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  • Resenha | As Barbas do Imperador

    Resenha | As Barbas do Imperador

    As Barbas do Imperador - capa

    A parceria entre a escritora Lilia Moritz Schwarcz e o ilustrador Spacca já rendeu bons frutos anteriormente no primeiro trabalho da dupla, D. João Carioca – A Corte portuguesa no Brasil, publicado em 2008 pelo selo Quadrinhos na Cia., da editora Companhia das Letras, que abordava a chegada da família imperial ao Brasil e um pouco do Primeiro Império.

    Quase seis anos depois, a dupla se uniu novamente para dar continuidade a essa história, mas dessa vez para narrar a história do Segundo Império, desde o nascimento de Pedro de Alcântara; sua infância; a partida de seu pai, D. Pedro I; a sua preparação para assumir a coroa; todos os liames pelos quais passou o Brasil durante o reinado e culminando, por fim, em sua morte.

    Importante ressaltar que As Barbas do Imperador é um livro da própria Lilia e vencedor do prêmio Jabuti em 1999, marcando um passo importante na construção historiográfica do Segundo Império, já que trouxe uma revisão sobre o período régio no Brasil, a sociedade brasileira da época e a importância da iconografia para fundamentar o poder monárquico de D. Pedro II.

    Nesta adaptação, Lilia se reúne com Spacca novamente para dar cores ao próprio trabalho, conseguindo se adaptar à linguagem da arte sequencial para mostrar como funcionavam os símbolos e a construção de uma sociedade para D. Pedro II. Era de suma importância para ele criar um retrato de nação romântica, concebendo uma memória para consolidar a monarquia, financiando pintores para enaltecer a nacionalidade, escritores que simbolizassem o que houvesse de melhor no Império e historiadores voltados à construção dessa memória, sempre buscando inspiração nas raízes nacionais, principalmente voltadas à figura do índio e do exótico, criando os alicerces do país.

    Não à toa, este projeto “indianista” de D. Pedro II se reflete em dezenas de esculturas, quadros, romances, e até mesmo em símbolos da monarquia, como a moeda e xilogravuras envolvendo o monarca, se integrando cada vez mais à iconografia política do Brasil. Com o tempo, percebemos que esses símbolos se tornam motivo de sátira para alguns impressos da época.

    Além disso, entendemos um pouco como a monarquia utilizava as festas como instrumentos estratégicos para a consolidação da realeza e a aproximação com um império tipicamente europeu, com suas cores exóticas, é claro. Sempre buscando uma afirmação de poder, reforçando uma ideia mítica de monarquia. Essa visão vai se degradando nos anos finais do Segundo Império.

    A obra dá espaço para os acontecimentos históricos da época, desde as rebeliões no período de regência, como os movimentos abolicionistas, a Guerra do Paraguai, e tantos outros. Além de demonstrar que, desde os períodos de Segundo Império até hoje, quem detém o poder sempre soube fazer alianças entre partidos com ideais opostos daqueles que acreditava, já que D. Pedro II sempre se revezou entre os representantes dos partidos liberais e conservadores, ora buscando alianças de um lado, ora de outro. Nada muito diferente do que vemos hoje.

    O texto narrativo é um pouco truncado para uma HQ, funcionando muito mais como um texto analítico, misto de ensaio e biografia de Dom Pedro II. Contudo, o objetivo é este mesmo: adaptar a obra de forma mais palatável para todas as idades e não propriamente um roteiro de quadrinhos que estamos habituados a ler. Spacca surge justamente para dar vida à história e transpor essa linguagem ao universo das HQs, e, verdade seja dita, faz muitíssimo bem. Seu traço caricatural é vivo e recria cada momento de forma interessantíssima, desde o modelo da época, como a construção de retratos, documentos, pinturas e outros símbolos iconográficos, sempre de forma dinâmica. O álbum conta ainda com uma seção de extras com textos sobre a Guerra do Paraguai, a escravidão e a importância que a fotografia teve no império de D. Pedro II, além de uma galeria de construção dos personagens e cronologia da época.

    As Barbas do Imperador é um belo lançamento para compreendermos um pouco sobre nosso passado e entendermos nosso presente.

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  • Resenha | Todo Aquele Jazz – Geoff Dyer

    Resenha | Todo Aquele Jazz – Geoff Dyer

    O jazz e o blues foram gêneros musicais que ultrapassaram barreiras e se tornaram instrumentos importantes de contestação social, principalmente no que tange os direitos civis dos norte-americanos. Os negros incorporaram toda a discriminação racial e a opressão política das classes dominantes em sua música, como um agrupamento de minorias contra um sistema segregacionista.

    Este cenário, pouco a pouco, cedeu lugar a outros gêneros, principalmente após o aparecimento do movimento de contracultura, onde principalmente o rock passou a ser o grito de rebeldia contra o modelo de sociedade da época. Contudo, o jazz nunca perdeu seu viés político e social como ferramenta de mudança.

    Em formato narrativo ensaísta, que permite maior liberdade, Geoff Dyer utiliza o jazz como plano de fundo para tecer suas histórias sobre a trajetória de alguns monstros do gênero. A concepção de Todo Aquele Jazz denota a originalidade da escrita do autor, fazendo uma mescla de biografia com ficção como pontapé inicial para a criação de seus ensaios. Utilizando fotos históricas dos músicos citados no livro, propõe a imaginação do que o estilo representava pra ele. Se o jazz extrapola fórmulas e improvisações ao longo de um pequeno tema central, por que não extrapolar a imaginação e ficcionar histórias em torno de uma fotografia? 

    Todo Aquele Jazz começa de forma intercalada. No primeiro momento acompanhamos uma viagem de carro de Duke Ellington e seu saxofonista, Harry Carney, a um show. Ao mesmo tempo somos transportados a outros personagens e depois retomamos à estrada com Ellington e Carney.

    Dyer define o jazz como uma busca para encontrar seu próprio som e uma maneira de torná-lo diferente dos demais. Ao retratar o saxofonista Lester Young em um capítulo exclusivo, o autor evidencia a necessidade do músico de soar diferente a cada execução de sua música. Como um movimento único em contraponto com a época em que viveu no exército, observou a repetição como modelo, seja nos uniformes, cortes de cabelo, postura, assim como no modo de pensar, tornando todos iguais. Como o jazz, Young nunca se enquadrou em um padrão. Sua espontaneidade está distante de qualquer sinal de uniformidade.

