium não se tornaram referência nos romances policiais à toa. Os livros abusam da estrutura e dos clichês existentes do gênero: a criação de um grande mistério que servirá de engrenagem para mover a história e que só irá se revelar no fim de cada livro; o trabalho de detetive de uma dupla completamente distinta entre si, Blomkvist e Salander, que esbarram nas dificuldades investigativas padrão apresentadas pelo autor; a criação de personagens misteriosos; personagens escadas que são esquecidos pelo autor e que voltam à trama só para revelar uma informação para fazer a história andar novamente, e etc. O diferencial vem do fato de que os livros possuem alma. Sim, alma. Diferente dos romances policiais padronizados, a trilogia Millennium é recheada de ideologias que Larsson combatia, principalmente as conquistas feministas para a sociedade sueca atual, o tráfico de prostitutas e o feminicídio que só reforçam a perpetuação do machismo na sociedade, além da importância de se combater o fascismo e o nazismo.

    O primeiro livro é fechado e mostra todo o arco da família industrial Vanger. É aqui que a história mais interessante acontece, em que Larsson usa e abusa dos principais clichês de tramas policiais. O autor aborda o feminicídio e a violência contra a mulher o tempo todo ao mostrar a investigação de serial killers suecos que matavam mulheres através de dizeres bíblicos.

    Durante um evento familiar anual nos anos 60, a futura herdeira do império empresarial Harriet Vanger desaparece sem deixar rastros. Até que Henrik Vanger, o ex-patriarca, após quase 40 anos, decide contratar o jornalista Mikael Blomkvist, condenado meses antes por difamação contra um magnata, para solucionar o caso. Com a ajuda da enigmática Lisbeth Salander, eles conseguem resolver este mistério.

    Stieg Larsson

    Stieg Larsson

    É aqui também que se entende o motivo dos livros serem conhecidos como trilogia ‘Millennium’, já que Millennium é o nome da revista onde Mikael Blomkvist trabalha e é um dos donos. A redação da revista se revela como um local espetacular em que qualquer jornalista idealista em início de carreira adoraria trabalhar, já que mostra toda a produção mensal, e, principalmente os temas das principais reportagens que serão abordadas em cada revista sendo discutidos e investigados. Porém, temos só um gostinho na boca, já que o principal da história se passa na cidade de Hedestad e arredores, durante a investigação do desaparecimento de Harriet Vanger.

    O segundo e o terceiro livros são uma história só, que de tão grande que ficou, o próprio Larsson resolveu dividi-los, já que existe uma interrupção brusca no meio da trama. O casal Dag Svensson e Mia Bergman, novos colaboradores da Millennium, são assassinados enquanto investigavam o tráfico de prostitutas da Europa Oriental para a Suécia. O principal suspeito dos crimes recai sobre Lisbeth Salander, que se torna foragida enquanto faz a sua própria investigação para descobrir o verdadeiro assassino. Enquanto isso, Mikael Blomkvist decide continuar a investigação do casal assassinado, e acabam se deparando com Sala e o maior mistério do governo sueco.

    lisbeth_salander

    A única Lisbeth Salander que importa, a sueca Noomi Rapace

    No segundo e terceiro livros Larsson amplia a crítica sobre a violência contra a mulher na sociedade: enquanto no primeiro ele mostrou o estupro sofrido por Salander, agora ele aborda como a mídia impressa e televisiva retrata da pior maneira uma mulher acusada de assassinar dois jornalistas, que por acaso é bissexual. A “lésbica satânica e assassina” na visão da mídia e de algumas pessoas envolvidas no caso, faz com que a sua opção sexual seja posta em cheque o tempo todo, outras vezes é vista como o motivador dos crimes. Esta crítica severa à condução da mídia é outro trunfo do autor. Enquanto romances policiais padronizados utilizam bem os clichês e estruturas do gênero, mas não se interessam por mais nada além de “contar uma história”, Larsson alcança aqui o seu diferencial: não utiliza os clichês e a estrutura dos romances policiais tão bem assim, mas por outro lado consegue levantar tantas perguntas e suscitar várias discussões atuais e necessárias dos assuntos e temas inseridos na trama. Cada caso de abuso de direitos humanos, em especial os de violência contra a mulher, é comentado direta ou indiretamente pelo autor através de algum personagem ou do próprio narrador. E é aí que reside o poder e o fascínio da trilogia.

