Autor: Vortex Cultural

  • Review | Arquivo X – 10ª Temporada

    Review | Arquivo X – 10ª Temporada

    Arquivo X - 10a temporada - poster

    Arquixo X foi um dos fenômenos televisivos da década de 90. A série criada por Chris Carter, em 1993, ainda é referência para muitos seriados da TV americana que encontram material suficiente para se inspirar. Durante mais de 200 episódios, a série fez de tudo. Abordou a maioria das lendas urbanas existentes no planeta, trouxe à tela serial killers, desde os que iam somente atrás de mulheres até aqueles que raptavam crianças. Revisou o místico e o fantástico, seitas, viajou pelo tempo, além de apresentar ao espectador diversos episódios especiais, seja em preto e branco, noir, recheados de humor, fazendo sátiras ou episódios escritos e dirigidos pelo elenco principal. Mas, além de tais episódios, a série trazia um conceito interessante, qual seja, uma história principal conhecida entre os fãs como mitologia e que fez a série se sustentar por 9 temporadas graças às ótimas histórias, às performances de David Duchovny e Gillian Anderson e do ótimo time de coadjuvantes que completava o time.

    Fazendo um breve resumo da trama, o agente do FBI, Fox Mulder (Duchovny), quando criança, presenciou sua irmã sendo abduzida por alienígenas. Com a ideia de que um dia a encontraria, chegou ao bureau para trabalhar no Arquivos X, uma pequena e desacreditada divisão que investigava casos inexplicáveis. O trabalho de Mulder começou a chamar atenção e seus superiores recrutaram a novata agente e cientista Dana Scully (Anderson) para contestar o trabalho de Mulder, com a finalidade de por fim à divisão. Nesses quase 10 anos em que trabalharam juntos, a dupla se viu dentro de uma conspiração muito maior do que poderiam imaginar, envolvendo alienígenas, o próprio governo e uma possível colonização que consistia na alteração genética dos seres humanos. Mulder foi julgado militarmente por seus supostos crimes e terminou a série, em 2002, foragido ao lado de Scully.

    Com a onda de reboots e remakes que o cinema vem enfrentando, não demoraria muito para que a referida onda chegasse à televisão, reabrindo, assim, os Arquivos X. Apostando num formato bastante diferente ao qual estava acostumada, a série retornou com apenas 6 episódios, dividindo opiniões. Hoje, sem dúvida, parece que sim, foi pouco. De qualquer forma, o formato em poucos episódios foi adequado de acordo com Duchovny e Anderson, que são bem conhecidos por Californication e The Fall, respectivamente.

    Nessa temporada, a premissa da mitologia, além de envolver um Mulder enclausurado em sua casa e uma Scully que retornou ao seu ofício na medicina, apresenta Tad O’Malley (Joel McHale), um apresentador de TV que adora expor ao seu público as mais diversas conspirações. Aparentemente, O’Malley, descobriu aquela que seria a maior e mais letal das conspirações e que está em contato direto com a verdade que Mulder sempre buscou e que demonstra, na realidade, as reais intenções do governo ou de quem estaria por trás dela. Infelizmente, como dito, 6 episódios não foram suficientes para contar o que aconteceu, uma vez que essa premissa foi tratada em apenas 2 episódios, o primeiro, My Struggle, apresentando o ponto de vista de Mulder, e My Struggle II, o último episódio, mostrando o ponto de vista de Scully, que se encerra sem um ponto final (marca registrada dos finais de temporada da série), demonstrando que, de fato, a série poderá continuar.

    THE X-FILES: L-R: Mitch Pileggi, David Duchovny, Gillian Anderson and William B. Davis. The next mind-bending chapter of THE X-FILES debuts with a special two-night event beginning Sunday, Jan. 24 (10:00-11:00 PM ET/7:00-8:00 PM PT), following the NFC CHAMPIONSHIP GAME, and continuing with its time period premiere on Monday, Jan. 25 (8:00-9:00 PM ET/PT). ©2015 Fox Broadcasting Co. Cr: Frank Ockenfels/FOX

    Talvez essa 10ª temporada tenha se preocupado mais em mostrar aos fãs que a chama e o espírito da série ainda se mantêm, o que foi amplamente abordado nos outros quatro episódios. Por conta dos adventos do primeiro capítulo, não demorou para que o Diretor Assistente Skinner (novamente vivido por Mitch Pileggi) reabrisse os Arquivos X, colocando Mulder e Scully de volta à ativa. E o que vemos a partir disso é Arquivo X na sua pura essência. Embora os anos tenham se passado, Mulder tenha ganhado um pouco de peso (além de reconhecer que é um homem de meia-idade) e Scully, algumas rugas, a série parece que nunca deixou a televisão. A clássica abertura está presente, sem nenhuma alteração; os monstros da semana; as frases clássicas; as lanternas; os episódios confusos cujos desfechos não ficam muito claros; e a trilha sonora característica de Mark Snow. Tudo está lá. E, com isso, a urgência de Chris Carter em querer demonstrar nove temporadas em apenas seis episódios, tenha prejudicado um pouco o andamento dessa temporada, que aparentou ficar um pouco fora do compasso.

