Tag: Neville de Almeida

  • Crítica | Matou a Família e Foi ao Cinema (1991)

    Crítica | Matou a Família e Foi ao Cinema (1991)

    Libelo do cinema anárquico de Neville D’Almeida e nova versão do filme de 1969 de Júlio Bressane, Matou a Família e Foi ao Cinema se inicia com a paisagem carioca em preto e branco, através de uma fotografia cuidadosa que resgata o moderno e o clássico da Cidade Maravilhosa, embalados pela música-título composta por Lobão e Ivo Meirelles. Esse início remete aos elementos do experimentalismo do Cinema Novo com um clima idílico típico do cinema clássico nacional.

    O longa poetiza a malandragem, mostrando como a alma do carioca é atrelada à curtição em detrimento de nossas obrigações diárias. A casa de Bebeto, o personagem de Alexandre Frota, é um exemplo disso, onde o pai é um pretenso velho trabalhador, passa a maior parte do tempo fiscalizando o filho, já o garoto, vive em silêncio, em seu quarto, boa parte dele nu em pelo, ao som de uma trilha sonora instrumental psicodélica, em referências sutis (e outras nem tanto) ao despertar da sexualidade e a repressão que o povo passava.

    O filme é episódico, mostra períodos distintos da vida dos brasileiros, com momentos de violência extrema, unidos pela presença de Bebeto em um cinema após esses primeiros momentos. O roteiro grita, nas falas dos jovens e velhos,  o quanto o país está em crise, com dificuldades em gerar trabalhos para sua população, ajudando a ocasionar a vagabundagem tipicamente atribuída ao carioca. Os acessos de raiva são reflexos de uma sociedade mergulhada na crise econômica e moral e isso tudo é estabelecido antes mesmo de mostrar os outros núcleos, antes até de trazer a cor ao filme. Neville traz novas camadas ao roteiro de Bressane, sua versão traz temas tipicamente teatrais, lembra bastante a literatura de Nelson Rodrigues, contumaz fonte de textos para a filmografia do cineasta.

    É curioso como mesmo arcos que soariam gratuitos possuem sentido aqui. A questão do personagem de Guará Rodrigues, o tarado que se apropria de roupas de baixo de mulheres que passeiam pelos cartões postais do Rio é reflexo da visão retrógrada e mal resolvida sexualmente dos tempos da Ditadura. Toda manifestação política era reprimida e toda forma de arte era atacada e censurada, curiosamente liberando obras com manifestações sexuais como as da pornochanchada, no sentido de entreter o público e povo, evidentemente com intenção de distrair essas pessoas.

    Tudo na obra é um deboche, inclusive os elementos que fazem o filme se encaixar no gênero Slasher, como a morte das mulheres que ousam dar vazão a sua sexualidade. A trama envolvendo as amigas Márcia e Renata de Claudia Raia e Louise Cardoso é mais um comentário do diretor sobre a glamourização da violência, seja no dia a dia dos Anos de Chumbo que estavam ainda muito recentes, ou nos cinemas blockbuster que reuniam multidões para glorificar a violência. As cenas de liberação sexual atacam os fetiches do homem médio, mostram a insatisfação feminina e a tragédia que evoca teatros gregos e outros grandes autores de tragédia como William Shakespeare, mostrando que o preço que a pólvora cobra é de sangue. Matou a Família e Foi ao Cinema é um bom retrato do Brasil, lida com poesia e pragmatismo sobre o país colapsado após a passagem dos militares no poder, além de ser uma tragicomédia que combina bem com a literatura nacional.

  • VortCast 56 | Neville D’Almeida, o Cronista da Beleza e do Caos

    VortCast 56 | Neville D’Almeida, o Cronista da Beleza e do Caos

    Bem-vindos a bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira) bate um papo com Mario Abbade (@fanaticc) sobre seu filme recém-lançado: Neville D’Almeida – O Cronista da Beleza e do Caos. Nesta edição, discutimos um pouco sobre a carreira cinematográfica de Neville; as dificuldades de se fazer cinema no Brasil; as relações entre o artista e a crítica; as censuras de ontem e hoje; as rixas entre o cinema marginal e o cinema novo; entre tantos outros assuntos.