    Nesses dois livros nós conhecemos diretamente o dia a dia da redação da Millennium e todos os casos e reportagens em que os jornalistas trabalham. Como dito antes, o local é um grande centro de luta pelos direitos humanos, inspirando qualquer jornalista idealista em início de carreira. As pautas discutidas pela equipe, as investigações, a corrida contra o tempo para entregar tudo no prazo, a estrutura de publicação, tudo é interessante na redação da Millennium. Algum leitor empolgado pode querer virar jornalista depois de ler os livros. É uma pena que na vida real a redação da revista Expo, que o autor fundou e trabalhou nos últimos anos de sua vida, não seja tão emocionante como a dos livros.

    Se Stieg Larsson pode ser criticado por abusar de clichês e estruturas de romances policiais, ele compensa na criação de seus protagonistas. Lisbeth Salander é a grande sensação dos livros, ofuscando todos os outros. Ela é de longe o personagem mais complexo, desconstruindo o esteriótipo do “personagem esquisito”. O autor fornece tanta informação relevante sobre ela e o seu passado complicado com uma mãe espancada pelo pai, além das várias famílias adotivas que passou, que o leitor consegue tecer uma complexa rede psicológica sobre a desajustada social Salander, entendendo as suas reações nas situações onde o autor as coloca.

    Já um pouco atrás de Lisbeth, o jornalista econômico Mikael Blomkvist foi outro grande personagem dos livros. Mais em evidência no primeiro livro onde faz papel de detetive, Blomkvist é construído sob o alicerce do “detetive desacreditado” por causa do processo onde perdeu logo quando se inicia o primeiro livro. A sua vida sexual de desprendimento diz muito sobre si: Mikael é uma pessoa de relacionamentos tão abertos que acaba não se prendendo a ninguém, nem emocionalmente, nem quando está investigando algo e se esquece do mundo e seus compromissos. Neste ponto, ele e Salander são muito parecidos.

    mikael-blomkvist_michael-nyqvist-e-daniel-craig (1)

    Os dois Mikael Blomkvist: o sueco Michael Nyqvist a esquerda e o inglês Daniel Craig, a direita

    Outros personagens memoráveis dos livros são a diretora da Millennium, Erika Berger; Holmer Palmgreen, ex-tutor de Lisbeth; o designer da revista Christer Malm; dos Vanger: o patriarca Henrik, sua filha Cecília, seu sobrinho Martin, e, é claro, Harriet; o chefe da Milton Security Dragan Armanskij; o novo tutor de Lisbeth, Nils Bjurman; a assistente da Millenium Malu Eriksson; o loiro gigante Ronald Niedermann; o inspetor Jan Bublanski; a detetive Sonja Modig; a policial Rosa Figueroa; os ex-membros da SAPO Evert Gullberg, Gunnar Bjorck e Fredrick Clinton; a advogada e irmã de Mikael, Anikka Giannini; Miriam Wu; o promotor público Richard Ekstrom; o psiquiatra Peter Teleborian; o odioso Hans Faste; e Alexander Zalachenko.

    Uma grata surpresa do livro é a quantidade de marcas conhecidas que o autor coloca, fornecendo mais veracidade à história. A Apple (e o Powerbook da época) é citada constantemente como o computador usado pela Lisbeth, além do iBook de Mikael, os carros e modelos da Volvo ajudam a criar o ambiente, os móveis da Ikea e os celulares da Motorola também, assim como a descrição das armas de fogo utilizadas de diversas marcas, além dos equipamentos ultra-modernos da Milton Security.

    expo

    A revista Expo que Larsson fundou com a sua companheira e que inspirou a Millennium

    Cabem também algumas críticas aos livros. Todos eles são muito mal editados, mais os livros 2 e 3, que poderiam ser condensados em um só. Enquanto o primeiro livro é um pouco mais dinâmico, nos outros chega a cansar, às vezes, o autor repetindo os fatos passados. Dessa forma, dá pra pular alguns capítulos de mais de 20 páginas sem problema nenhum, já que o fato que ali aconteceu será repetido algumas vezes posteriormente de forma sucinta por algum dos personagens. A leitura dinâmica também é recomendada em algumas partes dos livros 2 e 3, principalmente quando aborda o funcionamento de algumas instituições suecas, como as diversas polícias e sistemas políticos, do executivo ao judiciário.