    Contudo, o saldo foi muito promissor, uma vez que podemos adicionar dois episódios para o hall de episódios clássicos da série, sendo um deles o terceiro episódio, Mulder & Scully Meet the Were-Monster, que remete ao lado lúdico e descarado (com uma homenagem ao falecido diretor Kim Manners) e o quarto episódio, Home Again, que mostra Scully lidando de forma emocionante com uma dura situação em sua vida pessoal. A temporada destaca mais Dana do que Mulder, uma vez que, em praticamente em todos os episódios, a agente precisa lidar com a falta de seu filho William. O arco de William, embora suspenso, esteve presente, inclusive no primeiro e segundo episódio da nova temporada, respondendo de forma sutil a uma dúvida que, por muito tempo, foi chave para as abduções e experiências genéticas envolvendo mulheres e seus bebês na série.

    Um outro ponto destacável é que a dupla não é mais um casal, fato que dividiu opiniões, deixando parte dos fãs felizes, uma vez que a base da série sempre foi os dois atuando como parceiros, demonstrando por diversas vezes um carinho e uma preocupação intensa um pelo outro, algo sabiamente mantido nessa temporada. Possivelmente, é o porquê dos dois estarem separados: assim, a carga de dramaticidade foi ligeiramente maior, acusando de forma clara que aquele sentimento que sempre tiveram um pelo outro, muito antes de ficarem juntos, ainda existe.

    Arquivo X parece que voltou para ficar por mais algum tempo na TV e os fãs só têm a ganhar. A audiência tem dado essa chance à série, uma vez que os números nos EUA foram muito expressivos, sendo que, no Reino Unido, essa nova temporada foi a que mais deu audiência ao Channel 5 desde Celebrity Big Brother que foi ao ar em 2011. O primeiro passo foi dado, resta agora a série apresentar uma futura evolução.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Amor, Drogas e Nova York

    Crítica | Amor, Drogas e Nova York

    Amor, Drogas e Nova york - poster

    Sintetizadores dominam as saídas de áudio enquanto dois jovens sujos se beijam no chão da rua. A garota segura o cigarro. Traga, beija. Surge então um choro que chama atenção para um momento futuro, mas ele não importa. Pelo menos não agora. Não há motivo para pensar adiante. A vida é efêmera, sem esperança. Aproveite enquanto dura. Assim é o cotidiano dos personagens de Amor, Drogas e Nova York. E é importante entender que é só sobre isso que o filme quer tratar.

    Ben Safdie e Joshua Safdie (Go Get Some Rosemary) dirigem o filme com roteiro de Joshua Safdie e Ronald Bronstein e baseado no livro autobiográfico de Arielle Holmes, que também é a atriz principal. Escrito a pedido dos irmãos Safdie, depois de a encontrarem na rua e sentirem interesse em sua história, o filme acompanha Haley (Holmes) em seu cotidiano; como lida com sua realidade e os parceiros de sua vida, em especial Ilya, por quem tem um vício no mesmo nível da heroína.

    Arielle transpõe sem glamour ou romantização sua vida. É crua. Tão visceral quanto a dos outros personagens, que são também, alguns, colegas de sua vida nas ruas. Sua personagem não apresenta amor próprio, independência. Guia-se pelos outros, trocando de acompanhante para acompanhante em uma desesperada busca por algo que a mantenha ativa. E, assim como outros, não apresenta um arco narrativo de desenvolvimento tradicional, nem deveria. Segue sem pretensão e sem brilho além do produto de seu vício. A obra, por sua vez, não se preocupa em explicar como foram parar ali, quem são os culpados, como melhorar. Não é algo inovador, mas nem por isso se deve deixar de perceber como a presença de alguém que realmente viveu o retratado torna mais coerente e coeso o que ocorre em tela.

