Autor: Vortex Cultural

  • Sai de cena o diretor Jonathan Demme

    Sai de cena o diretor Jonathan Demme

    É com grande pesar que escrevo a notícia informando que o diretor Jonathan Demme faleceu hoje, aos 73 anos de idade. Segundo a IndieWire, o diretor vencedor de Oscar faleceu devido à um câncer no esôfago e complicações de uma doença no coração, que havia sido originalmente tratada em 2010. O diretor faleceu ao lado de sua esposa, a artista Joanne Howard, e seus três filhos.

    Demme sem dúvida foi um dos diretores de maior versatilidade do nosso cinema recente. Ele começou sua carreira nos anos 1970, trabalhando em produções de Roger Corman e dirigindo filmes como Celas em Chamas Nas Ondas do Rádio. Nos anos 1980 se aventurou no gênero de romance com  Totalmente Selvagem e na comédia De Caso com a Máfia, ao mesmo tempo o diretor ainda fez um dos grandes documentários de música de todos os tempos:  o filme/concerto da banda Talking HeadsStop Making Sense.

    Nos anos 1990, temos o inesquecível Silêncio dos Inocentes, apenas um dos três filmes na história do Oscar a ter recebido prêmio para melhor diretor, filme, ator e atriz, além do roteiro. Sem contar o simples fato de que é o único filme de horror que já recebeu uma estatueta de melhor filme. Demme ainda na mesma década entregou em 1993 o incrível Filadélfia, controverso em seu lançamento. O drama centra sua trama na AIDS, trazendo o assunto para o grande público de maneira completamente explícita com atuações pontuais de Tom Hanks e o relutante personagem de Denzel Washington. O filme deu um Oscar à Tom Hanks de melhor ator.

    Nos anos seguintes, Demme colocou seu talento numa variedades de filmes completamente diferentes, como o remake do filme Charada, O Segredo de Charlie e o thriller que também é refilmagem Sob o Domínio do Mal. Demme conseguiu um retorno muito maior anos depois com O Casamento de Rachel, e agora mais recentemente em 2015 com Ricki and the Flash: De Volta pra casa.

    Seu último trabalho foi o documentário lançado ano passado para o Netflix, Justin Timberlake + The Tennessee Kids. O filme é um perfeito exemplo único de visão do diretor em trazer uma personalidade ao que ele está filmando e encontrar humanidade em cada enquadramento.

    De toda forma, Demme deixa para o cinema um legado que muitos diretores sonham em ter, eu especialmente sou um grande fã. A equipe do Vortex deseja os pêsames a família do diretor nesses tempos de tristezas e dificuldades.

    Texto de autoria de Halan Everson.

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  • Resenha | (Des)nu(do) – Thássio G. Ferreira

    Resenha | (Des)nu(do) – Thássio G. Ferreira

    O poeta é o lobo do Eu-lírico

    Certos poetas perscrutam o que deflagra a poesia como os cientistas perseguem a origem do universo. A jornada é árdua nos dois casos. Contudo, enquanto os cientistas buscam no solo e no espaço as evidências inquestionáveis, os poetas caçam internamente o impulso lírico. O poeta é o lobo do Eu-lírico (tomando emprestado o simbolismo de Hobbs).

    (Des)nu(do), de Thássio G. Ferreira (Íbis Libris, 2016) é destas obras que fuçam o poeta, a poesia e outras incongruências de existir. Desde o título o olhar mais atento revela que o autor pretende despir-se liricamente; cada poema uma peça que cai na jornada íntima ao Eu-lírico. E se o leitor achar o título apenas um jogo de palavras, logo o primeiro poema, “Desnudamento”, reforça o intento do autor: “Eis assim, vestido todo do que sou, / vestido de mim, que vou / a um desnudamento“.

    Outra interpretação diria que o “desnudamento” proposto pelo poeta é a própria jornada do poeta em si. Este, até antes, aspirante, utiliza a odisseia íntima para descobrir-se poeta, visto que está nu de outras aspirações e deliberadamente empreende viagem com o propósito lírico. Com isso podemos dizer que os poemas resultantes são o próprio diário de viagem de quem desce dentro de si sem qualquer Ítaca ou Penélope que o aguarde.

    Os poemas de (Des)nu(do) são em maioria versos livres e sem compromisso com a rima. Thássio aposta nas aliterações, metáforas, jogos comparativos e descrições, entre outras figuras de linguagem. O livro é composto de três partes: o poeta; a poesia; o tempo e o silêncio. Na primeira parte o poeta inicia a viagem íntima redobrando-se internamente; busca o desprendimento do mundo sem cair no niilismo.

    A segunda parte é essencialmente metalinguística; o poeta traça teorias para explicar o processo lírico de composição. “Possibilidade de ocorrência”, sintetiza bem o capítulo: “A poesia se dá, / dentre outros momentos, / quando / a delícia estalada / do espanto / se sobrepõe / ao sabor / mais grave / do entendimento…”

    Contudo, nenhuma teoria é assertiva porque tratamos da Poesia íntima, aquela metamorfa que assume novos versos a cada poeta. Sobre isso, há duas excelentes perguntas formuladas por Thássio no poema “Perscrutação de poeta”: “Em que pensa, / enquanto mente, / um poeta? / Que loucuras / elucubra / nos recessos / sem lua / de seu pensamento?”

    A terceira parte reúne interesses do poeta traduzidos em poesia. Aqui notamos a preferência de Thássio por temas da natureza, tempo (o poeta precisa de tempo para escrever), versos íntimos, preocupação com o presente e o amor. Os poemas de Thássio G. Ferreira foram feitos para ser lidos e declamados; carregam esmero, harmonia, metáforas bem feitas, jogos de palavras e sentido, e questionamentos que surpreendem e encantam. Livro recomendado para novos apreciadores do gênero e leitores que admiram os poetas que se desnudam em versos.

    Texto de autoria de José Fontenele.

  • Crítica | Astérix e o Domínio dos Deuses

    Crítica | Astérix e o Domínio dos Deuses

    Lançado no Brasil somente em 2016, Asterix e o Domínio dos Deuses foi a tentativa de reviver no cinema as versões animadas dos quadrinhos desde 2006 quando saiu Asterix e os Vikings.

    Em uma tentativa de derrotar a aldeia dos irredutíveis gauleses que tanto causam dor de cabeça, Júlio Cesar manda construir um resort em volta da vila de seus inimigos para incorporá-los ao mundo romano.

    Com o roteiro adaptado por Alexander Astier e Louis Clichy, também diretores do filme, e a colaboração de Jean-Rémi François e Philip LaZebnik, baseados nos quadrinhos lançado em 1971 pelos criadores René Goscinny e Albert Uderzo, respectivos roteirista e desenhista, a narrativa do filme mantém o ótimo argumento que discute diversos temas como a dominação colonial e cultural, além da globalização.

    Ao fazer com que haja uma invasão romana nas florestas para iniciar as construções das moradias, inicia-se uma discussão sobre o domínio de um país pelo outro e amplia-se o debate para uma dominação cultural ao transformar a aldeia dos irredutíveis gauleses de um comércio local autossustentável em lojas de turismo que vivem para abastecer os hóspedes romanos. Outro tema também importante como a resistência cultural como forma de combate aos invasores acaba se diluindo junto dos outros dois quando o roteiro prefere focar no planejamento e execução do plano de Asterix, Obelix e Panoramix de expulsar os romanos dali.

    Um problema extra do roteiro foi desrespeitar o material original. Em todos os livros de Asterix não existe traição dos cidadãos romanos à própria pátria, ainda mais feita de forma brusca e sem motivação como foi o caso da família de Petiminus, outra mudança mal realizada foi fazer com que o próprio Júlio César fosse até o local do Domínio dos Deuses. Ao inserir estas mudanças enfraqueceu o próprio mito de Roma que se construiu no universo de Asterix como um império fraco, quando na verdade é o maior adversário dos gauleses que são tão invencíveis quanto eles, que só não os derrotaram por não terem a poção mágica.

    A animação competente conseguiu dar vida aos personagens dos quadrinhos, respeitando a sua forma original e mantendo um padrão visual aos novos personagens acrescentados, além de permitir com que a sua forma de se movimentar fosse original.

    A edição de Soline Guyonneau manteve um bom ritmo, respeitando o tempo do espectador em assimilar a narrativa visual.

    Asterix e o Domínio dos Deuses é um filme que deve agradar quem não liga para o material original, ou pode ser uma porta de entrada para o mesmo.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Paixão Obsessiva

    Crítica | Paixão Obsessiva

    unforgettableCom roteiro de Christina HodsonDavid Leslie Johnson, e direção de Denise Di Novi, o filme começa in media res (técnica narrativa onde a história começa no meio, em vez de no início), com Julia Banks (Rosario Dawson) numa sala de interrogatório de uma delegacia, com o rosto bastante machucado, aparentemente dando depoimento sobre a agressão sofrida. Obviamente, não é bem isso. O investigador quer que ela explique como aquele homem – Michael Vargas (Simon Kassianides), um ex-namorado de Julia – acabou sendo morto na casa dela, depois de ter sido atraído para lá por uma série de mensagens de cunho erótico enviadas via Facebook.

    Corta.

    Seis meses antes, Julia estava largando uma ótima colocação em NY a fim de se mudar para uma cidadezinha onde seu noivo – David Connover (Geoff Stults), divorciado, com uma filha de uns 10 anos – tem uma pequena cervejaria. A adaptação de Julia à nova vida tem seus percalços. Mas tudo piora quando a ex-esposa de David, Tessa Connover (Katherine Heigl), fica sabendo que o casal pretende se casar. Com atitudes bem à la Glenn Close, em Atração fatal, Tessa passa a infernizar o dia-a-dia de Julia.

    Mesmo que o espectador vá assistir sem saber do enredo – descrito na sinopse oficial – concluiria rapidamente que não tinha como aquilo dar certo. A ex tem uma cara de perturbada que realmente assusta e que só os personagens da história não percebem. Aliás, a performance de Heigl merece ser reconhecida. Todo o elenco está bem – Dawson principalmente – mas Heigl se sobressai, com um olhar de quem tenciona fuzilar o espectador a qualquer momento.

    Apesar da curta duração – apenas 1h40m – é um filme cansativo. E a principal razão é por ser muito, muito previsível. Estar repleto de clichês também não colabora. Assiste-se pensando “Ok, já entendi, pode pular para o desfecho, para eu sair logo e tomar um sorvete”. O que deveria ser um thriller acaba sendo apenas um dramazinho mal costurado, que causa risadas em vez de tensão. Não há como não achar graça das caras e bocas da mãe de Tessa (Cheryl Ladd), da credulidade improvável de Vargas, da quantidade de clichês narrativos mal utilizados, do excesso de obviedades, dos diálogos previsíveis, dos exageros em cena, etc.

    A fotografia é boa, a trilha sonora não atrapalha, cenografia e figurino OK. É um filme “assistível” mas, ao contrário do que o título original sugere, totalmente “esquecível”.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Depois da Tempestade

    Crítica | Depois da Tempestade


    “Dizem que os grandes talentos florescem tarde”

    O cinema oriental traz entalhado em si um forte histórico de cineastas e obras brilhantes, uma corrente que vive se renovando e pelo jeito não chegará ao fim tão cedo, não enquanto autores como Hirokazu Koreeda existirem. Por uma questão cultural, os japoneses trazem consigo um forte respeito pela ancestralidade e todo aprendizado que dela pudermos extrair; sendo assim, não é de se espantar a forte influência de Yasujiro Ozu  –  um dos maiores diretores do Japão – nas obras de seu conterrâneo Koreeda.

    Em Depois da Tempestade (Umi yori mo Mada Fukaku), acompanharemos a saga de Ryota (Hiroshi Abe), um escritor fracassado, divorciado, que busca seu sustento trabalhando como detetive. Apesar de se encontrar em um forte ostracismo, Ryota é dono de uma personalidade otimista tocante que apesar de seus defeitos busca à todo custo se reconciliar com seu passado, consigo mesmo e com seu filho. Koreeda não tem pressa para nos introduzir aos personagens ou mesmo ao cerne da questão, porém o faz de forma incisiva e no momento certo, demonstrando para o público a profundidade de seus personagens e suas respectivas individualidades.

    Se posicionando como fio condutor da narrativa desde o primeiro minuto, Ryota é bruscamente posto em conflito quando se dá conta que permanece estagnado enquanto todos ao seu redor estão seguindo em frente com suas vidas. A conflagração familiar é exposta com bastante calma, entre diálogos cálidos e reflexões silenciosas, fugindo completamente de dramalhões histriônicos, indo na contramão dos vícios Hollywoodianos que insistem em demonstrar de maneira tão errônea os “reais conflitos familiares”, renegando por vezes à beleza cotidiana existente no dia a dia.

    O clímax de Depois da Tempestade está atrelado a ideia de que uma reunião em família numa noite chuvosa pode purificar, depurar e reconstruir através do diálogo. Questões que após uma noite de sono serão renovadas no dia seguinte quando amanhecer e o sol florescer, ou seja, um passo de cada vez. A rotina também tem seu encanto.