    Dados reais extensos ao invés de resumidos, que poderiam estar em um extra ou em algum tipo de universo expandido, só reforçam a péssima edição dos livros. A rotina dos dois protagonistas também é mostrada de forma desnecessária, como os vários cafés da manhã e compras de supermercado de Blomkvist e Salander.

    Os diálogos no geral passam batido, mas alguns em especial dos livros 2 e 3 são tão mal escritos, que aqui não dá pra culpar somente Stieg Larsson e o editor dos livros, mas incluir aí também a tradutora Dorothée de Bruchard, que a Companhia das Letras fez o desserviço ao leitor brasileiro de traduzir para o português a tradução francesa. Uma descrição como “Sonja Modig fez a primeira pergunta pertinente, querendo saber como Paolo Roberto tinha entrado na trama” (p. 471, livro 2), ou diálogos como “Não vou pedir que você denuncie seus colegas, mas que me avise se perceber que estão tramando para expor a Salander a mais um abuso judicial” (p. 65, livro 3) e “Você é uma fonte. Não vou te citar nem te botar numa encrenca” (p. 65, livro 3), ou ainda “Aqui você não é um jornalista neutro, e sim um personagem da trama. – Mikael concordou de novo com a cabeça.” (p 198, livro 3), servem para empobrecer a história.

    A trilogia Millennium vale a pena? Se você se interessa somente pela história, pode se sentir um pouco frustrado no primeiro livro pelos clichês usados em excesso, ou nos livros 2 e 3 que foram muito mal editados. Se o seu interesse são os personagens, vai gostar dos três livros, porque a enigmática Lisbeth Salander é simplesmente fascinante. Agora os livros são recomendados principalmente para homens que insistem que o feminismo não é importante, pois servem para ajudar a levantar questões fundamentais a cerca da violência que a mulher sofreu e ainda sofre bastante na sociedade ocidental.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Resenha | Stieg Larsson: Antes de Millenium

    Resenha | Stieg Larsson: Antes de Millenium

    Stieg Larsson – Antes de Millenium é uma história em quadrinho, ou Graphic Novel se você é fresco, biográfica sobre o autor sueco da famosa trilogia Millenium. Foi concebida por Guillaume Lebeau e Frédéric Rébéna, escrita pelo primeiro e desenhada pelo segundo.

    Sinopse: as três fases mais marcantes da vida de Stieg Larsson são mostradas na história, a primeira se passa nas florestas suecas enquanto o jovem autor vivia com seus avós paternos, depois o vemos no meio da guerra civil da Eritréia no final dos anos 70, e por último, na Suécia no meio dos anos 90 quando a sua revista anti-fascista Expo é fundada, e um epílogo para 2004, meses antes do autor morrer.

    De forma biográfica, a história parte da premissa questionável de que o autor da trilogia Millenium teve uma vida tão fascinante quanto a dos livros que criou. De fato a sua trajetória pessoal foi curiosa e turbulenta, mas partir do pressuposto de que Stieg Larsson como personagem é tão interessante quanto a enigmática Lisbeth Salander ou o marcante Mikael Blomkvist é de uma insensatez tamanha. Apesar de dignos de nota, os episódios marcantes da vida do autor não se comparam com as aventuras policiais vividas pelo casal de protagonista da trilogia de livros.

    A vida de Larsson pode perfeitamente ser retratada em no máximo 4 ou 5 parágrafos no fim de cada um dos livros, mas a princípio não se justificaria a elaboração de uma HQ para retratá-los. Mesmo pensado em atingir os fãs da série, ele pode vir a acabar decepcionando quem espera o mesmo clima policial. Em suma, o material apresentado nesta obra seria muito mais interessante e rico se fosse a quadrinização de um dos livros, um prequel, ou até histórias extras dentro do seu universo expandido. Aliás, parte do título “Antes de Millenium” e a capa de uma pessoa idêntica à Lisbeth Salander soa enganador para quem acha que se trata de um prequel dos livros.

    milleniumA outra capa.