    A fotografia, portanto, segue um estilo documental de handy-cam e movimentos bruscos. Às vezes afastada e observadora, às vezes muito próxima dos personagens. Próxima o suficiente para que, em tons puxando para cinza, deixe escapar o vazio de cada um dos que observa. Em poucos momentos há realmente cor em tela, mas são eles os mais danosos. Assim como a presença da trilha sonora reminiscente dos anos 80, que foi tratada por Paul Grimstad e Ariel Pink. Ela enche os espaços por entre as massas de realidade. Assim como nos energiza de forma a continuar até a próxima ilha de banalidade.

    Apesar de tentar, de certa forma, criar um final satisfatório para os médios 90 minutos de filme, não há fim. Assim como não houve começo. Há somente frações de vidas. Não há lição didática para aprender; epifanias de personagens, ou público. O círculo da vida dos marginalizados é o mesmo sob o sol de Nova York ou de qualquer outro lugar do mundo. É assim. Só Deus sabe o resto.

    Texto de autoria de Leonardo Amaral.

  • Crítica | Moscou Contra 007

    Crítica | Moscou Contra 007

    Moscou Contra 007 A

    Assim que James Bond, o 007 malicioso e persuasivo interpretado por Sean Connery, assina a foto de Tatiana Romanova, sua lindíssima bondgirl no longa-metragem dirigido por Terence Young, 007 Contra Moscou tem início, adaptando a clássica história de Ian Fleming.

    O ambiente de fundo é a Guerra Fria. O ápice da espionagem guerrilheira entre os Estados Unidos e a Rússia envolve desta vez, o Reino Unido e o MI-6, que corresponde a 007 investigar um programa de criptografia russo. Bond então parte para a Turquia, enquanto a inocente agente Romanova (Daniela Bianchi) é destinada a persuadir e colocar o espião em uma armadilha, que de fato estava armada desde o início da operação.

    Seguindo a narrativa dos filmes anteriores e dos posteriores, o tradicional plot de espionagem é certeiro e contempla diversos meios para ser conduzido. Algumas sequências ilustram um filme noir, com perseguições e entraves nos diálogos, cooperando junto a ironias e um humor sarcástico, além da conhecida elegância inglesa.

    O filme é bem dirigido. A fotografia é bela, exaltando a imponência e as cores do ambiente, principalmente em filmagens externas. O roteiro flui sem tanta naturalidade. Os diálogos são ótimos e muito bem escritos, mas algumas cenas não entregam o que o roteiro leva. Em alguns takes há falhas de comunicação, criando uma falsa perspectiva e gerando surpresas até mesmo aleatórias. Mesmo que isso não comprometa o filme como um todo, há momentos que me transmitiram uma impressão falsa do que estava por vir.

    O ápice climático, as cenas de ação e os conflitos dos personagens são os alicerces. Conduzem o filme ao longo de quase duas horas. A química entre Connery e Bianchi é fantástica, fortificando a atriz como uma das melhores bondgirls da era do ator, e de todos. Vale o acréscimo para Robert Shaw, que interpreta o agente da SPECTRE, Red Grant. Seu jeito misterioso e imponente transporta a sensação de uma interessante vilania.

    Moscou Contra 007 comprova o vislumbre, a realeza e a tradição dos filmes de espionagem. Sem forçar estereótipos, e até mesmo quebrá-los ao insinuar uma personagem russa como homossexual, é um filme bonito e, mesmo que aparente ser datado, agrada pela contextualização, sendo um dos melhores de toda a saga.  

     –

    Texto de autoria de Adolfo Molina.

  • Crítica | O Clube

    Crítica | O Clube

    306209

    Um dos filmes mais controversos de 2015, O Clube tem a difícil missão de apresentar ao espectador temas difíceis que estão entranhados no povo chileno: o abuso de padres pedófilos e a relação da igreja com a violenta ditadura de Pinochet.

    O roteiro do diretor Pablo Larraín, o mesmo do filme No, em colaboração com Guilhermo Calderón e Daniel Villalobos é conciso em seu início e consegue criar o mistério necessário que prende a atenção do público a cerca daqueles padres que vivem reclusos e que são cuidados por uma freira com um passado igualmente obscuro. A sequência de rupturas daquele universo começa na chegada de Matias, um padre que abusou de crianças e se suicida no local, motivando a chegada de Garcia, um padre progressista que deseja melhorar a igreja.

    Uma das maiores forças do roteiro reside nos personagens principais do filme. Um dos que mais chama atenção é Sandokan, um homem que persegue o padre que o abusou. A sua presença permeando a história é um dos pontos mais interessantes do roteiro para explicitar a consequência do abuso da pedofilia aos membros da Igreja e forçar um choque através da sua interação. Todos os padres criminosos não consideram que erraram, eles tentam justificar de diversas formas as barbáries cometidas.