    No capítulo dedicado ao saxofonista Ben Webster, Dyer escreve:

    “(…) Já houve quem definisse o sentimento como emoção barata, mas isso não se aplica ao jazz. O jazz torna automaticamente necessário ganhar a emoção, porque é dificílimo tirar do saxofone um som tão suave, manter o suingue e fazer com que o sax arranque lágrimas de seu coração. Se você está fazendo jazz, está automaticamente pagando pela emoção; quem conhece a história da música sabe o que isso quer dizer. Quando Ben toca um blues ou “In a Sentimental Mood”, entende-se como é irrelevante aquela velha ideia de sentimento barato. Ele nunca se torna meloso, porque, por mais suave que fosse seu som, lá estava sempre o urro, oculto em algum lugar.”

    A discriminação racial é um ponto bastante abordado no livro, já que boa parte desses músicos, negros, viveram em um regime extremamente segregacionista até o final dos anos 60, nos Estados Unidos. Em uma passagem, Mingus, ativista dos direitos civis dos negros, está em um tribunal e é chamado de músico de jazz por seu advogado. Imediatamente, ele o mandou se calar, dizendo: “(…)  Não me chame de músico de jazz. Para mim, a palavra ‘jazz’ quer dizer crioulo, discriminação, cidadãos de segunda classe e todo o lance de ficar no fundo do ônibus”.

    O retrato dos músicos é sincero, repleto de dramas pessoais e degradações que culminarão em um fim triste e precoce. Drogas, discriminação racial, doenças mentais, violência, problemas com as autoridades, são partes de uma história maior. Como o citado temperamento explosivo de Mingus; a solidão de Ben Webster; a destruição psicológica de Bud Powell; como tantos outros casos de degradação, mas também de genialidade. A respeito, Thelonius Monk dizia que “(…) o jazz sempre teve esse lado, o músico ter um som que é só dele, e por isso existe um monte de gente que talvez não tivesse sucesso em outras artes… porque teriam encoberto suas idiossincrasias… (…) No jazz podem ser gênios, sem ele não seriam nada. O jazz pode ver coisas, pode arrancar das pessoas coisas que a pintura e a literatura não veem”.

    A construção de época, assim como todo o retrato do gênero, seus músicos e o que cada um representava não só musicalmente, mas também socialmente, são pontos bastante abordados na obra de Dyer. No capítulo dedicado a Art Pepper e sua prisão, o autor exemplifica todo o sentimento de um jazzista ao realizar uma improvisação como algo muito além de notas tocadas dentro de um campo harmônico, mas como um grande salto em torno de canções românticas, gritos de revolta ou um gemido de desespero. No caso de Pepper, Dyer deixa claro que seu solo era nada, algo que não é superior a dignidade, amor-próprio, orgulho ou amor, mas que é mais profunda do que esses valores, mais profunda do que o espírito: a simples capacidade de recuperação do corpo.

    Dyer nos ambienta em cada nota desse universo musical marginal do bepop, compondo cada detalhe de um grande solo. Sua narrativa, assim como no jazz, não perde o ritmo, mostrando que aprendeu bem com Monk, o qual sempre dizia que o fato de você não ser baterista não quer dizer que você não possa suingar. Todo o fato de ser baseado em fotografias, cenas de documentários, anedotas, e outros materiais não tão habituais e acadêmicos para compor uma biografia, dá o tom do que o autor queria: uma grande improvisação literária sobre o jazz. Um belíssimo trabalho.

    * Escrito ao som de Every Time We Say Goodbye, de Chet Baker.

  • Resenha | Alta Fidelidade – Nick Hornby

    Resenha | Alta Fidelidade – Nick Hornby

    Alta-Fidelidade-Nick-Hornby

    Paixões, romances, amores… A maioria de nós tivemos um (quiçá, vários) relacionamento que de alguma forma nos marcou, para o bem ou para mal, e que dificilmente conseguiríamos conceituar ou definir o que aquela relação significou. Essas questões cotidianas têm muito mais relação com as coisas que acreditamos que valem a pena, somada aquela valorização da honestidade, e da dúvida de que somos o que achamos, ou o que as pessoas acham de nós, do que necessariamente físicas. Essas são algumas questões levantadas por Nick Hornby, em Alta Fidelidade.

    É estranho como alguns livros têm uma importância diferenciada na sua vida de acordo com a época em que você esteja vivendo. Alta Fidelidade é um ótimo exemplo disso. Já tive o livro em mãos há cerca de uns 7 ou 8 anos atrás, li algumas páginas, abandonei ele por algumas semanas e acabei devolvendo ao dono pouco tempo depois. Não que a história seja ruim, pelo contrário, apenas não embarquei nela. Hoje sei o motivo.

    No auge dos meus 20 anos, iniciando uma vida universitária, efervescência de pessoas ao seu redor, um mar de possibilidades à sua frente e o que parecia o início de um promissor relacionamento, não me fizeram absorver aquele universo de um homem de 30 e poucos anos com crise de meia-idade. Aquilo parecia estragar minhas perspectivas e o que eu poderia esperar do futuro. Definitivamente não era um bom momento para lê-lo.

    Alguns anos mais tarde, um pouco mais calejado pela vida e após um difícil término de relacionamento, eis que chega novamente em minhas mãos um novo exemplar de Alta Fidelidade, dessa vez a nova edição reeditada pela Companhia das Letras. Achei que dessa vez era o momento certo para encará-lo.

    Hornby nos apresenta a Rob Flemming, um sujeito de trinta e poucos anos, que vive em Londres nos anos 90, proprietário de uma loja de discos, onde passa o dia com seus amigos listando suas canções, álbuns e filmes preferidos. Rob não sabe bem o que fazer de sua vida, já começou uma faculdade, mas não chegou a conclui-la, teve alguns relacionamentos sérios, mas recentemente foi trocado por outro pela sua namorada, Laura, com quem vivia já há algum tempo. O livro inicia com Rob listando seus cinco términos de namoro mais memoráveis e complementa da seguinte forma:

    “Esses foram os que doeram de verdade. Tá vendo seu nome aí no meio, Laura? Acho que, raspando, até entrava nos dez mais, mas entre os ‘top five’ não tem lugar pra você; essa lista está reservada para aquele tipo de humilhação e desgosto que você simplesmente não é capaz de causar. Isso provavelmente soou mais cruel do que eu pretendia, mas o fato é que a gente passou da idade em que é capaz de deixar o outro na pior, o que é uma coisa boa, e não uma coisa ruim, então não precisa levar pro lado pessoal o fato de não ter entrado na lista. Essa época já era e, porra, demorou; ser infeliz realmente significava alguma coisa antes. Agora é só aporrinhação, tipo um resfriado ou falta de dinheiro. Se você queria detonar comigo de verdade devia ter aparecido antes na minha vida.”