    A história de vida do autor mostra como aos poucos o universo da trilogia Millenium foi sendo construído: uma fotógrafa da Expo que se parece muito com Lisbeth, a própria revista fundada por Larsson, Mikael é um amigo jornalista que trabalha na mesma revista, além, é claro, dos neo-nazistas e grupos fascistas figurando na Suécia nos anos 80, 90 e anos 2000. O mais interessante da trama, no entanto, é a metáfora da raposa. No início da história, Stieg e seu avô estão caçando o animal por ter feito estragos. Ela se assemelha a um inimigo que o autor tomou como pessoal: as ideias fascistas. Inclusive a parte mais interessante se dá no que parece ser a página 09, já que as páginas não são numeradas, quando uma piada com o animal se realiza pela avó do jovem Stieg.

    A arte curiosa de Frédéric Rébéna soa como um rascunho, um esboço ainda a ser arte-finalizado. Isso dá um caráter curioso para a obra, pois mostra como a vida de Stieg Larsson não foi totalmente completa, já que o autor não se casou com a sua companheira por temer ser encontrado por grupos fascistas e morreu meses antes dos livros serem publicados e de obter o merecido reconhecimento e sucesso mundial.

    A edição da Veneta poderia ter numerado as páginas, além de melhorar o papel, que soa simplório. A capa com a moça que se parece com a Lisbeth, apesar de interessante, soa de fato enganador para quem procura algo dentro do universo dos livros. Nesse sentido, outra capa com o desenho de Stieg Larsson seria mais honesta. A editora também colocou informações curiosas sobre Larsson nos extras, que poderiam inclusive ter entrado no material original, mas, obviamente isso recai sobre os autores da HQ. Apesar de enriquecer a obra, ao mesmo tempo reforça o que eu disse ali em cima: a vida de Stieg Larsson foi interessante, mas não a ponto de realizar uma história em quadrinho de mais de 60 páginas.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Millennium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres (2011)

    Crítica | Millennium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres (2011)

    O primeiro plano que o espectador vê, logo no início de Millenium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres, é a paisagem de uma vila sueca. Branca, fria e nevada. Tudo é perfeito. Tudo está em ordem.

    Pela beleza e “asseio”, o local remete muito mais a um cenário adequado a histórias natalinas ou a um conto de fadas infantil que a um thriller policial, costurado por assassinatos em série, esquartejamentos, estupros e relações incestuosas.

    E esse é justamente o truque. As coisas aqui não são o que parecem. Aliás, quase nunca são. É sabido que as ações mais sombrias costumam se disfarçar sob uma fachada de civilidade, gentileza e harmonia. Embora não pareça, o pior do ser humano está escondido naquela ilha de beleza gélida.

    Além de um conto policial muito bem construído, “Millenium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres” é uma crítica contundente à hipocrisia imposta pela aparência. Ao quanto as percepções podem ser enganadas – muitas vezes de forma até letal – por noções superficiais de perfeição e normalidade. Neste caso, o clichê é mais que válido: imagem não é nada.

    O diretor David Fincher (Seven, Alien 3, Clube da Luta, O Quarto do Pânico, Zodíaco, A Rede Social) escancara essa noção ao adaptar a obra de Stieg Larsson – criador do best-seller que deu origem ao filme e das outras duas partes que formam a trilogia Millenium, A Garota que Brincava com Fogo e A Rainha do Castelo de Ar. A trama começa quando o jornalista Mikael Blomkvist (Daniel Craig) recebe um telefonema em plena noite de Natal. Seu interlocutor, do outro lado da linha, o convida a ir até uma ilha afastada, na parte mais fria do território sueco, para ouvir uma proposta.

    Blomkvist acabou de sofrer uma derrota nos tribunais por ter feito acusações sem provas contra um financista. Sua carreira e credibilidade, bem como sua vida pessoal, estão abaladas. Ele não tem muito a perder. Por issso, decide ir até o local.

    Ao chegar lá, conhece o industrial Henrik Vanger (Christopher Plummer). Ele quer que o jornalista conduza uma investigação para descobrir quem é o assassino de sua neta, Harriet, desaparecida desde 1966. O milionário está convencido de que ela foi assassinada por um dos integrantes da própria família – todos moradores da mesma ilha – e quer provar sua tese.

    O repórter reluta. Mas diante dos benefícios oferecidos por Vanger – um deles diretamente ligado a seus probelamas com a Justiça -, acaba aceitando.

    A partir daí, a trama avança sobre dois trilhos que acabarão se unindo: a investigação feita pelo jornalista e o desenvolvimento de Lisbeth Salander (Rooney Mara, excelente), disparada a melhor e mais profunda personagem da história, e que também irá auxiliar o repórter na solução do mistério.