    Os habitantes da casa, incluindo a freira, são desajustados, provavelmente, desde a infância. Por não conseguirem se enxergar assim, continuam a ter certa empatia com qualquer desvio de personalidade. Um exemplo disso é o Padre Vidal, que se apega mais a um galgo, um cachorro de corrida que eles acharam na rua, e não consegue admitir os crimes que fez a diversas pessoas sob a roupa da Igreja. Outro personagem denso é a Irmã Mônica, a freira que toma conta dos padres. Com um passado misterioso de quem abandonou a própria família, a freira defende padres abusadores, os militares durante a ditadura e até um dos sacerdotes que ajudou a encontrar lares para crianças sequestradas dos inimigos dos militares.

    Personagens que ganham dimensões humanas através de seres que não deveriam ter empatia. Ganhando mais humanidade quando realizam seus atos cruéis, como uma das cenas no final, mostrando como a Igreja Católica e a Ditadura Militar Chilena resolvia seus problemas manipulando o próprio sistema,

    A narrativa funciona como uma forma de denúncia que se propõe a discutir a pedofilia e os crimes que os padres cometeram, porém ao ir além, se torna panfletário, diferentemente de Spotlight: Segredos Revelados: filme que trata do mesmo tema. O excesso de progressismo do Padre Vidal soa falso, não condiz com o personagem e se torna caricato. Por mais que ele represente a ala reformista, durante os interrogatórios ,acaba agindo mais como um ateu fanático do que um membro que deseja construir uma nova Igreja, como ele mesmo fala. Outro ponto em que o roteiro perde força são os padres admitirem sem muita dificuldades que são gays e que a sexualidade com crianças é aceitável dentro de uma cultura celibatária, soando como um esteriótipo.

    A direção de Pablo Larraín tem alguns tropeços ao longo da trama, principalmente, nestas cenas de interrogatório. A escolha dos ângulos nestes momentos poderia mostrar melhor o desgaste e a dúvida interna dos padres sofrendo com a investigação. O diretor também poderia exigir mais de seu elenco na direção de atores. No entanto, o saldo é positivo e produz unidade ao filme. A sensação de opressão dentro da casa é permeada durante a obra inteira com imagens escuras e em contra-plongé, coerente com o fato de abrigar personagens que estão tentando se esconder da sociedade. Assim, a casa funciona como uma espécie de purgatório, onde há mais trevas do que luz, porém a pouca luz que existe é a chance da redenção através da confissão que eles tentam tanto adiar. Destaque para a cena do suicídio do Padre Matias logo no começo do filme.

    A edição de Sebastián Sepulveda poderia ser melhor. Apesar de deixar um ritmo mais lento, o filme se perde na metade e acaba cansando após tantos depoimentos. A edição de acaba sendo satisfatória no total. A fotografia de Sergio Armstrong, que trabalhou com Larraín em No, é competente no que se propõe. Tecnicamente ela poderia ter uma qualidade de definição melhor nas cenas internas da casa, mas mantém a harmonia de imagem ao usar palheta de cores azul e com pouca saturação para mostrar a falta de vida.

    O Clube vale a pena por trazer temas super relevantes e discuti-los de uma forma diferente em um filme com bons personagens.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Review | Fargo – 2ª Temporada

    Review | Fargo – 2ª Temporada

    fargo-2a-temporada-poster

    A história novamente baseada em fatos, apenas com os nomes dos personagens trocados por respeito aos familiares, e com a trama retratando exatamente o que ocorreu, se inicia em cada um dos episódios da 2ª Temporada de Fargo, que agora conta parte da trama dessa região incrível sob a ótica de novos personagens em novos tempos e retratando o fatídico período do massacre de Sioux Falls. Sob o risco da repetição, o segundo ano da série é, assim como o primeiro, irretocável. Relembrando temas e situações expostas na primeira temporada, agora o roteirista Noah Hawley muda tudo, apoiando-se no absurdo ao misturar ficção científica em uma trama de vingança em que erros tornam-se o fio condutor da complicada trama.