    Texto de autoria de Tiago Lopes.

  • Star Wars Celebration | O painel de Os Últimos Jedi, o primeiro pôster e o primeiro teaser

    Star Wars Celebration | O painel de Os Últimos Jedi, o primeiro pôster e o primeiro teaser

    Por volta do meio dia, horário de Brasília, desta sexta-feira, teve início o painel de Star Wars: Os Últimos Jedi, na Star Wars Celebration, em Orlando. Como o próprio nome diz, o evento anual busca celebrar Star Wars em todas as plataformas, seja cinema, televisão, games e etc. Durante todo o final de semana teremos novidades a respeito de muita coisa bacana, como foi o caso do painel de Os Últimos Jedi, que assim como em 2015, por causa de O Despertar da Força, trouxe ao palco parte do elenco principal, que nos apresentou curiosidades acerca da produção, encerrando a festa com um belo teaser.

    O apresentador da vez foi o ator Josh Gad, que há meses, vem atormentando Daisy Ridley pelas redes sociais implorando por qualquer informação sobre o mais novo filme da franquia, cujas informações, até então, eram mantidas em absoluto sigilo. O painel teve pouco a relevar, mas, de qualquer forma, para quem não tinha nenhuma notícia, foi bem elucidativo.

    De início, Gad chama ao palco a presidente da Lucasfilm, Kathleen Kennedy, e o diretor Rian Johnson que teve uma recepção calorosa por parte do público. Johnson estava visivelmente desacreditado naquilo que estava vendo (e se manteve assim por todo o painel). O diretor, que esteve presente no painel sobre os 40 anos da saga, somente para assisti-la, ficou até as 3 horas da manhã atendendo todos os fãs lá presentes, o que é incrível.

    Ao ser perguntado sobre o atual status do filme, o diretor respondeu que Os Últimos Jedi se encontra em fase de pós produção, editando e juntando as peças para a edição final. Kennedy adicionou que Johnson está no caminho certo e já figura na lista dos principais diretores com quem ela já trabalhou. Johnson é um diretor muito único e escreve tão bem quanto dirige, principalmente quando se trata de escrever sobre mulheres independentes e destemidas.

    No mesmo tempo em que davam informações sobre o processo de filmagem, fomos apresentados a algumas fotos de bastidores tiradas pelo próprio diretor com sua câmera analógica particular. Ele explicou que era o único que tirava fotos das coisas sem levar um chute na cara.

    Com relação à Carrie Fisher, Johnson conta algo interessante: passava horas sentado na cama da atriz discutindo sobre o roteiro e a General Leia e que após 6 horas de conversa, riscava tudo que havia escrito e mudava o roteiro.

    Era o momento oportuno para Josh Gad chamar Daisy Ridley ao palco. A atriz usando o coque samurai de Rey estava visivelmente sem graça com tamanha recepção. Gad pede perdão por te-la pentelhado por diversas vezes e avisa que ela deverá tomar cuidado, já que a plateia é muito agressiva. O apresentador continua brincando com Daisy, fazendo as perguntas mais ridículas, querendo saber se Rey e Luke são conectados pelo sangue, se o sobrenome dela é Skywalker ou Kenobi, ou se ela somente se chama Rey e mais nada, como se ela fosse a Madonna de Jakku. Passadas as brincadeiras, Ridley foi perguntada se ela se divertiu trabalhando em Os Últimos Jedi e a atriz comenta que o que ela pode dizer é que a trama se aprofunda mais ainda na história de Rey e que ela tem uma certa expectativa em relação a Luke e que muitas pessoas podem passar por isso quando conhecem algum herói e que a experiência pode não ser exatamente como você espera.

    Após uma graça com BB-8 no palco, John Boyega é chamado e o ator teve, o que seja, talvez, a recepção mais calorosa da noite. Boyega explicou que Finn está passando por um processo de recuperação de suas costas gravemente feridas em O Despertar da Força, mas que o personagem voltará com força total e que, desta vez, não está para brincadeiras. Contudo, Boyega afirma que Finn pode estar passando por incertezas sobre o tipo de pessoa que ele quer ser. O personagem, pelo visto, não sabe se quer se juntar à Resistência, ou se continua fugindo da Primeira Ordem.

    Já no que diz respeito à Primeira Ordem, Rian Johnson explica que a destruição da base Starkiller foi uma grande perda, porém, com a República destruída, a galáxia está um caos e as coisas podem ficar feias por conta disso.

    Falando sobre novos personagens, Johnson explica que Os Últimos Jedi traz alguns novos rostos e ele chama ao palco Kelly Marie Tran, um desses rostos que tem grande participação no filme. O diretor adverte que o público vai amá-la. A sorridente atriz disse que escondeu da família por 4 meses que estava no filme. Tran interpreta Rose, uma mulher que faz parte da Resistência e que é da área de manutenção. Johnson traça um paralelo com Luke Skywalker e Rey, que são puxados pra fora da vida que levam e são colocados numa aventura inesperada. Nem Luke, Rey ou Rose eram heróis, ou soldados antes de se tornarem as pessoas que são.

    É chegada a hora de Mark Hamill subir ao palco e uma nova foto de Luke Skywalker é mostrada. Vale destacar que todos os personagens tiveram fotos oficiais apresentadas durante o painel. O ator, que parecia estar muito cansado, mas muito atencioso e brincalhão, disse que Rian Johnson foi até sua casa para conversar sobre o roteiro e coisas do filme e que Hamill disse a Johnson que uma das coisas que ele mais gosta de Rogue One e da trilogia prequel, é que Luke Skywalker não está lá e que ele podia relaxar e aproveitar, sem sofrer a ansiedade em saber se estava fazendo a coisa certa ou não e que ele, naquele momento, estava apavorado. A resposta de Johnson foi que ele também estava apavorado por ter um filme de Star Wars na mão e que por tais motivos, confiou tudo em Johnson e que se o diretor estivesse satisfeito, Hamill também estaria. O ator foi perguntado como foi achar a voz de Luke Skywalker novamente após tantos anos, tanto vocalmente, quanto metaforicamente e Hamill disse que em O Despertar da Força, tudo que se sabia era que Luke era um eremita vivendo num local isolado e que não se tinha nem ao menos informações sobre seu passado e sobre o que aconteceu desde os acontecimentos de O Retorno de Jedi e ele, como ator, gostaria de saber sobre o background de seus personagens, mesmo não sendo importante para a trama, somente com o intuito de desenvolver o personagem. Esse tipo de pensamento foi muito importante para Luke em O Despertar da Força, então, Hamill escreveu sobre o próprio passado de Luke e deu a entender que o filme não é mais sobre Luke Skywalker, mesmo ele sendo uma peça importante para o desenvolvimento da história e que ainda vai existir muito mistério sobre sua participação, mesmo ele estando realmente no filme. Neste momento, Hamill foi interrompido por Kathleen Kennedy e a presidente assegura aos fãs que Luke Skywalker é significativamente importante para o filme.

    Perguntado por Gad se trouxe algum material para mostrar, Rian Johnson joga um banho de água fria na plateia, dizendo que trouxe o primeiro teaser pôster do filme e o que se vê é a fantástica imagem abaixo que traz Rey, Luke e Kylo Ren:

    Após a epifania causada pelo pôster, Johnson avisa que vai ter trailer, sim e o exibe duas vezes para o público. Confira abaixo:

    Johnson, visivelmente emocionado, agradece o público pelo apoio e encerra o painel.

    Star Wars: Os Últimos Jedi estreia no Brasil em 14 de dezembro de 2017.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Pitanga

    Crítica | Pitanga

    Dirigido por Beto Brant, do excepcional Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios, e pela estreante na função, Camila Pitanga (filha do homenageado), Pitanga é uma cinebiografia que busca sublinhar a importância do ator Antônio Pitanga na construção do cenário artístico brasileiro, sobretudo no cinema.

    Dono de um talento inegável, a filmografia do artista se mistura com os grande marcos da história do cinema nacional. Isto não só é evidenciado na fita, como é utilizado como recurso ao servir de apoio em transições de conteúdo e também para demarcar as passagens temporais da obra. Prova disso é a evolução do cinema preto e branco para o em cores que surge em flashbacks para ilustrar a linha do tempo na carreira do ator.

    Apesar de ter um personagem central muito bem definido, Pitanga surpreende também em seus coadjuvantes. Recheado de entrevistas interessantes e com grandes expoentes das artes, o documentário conta com a participação de nomes como Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Maria Bethania, Cacá Diegues, Angela Leal, Ruth de Souza, Zezé Motta, Neville de Almeida e dos filhos Rocco e Camila.

    São os encontros que dão a tônica do filme. Muito galanteador, Antônio teve interesse (ou envolvimento mesmo) amoroso com quase todas as mulheres que aparecem em cena. Com destaque para a cena maravilhosa onde o ator conversa com Bethania, que confessa ter sido apaixonada por ele na adolescência. Bem humorada, como poucas vezes se viu ao longo de sua carreira, a cantora faz ainda uma brincadeira: “Manda um beijo pra Benedita. Fala pra não ficar com ciúmes”, brinca Bethania sobre a atual esposa de Antônio, Benedita da Silva.

    A relação com a família também é ponto forte no documentário. Em uma sequência com o filho Rocco, somos apresentados também as netas. Cria-se uma sensação de perenidade e perpetuação em tela. Algo muito interessante justamente pós surgir de maneira despretensiosa.

    Antônio recheia as quase duas horas de tempo psicológico com frases muito emblemáticas que nos alçam a altura de sua importância. Entre elas, uma que define muito bem o ego necessário para o exercício das artes cênicas: “A morte, para mim, é o momento mais sublime. O nascimento não é seu. Você nasce através de outra pessoa. Mas a morte é sua”.

    Em termos de fotografia, o trabalho aqui é irretocável. Tanto no que concerne a paleta de cores muito apropriada para cada situação, quanto aos quadros e composições de cena que são de um deslumbre estético e estilístico admirável.

    A mão dos diretores falha um pouco na motivação dos encontros com alguns personagens. Por vezes, esse artifício se torna cansativo. Entretanto, a qualidade extraída de cada um dos riquíssimos personagens que emprestam seu brilho ao filme, é de tamanha substância que suprime a melancolia da repetição.

    Pitanga é um documento histórico e cultural de imensa valia. Rico, lúdico, engraçado, leve e poético. A dissecação de uma das mais importantes figuras dá nossa arte.

    Texto de autoria Marlon Eduardo Faria.

  • Crítica | Velozes e Furiosos 8

    Crítica | Velozes e Furiosos 8

    A coisa que mais chamou atenção quando o primeiro teaser de Velozes e Furiosos 8 surgiu ao mundo foi o fato de Dominic Toretto, ser, aparentemente, o vilão da nova empreitada. Uma decisão ousada, extremamente arriscada e que perdeu sua originalidade no mesmo dia com a apresentação do teaser do quinto filme dos Transformers, intitulado de O Último Cavaleiro, onde o líder dos autobots, Optimus Prime, também se rebela contra seus amigos. No caso de Toretto, os trailers seguintes só confirmavam o antagonismo do anti herói, atraindo a curiosidade até daqueles que conhecem, mas não são tão fãs da multimilionária franquia.

    Há tempos, Velozes e Furiosos deixou de ter como tema principal as corridas de carros “tunados”, equipados com dezenas de contadores, caixas de som e muita, muita velocidade. Saiu o tunning e entrou o gênero de assalto, com as mais diversas e loucas perseguições de carro, o que dá espaço para os produtores fazerem o que bem entendem com a franquia, sem se preocupar muito com o roteiro e com os destinos dos personagens. Afinal, o vilão de outrora é o herói de agora e vice-versa, sendo que a mesma regra vale para personagens mortos ou desaparecidos. Essa loucura desenfreada e permitida pelos executivos faz com que os produtores se espelhem em Missão: Impossível, por exemplo, onde, na verdade, se busca colocar Tom Cruise em alguma cena insana que supere sempre a do filme anterior. Velozes e Furiosos 8 possui 3 dessas cenas e é por isso que divido o filme em três grandes terceiros atos.

    Após uma breve introdução para lembrar que a franquia ainda tem a ver com corridas de rua, Dominic Toretto (Vin Diesel) é escalado por Luke Hobbs (Dwayne Johnson) para uma missão super secreta em Berlim, onde sua equipe deveria recuperar um dispositivo de pulso eletromagnético. A equipe composta pelos rostos já conhecidos de Letty (Michelle Rodriguez), Roman (Tyrese Gibson), Tej (Chris “Ludacris” Bridges) e que ganhou a adição de Ramsey (Nathalie Emmanuel), do filme anterior, obtém sucesso na recuperação do artefato, mas logo é traída por Toretto, que foge com o dispositivo. Por conta do ocorrido, Hobbs é detido numa prisão federal de segurança máxima, enquanto o restante da equipe passa a figurar dentre os 10 mais procurados da lista da Interpol. Com essa premissa, o que se vê daqui pra frente é um filme louco, oitentista e que não se preocupa muito com a qualidade em termos de cinema. Aparentemente, a intenção era somente entreter o público e nada mais. Conseguiram.