    E assim, Hornby já nos constrói a dinâmica do que veremos ao longo da leitura. Rob é um cara egocêntrico, ranzinza, mesquinho e que passa por uma crise, que aparentemente não é apenas uma fase passageira, mas algo que qualquer homem próximo dos 30 sabe muito bem do que se trata. Rob evita falar sobre seus problemas ou encará-los, e quando tudo dá errado decide reorganizar sua vida arrumando sua coleção de discos, quando isso não é o bastante, parte em uma jornada para conversar com suas ex-namoradas e questionar o fim de cada relacionamento que ele já teve, desde o colégio até os dias atuais, e claro, tentar descobrir como sua vida chegou até aquele ponto.

    Hornby pouco a pouco cria um universo palpável de boa parte dos homens ao retratar receios comuns nessa idade, como um certo medo de intimidade, a incapacidade de se envolver demais, além de outros medos. Coisas banais que praticamente todos passamos ou iremos passar. O autor não pretende escrever um tratado sobre uma geração, apenas um romance geracional, reconhecível para a maioria de nós. E acerta em cheio.

    O texto é muito bem escrito e com uma leitura extremamente prazerosa. Os personagens menores são bem construídos, fortes e muito distantes de qualquer aspecto maniqueísta. Se isso não fosse o bastante, Hornby é um aficionado por música, e ao longo do texto despeja inúmeras referências com um certo ar crítico de quem sabe do que está falando.

    Alta Fidelidade não é um retrato de uma época, mas mais do que isso, é um livro sobre inseguranças, relacionamentos, fraquezas, dúvidas afetivas, existencialismo, sexo, e tantos outros questionamentos que nos fazemos todos os dias, tudo isso exposto de maneira extremamente simples, mas ao mesmo tempo autêntica, como poucos conhecem. Daquelas leituras que você termina com um sorriso idiota na cara e que levará consigo por anos. Que bom que decidi dar uma segunda chance a ele.

    * Escrito ao som de The River, do mestre Bruce Springsteen.

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  • Resenha | Machu Picchu – Tony Belloto

    Resenha | Machu Picchu – Tony Belloto

    machu picchu - tony bellotto

    O guitarrista Tony Bellotto não achava-se cool o bastante sendo um dos fundadores de uma das maiores bandas do rock brasileiro, Os Titãs, e marido de Malu Mader, atriz, hoje quarentona, ainda com grande beleza e indefectíveis sobrancelhas expressivas. E em 1995, lançou seu primeiro romance, abrindo espaço para um novo terreno desconhecido.

    Após três romances policiais com o Detetive Bellini e uma inspiração rasgada em Dashiell Hammett, Bellotto apresentou novas narrativas fora do elemento policial: BR163: Duas Histórias na Estrada (2001), seguidos de Os Insones (2007) e No Buraco (2010), todos lançados pela Companhia das Letras que lança também Macchu Picchu, seu novo romance.

    A narrativa tem início no engarrafamento cotidiano da cidade de Rio de Janeiro. Um congestionamento considerado um dos maiores da história até então. Nesta cidade paralisada, avançando pouco a pouco, cada qual em seu espaço, encontram-se Zé Roberto e Chica. Um casal que tenta retornar à sua casa para comemorar mais um ano de casamento.

    As vias paradas, sem nenhum movimento, repletas de tensão de trabalhadores cansados e estressados injetam nas personagens uma reflexão interna dos momentos que os levaram até esse grande engarrafamento. Metáfora da  condição humana de paralisia perante a sociedade. Através de suas reflexões, as camadas superficiais de suas personalidades se destroem, destacando-se desejos e vontades escondidas que, se expostas, podem quebrar a harmonia conquistada.

    Devoto fã de Dashiell Hammett e Raymond Chandler, a prosa de Bellotto bebe diretamente da fonte da literatura policial americana do início do século, apoiada em personagens dúbios em uma trama que nem tudo é o que parece. A ironia com que analisa a sociedade em seu textos vem diretamente destes autores mas inserida em seu tempo contemporâneo. São diálogos rápidos, secos, sem medo ou vergonha de expressar até os pensamentos mais vulgares. Mantendo a linguagem em tom coloquial, como uma conversa ou confissão feita aos amigos mas que perde a força pela habilidade oscilante em narrar a história.

    Bellotto tem o entusiasmo de um escritor marginal, um pós-beatnik fascinado pela literatura de suspense. Sua narrativa é escrita na velocidade de um disparo. Rápida, cheia de referências. Projeta no leitor múltiplas ideias articuladas em pouco tempo. Porém, de tão rápida carece de melhor lapidação. Como se faltasse a percepção de que, mesmo em uma prosa coloquial, há um apuro e trabalho na escrita para que ela soe natural como, em um exemplo, as narrativas de Bukowski.

    A oscilação narrativa parece menos estilo do autor e maior falta de precisão ao compor. As personagens ganham pelo carisma, mantém em alta rotação a intenção da trama, sempre rápida. Mas quando caminha para o final, é  visível a ausência do apuro narrativo.

    Um elemento comum na maioria de seus romances: a insuficiência em fechar a própria narrativa, desembocando-a em um clichê que centra-se no absurdo em demasia.

    O romance breve é funcional na proposta de apresentar um momento na vida das personagens. Dialogando com a velocidade do contemporâneo. O engarrafamento é a crítica de um mundo veloz mas parado devido a própria evolução. Mas o impacto desejado ao fim se perde pela ausência de ritmo, anulando potenciais tramas em um desfecho sem graça.

    Talvez pelo apreço que ainda nutro pela banda hoje esfacelada de Bellotto, insista como leitor de suas narrativas, esperançoso de que um dia o escritor encontre melhor equilíbrio. Afinal, em textos curtos escritos para a Veja ou o blog da editora, Bellotto produz boas crônicas, sempre apoiadas em histórias musicais. Além de ser um excelente letrista de canções como Isso e Palavras.

    Falta ao autor maior sintonia de sua voz como narrador. A consciência de que para ser genuinamente simples é necessário mais apuro do que vem sendo produzido até então.

  • FLIP 2013: a forma livre da literatura

    FLIP 2013: a forma livre da literatura

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    Sábado foi o dia mais movimentado em Paraty. No dia seguinte, o público começa a diminuir e, talvez não por acaso, a décima nona mesa do evento, às 17h, A arte do ensaio, foi deixada para o último dia com a consciência de que parte do público não se importaria de perdê-la. Um erro por parte do público.