    Tendo um grupo de protagonistas tão bom quanto o primeiro — embora ligeiramente menos carismático —, vemos a cidade de Luverne, Minnesota de 1979 sendo tomada de assalto devido uma guerra entre máfias rivais, e tragando Lou Solverson (Keith Carradine na primeira temporada e agora por Patrick Wilson) para esta guerra. Tudo começa com uma atrapalhada situação de chantagem que, por incompetência do chantageador da família Gerhardt, torna-se uma sequência de homicídios improváveis. Por conta de eventos quase que sobrenaturais, a confusa cabeleireira Peggy (Kirsten Dunst, excelente no papel) envolve ela e seu marido, o açougueiro Ed Blumquist (Jesse Plemons) nestes assassinatos. Dessincronizados, o casal age de forma a manter sua vida e planos pelo lado do marido, ao mesmo tempo que busca sublimar os recentes acontecimentos com uma postura ativa e ao mesmo tempo catatônica por parte da esposa. Ela é uma pessoa em busca de sua essência e potencial reprimido pela condição de esposa e da chata cidadezinha. Considerando este potencial como irrevogável, suas ações partem de uma cegueira acerca da real gravidade das coisas, tomando sua mente e fazendo-a viver em outro mundo. Ironicamente este seu novo estado mental é justamente o que a torna capaz de se salvar em uma cena que usa de elementos ousados para inserir o absurdo da série, mas na mente de Peggy aquele absurdo todo é trivial e até mesmo faz sentido.

    Lou Solverson é tão competente e abnegado quanto sua filha Molly, e ainda conta com a esperteza contida de sua esposa Betsy Solverson (Cristin Milioti) e experiência de seu sogro, o Sheriff Hank Larsson (Ted Danson) para enfrentar as trapalhadas do casal Blumquist, a loucura absolutista da família Gerhardt e a eficiência filosófica do assassino da Máfia do Kansas, Mike Milligan (Bokeen Woodbine). Novamente o futuro de todos aqueles personagens não pode ser menos do que desastroso, e a sabedoria disso torna cada episódio uma experimentação única, uma última imagem provável daqueles personagens. Se de um lado a tensão é permanente, por outro as explosões de violência ocorrem quase como uma praga divina capaz de aliviar aquela pressão antes de uma explosão, mas sem antes criar outras tensões tão severas quanto. Neste ponto, embora seja resolução narrativa para a maior parte dos arcos da trama, ela nunca se mostra definitiva e agindo sempre como estopim para mais violência.

    Ao brincar com o espectador, até mesmo algumas resoluções elaboradas pelos personagens, que fazem total sentido por reverberarem ficção e realidade, mostram-se apenas alucinações de uma realidade cruel em que, mesmo que agindo sob a expectativa da lógica e inteligência, tudo está destinado a arruinar-se. Na época do lançamento do filme Fargo, ao ser questionado sobre os tais fatos nos quais o filme foi baseado, Joe Coen comenta que estes provavelmente aconteceram, mas não com aquelas pessoas, e afirma que quase tudo que se possa escrever deve ter um espelho na realidade. Sendo assim, você pode criar planos elaborados de vingança e morte, e ainda haver uma reverberação no mundo real. De certa forma tem o mesmo papel da frase que antecipa alucinações e processos por parte do público “Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência”.

    O mundo criado pelos Coen e estendido por Noah Hawley tem consciência de que não existem mera coincidências e que pelo Teorema do Macaco Infinito se pode ser escrito, é porque algum dia será ou foi verdade, mesmo que para isso tenha-se que envolver o presidente Nixon e todos os seus filmes.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | Brooklyn

    Crítica | Brooklyn

    Brooklyn_1Sheet_Mech_7R1.indd

    Baseado no livro de sucesso de Colm Tóibin, Brooklyn chegou como um dos filmes mais aguardados de 2015 para os fãs de romance e filmes de época. A história apresenta uma imigrante irlandesa em Nova York que fica dividida entre um amor com um neto de imigrantes italianos ou o retorno para sua casa, onde melhores oportunidades de emprego e amorosa a esperam.

    O bom roteiro de Nick Hornby acerta ao seguir a trajetória de Eilis, uma jovem irlandesa sem personalidade. Todos à sua volta decidem por ela, até o momento em que se torna uma mulher com próprio controle de sua vida ao fazer suas próprias escolhas. Inserida em um ambiente de opressão religioso e moralista, além do machismo da época, a personagem aceita a proposta de emigrar para a América e acaba encontrando um ambiente com mais liberdade.

    O roteiro foca no tema do lar, através da saudade extrema de casa e a conexão da protagonista com o passado, porém estes vão sendo aos poucos substituídos por novas conexões e novas casas, ou seja, novos amores, novos relacionamentos. Por ser um país formado por imigrantes de diversas nacionalidades, os Estados Unidos se tornam o local perfeito onde ela consegue se encontrar no meio de desconhecidos. A premissa de Hornby é bem clara: casa é onde você está.