    Ainda que o filme tenha como objetivo trazer cenas de ação megalomaníacas, o roteiro de Chris Morgan (que assina seu sexto Velozes e Furiosos) se preocupa em amarrar a “nova fase” da franquia iniciada no quarto filme com os acontecimentos que culminaram com o final de Velozes e Furiosos 7. Com isso, muito se especulou sobre o que teria feito Toretto mudar de lado e trair sua própria família e a resposta daqueles que se arriscavam a responder era sempre a mesma: ele está sendo chantageado, o que, de fato é até meio óbvio. E ainda bem que o que motiva Toretto a tomar atitudes drásticas é algo que NINGUÉM esperava.

    Por conta de tais acontecimentos, se descobre que Toretto está trabalhando com uma ciber terrorista conhecida como Cipher (Charlize Theron) e se Dwayne “The Rock” Johnson já havia trazido fôlego à franquia como a montanha de músculos, ignorância e carisma, conhecida como Hobbs, agora, outro personagem ganha não só espaço, mas também o público: Deckard Shaw, o temido vilão do filme anterior e novamente vivido por Jason Statham, que pode ter cravado seu lugar como personagem fixo. Por serem rivais e se odiarem, Hobbs e Shaw possuem uma dinâmica e uma química interessante em tela que vai muito além das diversas e incessantes provocações que um tem para com o outro, tirando risadas do público em praticamente todos os momentos em que trocam “carícias verbais”. Aliás, esse filme é de longe aquele que possui mais humor. Roman, como sempre, sofre com as piadas dos colegas e o personagem se assemelha mais ainda com o Roman de Mais Velozes e Mais Furiosos, com sua predileção por veículos chamativos. Kurt Russel também retorna como o Sr. Ninguém, trazendo para o time o personagem de Scott Eastwood, carinhosamente apelidado pela equipe de Sr. Ninguenzinho, um agente novato que acha que sabe tudo, mas que não passa de um menino bobo que cheira a fraldas e que sofre muito bullying dos personagens.

    No que diz respeito à justa direção, F. Gary Gray, que tem em seu currículo bons filmes, ousa apenas nas principais cenas de ação, apostando sempre naquilo que já deu certo em algum outro lugar. Portanto, será fácil perceber que muitas das cenas já foram vistas em algum outro filme. Outra coisa que fica clara é a dificuldade que o diretor teve de contar a história em locais onde há muita população ou pouco espaço físico, como é o caso das cenas rodadas em Nova Iorque, onde boa parte dos carros da cidade é controlada remotamente por Cipher. Ironicamente, os fracos acontecimentos na metrópole americana preparam o filme para uma grandiosa cena num mar congelado na Islândia. Se você gosta de Mad Max: A Estrada da Fúria, perceberá que Gray, trouxe toda a loucura no deserto de George Miller para o gelo, não poupando gastos e fazendo tudo com efeitos práticos.

    Respondendo o que deve ser a maior dúvida de todas, a ausência de Paul Walker não é sentida. Provavelmente, esse é o maior trunfo do filme, o que faz com que o legado do ator seja mantido, mas também, seguindo em frente com a história, dando lugar a novos personagens e permitindo, também, o retorno de outros. Possivelmente, isso também explica as quase inexistentes referências a Brian O’Conner no filme.

    De fato, Velozes e Furiosos 8 aposta na vitória jogando em casa contra o lanterna do campeonato, o que injeta ânimo (e dinheiro) para o nono e o décimo filme que já estão em fase de desenvolvimento. O único problema fica por conta dos problemas entre Vin Diesel e The Rock, publicamente admitidos nas redes sociais, o que alimenta ainda mais a expectativas (mais uma vez, de novo e de novo).

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Sai de Cena o Diretor de Fotografia Michael Ballhaus

    Sai de Cena o Diretor de Fotografia Michael Ballhaus

    O diretor de fotografia alemão Michael Ballhaus, que trabalhou na fotografia do vencedor do Oscar Os Infiltrados e ajudou Martin Scorsese em inúmeros projetos com sua capacidade singular de criar visuais, faleceu ontem aos 81 anos.

    Ballhaus foi indicado ao Oscar três vezes por seu trabalho, sendo em 1987, por Os Bastidores da Notícia, em 1989, por Susie e os Baker Boys, e em 2002 também com Scorsese na direção por Gangues de Nova York. Seu agente e a American Society of Cinematographers confirmaram sua morte.

    Sua filmografia conta com outras colaborações com o diretor como A Cor do Dinheiro, Depois de Horas, A Ultima Tentação de Cristo, A Era da Inocência e Os Bons Companheiros, além de Drácula, de Francis Ford Coppola, Uma Secretária de Futuro, Segredos do Poder, Lembranças de Hollywood, Nosso Querido Bob e Quiz Show: A verdade dos Bastidores.

    Scorsese fez uma declaração: “Nos últimos 20 anos, Michael Ballhaus e eu tivemos uma parceria criativa, e uma amizade duradoura. Quando nos encontramos, ele já tinha uma carreira considerada com Rainer Werner Fassbinder, e eu o admirava. Era um ser humano amável e sempre tinha um sorriso nas horas mais difíceis, todos que o conheceram lembram de seu sorriso. Começamos a trabalhar juntos nos ano 80, quando eu estava numa péssima fase. Foi o Michael que me trouxe a vontade de fazer filmes novamente. Pra ele nada era impossível. Se eu pedisse algo muito difícil, ele respondia sempre com entusiasmo. Ele nunca me disse que não poderíamos fazer alguma coisa e amava ser desafiado. Sempre que estávamos com o prazo apertado ele conseguia resolver um jeito pra trabalhar mais rápido. Ao invés de ficar frustrado de terem tirado algo dele, ele sempre pensava no que ele ainda tinha. Ele de verdade me educou e mudou a minha forma de fazer cinema. Era um grande artista, um amigo insubstituível. Sem dúvida é uma grande perda”.

    Ballhaus começou sua carreira em 1971 com Rainer Werner Fassbinder com o filme Whity e depois disso trabalhou em duzias de filmes com o diretor alemão incluindo O Casamento de Marie Braun e Lili Marlene.

    Trabalhando com Fassbinder no filme Martha, ele desenvolveu a tomada em 360° Graus que se tornou depois sua marca registrada. Em um artigo escrito no Instituto Goethe foi descrito o trabalho dos filmes de Ballhaus como “Todo os seus filmes são estilisticamente inovadores; e mesmo assim, nos filmes dele reconhecemos o movimento de câmera, seu dinamismo autêntico, e o polimento de cena. Sempre dizem que os filmes de Ballhaus sempre parecem muito mais caros do que custaram de verdade”.

    Em 2014 ele lançou sua autobiografia “Bilder im Kopf,” onde ele discute a progressiva perda de visão devido à um glaucoma. Ano passado ele foi homenageado durante o festival de Berlim com um Urso de Ouro pelo conjunto de sua obra.

    Ele comentou a Variety que foi trabalhando com Fassbinder que o preparou para sua carreira nos EUA:

    “Me ajudou muito porque ele não era um diretor fácil. Ele era muito autoritário e direto. Ele sempre estava tentando ser rápido e não gastar muito tempo, então eu tive que aprender a ser rápido e mesmo assim tentar ser bom com o meu trabalho. Isso foi de grande ajuda mais tarde quando foi para os EUA. Isso foi de grande ajuda também porque ele era tão temperamental que eu sabia que eu depois dele eu conseguiria trabalhar com qualquer diretor no mundo”

    Ele na mesma entrevista comentou da dificuldade em trabalhar em Os Bons Companheiros por sua aversão a violência:

    “Sim, eu tenho um problema com isso. Devo admitir que Marty (Scorsese) era chegado em cenas violentas; e ele também sabia. Era muito difícil algumas vezes, mas quando você trabalha com ele, que é um grande diretor, você tem que admitir que é uma maneira correta, especialmente em Os Bons Companheiros. Tem muita violência e isso as vezes era muito difícil pra mim. Ele sempre queria um pouquinho mais”.

    Texto de autoria de Halan Everson.

  • Resenha | O Circo Mecânico Tresaulti – Genevieve Valentine

    Resenha | O Circo Mecânico Tresaulti – Genevieve Valentine


    Circo fantástico de engrenagens incongruentes

    Respeitáveis leitores, O Circo Mecânico Tresaulti, de Genevieve Valentine (Darkside Books), é um livro de fantasia ambientado durante um período de guerra. Não se trata de uma distopia (aos fanáticos por conspirações), mas de uma história em que componentes mágicos de caráter lúdico coexistem despercebidos ao conflito.  De forma geral, a narrativa não alcança pleno entretenimento por conta de incongruências que saltam aos olhos de uma boa leitura.

    Valentine utiliza dois narradores: um em terceira pessoa, ou narrador-observador, e outro em primeira pessoa, ou narrador-personagem, o segurança e faz-tudo do circo, George. Aqui começam os primeiros deslizes. Utilizar dois narradores é sempre um desafio por conta da alternância de vozes; ou seja, fica fácil do leitor confundi-los se eles não possuem características distintas ao contar a história. E eles não têm.

    Trocando em miúdos, o livro começa dando a entender que George está escrevendo um diário sobre o Circo Tresaulti e os espetáculos, mas logo nos deparamos com cenas detalhadas em que ele não está presente. Ou seja, não fica explícita a troca de narradores porque os dois soam idênticos. Assim, por vezes algumas passagens dão a entender que George está falando dele na terceira pessoa, ou que tem algum poder de adivinhação não explícito na trama.

    Enfim, vá lá que George além de ser segurança também faça bicos de médium, poderia ser uma incongruência para não despertar muito incômodo ao leitor menos preocupado. Dirão que o leitor quer trama, entretenimento. Para este leitor, em síntese, o livro acompanha as apresentações do circo, mas não em caráter temporal, ou seja, os capítulos são intercalados entre presente e passado. Por vezes estamos lendo sobre o que acontece no presente, e de repente George fura a continuação da história para tratar sobre eventos antigos, sobre os velhos artistas que passaram pelo circo ou sobre figurino, música de apresentação, roupa etc.

    Pessoalmente, acredito que faltou um pouco mais de parcimônia em utilizar o flashback para aprofundar os personagens, pois o enredo do presente não caminhava a qualquer intensidade ou desenvolvimento da trama (principalmente na metade do livro). O passado pesa ao circo mais que o presente, contudo não é suficiente para manter a leitura em expectativa constante.

    Quanto aos personagens, por serem muitos, é natural que apenas uma parte merecesse atenção dos narradores (outros tiveram o passado reduzido a quatro ou cinco linhas). Mas vá lá, dirá algum leitor, que realmente não nos interesse o passado de personagens secundários como por vezes nós, pessoalmente, deixamos de conhecer quem habita o nosso cotidiano, a pergunta é: os mais citados carregam o livro? Aqui cabe outra dúvida porque a personagem principal, Boss, a matrona que capitaneia o circo, é cercada de mistério.

    Boss foi uma cantora de ópera antes da guerra começar. Mas não era uma principal, apenas secundária. O maior papel dela foi a assistente da rainha na ópera Rainha Tresaulta. É narrado que na noite de um espetáculo a cantora principal encantou os presentes a tal ponto de silenciá-los. No momento seguinte uma bomba estoura no teatro e mata todos, exceto Boss. Ela se ergue no meio dos escombros e, carregando pedaços de instrumentos dos músicos mortos, cria para si um assistente mecânico, um homem (ciborgue?) composto de vários instrumentos que futuramente encarna o arauto e orquestra-de-um-homem-só do Circo Tresaulti. Não é dito o que ela emprega para criar o servo, apenas que a “habilidade” desperta e, por conseguinte, Boss adquire o poder de implantar engrenagens nos corpos das pessoas.

    Com esse poder, Boss incrementa os artistas do próprio circo: aos acrobatas e malabaristas implanta ossos ocos e articulações de metais para os deixarem mais leves e fortes; implanta engrenagens para força e braços mecânicos em outros; engrenagens diversas dependendo dos casos que aparecem; e cria um par de asas mecânicas que implanta em um artista especial.

    Uma vez recebidas essas próteses, os artistas não podem se distanciar de Boss, porque sugere-se que ela cria um vínculo com as engrenagens implantadas, as quais podem parar se não ficarem perto da dona. Boss também pode consertar os artistas e as engrenagens, chegando a ponto de ressuscitá-los (você não leu errado). Isto é o Circo Tresaulti: artistas-meio-ciborgues-meio-imortais.

    O antagonista da história é o “homem do governo”. Basicamente ele quer recrutar Boss para que ela utilize a sua habilidade nas tropas em guerra para criar soldados-ciborgues-meio-imortais. Enquanto isso não acontece, o circo sobrevive levando certa esperança nas cidades em guerra. Isto ainda é uma resenha sem spoiler.