    Hacker e investigadora com habilidades raras, Lisbeth não guarda espaço para sentimentos ternos. Eles existem, mas ela os mantém presos o mais fundo possível. A única coisa que importa é seu trabalho, ao qual se entrega com uma objetividade obsessiva. De fato, a jovem de 23 anos é tão direta e objetiva que transfere essa abordagem até mesmo para sua vida sexual. Ela tem as respostas. Ela precisa estar no comando.

    É uma personagem de emoções primárias acentuadas – raiva, medo, timidez e fúria. Ao mesmo tempo, é possuidora de um forte senso moral. Certamente o mais sólido entre todos os que compõem a história.

    Ao longo do filme, Lisbeth aparecerá em quatro cenas sexuais – dessas, apenas duas são consentidas. Repare como nessas últimas, é ela quem dá as cartas. Já a primeira mostra o que ela está disposta a tolerar para continuar com o seu trabalho. A segunda, é um ato de violência – pelo qual a hacker e sua particular noção de Justiça farão com que o perpetrador pague da pior forma possível.

    A abordagem visual escolhida por Fincher reflete a frieza e aparência de normalidade que formam o cenário ao redor dos personagens. A estética é “clean”. A luz é dura e branca, fazendo um paralelo com o ambiente coberto de neve da ilha.

    As exceções ficam por conta das imagens referentes ao dia do desaparecimento de Harriet, quando todas as cenas são banhadas por um filtro dourado. Metáfora visual para dias mais ensolarados e felizes que já foram vividos naquela ilha.

    Repare como, em pelo menos dois momentos, o cineasta retrata Blomqvist em planos gerais, pequeno diante de um ambiente nevado e frio. Nessas duas situações, o repórter tenta, sem sucesso, usar seu telefone celular. Não é possível. Não há sinal. A mensagem é clara: o jornalista está isolado na sua busca pela verdade e diante do enigma que precisa decifrar.

    Craig empresta a fragilidade necessária à construção do repórter. Nem pense em ver o atual intérprete de James Bond realizando as mesmas ações dos filmes de 007. De jeito nenhum. Aqui, ele está até mesmo fisicamente mais fraco e magro. Uma aparência que ressalta o quanto ele pode ser uma presa fácil naquela trama.

    A cenografia contribui para a sensação de frieza e isolamento. Quer exemplos? Na ilha, há dois tipos de imóveis: os muito pequenos, velhos e frios e os novos e modernos – esses últimos, principalmente a casa do personagem Martin (Stellan Skarsgärd) – são assépticos e extremamente impessoais. Quase sem traços de humanidade.

    A trama é desenvolvida no ritmo de uma locomotiva: começa lenta e pausada – como todo bom início de investigação – e depois acelera rumo à solução definitiva do mistério, onde se chega por meio de uma longa e exaustiva análise de provas, informações cruzadas, entrevistas e imagens. Mas atenção. Fique atento. Este filme possui dois finais. Não se preocupe. Não se trata de anticlímax. É apenas a amarração de todas as pontas do enredo.

    Vale uma menção muito especial à trilha incidental criada por Trent Reznor, o líder da banda de Rock/Tecno/Industrial Nine Inch Nails. Repare na tensão e agonia que seus teclados etéreos e ruídos eletrônicos provocam em cada cena. Isso sem falar na excelente versão que ele e Karen O (a vocalista dos Yeah Yeah Yeahs) fazem para “Immigrant Song”, do Led Zeppelin, que já podia ser ouvida no primeiro trailer e que aqui está nos créditos iniciais do filme.

    Aliás, por falar na presença de Reznor, nesse sentido o próprio Fincher faz questão de dar uma piscadela para o público: logo no início do filme, um especialista em informática aparece usando uma camisa com o logotipo do Nine Inch Nails (NIN).

    Ao fim de “Millenium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres”, pelo menos duas mensagens ficam muito claras: a primeira é que o mal de verdade é insidioso e está mais perto do que imaginamos.

    A segunda – e aqui não há qualquer intenção de pieguice ou conselhos de auto-ajuda – é que não importa quanto dinheiro você tem, quais roupas você veste ou quão alto você está na escala social. São suas ações que farão de você uma pessoa boa ou ruim.

    Duvida?

    Assista o filme e depois reflita…

    Texto de autoria de Carlos Brito.