    O princípio da liberdade da personagem e o início do processo de autodescoberta já se encontram dentro da própria pensão. Ao ter contato com outras imigrantes irlandesas sexualmente ativas, ela se vê obrigada a se tornar alguém para ganhar a vida e conhecer outras pessoas. Não à toa ela conhece o jovem encanador que vira seu interesse amoroso. Porém, a interferência externa ainda permeia a sua vida através do padre Flood, que a matricula em um curso de contabilidade, e de Tony, que vai além da insistência com um pedido de casamento.

    Outra interferência externa a faz voltar a Irlanda, a morte da irmã. Porém, ao decidir pela viagem, é no regresso que termina a jornada de Eilis. A jovem precisou retornar à sua origem para poder, enfim, começar a viver em plenitude. A cena que marca este momento é no encontro com sua antiga chefe, além daquela em que dá dicas para uma jovem imigrante.

    John Crowley conserva o clima uniforme da obra; é um diretor de atores competente e só. O cineasta não consegue se destacar em nenhum momento. Soa como um contratado por estúdio para filmar uma história, o que não chega a ser um problema em um filme comercial, mas não é o que pede esta narrativa. A falta de personalidade de Crowley acaba refletindo no produto final: Brooklyn poderia ter sido um grande filme de romance, como Carol ou Pontes de Madison, se essa boa narrativa não fosse tão mal aproveitada.

    Saoirse Ronan está bem como protagonista; sua atuação contida consegue mostrar a angústia e a dúvida de sua personagem, porém ela ainda carece de maturidade artística. Ainda precisa evoluir mais como atriz para entregar, por exemplo, o que Rooney Mara e Cate Blanchett nos ofereceram em Carol. Destaque ainda para as aparições rápidas de Jessica Paré, a Megan de Mad Men, do sempre bom Jim Broadbent como padre Flood, e de Domhnall Gleeson, o General Hux de Star Wars – Episódio VII: O Despertar da Força.

    A fotografia de época de Yves Bélanger, diretor de fotografia do bom Clube de Compras Dallas e Livre, mantém tons neutros e um realismo na maior parte do filme, conseguindo se sobressair de forma poética nas sequências do navio e da imigração, nas cenas intimistas e na do cantor durante o trabalho voluntário. A edição de Jake Roberts mantém o filme em um bom ritmo, e é invisível na maior parte da narrativa, também aparece como destaque nessas sequências.

    A direção de arte de Irene O’Brien e Robert Pale conseguiu transmitir, através do visual, a diferença gritante entre a Irlanda e Nova York. No entanto, destaca-se o figurino de Odile Dicks-Mireaux, em que podemos ver como o tom monocromático das roupas da protagonista passa a ter cor à medida que ela adquire novas experiências de vida.

    Mesmo com uma direção sem personalidade, Brooklyn vale a pena para quem gosta de filme de época e de uma grande história universal sobre as escolhas que nos marcam.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Deadpool

    Crítica | Deadpool

    Desde que foi anunciado, em 2014, o filme solo do controverso e falastrão Deadpool, os fãs de quadrinhos ficaram com sentimentos divididos. Se por um lado Ryan Reynolds já tinha interpretado o papel de forma ridícula no desastroso X-Men Origens: Wolverine, por outro os spots, imagens e depois trailers trouxeram um certo alívio ao mostrar que as origens do personagem seriam respeitadas. Mais do que isso: o filme parecia ser bom.

    Deadpool é um personagem criado nos anos 90 por Rob Liefeld (citado no filme) e Fabian Niciesa. Apesar de ter surgido como paródia do vilão da DC Exterminador, Wade Wilson logo ganhou uma personalidade própria, com um humor ácido e extremamente irônico, incapaz de levar qualquer situação a sério. Esse fato, e também o de ser mentalmente instável, o fez participar dos mais variados grupos de heróis dos quadrinhos da Marvel, mas também incapaz de permanecer lá. Esse fato torna sua trajetória nas HQ’s um tanto quanto errática.

    Nas telonas, o filme dirigido pelo novado Tim Miller mantém todas as características do personagem, o que irá agradar à maior parte dos fãs de filmes baseados em super-heróis, que começaram nos últimos anos a dar sinais de desgaste. Com baixo orçamento em comparação aos filmes do mesmo tipo, Deadpool se foca quase exclusivamente no protagonista, e Reynolds felizmente consegue carregá-lo inteiramente de forma competente. Ciente de suas limitações, sente-se bem à vontade no papel do personagem que satiriza tudo e todos à sua volta, os quais servem como escada para seu incessante repertório de piadas.