    A despeito da trama do circo-meio-ciborgue-meio-imortal espalhando esperança no mundo contaminado com bombas e guerra, a autora dá pouca ênfase ao cenário e muito aos personagens. Mas, apesar de alguns bem construídos, como dito acima, por vezes os artistas do circo se mostram vagos, com ações simbolistas, alguns diálogos muito parecidos em que não distinguimos uma personalidade por trás do personagem. Mesmo George, o narrador-personagem, por vezes fica mais preocupado em criar insinuações que contar o desenvolvimento da história.

    Na literatura, é uma tendência contemporânea deixar sugestões na narrativa como forma de simular a experiência de vida de quem lê, mas em excesso, como George utiliza sugestões para endossar o comportamento rude ou violento de outros personagens, é apelar demais para a complacência do público, e, ao mesmo tempo, se eximir de contar fundamentos da história. Novamente houve falta de parcimônia da autora.

    As ilustrações presentes no livro são muito bem feitas e transmitem uma atmosfera meio decadente com enlaces de esperança aos integrantes do circo. A edição da Dark Side é muito boa e encontramos um ou outro erro de revisão que não tem o poder de prejudicar muito a leitura. Ao fim, a impressão é que O Circo Mecânico Tresaulti é um espetáculo pela metade onde as engrenagens presentes nos personagens faltaram à história.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: O Circo Mecânico Tresaulti.

  • Crítica | Stonewall: Onde o Orgulho Começou

    Crítica | Stonewall: Onde o Orgulho Começou

    A invasão policial ao bar Stonewall suscitou um importante levante que culminaria no importante “28 de Junho de 1969”, um marco histórico do movimento LGBT, data que hoje marca o Dia Mundial do Orgulho Gay. É através desse momento tão simbólico que o diretor Roland Emmerich nos guiará, recriando um momento tão significativo de uma luta tão aguerrida ao longo dos Séculos.

    Na trama acompanhamos o desenrolar dos fatos pelos olhos de “Danny” (Jeremy Irvine), um jovem incompreendido, que se vê expulso de casa pelo pai por conta de sua orientação sexual. Danny encontrará em Nova York jovens de históricos parecidos, cada qual marcado por alguma espécie de intolerância. Embora as intenções do diretor sejam as melhores possíveis e o filme possuir um plot interessante e importante, o roteiro é mal desenvolvido e acaba se perdendo ao longo de sua jornada.

    Emmerich não acerta na cadência, não conecta certos pontos e acaba se equivocando em diversas soluções narrativas. Tomadas às devidas proporções, quando uma obra tem como fonte um fato real e não se trata de um documentário, é compreensível e aceitável à existência de alguns elementos fictícios por trás do relato proposto, no entanto, essa é uma escolha narrativa perigosa já que geralmente busca por uma constante romantização dos fatos, pode por consequência distorcer elementos históricos reais. Em certa instância, Emmerich acaba focando-se demais em Danny e com isso deixando como pano de fundo o que deveria ser o verdadeiro cerne da questão, ou seja, o levante iniciado em 28 de Julho em Greenwich Village.

    Se o roteiro assinado por Jon Robin Baitz apresenta-se em diversos instantes com problemas estruturais e escolhas equivocadas, o mesmo não pode ser dito a respeito da fotografia de Markus Förderer que consegue ser bem competente, equilibrando-se em tons suaves (principalmente em alguns flashbacks) e sendo soturno quando necessário. Atores renomados como Ron Perlman e Jonathan Rhys Meyers estão bem em seus papéis, acontece que seus personagens carecem de profundidade e de serem melhores explorados, algo ocasionado como já mencionado acima, pelo nítido fato do excesso dado há Danny, uma escolha narrativa que acaba por sufocar determinado núcleo da obra.

    Emmerich tem um histórico de militância e engajamento em diversos setores sociais, entre eles nos movimentos LGBT, sendo difícil saber se o resultado final de Stonewall se deu em decorrência do afastamento necessário do diretor ou outros problemas. No entanto, ainda que o longa-metragem deslize em diversos momentos, certamente é um projeto em que o diretor colocou muito de si, e ao final ainda consegue transmitir uma tocante e significativa mensagem aos seus espectadores.

    Texto de autoria de Tiago Lopes.

    https://www.youtube.com/watch?v=F_UBiJdUBiA

  • Crítica | Um Limite Entre Nós

    Crítica | Um Limite Entre Nós

    Tramas raciais e sociais sempre correm o risco de serem tratadas de forma pesada ou sem abordar outros temas necessários a compreensão do cenário geral, ainda mais no micro caso de uma família. Várias obras derraparam neste sentido, quando poderiam trazer debates muito mais ricos à tona. Felizmente, Um Limite Entre Nós não é destes casos.

    Famosa peça de August Wilson, Um Limite Entre Nós foi estrelada por Denzel Washington e Viola Davis no teatro em 2000 e fez muito sucesso. Agora em nova adaptação aos cinemas, Denzel traz nova luz a esta comovente história que mostra uma multifacetada visão sobre uma família negra nos EUA durante os anos 50.

    Troy Maxson (Washington) é um coletor de lixo em Pittsburgh na década de 50 em plena segregação racial. Guardando uma imensa mágoa por não ter virado jogador profissional de baseball em sua juventude claramente por questões raciais, Troy desconta sua frustração diariamente de forma passivo-agressiva em todos ao seu redor, especialmente em sua esposa Rose Maxson (Davis) e seu filho Cory (Jovan Adepo).

    Falastrão e egocêntrico, Troy a todo momento coloca suas chagas a mostra para a família, e o orgulho ferido de nunca ter conseguido prover sozinho para sua família é um assunto sempre presente, afinal, a casa onde moram só foi possível ser comprada graças a indenização que eles receberam pelo fato de seu irmão Gabriel (Mykelti Williamson) ter se ferido gravemente na guerra e agora ser portador de necessidades especiais.

    Todo o seu ódio reprimido é compreensível, mas com o movimento dos direitos civis ganhando força e o movimento negro em geral pressionando a sociedade por mudanças, Troy se mostra ao mesmo tempo uma figura digna de pena e raiva, afinal, tenta negar aos outros, especialmente a seu filho Cory, a oportunidade que também lhe foi negada.

    Ao mesmo tempo em que dialoga com questões raciais, a trama dialoga com outras questões, pois coloca Troy como o marido sempre atencioso com a esposa Rose, que o corresponde, em uma relação aparentemente perfeita, mas que aos poucos vai mostrando pequenos rachas, com méritos para as sutis pistas de Viola Davis a cada frase e atitude de Troy. A sua resistência em construir uma cerca (daí o título original, “Fences”) no quintal por tanto tempo, onde cada hora é uma justificativa para adiá-la, também é uma metáfora para seu relacionamento.

    A cada cena, a figura canastrona e boa praça de Troy como mostrada no início com seu amigo Jim Bono (Stephen Henderson) vai se desmontando ao mostrar a face repressora de sua personalidade, deixando claro que nenhuma pessoa é formada de um lado só. Da mesma forma, Cory busca melhorar de vida ao se mostrar um proeminente jogador universitário de futebol americano, mas Troy o impede de todas as formas possíveis da mesma forma que o impediram antes, e brigam, bêbado, até expulsar o garoto de casa, em uma cena comovente. Em outra cena, sem mais nem menos, é jogada a informação que Troy possuía uma relação extraconjugal com uma garota mais jovem, que está grávida e não sabe o que fazer, pois sabe também que isso acabará com seu casamento com Rose.

    Na famosa cena que rende merecidamente o Oscar a Davis, Troy entrega toda a verdade e a peça consegue atingir outras camadas da realidade, onde o machismo do protagonista aflora. Seus argumentos, de que com a amante se sentia vivo, conseguia sorrir, se sentia livre das preocupações da vida, e por isso a procurava, soam totalmente ridículos frente ao desabamento emocional de Rose, onde ela questiona “E os meus sentimentos? E os meus sonhos?”, que ela deixou de lado enquanto escolheu viver ao lado de Troy. Na cena final, a frase que define a relação de ambos a partir dali. “Sua filha vai ter uma mãe, mas você não vai ter mais uma esposa”.

    Um Limite Entre Nós oferece, então, um panorama poucas vezes visto na temática racial no cinema americano. Com vários contextos que dialogam entre si e diálogos ricos e bem construídos entre personagens equivalentes, mantém o espectador focado a cada palavra dita, que serve de ponte para a compreensão futura tanto das próprias cenas quanto dos personagens ali envolvidos, que não são nem um pouco unilaterais, afinal, a realidade não é.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • A Jornada do Leitor

    A Jornada do Leitor

    Todo herói tem um arco, uma jornada. Cada personagem – ao menos de escritores que sabem o que estão fazendo com as mãos num teclado – tem um papel dentro da trama principal. É o arco narrativo, sua jornada do início ao fim, sem importar quão frívolos sejam seus motivos ou abrupta sua morte. Ao analisar narrativas dos principais textos de diferentes religiões num brilhante estudo de mitologia comparada, Joseph Campbell notou avanços narrativos semelhantes, em que personagens diferentes preenchiam partes idênticas nos mecanismos internos dos contos, assim o próximo passo do protagonista invariavelmente seguia uma lógica. O Herói de Mil Faces, Campbell chamou seu livro, pois a trilha é seguida de novo e de novo e de novo.

    O autor desenvolve seus argumentos sobre o molde narrativo do qual partilham as mais diversas histórias, desde Pulp Fiction até a epopeia de Gilgamesh. Crucial, um dos pontos mais importantes dentro de uma história é a transformação dos personagens de um estado inicial até o ponto de chegada, quando retornam para uma normalidade, profundamente mudados pelo caminho, pelo percurso da Jornada. Harry Potter, Luke Skywalker e Rick Blaine atravessaram os mesmos passos: uma velha estrada de tijolos amarelos que já foi percorrido por Dorothy. Todos eles tinham um desejo, uma aspiração que dá o pontapé inicial de suas histórias. Na Jornada, é essencial que se deseje algo. Mesmo que seja um copo de água fresca, como disse Kurt Vonnegut. São nos passos identificados no “O Herói de Mil Faces” que as histórias se desenrolam, com ou sem variações, e a vontade de virar a página ganha contornos urgentes. Ao leitor desatento, pode parecer um tanto formulaico, mas a Jornada é algo sutil, uma trama em que mãos habilidosas podem bordar qualquer coisa maluca que se passa em sua mente.

    De forma resumida, cada personagem responde com hesitação antes de aceitar o Chamado da Aventura, o acontecimento surpreendente e muitas vezes surreal que inicia, de fato, o plot: Gandalf bate à porta de Bilbo Bolseiro logo no início de O Hobbit, e, anos mais tarde, Frodo herda um certo anel, dando os primeiros passos em uma das jornadas definidoras de todo um gênero, O Senhor dos Anéis. Tal Chamado gira todas as rodas dentadas que trabalham por trás das linhas e parágrafos que você deita os olhos, jogando os protagonistas num mundo desconhecido onde contam com um Mentor – palavra que vem do grego menos, que significa desde força, propósito, até mente, espírito ou lembrança -, em que o caminho até o próximo passo da Jornada, a Caverna Misteriosa, será permeado por aliados, inimigos e provações. No Hobbit, Bilbo encontra Gollum e Frodo chega até Mordor. O herói que perseverar no caminho, retornará ao velho mundo onde sua jornada começou e, com os tesouros e ensinamentos da estrada percorrida, faz o leitor respirar aliviado depois de Bilbo ter enfrentado os perigos de um dragão ganancioso e o fiel Sam empurrar seu amigo na direção certa, um dos momentos de maior carga emocional de “O Senhor dos Anéis”. Agora, o herói precisa enfrentar seu real perigo antes de prevalecer sobre o mal: a Batalha dos Cinco Exércitos e a Montanha da Perdição, para continuar com os exemplo de Tolkien.

    É a jornada do herói, com ou sem maiúsculas; o arco. Ainda me lembro de uma das cenas preferidas de Família Soprano, quando o jovem e explosivo Christopher Moltisanti pergunta ao mentor Paulie, um mafioso da velha guarda, onde estava o seu arco, pois nada de interessante acontecia em sua vida.

    “E daí,” Paulie responde, numa calma enervante, “eu estou vivo. Eu sobrevivo”.

    Christopher enterra os dedos no cabelo. Como ele pode não entender? “Não quero apenas sobreviver. Os manuais de roteiro dizem que cada personagem tem seu arco. Entende? Todo mundo começa em um lugar, e eles fazem algo. Algo acontece a eles. E isso muda suas vidas. Isso é um arco. Onde está o meu arco?”.