    Diferente da denominação comum da palavra ensaio tida no país, a expressão não significa no exterior o estilo de texto acadêmico presente em nossas universidades que é, normalmente, erudito demais quando não engessado ou empolado ao extremo.

    Com mediação de Paulo Roberto Pires, editora da principal revista ensaística do país, a Serrote, do Instituto Moreira Sales, dois dos grandes ensaístas contemporâneos, o britânico Geoff Dyer e o americano John Jeremiah Sullivan conversaram a respeito de uma das formas mais livres da literatura.

    A mesa foi a última conversa do evento. Já que o próximo encontro, programado para o início da noite, reúne diversos autores lendo trechos de seus livros de cabeceira. Até esta conferência, uma importante constatação, até então ignorada por mim em eventos acadêmicos, veio à tona: a importância do mediador.

    Paulo Roberto Pires foi exemplar. Soube transitar entre os temas abordados e as perguntas do público como quem produz uma fala única e bem composta. Pontuava considerações nos momentos certos e levantava boas questões que fazia os ensaístas dialogarem entre si.

    Escolheu ir além do tradicional, optando por primeiro conversar um pouco com os autores para depois, com público integrado a cada um deles, ouvir a leitura de cada um. Como estilo considerado livre pela maneira com que mescla erudição, opiniões pessoais e um estilo narrativo próximo da ficção, os escritores foram estabelecendo pontos de referência para que público compreendesse sua importância.

    Sem ter um formato próprio, o ensaio permite que o escritor deforme o estilo a favor de seu tema. Escolhendo uma voz adequada para abordar cada assunto que vem à tona sem a intenção formal. Por isso a indefinição do gênero e, não por acaso, a maneira com que escolhi abordar as crônicas do evento, sempre escolhendo a abordagem no estilo que parecia mais adequado com cada debate, tentando ao máximo produzir um bom texto referente.

    Dentre as mesas às quais assisti, elegi esta uma das melhores pela fruição com que autores e mediador conversavam, dialogando sobre o tema de maneira natural. Uma sensação que também reflete no público, menor que os dos dias anteriores mas não menos interessado.

    Coincidentemente, os dois ensaios lidos pelos autores tinham como tema a música. Dyer apresentou texto de seu livro sobre jazz, Todo Aquele Jazz, e Sullivan leu um pungente texto sobre Michael Jackson, de Pulphead – O Outro Lado da América, ambos da Companhia das Letras.

    Ao abordar o ensaio e fazer dele a última mesa dialogada do evento, a FLIP finaliza sua décima primeira edição privilegiando um dos grande temas deste ano, o prazer do texto e da leitura. E, naqueles aplausos no final da conferência, a festa literária anunciava seu final. Faltando apenas a reunião épica de autores que leriam seus trechos preferidos e, sem dúvida, falariam de si mesmos, sempre egocêntricos que são.

  • FLIP 2013: Cadê o grito do Galera?

    FLIP 2013: Cadê o grito do Galera?

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    Quatro romances, um de contos, uma história em quadrinhos, além de antologias. Com o saldo, ainda pequeno para uma um futuro longo, Daniel Galera demonstra seu talento como escritor e sua popularidade pode ser medida pela quantidade de leitores ávidos que esperavam sua chegada na Tenda dos Autógrafos para autografar, muitas vezes, mais do que um exemplar de seus livros.

    O francês Jeromi Ferrari tem na bagagem o mesmo número de livros que o brasileiro. O mais recente, O Sermão da Queda de Roma, traduzido no país e publicado pela Editora 34, foi lançado ano passado e tem dado sequência aos elogios sobre sua prosa.

    Ambos são jovens, ainda mais se levarmos em conta uma carreira que, normalmente, amadurece em torno dos quarenta anos. Além da idade e do talento ativo, tem em comum o fato de que seus últimos romances aproximam-se por temas em comum. Motivo que os uniu as 13h, no sábado,  na mesa Tragédia no microscópio.

    Barba Ensopada de Sangue, de Galera, e o Sermão, de Jerome, apresentam personagens inseridos no mundo contemporâneo dentro de um microcosmos peculiar. No primeiro, em Garopaba, em Santa Catarina. No segundo, Córsega, na França.

    A trama dos romances gira em torno de um universo limitado e específico – bem definido pelo título da mesa – que retira os contornos óbvios das personagens dando lhes certo senso de perdição que, mesmo que evitem, acabará por abalá-los.

    São prosas densas, claustrofóbicas, bem ritmadas de maneira lenta que, quando menos se percebe, angustia o leitor. Duas tramas em potencial que, bem dialogadas, transformaria este encontro em um dos melhores da FLIP. Transformaria.

    Se é necessário uma primeira ação para desencadear outras, a mediação de Noemi Jaffe pode ter sido o primeiro ponto de desencontro para uma mesa morna. Houve certa preocupação inicial em apresentar cada escritor em seu próprio espaço, talvez temerosa de que Galera se destacasse além de Jerome. As perguntas eram feitas direcionadas primeiro para um, depois para outro. Sem uma temática que conseguisse percorrer ambas narrativas, mesmo quando tudo inclinasse para isso.

    Quando surgiram perguntas para aproximá-los era impossível ultrapassar um incômodo que permaneceu. Autores respondiam as perguntas sobre a própria obra, tentavam dialogar um sobre a obra do outro mas, em seguida, faltava um fio condutor que ponderasse os assuntos e prosseguisse.

    As perguntas de Noemi eram diversas vezes muito específicas. Retirando a unidade da mesa e buscando respostas que mais se aproximavam de curiosidades do que de informações capazes de sustentar um diálogo.

    Enquanto isso, chegavam também as perguntas da platéia. E quando a mediadora começou a utiliza-las o descompasso pareceu maior. Obrigavam o pouco diálogo a mudar de tom para perguntas nulas e rasas demais que desmanchavam o começo de uma possível boa conversa.

    Nada tenho contra perguntas da platéia, mas é necessário adequá-las ao o que se dialoga para não se transformar apenas em um mero sistema de perguntas e respostas.

    No centro do palco, entre a mediadora e Daniel Galera, Jerome Ferrari parecia incomodado. Pediu desculpas no final da sessão por não parecer tão simpático, culpando certa emoção momentânea.

    Fiquei com a sensação de que o francês queria mais. Uma oportunidade maior de abertura de diálogo para que de fato discutisse com profundidade o assunto. Com uma das mãos apoiadas no rosto, o escritor parecia pensar que sua vinda ao Brasil, até então, deveria ter rendido mais.

