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  • Crítica | O Beijo no Asfalto (2018)

    Crítica | O Beijo no Asfalto (2018)

    Filmado em preto e branco e levando em conta a cidade carioca do Rio de Janeiro como cenário, começa o exercício de Murilo Benício para adaptar a peça de Nelson Rodrigues, O Beijo no Asfalto. A primeira cena mostra um rapaz atravessando a rua, e sendo pego por um ônibus, sob o olhar do personagem de Stênio Garcia. Logo, a quarta parede é quebrada, e uma série de atores famosos aparecem em uma roda, ensaiando e fazendo teste de roteiro.

    A discussão do elenco destaca a análise do texto, entre elas, a capacidade da polícia e da imprensa, num trabalho conjunto de produzir fatos dramáticos, para vender jornal. Para que as cenas soem mais reais, há a presença do teatrólogo e diretor Amir Haddad, no centro das articulações, conduzindo narrativamente os artistas na direção do texto de Rodrigues e a forma como os atores fazem as cenas é tão realista que lembra realmente as reconstituições de crime feitas pela perícia da polícia, e de fato, é sobre isso que a peça fala e discute, embora exista um inquérito dentro da história, mas que não é fidedigno ou preocupado com a verdade, e sim preocupado em criar um factoide. Benício utiliza sua força como ator e astro para apresentar uma crítica a manipulação midiática apoiada pelas autoridades do baixo e alto clero, no caso aqui, do baixo.

    Esta versão é bem mais explícita que a de Bruno Barreto nos anos oitenta, embora não tenha alguns momentos de nudez que há na outra encarnação. A escolha por fazer algo teatral conversa com a ideia original de Nelson Rodrigues, e propicia uma força enorme para o drama, não só para quem está se derramando como personagem, a exemplo de Garcia, que brilha muito, mas também para os atores que discutem, como Fernanda Montenegro, que diz ter feito Selminha quando jovem, e que a gritaria que Débora Falabella faz tem que ser histriônica mesmo, pois eram outros tempos, os anos sessenta, e esse tipo de notícia no subúrbio carioca que serve de cenário acabaria com a moral daquela família, e Montenegro estava correta, a realidade entre as zonas sul e norte é enorme.

    Benício acerta demais na adaptação de seu roteiro e no elenco, ainda consegue aludir a hipocrisia da sociedade que condena o homossexual além de mostrar como a manipulação da imprensa pode esmagar um homem comum. Poucas vezes a obra de Nelson Rodrigues foi tão acertadamente traduzida como aqui, e ainda de maneira tão emocional e delicada, soando forte como a versão anterior de Barreto, mas completamente diferente narrativamente.

    Nos créditos finais, Montenegro descreve como foi uma das peças de Nelson Rodrigues, destaca que seu texto prevalece o teatro da culpa, e fala das vezes que Nelson era enquadrado pelo público, que vez por outra o chamava de tarado e de inimigo da família tradicional brasileira, e lembra que ele era repórter de polícia antes de enveredar pela dramaturgia. Essas lembranças são algumas das mostras da reverência de Benício a obra do escritor e cronista, para muito além até da escolha de uma de suas peças para a sua estreia na direção cinematográfica.

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  • Crítica | O Filho Eterno

    Crítica | O Filho Eterno

    o-filho-eternoO escritor Cristovão Tezza costuma comentar sua origem catarinense e a vida experimentada durante a maior parte de seus anos residindo no estado do Paraná. Quem ouve o detalhamento autobiográfico durante suas entrevistas explicando como se tornou escritor nem imagina que o maior desafio tenha sido justamente esse: expor a própria história nas páginas de um livro.

    E foi o distanciamento ao analisar o personagem em terceira pessoa que possibilitou o desenvolvimento de uma prosa honesta. Segundo Tezza, “o narrador tem que ser o sujeito que vende a mãe: ele não pode ter problema moral”. Por meio dessa concepção narrativa é que O Filho Eterno se baseia em sua experiência como pai de uma criança com síndrome de down.

    A vida inspirou um escritor; o escritor projetou um narrador; e o narrador despiu um protagonista que vai parar nas telonas a partir do dia 1 de dezembro. E é bom que estejam todos prevenidos quanto ao teor insensível no desenrolar inicial da trama, assim como o desfecho livre dos discursos clichês e autoajuda, sem dar margem para lições vazias sobre como lidar com a paternidade.

    Produzido por Rodrigo Teixeira e dirigido por Paulo Machline, a versão cinematográfica foi elaborada com a intenção de preservar alguma leveza de humor. Por isso a missão de interpretar o protagonista ficou a cargo de Marcos Veras — o típico humorista de stand-up que participou de vídeos do canal Porta dos Fundos, fez parte de alguns quadros do programa Zorra Total e acompanhou Fátima Bernardes em diversas manhãs do programa Encontro.

    Roberto é o personagem principal que se comporta de forma conflitante em relação às limitações impostas pela condição genética do menino Fabrício (Pedro Vinícius). Um pai que de longe parece uma pessoa vaidosa e seduzida pela vida descompromissada, abrindo mão das obrigações para usufruir da juventude. Seu perfil indiferente, imaturo e totalmente ausente é contrastante em relação às ideologias progressistas que conservou nos anos finais da ditadura brasileira.

    Todavia a sensibilidade e persistência de Claudia, uma mãe sempre presente no cotidiano do menino, é que estimula em Roberto o mais sincero amor pelo seu próprio filho. O fato que desemboca nessa mudança de perfil é o diálogo interpretado com perfeição pela atriz Débora Falabella, explicando como e quando passou a amar de verdade aquela criança tão sorridente que se divertia assistindo futebol na TV.

    Consta nessa história não só a confusão dos pais que queriam ver o filho tendo uma vida saudável, mas o registro de quem viveu sob a concepção retrógrada de tratamentos bizarros legitimados por péssimas bibliografias científicas (até que enfim superadas!). Por isso o filme exige flexibilidade do espectador para que compreenda aquele contexto histórico.

    Chamam a atenção os figurinos e cenários recheados de adereços oitentistas que se preservaram até o início da década de 90. A máquina de escrever como principal ferramenta de trabalho de Roberto, os carros com placas amarelas de apenas duas letras e pedacinhos do Centro Histórico de Curitiba que mudaram muito pouco nesses vinte ou trinta anos.

    O resultado final só pode ser bem avaliado se descartarmos essa cobrança pela fidelidade em relação à obra escrita, considerando que são dois trabalhos diferentes e com efeitos também distintos. Mesmo com a atuação de Veras surpreendendo positivamente, o filme se mantém num clima pesado que só se transforma da metade em diante.

    O ingrediente que torna a conclusão mais feliz é o hobby que o menino Fabrício preserva: assistir aos jogos da seleção. Nesse período da sua infância, a película acaba se parecendo em certa medida com O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias de Cao Hamburguer, gerando arrepios a quem ainda guarda a lembrança de Roberto Baggio errando o pênalti na final da Copa do Mundo de 1994.

    Texto de autoria de André Luiz Cavanha.