    Foi a angústia de Christopher, um personagem com o qual pouco me identifico, que tomou conta de meus pensamentos quando li as últimas linhas da A Roda do Tempo, uma série composta de catorze tijolos – e um tijolinho de prefácio -, totalizando algo em torno de doze mil páginas. Doze mil páginas. Milhões de palavras. E mais arcos de personagens do que eu poderia contar de cabeça. Claro, em (quase) todos os livros da série o leitor pode encontrar começo, meio e fim para as diversas histórias que se desgarraram da linha narrativa principal e acompanhar o crescimento das personagens que mais cativam ou detestam. A Roda do tempo é uma longa jornada, talvez a maior que já percorri – com grande chance de ser a maior que jamais percorrerei -, uma estrada esburacada, com altos e baixos, longas tempestades e mais paradas que o ideal, uma viagem que talvez exija uma ou outra pausa a fim de trocar pneus carecas e reabastecer a água do radiador. É uma história épica que envolve até mesmo o Tempo em si, com T maiúsculo, onde Luz e Escuridão duelam em grande escala e a existência do mundo depende de quem sairá vitorioso. É o maniqueísmo de Tolkien em maior escala.

    A Roda do Tempo e o leitor

    Não vou perder nosso tempo com um resumo do mundo ou da história quando dezenas de análises e críticas estão aparecendo aqui e ali, enquanto a série começa a fazer sucesso na Terra Brasilis. Basta dizer que há altos e baixos, defeitos e virtudes, grandes lições de escrita; Vale lembrar que a última porção da história foi escrita por Brandon Sanderson por causa da morte do criador, Robert Jordan, afinal é difícil escrever depois de morto. Sanderson fez um ótimo trabalho e o último volume é um clímax de novecentas páginas – o maior capítulo, A Última Batalha, tem mais de 180 páginas.

    Levei seis anos para ler “A Roda do Tempo”. Partindo do meu Chamado de Aventura – inspirado por uma música da banda alemã Blind Guardian – até o Retorno com o tesouro, anos se passaram e centenas de outros livros, sem exagero, foram lidos, tanto para trabalho quanto lazer. Nesse meio tempo, comecei e terminei outras séries e trilogias, mas a Roda do Tempo sempre esteve no fundo de minha mente, ganhando novos contornos enquanto eu me reabastecia com outros autores, escritas e gêneros diferentes.

    Em paralelo a narrativa, analisava minha jornada de leitor, sobre como os dias podem girar em torno do livro em suas mãos, sobre nosso próprio crescimento, mudanças, derrotas e vitórias enquanto vivenciamos tantas outras jornadas. Da mesma forma que nosso herói tem mil faces, também as temos, cada um de nós. Desejamos, buscamos e nos transformamos em algo… bem, em algo diferente. Pergunte ao Kafka, se quiser.

    Quando li o primeiro livro, O Olho do Mundo, estava deitado no meu quarto, sozinho, febril e em Lisboa, morando numa casa cheia de gatos. Eu era um mestrando em História da Expansão e dos Descobrimentos, dissertando com a ajuda de mapas antigos sobre a formação do Japão na mentalidade ocidental entre os séculos XV e XVIII. O primeiro volume de “A Roda do Tempo” segue uma estrutura fixada por Tolkien, com um protagonista seguindo o estereótipo Luke Skywalker, o jovem e ingênuo fazendeiro que se descobre envolvido em acontecimentos maiores e perigosos.  E não foi O chamado de aventura, mas foi UM chamado. É como nos livros da série: não há começos ou fins em “A Roda do Tempo”, mas esse foi um começo. Ao menos isso.

    Eu morava sozinho e seguia uma rotina bem definida. Acordava, engolia meio litro de café e tomava banho para, depois, mergulhar no submundo metroviário de Lisboa e percorrer os corredores úmidos da Faculdade de Letras, onde ficava o centro de pesquisa em que trabalhava. Escrever, pesquisar e realizar enfadonhas tarefas administrativas tomava quase todo o meu dia, além de conversas e risos com pessoas que marcaram minha vida. Eu vivia um arco, afinal. Recém-formado, mergulhado em arquivos de fama internacional, lendo e observando mapas, cartas ânuas de jesuítas que foram ao Japão, além de manifestos de embarcações. Tudo no passado. Todos, viajantes e religiosos, europeu e japoneses, de volta ao pó, uma grande bacia de cinzas e poeira onde eu tinha me enterrado até os cotovelos na mais pura – elétrica – euforia.

    Já no segundo livro da série, vaguei por Londres, onde estava pesquisando a sessão de mapas da British Library. Foi no café do British Museum – onde fui ver a A Grande Onda  – que terminei o livro e já tirei o terceiro da mochila. Antes, pedi outro café. Saí de lá quando me expulsaram, mais de sessenta páginas depois. Voltei para a casa da minha irmã no escuro, a cabeça perdida no mundo criado por Robert Jordan. No meu arco, hoje enxergo que estava numa fase que podia me permitir vagar por mundos imaginários sem prestar muita atenção nos problemas do mundo real. Morando sozinho na Europa, com poucas aulas na semana e um trabalho com horário flexível que me permitia trabalhar em casa, um quando que permitia o luxo de focar nos estudos, conhecer melhor Portugal e afundar meu nariz nos livros. Ler até derrubar o livro no meu rosto, até esfregar olhos queimando e resolver fazer café às quatro da manhã, para tentar extrair mais um capítulo, quem sabe dois. Olhando para trás, eu deveria ter saído mais de casa, pergunte à Rosa.

    Quando voltei ao Brasil e morei em Campinas, comecei a escrever ficção. Corria quase todos os dias. Li mais. Enrolei minha dissertação e fiquei noivo. O tempo passou e eu estraguei um dos joelhos, começando um lento caminho de volta ao sobrepeso, quando meus quilos perdidos na corrida voltaram com novos amigos e a ficção ganhou espaço no meu cotidiano e nas minhas ambições. Foi talvez no sexto livro de “A Roda do Tempo” que decidi – ou melhor, fui empurrado a aceitar o que estava diante do meu nariz – trocar de profissão. Adeus vida acadêmica, olá rotina de escrita e edição. E desespero, claro.

    Atravessando a narrativa

    Conforme riscava os títulos de minha lista de leitura, meu próprio arco avançou. Aniversários, discussões, risadas, bebedeiras e jogatinas, tudo envolvido em muita escrita, leitura e edição. Eu me casei. Terminei meu primeiro livro, com mais de quatrocentas páginas, muitas delas desnecessárias e cortadas com um coração em prantos. Percebi depois que um livro de quatrocentas páginas é um erro se você ainda é um escritor desconhecido. Criei histórias menores, deixei outras depois de duzentas páginas. Meu filho nasceu. Páginas escritas dividiram espaço com mamadeiras e fraldas pedindo atenção. E então, alcancei a Última Batalha e, depois dela, o final de “A Roda do Tempo”. Bem, não O final, mas UM final. “A Roda do Tempo” não tem começos nem fins. Foram seis anos. Foram catorze livros.

    Claro, há relatos, principalmente no Reddit, de monstros que leem uma série deste tamanho em seis meses; outros estão na quinta, sexta, décima sexta – não é mentira – leitura da série. São arcos, tenho certeza: ninguém lê tantos livros – mesmo que seja uma só história – e fecha a última capa sem mudar, sem passar por uma transformação. Mesmo que a transformação seja pela necessidade de livros com fontes maiores para olhos cansados, essa pessoa mudou. No meu caso, a mudança foi gigantesca. Seis anos se passaram. Porcaria. Eu mudei, e muito. Do quarto escuro, iluminado apenas por um abajur amarelado, doente e trancado para deixar os gatos de outra pessoa fora do alcance de minha alergia, para um sofá confortável em nosso apartamento, numa cidade do interior de São Paulo; de minhas pretensões de conseguir ingressar num bom doutorado e viver de aulas e pesquisas, para a perspectiva de pagar contas com as mentiras que saem de minha cabeça e encontram caminho às pontas dos dedos; de namoro à distância – altos e baixos, altos e baixos – para a feliz paternidade dentro de um casamento estável, carinhoso e sincero. Eu cresci e, como um camaleão, minhas cores se transformaram em resposta ao ambiente em que agora vivo. Firmei convicções políticas e agora faço oposição a um governo que não me parece correto, brigo com unhas e dentes contra o monopólio dos veículos midiáticos, contra ambos analfabetismos, científico e político. Não sou apenas um historiador em outro país, cheio de perguntas sobre o que acontecia no passado, em ondas que banhavam o Japão tantos séculos atrás, enquanto o cenário atual me alcançava apenas como murmurinhos incômodos. De um historiador um tanto egoísta e recluso, tornei-me um escritor um pouco menos egoísta e recluso. Um pai, com sono e um sorriso bobo no rosto.

    Encontrei o final de “A Roda do Tempo” e dele passei. Pode apostar que me senti decepcionado com o final e tenho perguntas que nunca serão respondidas, mas estou satisfeito com a clareira no final do caminho. Quando se termina uma série, a sensação que se tem é um misto da nostalgia precoce e liberdade literária. O homem que sou hoje é bem diferente do estudante que ouviu uma música inspiradora e sentiu arrepios nos braços. Os livros da série tiveram pouco impacto nas minhas mudanças – Haruki Murakami, Carl Sagan, Yuval Noah Harari, Eric Hobsbawm e outros tantos tiveram mais importância -, mas servem de perfeito exemplo para o meu arco de herói. Afinal, sou o herói de minha história, assim como você é o personagem principal da sua.

    Minha jornada não é (nada) épica. A sua também não, até que você me prove o contrário. Mas é uma jornada e, caramba, ela é muito importante para quem está preso em seus quilômetros. Desejamos um emprego melhor, perder peso, que amanhã seja feriado e que, pelo amor de Deus, essa chuva dos infernos pare antes do sábado. Desejamos e buscamos, adaptamo-nos ao nosso próprio arco, nosso plot. Oras, estudamos para concursos públicos, brigamos contra chefes gananciosos e discutimos política; dançamos para a chuva parar e, como é um assunto que foge de nossa alçada, traçamos um plano alternativo para o sábado chuvoso, com pizza e jogos de tabuleiro. Talvez pedir meia frango com catupiry e meia calabresa não tenha o mesmo impacto que recuperar a Excalibur ou descobrir que o caminho para casa estava em você esse tempo todo, mas – por Crom! – essa pizza é o seu Chamado da Aventura e, se você não pisar na bola, será o herói de muita gente. São arcos diferentes. Nossa jornada é tediosa. Enfadonha. O oposto de épica. Mas, você sabe, é real.

    Quando Christopher Montisanti pergunta a Paulie onde está o seu arco, ele com certeza enfrentava a terrível angústia de não ser o que idealizava em outros tempos. Naquele fascinante mundo de violência, drogas e incertezas existenciais, Chris tentava se agarrar em algo para continuar sendo ele mesmo. Sem perceber, o jovem mafioso percorria um arco em si mesmo: o bloqueio, a desorientação. Quando chegasse na outra ponta do labirinto, ele seria – fatalmente – um mafioso mais forte. Um homem mudado. E outro arco teria início.

    Mas estou divagando e você já está se perguntando se realmente sou um escritor, tamanha verborragia. Você está lendo um texto sobre a passagem do tempo. Sobre como a saga de Robert Jordan me acompanhou em parte do caminho. Talvez você tenha sua própria Roda do Tempo e possa se identificar com o que exponho aqui. Talvez tenha crescido com Harry Potter e seus terríveis professores, ou tenha acompanhado Roland Deschain em cada passo no difícil caminho até a Torre Negra. Provavelmente sentiu os sóis de Tatooine queimando na pele. Minhas mudanças são acompanhadas de livros marcantes justamente porque sou um leitor antes de ser escritor. Filmes, músicas, relacionamentos, empregos… talvez até casamentos. Com toda certeza, o seu arco também tem um pano de fundo com variáveis e constantes.

    Agora que terminei uma série, meu arco continua. Talvez encontrou outras aventuras e chamados no meio do caminho. Quem sabe precise ir para um Mundo Especial e dele retornar com o Elixir do qual falou Campbell.

    Terminei de ler “A Roda do Tempo” muito, muito tempo depois de ter começado. E agora? Eu não sei para onde meu arco me levará, mas o próximo livro já está presente, com o marca páginas entre o final de um capítulo e o começo do próximo.