    E ironicamente a tragédia no microscópio refletiu-se além das narrativas, pairando também sobre a mesa quase desperdiçada de dois grandes escritores.

    daniel galera

  • FLIP 2013: Companhia das Letras disponibiliza transcrição da primeira mesa do evento

    FLIP 2013: Companhia das Letras disponibiliza transcrição da primeira mesa do evento

    mesa1

    A Companhia das Letras disponibilizou em seu Blog da Companhia a transição da Mesa O1, Dia-Dia De Baixo D´Agua, realizada no primeiro dia da FLIP, 05 de junho, as 10 horas.

    Com mediação de Noemi Jaffe, a mesa reuniu Alice Sant´ana, Bruna Beber e Ana Martins Marques em uma conversa sobre poesia.  A transcrição pode ser lida no blog da editora e apresentação da mesa conferida abaixo.

    Ao se tornar matéria de poesia nas obras dessas três jovens poetas, o cotidiano assume inflexões várias – cômico, melancólico, sublime. A sucessão dos dias, observada naquilo que tem de mais trivial, pode se estender num clima arrastado de tarde de domingo ou sugerir uma possibilidade inesperada de revelação, como indica o título do livro de Alice Sant’Anna, Rabo de baleia. O mergulho na vida íntima, aqui, se constrói por meio dessa tensão entre o campo delimitado pelas paredes da vida privada e um desejo reiterado de expansão.

  • Resenha | O Lixo da História

    Resenha | O Lixo da História

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    A história dos quadrinhos nacionais esbarra na própria história do cartunista brasileiro Angeli. Considerado um dos mais influentes quadrinistas do Brasil, Angeli criou inúmeros personagens que já fazem parte da nossa cultura como Bob Cuspe, Rê Bordosa, Mara Tara, Os Skrotinhos, Wood & Stock, e tantos outros que colocaram o artista como referência no quadrinho nacional, ao lado de nomes como Laerte e o saudoso Glauco.

    Angeli foi o fundador da revista Chiclete com Banana, criada na década de 1980 e um marco para o mercado editorial de quadrinhos nacionais, tendo em vista a liberdade dos artistas para abordarem o que bem entendessem, mas acima de tudo a análise comportamental do ser humano sob uma ótica visceral da época. Nas páginas da Chiclete com Banana diversos personagens foram criados, boa parte dos já citados, além de tantos outros.

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    Contudo, as charges políticas que produziu para a Folha de São Paulo são consideradas por muitos o trabalho mais contundente de Angeli. Há décadas o artista publica seu trabalho na página dois da Folha, e desde então não poupa ninguém e nunca escolheu um lado fácil para tecer suas críticas políticas.

    Desde 2001, Angeli vem dedicando seu humor ácido em face da política internacional norte-americana e os conflitos no Oriente Médio após o 11 de setembro. A política de guerra ao terrorismo de George W. Bush não é poupada, sempre retratando os anos 2000 como um período sujo, marcados pela presença constante de sangue e de um tratamento à vida humana como meros peões em um grande jogo de xadrez.

    angeli2005

    O traço de Angeli retrata muito bem esses anos, sujo e visceral, mas ao mesmo tempo com um acabamento que denota a diversidade de estilos do autor. Sua arte na maioria das vezes não precisa de texto, fala por si só. A mensagem é clara. Nada é poupado, seja governos, crenças, ideias, Angeli atira para todos os lados, e absurdamente, quase sempre acerta.

    Todas essas charges são reunidas no álbum O Lixo da História, publicado pela Quadrinhos na Cia. em uma coletânea que faz jus ao conteúdo interno. A edição conta ainda com uma linha do tempo para entender melhor o contexto histórico relacionado com as charges publicadas.

    Angeli se mantém implacável: não nos deixa esquecer que os anos 2000 passaram muito longe de ser um período de paz em nossa história e relembra como vidas humanas são subvalorizadas em prol de interesses financeiros ou de poder.

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  • Resenha | Quem Poderia Ser a Uma Hora Dessas? – Lemony Snicket

    Resenha | Quem Poderia Ser a Uma Hora Dessas? – Lemony Snicket

    Só Perguntas Erradas

    Antes de qualquer coisa, preciso dizer que, desde Desventuras em Série, não consigo ser imparcial com as obras de Lemony Snicket. Desde o primeiro daqueles treze livros, o considero um dos meus autores favoritos. Portanto, se você desejar ler um relato de um fã sobre um livro que contém todos os elementos típicos desse autor, sinta-se à vontade para continuar. Caso deseje encontrar uma resenha imparcial em que todos os fatos são analisados de maneira fria em todos os seus aspectos, não recomendo que continue lendo essa resenha. Pois, como disse, não consigo ser completamente racional quando estamos falando de Snicket.

    Sua narrativa é – como esperado – muito parecida com aquela presente em Desventuras em Série, por mais que dessa vez a história seja contada em primeira pessoa. É evidente a presença de seu sarcasmo ao criar personagens cuja estupidez evidente seja fruto de um ego mal controlado que, aparentemente, é muito típico de todos os adultos presentes no universo de Lemony. Ainda que o ponto de vista de um garoto de treze anos seja evidentemente infantil (da mesma forma que em Desventuras), seu raciocinio é completamente lógico e racional, enquanto o dos adultos que o rodeiam sempre parece limitado por uma sobriedade que, do ponto de vista do personagem, é simplesmente incoerente.

    – Eu falei pra não dizer nada – Sussurrou Theodora, bem quando a porta se abriu. Era um homem com roupão de banho e chinelos. Ele deu um enorme bocejo. Parecia pretender ficar vestido daquele jeito por um bom tempo.

    – Sim? – ele disse, quando terminou de bocejar.

    – Senhor Mallahan? – Perguntou Theodora.

    – Sou eu.

    – O senhor não me conhece – ela disse, forçando um tom amigável. – Eu e meu marido estamos aqui em lua de mel, e somos loucos por faróis. Será que poderíamos entrar e conversar por alguns minutos?

    Mallahan coçou a cabeça. Pensei em esconder as mãos nas costas, porque não estava usando uma aliança, mas me ocorreu que havia muitos outros motivos para alguém não acreditar que um garoto de quase treze anos se casara com uma mulher da idade de Theodora, então acabei deixando as mãos onde estavam.

    Os acontecimentos se desenrolam a partir da premissa de que o personagem, querendo ou não (e por ser apenas um garoto), deve obedecer àqueles que estão “acima” de sua posição. Portanto, não é incomum encontrá-lo em inúmeras situações em que ele não gostaria de estar, mas em que não tem escolha quanto a cumprir a ordem que lhe é dada. Ainda assim, quando surgem momentos de pura autonomia – e lógica – desse mesmo personagem, é que vemos um pedaço da mágica que é a narrativa dessa história. Pois, por mais infantil que o desenrolar da trama seja, é ao mesmo tempo tão cruel e sinistra que deixa aquela sensação de que é uma literatura muito importante tanto para adultos quanto para crianças, independente do quão simples e explicativa seja a maneira como a história é contada.