    Wade Wilson no filme é algo próximo de um “mercenário do bem”, que aceita pequenos serviços de pessoas comuns (geralmente não muito dentro da lei) em troca de pagamento. Em uma das noites em que passa no bar (que também funciona como o balcão de agendamentos de seus serviços) conhece Vanessa (Morena Baccarin), e a partir dali a vida de ambos muda para sempre. Porém, ele descobre que tem câncer terminal e tem pouco tempo de vida. Desiludido, recebe uma proposta de um misterioso homem prometendo curar seu câncer e lhe dar habilidades especiais. Wilson deixa Vanessa com pesar e se submete ao processo, que se mostra totalmente diferente do que havia imaginado, com sessões de tortura cujo objetivo era ativar um gene mutante nas cobaias e transformá-las em super soldados, tudo conduzido Por Ajax (Ed Skrein) e Angel (Gina Carano). Tal processo deforma Wilson fisicamente. Ao conseguir fugir, promete vingança e dedica sua vida a encontrar Ajax e fazê-lo reverter o processo que o deixou assim.

    Tudo isso é explicado ao espectador através de flashbacks que vêm e vão no início do filme enquanto Deadpool tenta capturar Ajax após uma implacável perseguição, que termina com a participação de outros X-Men, Colossus (Greg LaSalle / Stefan Kapicic) e Negasonic Teenage Warhead (Brianna Hildebrand), que buscam capturá-lo e tentar conscientizá-lo de que suas ações são irresponsáveis. Colossus inclusive garante uma ótima participação como o grandalhão forte, ingênuo e de bom coração em contraste com o escrachado Deadpool. Em alguns momentos sua ingenuidade chega até a lembrar Drex, de Guardiões da Galáxia. Sua luta com a personagem de Gina Carano também é um ponto alto do filme, inclusive mais interessante que o próprio combate entre Deadpool e Ajax, que, por não ser um vilão com muita profundidade, não deixa o espectador investido emocionalmente em seu destino. A grandiosidade um pouco desnecessária dessa batalha final também não ajuda, a não ser em criar um espetáculo visual que destoa da simplicidade do filme. Afinal, destruir tanta coisa assim é coisa dos Vingadores.

    Deadpool se encaixa bem nos tempos atuais, onde a seriedade sombria dos heróis da DC/Warner se contrasta com a linguagem divertida e engraçadinha dos heróis da Marvel. Neste contexto, ele chega justamente para tirar sarro de todos esses filmes e seus clichês, por isso funciona muito bem. As piadas com as escolhas do ator no passado, tanto de sua interpretação anterior do mesmo personagem quanto com o seu Lanterna Verde em 2011, são explícitas e tiram risadas do espectador antenado na cultura pop. As referências também passam pelos filmes do X-Men, de ambas as linhas do tempo, e de vários outros heróis, filmes e personagens icônicos da atualidade. Tantas referências acabam deixando o filme com um certo gosto enjoativo da preguiçosa série The Big Bang Theory, cujo roteiro inexistente é compensado justamente pela devoção dos fãs às referências ao que eles já conhecem. A sorte é que Deadpool ao menos tem uma história a ser contada e não se deixa levar por essa fácil saída.

    Mas é justamente em seu ponto forte reside um pequeno porém. O humor do protagonista funciona, mas é cômodo e em momento algum arrisca. As piadas sempre possuem o mesmo pano de fundo sem desafiar o espectador. Isso não é um problema em si, mas um filme que quer se destacar pela violência em si, poderia se arriscar mais neste quesito, tendo no roteiro um pouco mais de coragem. Alguém também poderia criticar avanços temporais, onde Wilson aprende sozinho a fazer uniformes e a conduzir investigações minuciosas sobre figuras grandes do submundo do crime, aparentemente do dia pra noite, mas por se tratar de uma adaptação totalmente fiel aos quadrinhos, e por ao mesmo tempo homenagear e satirizar esta mídia, essas sequências acabam integrando justamente o imaginário coletivo de tantos filmes de origem que já vimos com os mesmos clichês.

    Ao quebrar toda hora a “quarta parede” e conversar com o espectador da mesma forma que fazia nos quadrinhos (e ao mesmo tempo em que diz que faz isso), Deadpool subverte não só os padrões estéticos da onda recente dos filmes de herói da Marvel e DC, como também padrões narrativos. Ele nos lembra a todo instante que super-heróis são bregas, ultrapassados e infantis. E tudo bem ser assim.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | A Onda

    Crítica | A Onda

    die welle

    Em diversas passagens históricas a humanidade vivenciou o horror causado pelas ideias e comportamentos extremos de grupos que se julgavam superiores aos demais. No início do século XX, o nazismo imperou como um dos episódios mais cruéis já reportados e seu legado nocivo é lembrado até os dias de hoje. Nos Estados Unidos da década de 60, Ron Jones, um docente do ensino médio, tentou mostrar que um regime parecido poderia ocorrer novamente caso houvesse manipulação efetiva dos alunos, exigindo deles disciplina e comprometimento com uma causa. Esse acontecimento inspirou A Onda, filme alemão dirigido por Dennis Gansel.