    Os passos da Jornada do Herói

    A Jornada do Herói

    Ato 1

    Mundo comum
    Chamado à Aventura
    Recusa do Chamado
    Encontro com o Mentor
    Travessia do Primeiro Limiar

    Ato 2

    Provas, Aliados e Inimigos
    Aproximação da Caverna Secreta
    Provação
    Recompensa

    Ato 3

    O caminho de Volta
    Ressurreição
    Retorno com o Elixir

    Livros para levar na estrada

    Trilogia dos Espinhos – Mark Lawrence (Darkside)

    Série Os Cavalheiros Bastardos – Scott Lynch (Arqueiro)

    Os livros da Cosmere – Brandon Sanderson (Leya)

    A Roda do Tempo – Robert Jordan (Intrínseca)

    A Torre Negra – Stephen King (Suma de Letras)

    Livros da Terra Média – J. R. R. Tolkien (Martins Fontes)

    Crônicas de Gelo e Fogo – George R. R. Martin (Leya)

    Série A Companhia Negra – Glen Cook (Record) – Resenha

    Série O Livro Malazanos dos Caídos – Steven Erikson (Arqueiro)

    Discworld – Terry Pratchett (Conrad/Bertrand) – Resenha

    – The Dresden Files – Jim Butcher

    – Traitor Son Cycle – Miles Cameron

    Série Revelações de Riyria – Michael J. Sullivan (Record)

    Série Ciclo das Trevas – Peter V. Brett (Darkside)

    A Saga de Ender – Orson Scott Card

    A Guerra do Velho – Jon Scalzi (Aleph)

    Elric de Melniboné – Michael Moorcock (Generale)

    Crônica do Matador do Rei – Patrick Rothfuss (Arqueiro)

    – The Expanse – James S. A. Corey

    – The Rain Wild Chronicles – Robin Hobb

    Trilogia Oryx e Crake – Margaret Atwood (Rocco)

    Maurício Ieiri é um historiador que não faz História. Atualmente, tentando descobrir o que fazer com sua vida, partindo deste exato momento até o dia em que morrer. No meio tempo, escreve ficções. Participou do blog coletivo Os Caras do Clube.

  • Crítica | Always Shine

    Crítica | Always Shine

    É direito do nascimento de uma mulher ser atraente e encantadora. De certo modo, é seu dever. Ele é o vaso de flores da mesa da vida. – John Robert Powers, ator americano e dono de uma grande agência de modelos.

    Essa crítica se inicia com a mesma frase que abre Always Shine, dirigido por Sophia Takal (Green) e escrito por Lawrence Michael Levine (Wild Canaries), porque se faz necessário. Não é só um resumo de tudo que o filme trata e desconstrói em seus 80 minutos, mas a manifestação sucinta da construção social catalisadora para os conflitos que se discorrerão, já que Always Shine acompanha duas amigas, Anna (Mackenzie Davis) e Beth (Caitlin FitzGerald), mulheres de personalidades distintas em um meio dominado por homens, que vão para uma casa isolada passar o fim de semana.

    Anna e Beth são atrizes em diferentes momentos de suas carreiras; Beth participa de filmes B de terror e comerciais de cerveja, enquanto Anna ainda luta para encontrar algum agente. E ainda que a carreira da primeira não pareça ser um grande sucesso, é motivo de inveja para Anna, que tem bem menos que isso, o que faz com que se sinta inferior. Porém não só na questão profissional são distintas, e não somente assim Anna se sente diminuída. Por exemplo, uma das primeiras cenas do filme é a do teste de elenco de Beth, onde ela interpreta uma mulher sendo abusada, implorando, afirmando que faria qualquer coisa que o abusador quisesse. Ela faz isso em uma sala cheia de homens, que logo deixam claro a forma como o filme terá nudez extensiva e ela deverá se preparar para isso. As poucas vezes que levanta a voz, logo é interrompida. Anna, por outro lado, não se enquadra no papel, seja no da personagem rasa de filmes de terror, ou naquele que lhe esperam socialmente. Anna se impõe, mas não conquista o que almeja, logo se sente injustiçada. É a partir dessa dicotomia que o filme trata a posição da mulher na sociedade e a maneira que lhes é incentivada a competição entre si, especialmente no mundo do cinema.

    Você se sente como uma puta?

    O filme se desenvolve nessa constante zona metalinguística sobre atuação e performance. E se não fosse a competência de Sophia, talvez fosse um filme que se apoiasse e se satisfizesse indulgentemente nessa característica autoconsciente. A direção de Takal mistura elementos de thriller clássico e traços experimentais. Não se permite um único momento que não seja uma construção e intensificação para o próximo; seja pela montagem visual e sonora que prega pelo desconforto do espectador enquanto ainda o mantém intrigado, com toques de David Lynch, ou a própria interação entre as atrizes. As atuações de Mackenzie e Caitlin transitam nas sutilezas da apreensão e da amizade que se definha com o passar do tempo, tal como a sanidade. Essa interação apresenta seu ápice no momento que as personagens leem o texto do próximo filme de Beth.

    O único aspecto do filme que deve ser tratado com cautela é sua parte final, isso porque com certeza causará decepção em muitos do público, ainda que, por mais estranho que seja, não se faz de forma forçada após tudo que foi desenvolvido ao longo do filme. É uma demonstração da coragem e confiança da diretora.

    Eu nunca vi alguém me olhar com tanto nojo

    Always Shine é um thriller psicológico de extrema potência social e experimentação cinematográfica. Corajoso, mas não prepotente. Suas personagens são a principal força do filme, que se veem impulsionadas pela direção segura de Takal e texto denso de Levine, que exibem suas competências ao fundamentar o terror e o suspense na natureza e desejo de Anna e Beth; suas percepções sobre elas mesmas e sobre a outra. Isoladas e cercadas pelos pinheiros e pela neblina, não há como fugir daquilo que brilha e deseja brilhar nelas mesmas.

    Texto de autoria de Leonardo Amaral.

  • Resenha | Bulldogma

    Resenha | Bulldogma

    Muitas pessoas possuem um certo problema em relação à expectativa de obras e produções. De forma geral, ao assistir um bom trailer você imagina que será um bom filme, o que curiosamente, na maioria das vezes o que ocorre é o contrário ou quando algo é muito recomendado e você já espera muito da obra. Bulldogma, de Wagner Willian, consta em várias listas de melhores de 2016, logo ao lê-lo já se espera muito, e o mais gratificante é que os quadrinhos de Willian te entregam tudo aquilo que prometeu.

    A sinopse bastante simples, acompanha um momento atribulado, em vários sentidos, da vida da publicitária Deisy Mantovani e de seu cachorro. Momento esse que coincide com a compra de um apartamento que foi vendido, pois o antigo morador acreditava que alienígenas faziam abduções por lá. Há uma certa pitada de ficção-científica, de maneira quase subliminar.

    Contudo, a simplicidade acaba na sinopse, pois com o que a gente se depara em Bulldogma pode ser taxado de várias formas, menos como simples e deve ser visto em várias camadas de interpretação.

    A primeira delas é a da própria vida de Deisy, com a construção de uma realidade crua e bastante factível, onde se pode ver os problemas ligados ao mundo do trabalho e, principalmente, as sacanagens decorrentes deste. Apesar de diferentes profissões é muito fácil se identificar com pessoas sacanas que já te passaram para trás em algum momento de sua carreira. Além disso, a relação com amigos; festas e excessos; como sexualidade de uma pessoa que sente o peso do mundo, de suas escolhas e de como as coisas já não são mais tão simples quanto poderiam ser.

    Também deve se destacar uma séries de sonhos/pesadelos, como que visões que fazem parte da vida da protagonista. Difícil definir ao certo, mas soando como um tipo de surrealismo que nós acompanhamos em determinadas páginas. Inclusive, apesar de ser uma HQ bem grande é importante a realização de sua leitura mais de uma vez, já que muitos destes momentos requerem uma atenção extra e certos detalhes podem não ser percebidos em uma primeira leitura. Vale até dizer que em determinados momentos não se trata de uma leitura fácil. Pense na leitura de Bulldogma, como a leitura de um livro, um pouco de concentração é importante. Para quem já leu Sandman, essas passagens remetem bastante a sua irmã mais jovem, Delírio.

    E não poderia deixar de citar o cãozinho de estimação da protagonista, que está presente em vários momentos da estória e funciona ora como ponte de diálogo para com os leitores, ora como sensação de paranoia, como que se o animal estivesse sempre observando a protagonista nos momentos em que ela está em casa. A relação dela como o animalzinho é também bastante interessante e crível.

    Outro ponto fundamental, se não aquele que mais me chamou a atenção foi a estrutura narrativa estabelecida pelo autor. Tanto as soluções gráficas quanto as das partes escritas são bem elaboradas, com paginas interessantes e bastante originais. A forma como o uso de novas tecnologias é feito, diálogos que fogem dos balões tradicionais, e principalmente, como o autor trabalha alguns monólogos da protagonista, soando como verdadeiros diálogos com o leitor. Tudo impressiona pelo cuidado e originalidade.

    Enfim, não adianta ficar somente escrevendo sobre o gibi, comprem, leiam e tirem suas próprias conclusões!

    PS: o autor criou uma página na internet https://bulldogma.wordpress.com/ com material extra e complemento para discussões do quadrinho. Trata-se de uma obra que foge das páginas e ganha complementos em outra mídia.

    Compre: Bulldogma

    Texto de Autoria de Douglas Biagio Puglia.

  • Flash e Supergirl: O Crossover Musical

    Flash e Supergirl: O Crossover Musical

    Os crossovers entre os seriados do chamado arrowverse, que é basicamente o universo da DC Comics na televisão criado em Arrow, tiveram início ainda na 2ª temporada da série do arqueiro esmeralda com a participação de Barry Allen, que culminou com o seu acidente que o transformou em Flash. Desde então, os heróis de Arrow, Flash, Supergirl e Legends of Tomorrow se reúnem para enfrentar alguma ameaça realmente perigosa, como a primeira vez que enfrentaram Vandal Savage ou combateram uma invasão alienígena que adaptou a saga Invasão, da DC Comics. Fora essas reuniões que duram mais de um episódio, existem outras menores onde os personagens do universo compartilhado sempre aparecem ao menos uma vez nas outras séries e foi assim que Flash conheceu Kara Zor-El, a Supergirl.

    Devido a um intercâmbio entre os canais CW, que produz as séries do universo compartilhado e o canal CBS, que cuidava de Supergirl, o velocista escarlate, durante um treinamento para derrotar o vilão Zoom, acabou por cair sem querer na Terra 3 e assim, ajudou a última filha de Krypton a derrotar uma ameaça. A parceria deu certo comercialmente e os produtores resolveram arriscar ainda mais, desta vez, trazendo a Supergirl para o seriado do Flash. E foi fantástico.

    Tanto Grant Gustin, quanto Melissa Benoist faziam parte do cast do premiado seriado musical, Glee, e, por conta desse passado, os produtores decidiram que o encontro do dois seria em formato de musical. Com isso, se aproveitaram da situação atual de ambas as séries, onde os protagonistas se encontravam em situações semelhantes em suas vidas e trouxeram o vilão Mestre da Música, vivido pelo também ator de Glee, Darren Criss, para ensinar uma lição a Barry e Kara.

    O episódio começa com Mon-El (Chris Wood) e J’onn J’onzz (David Harewood), atravessando o portal e chegando aos Laboratórios S.T.A.R, em Central City, com a Supergirl em coma, pedindo ajuda, ao mesmo tempo que o Mestre da Música invade o local e coloca Barry no mesmo estado de Kara. Ao acordar, Barry percebe que está numa espécie de boate noir, onde Kara é a cantora. Não demora para os dois perceberem que estão presos num musical e que, para escapar da transe, teriam que seguir o roteiro passo a passo.

    Assim como em qualquer musical, tudo é muito bonito e alegre e é realmente satisfatório ver os atores de todo o universo compartilhado cantando e dançando, sendo que a escolha de seus representantes foi muito bem acertada. Como o episódio era do Flash, todo seu cast estava lá, mas somente Barry, Iris (Candice Patton), Joe (Jesse L. Martin) e Cisco (Carlos Valdes) participaram da viagem atribuída pelo Mestre da Música, assim como Kara, Mon-El e Winn (Jeremy Jordan) representando a série da Supergirl. Vale destacar que os veteranos Dr. Martin Stein (Victor Garber), que é uma das metades do herói Nuclear, representou Legends of Tomorrow e Malcolm Merlyn, o Arqueiro Negro (John Barrowman), representou Arrow. A título de curiosidade, todo o background de formação artística de Barrowman foi feito na Broadway, fazendo com que o ator seja mais que competente para sua participação, em vez de qualquer outro personagem de Star City.

    O episódio em si foi muito dinâmico, deixando aquela sensação de que passou muito rápido e isso se deve à boa trama do musical, aliada à trama paralela daquilo que acontecia nos Laboratórios S.T.A.R. No que diz respeito ao musical, este totalmente ambientado na máfia noir da primeira metade do século XX, somente Barry e Kara eram eles mesmos e o restante do elenco, apesar de estarmos familiarizados com os atores e seus personagens, interpretavam outras pessoas com nomes diferentes. Merlyn, por exemplo, é um dos chefões da máfia e dono da boate onde Barry, Kara, Cisco e Winn trabalham. Já Joe e Stein chefiam outra facção da máfia e são inimigos mortais de Merlyn, sendo que ambos os criminosos estão atrás de seus filhos, Iris, que é filha de Joe e Stein (sim, é isso mesmo) e Mon-El, filho de Merlyn.

    Enquanto Barry e Kara, com seus poderes drenados, tentam seguir o roteiro, Wally West/Kid Flash (Keiynan Lonsdale), Cisco Ramon/Vibro e J’on J’onzz, devidamente transformado no Caçador Marciano, perseguem o Mestre da Música por Central City. Aqui cabe um destaque porque os três heróis trabalham de maneira cooperativa semelhante aos X-Men na abertura do filme Dias de Um Futuro Esquecido.