    – Você é apenas um aprendiz em experiência – disse Theodora, severa. – E você vai fazer tudo que a sua tutora disser. Agora, saia daqui. Mal consigo olhar pra você.

    – Mas Theodora…

    Saia! – Ela gritou e enfiou a cabeça na cama revirada. Seus ombros começaram a tremer por baixo da cabeleira. (…) Era a segunda pessoa que eu salvava no mesmo dia das garras do Tiro Furado, e nenhuma tinha me agradecido. Embora não bebesse café, eu compreendia o que Ellington tinha falado sobre a necessidade de coisas que nos restauram.

    Como é o primeiro volume de “Só Perguntas Erradas”, o que acontece é típico de Lemony e, por mais que responda a algumas perguntas que ficaram pendentes em Desventuras em Série, cria novas dúvidas sobre o que vai acontecer a seguir. Eu poderia aqui começar devaneios sobre todas as pontas soltas que estou certo que serão resolvidas com o tempo, mas não desejo fazer as perguntas erradas, por mais que soem certas enquanto eu as diga (para que só depois eu conclua que eram erradas).

    Dito isso, recomendo a todos que procuram uma leitura leve e empolgante, mas receio que devo afirmar que é uma leitura agradável para aqueles que vão até o final sem ter preconceito contra uma literatura que, a principio, aparenta ser inteiramente infantil (e, preciso dizer, aleatória e um pouco absurda), mas que de forma alguma procura subestimar seu leitor. É um livro direto e, do meu ponto de vista, conta com uma história repleta de astúcia e sarcasmo. Poderia dizer que muitas vezes é do feitio do autor soar como se estivesse criticando a maneira de agir dos adultos e da sociedade em geral, mas não quero entrar em assuntos polêmicos. Portanto, para finalizar, direi apenas o seguinte:

    Antes de decidir ler este livro, faça as seguintes perguntas a você mesmo:

    1. Quero saber o que se passa em uma cidade à beira-mar que não está mais na beira do mar?

    2. Estou interessado em conhecer a história do roubo de um objeto que não foi roubado?

    3. Isso tudo é realmente da minha conta? Por quê? Quem sou eu, afinal?

    4. Quem está parado bem atrás de mim?!

    Compre aqui.

    Texto de autoria de Thiago Suniga.

  • Resenha | Na Natureza Selvagem – Jon Krakauer

    Resenha | Na Natureza Selvagem – Jon Krakauer

    livro-na-natureza-selvagemAs andanças pelos Estados Unidos que culminaram na morte do jovem aventureiro Christopher Johnson McCandless no Alaska, despertou de forma enigmática o interesse de muitas pessoas, entre elas o jornalista Jon Krakauer e o cineasta Sean Penn, instigados pelas circunstâncias envolvidas na tragédia.

    O primeiro foi responsável pelo livro de não ficção Na Natureza Selvagem, publicado em 1996, e o segundo pelo filme ficcional de mesmo nome lançado em 2007 (leia nossa crítica aqui e ouça o podcast que eu participei e editei para o CineMasmorra aqui). Ambos tiveram sucesso nos meios literário e cinematográfico, e hoje em dia é difícil dissociar as duas obras, que acabaram se completando.

    Sinopse: um corpo em decomposição foi encontrado dentro de um ônibus por caçadores de alces em uma região selvagem do Alaska, e descobriu-se pertencer a um rapaz rico, bom aluno e excelente atleta. Jon Krakauer refez a trajetória do jovem e conversou com pessoas diversas ligadas direta ou indiretamente a ele, além de apresentar outros casos similares de aventureiros com o mesmo fim e relatar suas experiências como alpinista em situações extremas.

    Krakauer, fascinado pela tragédia de Christopher, conseguiu transformar um artigo da revista Outside que cobriu o caso, na época feita a pedido de seu editor como dito logo no começo do livro, em um relato muito mais completo e esmiuçado de sua aventura. E é essa a impressão que se tem ao se ler o livro, “Na Natureza Selvagem” (Companhia das Letras, 213 páginas, tradução Pedro Maia Soares, 1ª edição 1998), soa como uma grande reportagem.

    O autor visitou durante um ano os principais lugares que McCandless percorreu, pesquisou sobre a geografia, biologia e botânica do Alaska, teve acesso ao seu diário, a muitas das cartas que o jovem enviou e conversou com muitas pessoas. Professores com doutorado, caçadores de alce, alasquianos aventureiros, autoridades policiais, parentes distantes de outras vítimas, além dos familiares e amigos de Christopher foram alguns dos objetos de entrevistas usados para se tentar compreender os motivos, até hoje não claros, que levaram o jovem a abandonar uma vida promissora em um lar rico e virar um vagabundo caroneiro que passou a viajar o país até o Alaska.

    Algumas das perguntas feitas por Krakauer ao longo da narrativa eram respondidas por pesquisas feitas pelo mesmo, como a revelação de quem pertencia o corpo, a causa da morte, a possibilidade de sobrevivência naquela região do Alaska, e o mais importante: como uma parte de sua personalidade moldou-se através de seus ídolos literários Tolstói e Thoreau e o motivo que levou Christopher a se isolar da família. Uma curiosidade, revela-se muito da semelhança entre ele e o seu avô materno (p. 118 e 119).

    A narrativa não é linear, varia entre a descoberta do corpo de Chris e as suas andanças, com o restante. Os nomes dos capítulos remetem a lugares, sejam ligados a trajetória do jovem, onde ocorreram conversas com amigos e familiares, as outras tragédias citadas, assim como a aventura do autor como alpinista. Sempre abaixo de cada título há passagens grifadas por McCandless dos livros que leu ou trechos de outras obras destacadas pelo autor, até mesmo as cartas que Chris enviou para pessoas diversas, que ilustram o que será abordado.

    “Na Natureza Selvagem” ganha muita força nos capítulos 8 e 9, quando apresenta a narrativa de outros aventureiros românticos e idealistas que tiveram fins trágicos, como Gene Rosselini, John Mallon Waterman, Carl McCunn e Everett Ruess. Nos capítulos 14 e 15, o relato pessoal de Jon Krakauer quando escalou com sucesso o Polegar do Diabo (Devil’s Thumb ou Daalkunaxhkhu no dialeto Tlingit como mostra este blog) no final dos anos 70, serve para apresentar ao leitor a sobrevivência em uma situação extrema, mostrando como é fácil nestes casos o pré-julgamento feito por pessoas pouco informadas e a difícil tarefa de se tentar compreender a mente de uma pessoa nestas condições.