    Duração: 90 min.
    Edição: Julio Assano Junior
    Trilha Sonora: Flávio Vieira
    Arte do Banner: 
    Bruno Gaspar

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  • Crítica | A Frente Fria que a Chuva Traz

    Crítica | A Frente Fria que a Chuva Traz

    A Frente Fria q a Chuva Traz 1

    Evocando símbolos típicos do Rio de Janeiro, a começar pelo cartão postal do Cristo Redentor, passando pelas montanhas onde se fixam as favelas, A Frente Fria que a Chuva Traz começa com um medley musical, que tem seu ápice no hit Sou Foda dos Avassaladores. Quase completando um jubileu de carreira, e após longos anos sem executar longas, Neville de Almeida renova sua filmografia referenciando seu clássico Rio Babilônia e adaptando a obra teatral de Mario Bortolotto, trazendo para seu filme uma atualidade quase inesperada.

    O cenário principal é o Morro do Vidigal, palco de um teatro fútil e patético de garotos e garotas que não precisam trabalhar ou se esforçar para viver. Um grupo de indivíduos da classe média alta usa o dinheiro de seus pais para alugar uma laje na favela, sem em momento algum permitir que a cultura dos moradores comuns adentre o seu cotidiano, apesar de consumirem enlatados de suas músicas, além de lançarem mão dos serviços de alguns dos moradores, pagando doses cavalares de dinheiro basicamente para humilhá-los sem qualquer preocupação.

    O texto de Bortolotto – que inclusive tem um papel de coadjuvante, como o segurança entediado e depressivo cuja função é evitar que nenhum morador suba a laje – lembra em partes a obra literária de Breaton Easton Ellis, primeiro pelo caráter anti-burguês e também por explorar, através de diálogos francos e rasgados, o modo de vida junkie e yuppie, ainda que estas versões sejam uma versão paródica do explorado em The Canyons, Abaixo de Zero e Informers, dada a falsidade dos meninos e meninas que dançam semi-nus na sacada.

    Um dos pontos altos do filme são os diálogos escrachados sobre sexo, colidindo curiosamente com a nudez pouco explorada no filme, onde o diretor simplesmente abre mão de uma de suas marcas, que é o erotismo explícito e exploração do sexo visceral e não sugerido como neste. A pornografia ainda está presente, primeiro nas falas aproveitadoras dos dois garotos inseguros quanto a sua sexualidade: Espeto (Chay Suede) e Alisson (Johnny Massaro) se valem das drogas para esse fim; e, especialmente, a viciada sem dinheiro Amsterdã, que conta com a inspiração de sua intérprete Bruna Linzmeyer.

    O argumento não trata de assuntos fáceis, a despeito dos clichês apresentados. O trato sobre o desdém com os pobres rivaliza em importância com a luxúria pouco expositiva em momentos chave filmadas ao longe, além de outros eventos fortes e completamente desglamourizados. Ambos os aspectos são triviais perto da crise existencial dos únicos personagens que vivem a vida real, e que permitem não se sentir anestesiados pela alienação dos enriquecidos, mesmo quando entorpecidos pelas drogas, ainda que usem as substâncias livremente.

    O roteiro de Almeida, Bortolotto e Marcelo Melamed (o qual uma aparição hilária que gera uma nova gama de discussões na trama) trata do niilismo como uma reação natural ao capitalismo exacerbado, aludindo ao exploitation de corpos perfeitos, segundo a métrica padrão, além de desconstruir a nova burguesia brasileira, que se apropria de outras culturas sem qualquer pudor.

    Mesmo quando surgem momentos de epifania, o texto não se rende a gratuitas redenções morais, seja com o sexualmente confuso Alisson ou a carente e desesperada Amsterdã, que tem em seu nome o resumo de sua loucura e vazio existencial, apesar de ter conteúdo superável a todo o repertório de seus “colegas”. Seu grito, perto do fim, é formado por uma sinceridade que não se vê em todo o escracho da curta duração do filme, denunciando um mundo habitado por gente falsa e mostrando a fácil transição entre o discurso ideológico e a amoralidade que este A Frente Fria que a Chuva Traz consegue transmitir.

    A obra não apela para coitadismos ou irrealidades, mostrando que, mesmo tendo a verdade denunciada nos rostos dos jovens, não há evolução se não houver tentativa de saída da letargia. A visceralidade é o pico de qualidade do filme de Almeida, que acerta em praticamente todos os pontos propostos, mostrando uma grata renovação do cineasta.