    Como dito, o ótimo episódio pareceu muito curto (mesmo tendo o tempo regular característico), fazendo com que certas resoluções tivessem seus desfechos de forma um pouco mais urgente. De qualquer forma, o Mestre da Música é um ótimo vilão e realmente seria muito legal se ele retornasse, aparecendo nos demais seriados, já que o antagonista atinge exatamente determinado ponto da mente daqueles que são afetados. Seria muito interessante ver a mente deturpada e sofrida de Oliver Queen ambientada num musical que se passa na 2ª Guerra Mundial, por exemplo.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | A Conexão Francesa

    Crítica | A Conexão Francesa

    Qualquer cinéfilo ou entusiasta de filmes de ação é familiarizado com o incrível Operação França (The French Connection), obra do diretor William Friedkin e estrelado por Gene Hackman e detêm a considerada melhor perseguição de carro já feita na história do cinema. Em contraste, não são muitas pessoas que viram a sua sequência, Operação França 2 (The French Connection 2), em que o detetive interpretado por Hackman vai até a França achar a tal conexão do título original. Não é um grande filme se compara a obra original. Felizmente, encontramos agora décadas depois a obra Conexão Francesa, dirigida por Cedric Jimenez, estrelando ninguém menos que Jean Dujardin (conhecido mundialmente por seu trabalho em O Artista) – agindo como a contraparte francesa do personagem de Hackman.

    Na trama, o magistrado Pierre Michel (Dujardin) é transferido para Marselha, onde descobre que seu maior desafio será desmembrar uma articulada quadrilha de traficantes de heroína na cidade dominada por Gartan Zampa (Gilles Lellouche).

    É interessante ver como muitas das produções tentam resgatar alguns temas e a estética setentista, não só visualmente como em decupagem, pensem em O Agente da U.N.C.L.E. ou até mesmo em Argo. Não se trata de um filme policial como Atração Perigosa ou até mesmo Os Infiltrados, o filme é dinâmico mas respeita suas duas horas de duração de maneira que até o progresso dela segue um compasso que não soa de maneira alguma como os filmes de ação/policial costumeiros dos nosso tempos.

    A trilha sonora também é quase um segundo personagem da trama, é difícil lembrar em mais de oito minutos que alguma cena da produção não tenha simplesmente alguma música de época e pouquíssimo uso de trilha incidental. Junte isso a maneira que praticamente todas as cenas ressaltam sempre uma paleta quase pastel com sombras barrocas belamente enquadradas e realmente o filme se torna uma bela mescla entre o gênero policial com a estética européia e também de uma escola de cinema passada com sutis maneirismos contemporâneos.

    Conexão Francesa infelizmente não é recheado de ação como um filme desses geralmente é exigido pelo público nos dias de hoje, porém contrabalanceia esse fato com uma competente execução de história sem nenhum recurso batido, como repetitivas narrações progredindo a trama ou os clássicos exageros de vilões perdendo o controle sempre que a situação não sai de acordo com o planejado. Esse filme poderia facilmente ser vendido num box com as outras duas produções que tem Hackman como protagonista.

    Texto de autoria de Halan Everson.

  • Crítica | A Bela e a Fera

    Crítica | A Bela e a Fera

    A Bela e a Fera surgiu pela primeira vez na França em 1740 com o conto de mesmo nome escrito por Gabrielle Suzenne Barbot, a Dama de Villeneuve. O conto ganhou força 16 anos depois com sua primeira adaptação escrita por Jeanne-Marie LePrince de Beaumont, que reduziu a história, além de fazer algumas alterações. Ao longo desses quase 300 anos, A Bela e a Fera teve diversas adaptações para o cinema e televisão, ganhando uma versão “realista” em 2011, chamada A Fera e sua mais recente adaptação, havia sido uma versão francesa estrelada por Vincent Cassel e Léa Seydoux. A versão mais bem sucedida da história, sem dúvida, foi a animação feita pela Disney, em 1991, rendendo uma indicação ao Oscar (até então inédita), além de cravar seu lugar no hall da fama dos clássicos de animação.

    Contudo, com tantas adaptações, algumas delas horríveis e outras muito boas, seria realmente necessário trazer A Bela e a Fera de volta às telonas? É inegável que a Disney está com o projeto de trazer à vida suas principais animações, ela só ainda não assumiu isso, mas sua justificativa é simples e além do que, simplesmente, contar a história com personagens e locações reais. Nesse caso em específico, atualizar Bela, dando um pouco mais de força à personagem, buscando equipara-la às mulheres de nossa época.

    Dirigido por Bill Condon (responsável pelo premiado Dreamgirls: Em Busca de Um Sonho) e escrito por Stephen Chbosky e pelo especialista em animações, que deve ter revisado o roteiro, Evan Spiliotopoulos, A Bela e a Fera faz uma narração como nos tradicionais contos, fazendo a introdução da história que culminou com a maldição do príncipe (Dan Stevens) transformado numa fera amarga e seu castelo que perdeu toda sua vida e cor. Do outro lado da cidade, vive Bela (Emma Watson), uma jovem considerada diferente e estranha naquele lugar apenas por gostar de ler. Bela está cansada da rotineira vida banal que tem naquela região e tem sonhos, mas nenhuma oportunidade de sair do local. A jovem vive dos seus afazeres domésticos e ainda cuida de seu pai, Maurice (Kevin Kline) que aparenta esconder um pouco sobre o passado de Bela e sua mãe. Tão logo somos apresentados à dupla Gaston e LeFou vividos pela boa química dos atores Luke Evans e Josh Gadd. Gaston é um homem forte, bonito e bastante egocêntrico. Embora tenha todas as mulheres da vila a seus pés, o homem tem somente um objetivo: se casar com Bela.

    Aliás, a química entre os atores é a mistura que deu certo para o filme manter a alma da animação, o que foi difícil por contar com diversos personagens e um elenco de peso que não atrapalham em nada o andamento do filme. Talvez o motivo para que isso tenha acontecido é que mais da metade desse elenco é composta por objetos vivos presentes no castelo, que, na verdade, eram as pessoas que estavam no local e que foram afetadas pela maldição atribuída ao príncipe. Então, assim como no desenho, temos os divertidos Lumière (Ewan McGregor) e Cogsworth (Sir Ian McKellen), que são um castiçal e um relógio, a esposa de Lumière, Plumette (Gugu Mbatha-Raw), o bule Mrs. Potts (Emma Thompson) e seu filho, a xícara Chip (Nathan Mack). Completam o elenco Stanley Tucci, como o cravo Maestro Cadenza e sua esposa, Madame Garderobe (Audra McDonald), que foi transformada num armário. São esses objetos que roubam a cena com seus diálogos divertidos.

    O filme é bem fiel à animação, inclusive homenageando alguns takes como se a produção de 1991 servisse de storyboard. Mas isso está longe de ser ruim, uma vez que aliado aos personagens, outros destaques da película ficaram o design de produção, figurino e maquiagem. A vila em que Bela mora é tratada com muito cuidado, cheia de detalhes e sets práticos que chegam a lembrar bastante a Vila dos Hobbits de O Senhor dos Anéis por ser muito bem feita. O castelo onde a Fera vive merece uma atenção especial. A cena da biblioteca é algo extraordinário e boa parte dos segmentos onde há inúmeras pessoas em cena é tratada de forma cantada, como em um musical, sendo que os atores gravaram suas partes de canto em estúdio. Vale destacar que os figurantes dessas cenas estão todos bem coreografados e muito bem vestidos.

    Se pudermos traçar um paralelo com diversas outras animações que ganharam suas versões com atores reais, A Bela e a Fera é exatamente aquilo que os fãs de Dragon Ball queriam que o fracassado filme fosse. Mas, também, estamos falando de uma produção Disney, que quase nunca erra e entrega ao espectador um filme leve, colorido, alegre e divertido. Que venha O Rei Leão!

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | 13 Minutos

    Crítica | 13 Minutos

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    Baseado em fatos reais – com roteiro de Léonie-Claire Breinersdorfer, Fred Breinersdorfer e direção de Oliver Hirschbiegel – o filme conta a história de Georg Elser (Christian Friedel), um carpinteiro nascido em Hermaringen, Württemberg, opositor do nazismo, conhecido por sua tentativa frustrada de assassinar Adolf Hitler.

    Em 8 de novembro de 1939, durante o discurso de aniversário de Hitler, uma bomba explode no Munich Bürgerbräukeller, bem atrás de onde o Führer discursava, matando oito pessoas. Pouco antes, um homem, Elser, havia sido preso na fronteira suiça, portando objetos suspeitos – um mapa e detonadores. Ele é então levado à Gestapo para ser interrogado. Como já é sabido, sua tentativa falhou – Hitler havia deixado o local 13 minutos antes da explosão.

    Durante dias, Elser é interrogado pelo chefe da Polícia Criminal no Reichssicherheitshauptamt, Arthur Nebe (Burghart Klaußner), e pelo chefe da Gestapo, Heinrich Müller (Johann von Bülow). Inicialmente, Elser nega-se a responder e quando, finalmente, Nebe e Müller encontram um gatilho que o faz falar, ninguém acredita que ele tenha agido sozinho. Enquanto Elser está detido sendo interrogado e torturado, vai relembrando os eventos de sua vida que culminaram naquela ação contra o Führer.

    O início do filme é bastante promissor. O espectador acompanha, numa sequência totalmente sem diálogo ou qualquer tipo de narração, a instalação do que depois se percebe que é uma bomba. E só depois de finalizada a montagem é que o protagonista é apresentado. Quando o espectador percebe o que Elser está planejando, a empatia com o personagem e sua motivação é imediata. Após a prisão de Elser, quando se inicia o interrogatório, esse fluxo de ação se interrompe. A inserção recorrente dos flashbacks é cansativa, além de fazer uso de uma estrutura que se repete: algo importante ocorre durante o interrogatório que deflagra uma lembrança da vida do protagonista. E muitos desses eventos rememorados sequer têm importância para o desenvolvimento do pensamento anti-nazista de Elser. Boa parte deles foca na vida amorosa do personagem, num melodrama desnecessário.

    Se a cena inicial consegue imergir o espectador no filme instantaneamente, o restante do filme não consegue chegar nem perto. A cenografia e o guarda-roupa são bastante fiéis à época, mas o elenco é incapaz de convencer o espectador de que aquela história se passa em 1939. Talvez seja falha do roteiro, talvez da direção, ou um pouco de cada. Mas exceto pela boa performance de Friedel, são todos pouco convincentes em seus papéis.

    Em certo ponto, a narrativa parece que irá seguir o caminho do “E se…”. E se o plano de Elser tivesse funcionado? E se um nevoeiro não tivesse feito Hitler sair antes do previsto? Mas é apenas um vislumbre. Logo depois que Elser resolve começar a falar, o roteiro explora um pouco a incredulidade dos oficiais quanto ao fato de ele ter feito tudo sozinho. E esse seria outro caminho interessante a ser seguido – a necessidade de se obter uma informação que não existe. Contudo, de uma hora para outra, eles se convencem e a trama caminha rapidamente para um desfecho totalmente previsível mesmo para quem não conhece a história de Elser.

    Vale pela lição de história pois provavelmente a maioria das pessoas sequer sabia da existência de Elser. E possivelmente, achavam também que o único atentado à vida de Hitler foi aquele engendrado por generais, evento contado no filme Operação Valquíria, de 2008.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | Cujo – Stephen King

    Resenha | Cujo – Stephen King

    Este é o primeiro livro de Stephen King que leio. Ou melhor, que leio por completo. Comecei a ler Sob a Redoma, no Kindle, mas a leitura está parada há meses – mais adiante comento sobre os possíveis motivos. Havia lido um conto, “Milha 81”, e gostado bastante. Quando surgiu a oportunidade de ler esta edição linda de Cujo, não pensei duas vezes.

    “Frank Dodd está morto e a cidade de Castle Rock pode ficar em paz novamente. O serial-killer que aterrorizou o local por anos agora é apenas uma lenda urbana, usada para assustar criancinhas. Exceto para Tad Trenton, para quem Dodd é tudo, menos uma lenda. O espírito do assassino o observa da porta entreaberta do closet, todas as noites. Você pode me sentir mais perto… cada vez mais perto”.

    O trecho acima, que consta da sinopse oficial, não-intencionalmente gera um mal-entendido na cabeça do leitor, pois parece indicar que a história tem a ver com possessão demoníaca ou algo assim. Mas esse mal-entendido não é culpa de quem escreveu a sinopse. O próprio King, de certa forma, “desencaminha” o leitor no início da trama ao dar ênfase ao monstro no armário do pequeno Tad. Mas basta avançar um pouco mais para perceber que foi uma forma de introduzir e apresentar ao leitor os personagens da família Trenton – Vic, Donna e Tad. Pois exceto pela insinuação vaga de que talvez o espírito de Dodd tenha possuído Cujo, não há nada de sobrenatural na história, que se passa na cidade fictícia de Castle Rock, no Maine, onde moram a família Trenton, a família Camber e mais alguns personagens secundários.