    Alguns leitores podem se incomodar com algumas partes onde se perde o cunho impessoal jornalístico e se transforma em comentários com livre interpretação de Krakauer. Apesar de marcante, eis um exemplo:

    “A 14 de março, Franz deixou McCandless no acostamento da Interestadual 70, perto de Grand Junction, e voltou para o sul da Califórnia. McCandless estava entusiasmado por estar a caminho do Norte e aliviado também – aliviado por ter novamente escapado da ameaça iminente de intimidade humana, de amizade, e toda a complicada carga emocional que vem com isso. Ele fugira dos limites claustrofóbicos de sua família. Tivera sucesso em manter Jan Burres e Wayne Westerberg a certa distância, afastando-se de suas vidas antes que esperassem alguma coisa dele. E agora escapulira também sem dor da vida de Ron Franz” (p. 66).

    Outro incômodo é a falta de imagens. Apesar de alguns mapas serem apresentados, o livro enriqueceria se fotografias de Christopher, sua família, os personagens que encontrou no caminho, além de alguns locais que ele visitou fossem mostrados.

    Embora Jon Krakauer tenha sido um dos consultores do filme de Sean Penn, existem semelhanças e direrenças entre as duas obras. Certos depoimentos viraram cenas, como sua mãe Billie falando que sempre que viam algum caroneiro parecido com Chris, davam meia volta para olhar de novo e terem a certeza de que não era ele (p. 135), além dos personagens secundários que realmente marcaram a trajetória de McCandless, como Wayne Westerberg, Rayne e Jan Burres, a menina Tracy e Ron Franz.

    No entanto, Christopher remou com uma canoa pelo rio Colorado sem problemas (p. 43), aceitou uma carona de Ron para San Diego (p. 64) e depois voltou para Cártago e ficou novamente com Wayne após abandonar o idoso (p. 67). Outras dramatizações não existem no livro, como a cena forte em que os pais de Chris brigam na frente dos filhos ou o problema vivido pelo casal hippie.

    Uma das partes mais tocantes do livro é relatada por Carine McCandless após retornar com as cinzas do irmão do Alaska:

    “Durante o vôo, Carine comeu, até a última migalha, tudo o que as aeromoças colocaram na frente dela, ‘embora fosse aquela coisa horrível que eles servem nos aviões. Eu não podia suportar a ideia de jogar comida fora desde que Chris morrera de inanição’” (p. 140).

    “Na Natureza Selvagem” vale a pena? Se você for fã do filme, da trilha sonora composta pelo vocalista do Pearl Jam, Eddie Vedder, que ajuda a narrar a obra cinematográfica, é mais do que obrigatório a leitura e posterior consulta. Como disse antes, as obras junto da trilha sonora acabam se completando.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Resenha | Três Sombras

    Resenha | Três Sombras

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    Confesso que enveredei relativamente tarde no mundo dos quadrinhos, e talvez seja este justamente o fator que me faça apreciar mais os trabalhos alternativos, em detrimento da convencional história de super-herói.

    O ponto é que a cada obra alternativa que me deparo mais cresce a minha admiração por este seguimento.  Com Três Sombras, não foi diferente.

    A premissa é singela. Joachim vive com seus pais (Louis e Lise) em um local recluso, seguem uma vida de campo modesta, simples e feliz. Tudo corria perfeitamente até que um dia os nossos personagens notam três sombras, paradas no horizonte.  Eis que a trama se inicia.

    A simbologia e a representação metafórica destas sombras ante a vida da família é imensa, e Cyril Pedrosa discorre muito bem ao longo da HQ manifestando os mais primários e complexos sentimentos que tais sombras causam em cada um deles (e também em cada um de nós).

    Entre eles estão a mudança, a inconstância da vida e de tudo ao nosso redor. O pai de Joachim reage em um primeiro momento da maneira mais previsível e ineficaz possível, ou seja, cede à negação de tais entidades ou do que elas podem representar.  Não consegue aceitar a mudança e toda a corrente de eventos trazidos com ela.

    Joachim, ironicamente acaba tendo (a seu tempo) a visão mais madura de toda a situação, talvez justamente por não estar tão carregado dos temores dos adultos, nem da carga que os anos da vida trazem, seja ela boa ou não.

    Tudo isso é representado com maestria no traço de Pedrosa. Vale dizer que a HQ tem pouquíssimo texto, sendo talvez a sua arte o que mais lhe dá força e simbologia.

    O traço é fluído, contínuo, alongado, natural e terno. Casando perfeitamente com a temática central da obra: não se para o tempo, não se consegue fugir do seu destino, e o preço ao se tentar tal empreitada, pode ser caro demais. O desenho percorre as páginas como um rio fluindo através do tempo. O leitor, apenas mais um apreciando esta vista transitória, mas não por isso menos especial, ao contrário, exatamente por isso  extremamente especial.

    Há muito mais de significado nesta obra do que eu discorri aqui, valores e temores que afligem muitos de nós, mas creio que parte do prazer em lê-la seja justamente cada um assimila-la de maneira particular. Trazer para si o significado que Cyril Pedrosa transmitiu com o seu trabalho.

    O filósofo pré-socrático Heráclito (para quem a natureza está sempre em constante fluxo/mudança) com certeza apreciaria esta obra.

    Para finalizar, atente para o poema no final, simplesmente tocante dentro do contexto.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

    Compre: Três Sombras.

  • Resenha | Asterios Polyp

    Resenha | Asterios Polyp

    Asterios Polyp - Mazzucchelli

    Em seu quinquagésimo aniversário um homem está em seu bagunçado apartamento, assistindo vídeos, quando seu prédio é atingido por um raio e assim se inicia  um incêndio e no pouco tempo que ele tem para sair de casa, ele pega apenas poucos itens. Assim começa Asterios Polyp, uma história que vai contar a trajetória deste homem pela sua vida, com sua ascensão, queda e redenção.

    É difícil eu conseguir me deparar com algo e dizer que aquilo é genial, mas Astérios é genial. Esta Graphic Novel criada inteiramente, roteiro e arte, por David Mazzucchelli não pode receber outro adjetivo senão genial. Tudo que está presente foi pensado, cada forma, traço ou palavra. De início  pode até gerar estranheza a forma como é  o traço dos personagens, quase cartunescos, mas depois você vai entendendo o motivo dele ser assim.