    Algo sobre a escrita de King que eu já havia reparado ao ler Sob a Redoma é que ele é prolixo. Porém não num sentido pejorativo já que, diferente da maioria dos textos prolixos, o de King é agradável de ler. Parece supérfluo. Pode até ser supérfluo em alguns casos. Mas é interessante. Sempre. Neste livro, principalmente no início, há várias páginas discorrendo sobre assuntos que pouco agregam à história, mas que ainda assim se apresentam atraentes ao leitor, que dificilmente fica com vontade de saltar parágrafos. E, apesar desses trechos ou, aproveitando-se desses trechos, King vai inserindo uma tensão na narrativa que prende o leitor. Ele consegue isso, entre outras coisas, usando com muita eficiência a ironia dramática. Como Lemony Snicket explica muito bem no segundo volume de Desventuras em Série:

    “Em poucas palavras, a ironia dramática ocorre quando uma pessoa faz um comentário inocente, e outra pessoa que o escuta está sabendo de alguma coisa que faz com que esse comentário tome um sentido diferente, em geral desagradável”.
    (A sala dos répteis – pag.37)

    No que tange à literatura, trata-se daquela situação em que o leitor sabe mais do que os personagens. O autor dá ao leitor informações extras, que fazem com que ele, na maioria das vezes, tema pela segurança e pelo bem estar de um ou mais personagens. E King faz isso magistralmente ao incluir trechos em que descreve o que acontece com Cujo, o são-bernardo da família Camber. A narrativa, estrategicamente, é feita em terceira pessoa por um narrador onisciente, intercalando os dissabores da família Trenton, o cotidiano fastidioso dos Cambers e as reações de Cujo depois de ter sido mordido por um morcego infectado com raiva. O leitor vai lendo e inferindo o que irá acontecer, enquanto os personagens estão ali, inocentemente vivendo suas linhas narrativas sem desconfiar de nada. Quem lê sabe que vai acontecer alguma coisa, só não sabe quando nem como nem quem será a primeira vítima. Tem como largar o livro antes de descobrir isso?

    E chega-se a esse ponto mais ou menos ao final do primeiro quarto do livro. Quando acontece aquilo para que o autor estava preparando o leitor desde o início, não há como não se indagar: “Será que vai ficar enchendo linguiça por mais 300 páginas?”. Mas não. King cria outra expectativa. E continua fazendo o que faz de melhor – deixando o leitor na beira da poltrona de tanta ansiedade.

    “Latindo com fúria, Cujo deu início à perseguição. Embora o coelho fosse muito pequeno, e Cujo, muito grande, a possibilidade de conseguir trouxe uma dose extra de energia para as patas do cão. Cujo chegou perto o suficiente paraagarrar a presa, mas o coelho fez um zigue. Cujo se virou pesadamente, com as garras revolvendo a terra negra do prado, perdendo terreno de início, logo voltando à carga. Pássaros saíram voando ao ouvir o latido alto e ofegante. Se um cachorro pudesse sorrir, Cujo estaria sorrindo naquele momento. O coelho fez um zague e seguiu direto para o campo. Cujo partiu atrás, já suspeitando que não conseguiria ganhar aquela corrida.”
    (pag. 29)- grifo meu

    “Dormiram juntos, mas pela primeira vez a cama king-size pareceu pequena demais para Vic. Dormiram virados, e o espaço entre os dois parecia uma terra de ninguém coberta com cuidado por lençóis. Ele passou as noites de sexta e de sábado em claro, já que morbidamente percebia todas as mudanças de posição de Donna, ouvindo o som da camisola contra o corpo da esposa. Ficou imaginando se ela também estava acordada, no outro lado do vazio que separava os dois.”
    (pag. 119)

    É inevitável fazer um pré-julgamento dos livros de King baseado na referência que se tem dos filmes inspirados em suas obras. E dois pontos saltam à vista. A primeira constatação – óbvia – é que os livros são melhores que os filmes. Ok, são duas mídias diferentes que devem ser analisadas diferentemente. Mas a riqueza de informações que o livro oferece é sempre inigualável, mesmo o filme contando com o recurso adicional da imagem para narrar a história. A segunda constatação é que King é muito mais do que um expert em criar suspense. Ele faz isso realmente muito bem. Contudo como se pode perceber pelos dois trechos acima, sua escrita vai além disso. O primeiro mostra King brincando com as palavras, e há vários trechos no decorrer do livro escritos assim. Pode até soar contraditório – pois, como afirmado acima, King é prolixo – mas os dois trechos ilustram que o autor pratica muito bem o “show, don’t tell”. Há muitas coisas não ditas nas cenas acima que são explicitadas seja pelo jogo de palavras seja pelas figuras de linguagem.

    Nesta edição da Suma de Letras, ao final do livro há uma entrevista com o autor, concedida ao repórter da revista The Paris Review. Nela, há algumas pérolas que deveriam servir de guia para escritores iniciantes:

    “ENTREVISTADOR: Cujo é incomum porque o livro inteiro é um único capítulo. Você planejou isso desde o início?

    KING: Não, Cujo era um livro normal em capítulos quando foi concebido. Mas eu me lembro de pensar que queria que o livro atingisse o leitor como se fosse um tijolo jogado pela janela. Sempre achei que o tipo de livro que eu escrevo – e meu ego é grande o bastante para pensar que todo escritor devia fazer isso – devia ser uma espécie de agressão pessoal. Devia ser alguém pulando por cima da mesa, devia agarrar e intimidar o leitor. Devia provocá-lo. Devia incomodá-lo, perturbá-lo. E não só porque ele ficou com nojo. Quer dizer, se alguém me mandar uma carta e disser que não conseguiu jantar, o que eu penso é: ‘Ótimo!’”

    Em outro trecho, em que King fala sobre seus livros e a forma como ele os “separa” em dois tipos, ficou claro para mim por que Cujo me agradou tanto e Sob a Redoma, nem tanto – a ponto de a leitura não avançar:

    “ENTREVISTADOR: Quando você reflete sobre seus livros, faz alguma distinção entre categorias?

    KING: Eu tenho dois tipos diferentes de livros. Acho que livros como A Dança da Morte, Desespero e a série A Torre Negra são livros que vão para fora. E livros como O Cemitério, Misery, O Iluminado e Eclipse Total vão para dentro. Os fãs normalmente gostam ou dos para fora ou dos para dentro, mas não de ambos.”

    Interessante essa divisão dele. Eu particularmente nunca tinha pensado em thrillers sob esse aspecto. E inclusive o entrevistador o questiona sobre isso. Pois como praticamente todos os livros do autor têm terror psicológico, se não seriam classificados como “para dentro”. E King explica que leva também em consideração a quantidade de personagens. E aí está, nas palavras do próprio Stephen King, o motivo de Sob a Redoma não me agradar tanto, já que é um livro “para fora”.

    Vale reparar como King pega uma trama simples – um cão raivoso perseguindo moradores de uma cidade pequena – e a transforma em algo que mexe com o âmago do leitor. Quem disse que thrillers tem de ser apenas entretenimento?

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Kong: A Ilha da Caveira

    Crítica | Kong: A Ilha da Caveira

    King Kong foi imaginado originalmente em 1933, clássico pro seus efeitos visuais e pela história poderosa de amor entre uma fera gigantesca e sua musa. A relação entre doçura e ferocidade animalesca de um gorila gigante, tão assustado quanto brutal, tão perigoso quanto amoroso. A cena no topo do Empire States Build provavelmente é uma das mais famosas do cinema, tão perfeita é sua criação. Anos após e diversos filmes revisitaram sua história, em versões mais ou menos fiéis, incluindo uma versão com o intuito de praticamente reproduzir o original, e lindamente filmada por Peter Jackson.

    Kong: A Ilha da Caveira se afasta de praticamente todos seus anteriores ao não só focar em um trecho bastante específico da mitologia do herói gorila, que é seu reinado na ilha da caveira, como em uma época bastante específica, que é o período da Guerra do Vietnã. A datação é inclusive usada como justificativa para o achado da ilha fantástica, coberta por tempestades magníficas e quase inacessível. Também faz parte de algo maior, já anunciado pela Warner e Legendary, parte de um universo todo de monstros gigantes que inclui o Godzilla de 2014. Percebe-se alguma ressonância nos dois filmes, principalmente na intenção de expor uma visão ecológica desses animais fantásticos.

    Eu sou a morte, o destruidor de mundos

    A mensagem é aquela, mais bem trabalhada em Godzilla que em King Kong, de que a natureza é poderosa e age independente de nossa pequenez. Como se fôssemos insetos, ela passa por nós todos os anos, seja com tsunamis, furacões, terremotos devastadores, erupções vulcânicas e toda sorte de intempéries. A natureza nos ignora, e somos resultado dessa displicência. A nós e nossa falsa sensação de magnitude, nosso reinado de sal, nosso olhar de folha e pensamento de raiz, olhando de cima todo o mundo enquanto pensamos de maneira primitiva e irracional. Nosso sabor pela guerra, a visão de um inimigo à espreita em cada esquina e a necessidade de destruir uns aos outros e tudo aquilo que nos cerca. O ser humano como um vírus pronto para ser expurgado. Mas os anticorpos não são os monstros protagonistas, seja King Kong ou Godzilla. Eles são os reis benevolentes que em sua não necessidade de compaixão, demonstram benevolência. King Kong é nosso herói, o rei leal e piedoso, atento ao sofrimento e pressionado na amargura da solidão de ser único. Único tal qual é cada um de nós. Um universo inteiro em uma casca de noz. O problema sempre está em impor este universo particular ao outro e assim achar que se é o único universo.

    O antagonismo é representado em duas frentes, os lagartos da caveira, animais gigantes de design impiedoso, com falsos olhos demoníacos, e o general interpretado por Samuel L. Jackson. Ambos representam a face da morte, seja a morte da seleção natural, seja aquela imposta por nossa seleção artificial e empáfia na escolha sobre quem vive e quem morre. Parafraseando o brilhante cientista Oppenheimer, chefe de pesquisas do projeto Manhattan, que desenvolveu as primeiras bombas nucleares e todo o seu conceito, ao citar Bhagavad Gita diante do sucesso do projeto. A citação refere-se à cena onde Vishnu ao persuadir o príncipe a cumprir seu dever, para pressiona-lo ergue-se em sua forma com múltiplos braços:

    “Agora eu tornei-me a Morte, a destruidora de mundos”.

    Kong: A Ilha da Caveira pode ser definido de diversas formas, mas dificilmente será enquadrado em algo, seja gênero ou tom. A forma como melhor se define este filme é como algo genuinamente único, mesmo que nem sempre bom. É um filme pensadamente híbrido,usando diversas referências da cultura pop de forma natural e poderosa. Estrelas ninjas nas mãos de gorilas, samurais, bom humor, non sense, quebras de expectativa que surpreendem com competência e ousadia, diversas homenagens à clássicos do cinema como Apocalipse Now, uma cafonice linda e elegante, Tom Hiddlestom com uma espada só por que ele fica lindo na cena. Tudo está lá, e a dinâmica na mudança de tom do filme acontece na maioria das vezes de forma orgânica.

    Falta, porém, personagens que fossem além de peças para o roteiro. Ao menos seus protagonistas, pois apesar de Brie Larson destacar-se em sua interpretação e entrega de uma heroína, que em outros tempos mocinha pronta para ser salva, falta um pouco mais de elaboração e tempo de tela para que seja possível identifica-la como o eixo da história de amor entre vida e natureza, coisa que fica subentendida por repetidamente o filme olhar em volta a partir da visão de sua câmera, delicada e atenta as belezas ao redor, garantindo À ela uma sabedoria anti-destruição.

    A beleza do filme emociona diversas vezes, e é talvez um dos filmes mais bonitos feitos por Hollywood nos últimos anos, pareado com Mad Max: Estrada da Fúria. O filme esmera-se em fazer de cada cena uma pintura, sejam nas poses ensaiadas e estereotipadas de suas personagens, seja na forma como filma a destruição como um misto de beleza e sadismo.

    Diante de tanta beleza e ousadia, torna-se difícil não se esforçar pra amar o filme. Porém sua montagem repetidamente confunde a ordem dos acontecimentos e apressa o passo da história; há uma necessidade de alcançar check points de quem irá morrer agora que, apesar de surpreender, tornam as mortes e vidas dos personagens um pouco descartáveis fazendo com que esqueçamos quem ainda está vivo e quem não. Algumas de suas cenas parecem trechos de um filme melhor do que este que vemos montado, e isso somado à grande quantidade de personagens relevantes e a baixa densidade de suas elaborações, em alguns momentos fica difícil se engajar no ritmo que o filme tenta impor. Um filme necessário pela forma como enxerga o mito do King Kong e a forma como enxerga entretenimento, de maneira artística e elegante, Kong: A Ilha da Caveira é um bela obra de arte, mas que eventualmente se esvazia e transborda em sua grandeza, desperdiçando parte daquilo que poderia ser.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.