    Como dito, a história conta a vida de um homem comum, Asterios Polyp, porém é narrada pelo irmão gêmeo, que não conseguiu nascer, Ignazio. A narrativa não é linear, ela é traçada entre o presente e o passado. É partindo daí que vem a construção do personagem, Asterios é um arquiteto renomado, com desenhos incríveis, mas nenhum construído. Com uma visão forte do mundo, formado por linhas retas e dualidade.  E tudo isto é mostrado não somente na narrativa, quanto na arte, em determinados quadros Mazzucchelli “desconstrói” o personagem à um desenho de formas geométricas retas. Pode parecer chato você acompanhar a vida de uma pessoa comum, mas não é, é divertido e fascinante.

    E a narrativa é sensacional, não é complicada como algumas outras histórias em quadrinhos autorais, mas sai do comum, são usadas formas diversas de expressar o que o autor quer e você consegue entender perfeitamente o que ele quis com aquilo. A obra tem referências à diversos mitos, Odisseia, Orfeu, Eurídice e muitas outras são exemplos disso. Tudo isso torna a obra mais completa, embora não seja necessário conhecer essas referências para entender a história, eles servem apenas para complementá-la.

    Em termos de arte, como já dito anteriormente, é de se estranhar no início, mas depois que você se acostuma dá pra perceber que cada linha foi pensada, do traço as cores. Não há mais de 2 ou 3 cores por página, raras exceções, e mesmo assim não fica em excesso uma cor, fica no tom perfeito.

    Por fim, Asterios Polyp demorou 10 anos para ser feito e você vê que esse tempo foi bem empregado em cada página. Uma história simples e empolgante, uma narrativa diferente e uma arte pensada nos mínimos detalhes, isso faz com que este quadrinho seja altamente recomendável para qualquer pessoa ler e se divertir, seja fã de quadrinhos ou não.

    Texto de autoria de André Kirano.

  • Resenha | Retalhos

    Resenha | Retalhos

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    Confesso que peguei (emprestada) esta obra para ler sem grandes expectativas. Simplesmente pelo fato de nunca ter tido contato com nenhuma obra do quadrinista. Em tempos onde sempre sabemos de antemão o que iremos consumir, é realmente muito gratificante absorver algo totalmente novo e estranho para você.

    Retalhos é uma obra autobiográfica, repleta de alegorias gráficas e literárias. Craig Thompson utiliza sua história de vida para nos inserir na mente de um garoto criado em Wisconsin por uma família protestante, juntamente com seu irmão Phil.

    A graphic novel é composta por capítulos não necessariamente cronológicos, onde o autor mostra ao mesmo tempo a simplicidade da vida de um garoto comum, e a complexidade psicológica que resulta dessa vida “simples”. A infância de Craig é repleta de dificuldades e traumas. A imposição da religião junto com a inocência inerente em uma criança causou nele uma temeridade ao divino que guiou e influenciou seu comportamento enquanto ele crescia.

    Descrevendo-a assim, parece que a obra é extremamente séria, mas isso não é totalmente verdadeiro. Retalhos está também repleta de momentos suaves, de sentimentos verdadeiros e que apelam ao que de mais humano temos. O relacionamento dele com seu irmão, por exemplo, é um desses momentos engraçados, contrastando com o teor mais pesado da obra. Mas o ápice na descrição de sentimentos belos fica realmente evidente quando Craig conhece Raina, seu primeiro grande amor. E que se tornaria sua musa inspiradora.

    Craig deixa isso bem claro, desenhar se torna uma constante homenagem à Raina. E neste ponto vale a pena mencionar os desenhos de Retalhos. Eles casam com o texto e o sentimento descrito de forma singular. Ele utiliza muitas alegorias fantásticas para expressar determinadas cenas e acerta em todas!

    De modo sutil, Retalhos também critica o “pensamento religioso em massa”. Sempre cercado de pessoas (pais, professores, pastores, etc.) dizendo como ele deveria pensar e agir. É interessante notar que mesmo no auge de sua ingenuidade, mesmo fazendo exatamente o que diziam para ele fazer, Craig sempre se sentia amargurado pelo seu modo de pensar/agir. Sempre com uma ponta de culpa, remorso. É como se internamente, em alguma caverna profunda dentro de si, ele soubesse que aquilo não estava realmente certo. Que todos os temores e receios eram usados como ferramentas de controle por gerações e gerações. E que fazendo o que era “certo” para os outros, não correspondia com o seu verdadeiro ser.

    Com Raina, Craig expressa as dúvidas e aflições de um primeiro relacionamento amoroso entre adolescentes. Expressa também seus prazeres. Novamente de modo simples, sutil e verdadeiro. Não há como não se encantar com a sua narração somada aos belíssimos desenhos. Você se sente parte do mundo no qual eles mesmos estão profundamente mergulhados e perdidos. Não deixem de notar os desenhos que formam o blanket de retalhos e os fundos dos cenários em diversos momentos da obra.

    Outro “personagem” que tem um grande papel na vida de Craig é certamente o inverno de Wisconsin. As brincadeiras na neve com seu irmão Phil. As carícias trocadas com Raina sob a neve e a própria e lógica passagem de tempo que as estações representam. A forma cíclica de mudanças, sempre pontuando momentos importantes de sua vida. O modo como Craig percebe o inverno gera diversas interpretações sobre Retalhos, e o autor é feliz em deixar que as tiremos por conta própria. O gelo duro, resistente, e até certo ponto constante pode ser encarado como os dogmas aos quais Craig é exposto. Na chegada do verão, o calor do Sol derrete e transforma em água toda essa dureza. A maturidade de Craig e seus questionamentos podem facilmente representar esta mudança. Mas Craig nunca deixará de olhar para o inverno com ternura, pois quer queira ele ou não, quer ela tenha sofrido com a sua dureza ou não, ele fez parte de momentos inesquecíveis para ele.

    O autor disse que ao produzir Retalhos, tinha como objetivo atingir algo “simples”. Descrever sentimentos comuns a muita gente, queria fugir da cena comum de HQs de ação e super-heróis. Desnecessário dizer que ele não somente atingiu como transcendeu este objetivo, pois Retalhos definitivamente está longe de ser uma história “simples”.

    Gostaria de ressaltar mais uma passagem que me emocionou profundamente. Craig caminha pela neve, sem deixar de notar as marcas que suas pegadas produzem. Ele diz o quão bom é deixar uma marca sua no mundo, mesmo que ela seja temporária. Com Retalhos ele consegue isso. Fica para a gente a chance de olhar mais de perto essa marca deixada por Craig Thompson.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.