    Em seus primeiros minutos, a obra mostra o professor Rainer Wenger (Jürgen Vogel) entoando Rock ‘n’ Roll High School, música dos Ramones, trazendo um ar contestador, porém descontraído logo de início. Visando ensinar aos alunos que uma ditadura poderia surgir atualmente, Rainer os insere num regime liderado por ele e que possui suas próprias regras e objetivos. O carisma e a proximidade que tem dos jovens faz com que muitos deles participem ativamente de suas aulas. No entanto, alguns alunos questionam tal método e ponderam sobre o risco que ele pode acarretar.

    die-welle-autokratie

    O núcleo estudantil é a representação ideal dos nichos a partir dos quais a narrativa irá desenvolver seu argumento; baderneiros, ‘populares’ e abastados são alguns dos grupos que possuem suas próprias regras, comportamentos e objetivos. Vemos também que os incapazes de integrarem esses grupos são rejeitados; o ‘bullying’ figura como um dos pontos debatidos ao longo do filme através do personagem de Tim (Frederick Lau); o rapaz não consegue se enturmar e é constantemente rechaçado por alguns colegas. Outro argumento levantado é a personalidade frágil de jovens sem perspectiva e carentes de uma causa pela qual lutar, que se deixa conduzir por um discurso inflamado e pela ideia de ser superior aos outros. Desse modo, Tim vê na doutrina de Rainer o estilo de vida ideal a seguir, e passa a envolver-se profundamente com ela.

    A trama se desenvolve ao longo de cinco dias, durante os quais os alunos se dedicam inteiramente a tornar a Onda uma ideologia forte. Porém seu modo de agir passa a ser incisivo e, por vezes, agressivo, como hostilizar colegas ou outras pessoas que não concordam com suas diretrizes. Ao presenciar incidentes alarmantes dentro e fora da escola, Wenger decide concluir seu projeto ao final do quinto dia.

    welle_12

    Reunindo todos os membros do experimento no auditório da escola, numa passagem da película que parece aludir às grandes concentrações de pessoas guiadas por homens vis e sedentos de poder, Rainer decreta o fim da Onda, num discurso corrosivo e esclarecedor de que a ascensão de um regime totalitário seria possível nos dias atuais. O grande erro começa exatamente no ponto em que nos julgamos imunes a rendição perante um ideal, uma causa e aceitação no coletivo, e ao que faríamos para perpetuar esse status quo.

    À exemplo de grupos radicais e governos tiranos que recrutam suas forças armadas através de promessas e garantia de grandes conquistas, e usam do extremismo para alcançar seu propósito, o desfecho no âmbito escolar de A Onda é estarrecedor e amargo. A lição é ensinada, os semblantes incrédulos e pesarosos de professores e alunos presenciam-na em sua forma crua, sem meias palavras ou amenidades. A última visão que temos do filme é a expressão aflita de Wenger, que parece temer o futuro pela culpa que irá carregar para o resto de sua vida e pela desolação em saber que atos extremos sempre vão acontecer.

    Texto de autoria de Carolina Esperança.

  • Crítica | Numa Escola de Havana

    Crítica | Numa Escola de Havana

    numa-escola-de-havana-poster

    Cuba sempre foi um tema polêmico, ainda mais na atual conjuntura política do país, portanto, falar da ilha sem resvalar em paixões ideológicas se mostra uma tarefa muitas vezes inglória. Se Cuba possui seus inúmeros defeitos, as maiores qualidades sempre citadas são o sistema educacional, o de saúde e o cinema, mesmo que não conheçamos muito a respeito de nenhum deles.

    Numa Escola de Havana é um filme de 2014 dirigido por Ernesto Daranas que conta a história de Chala (Armando Valdes Freire), um garoto de 11 anos que vive causando problemas na escola, porém, conta com a disciplinadora, porém, carinhosa professora Carmela (Alina Rodriguez) para ajudar a resolver os inúmeros problemas que aparecem em sua vida, especialmente ligados à sua mãe que o negligencia e todo um sistema que o ignora.

    A constante tensão entre a vitalidade de uma criança que descarrega no mundo toda a violência que recebe em sua vida e um sistema rígido e arcaico é o mote principal do filme. Enquanto Carmela tenta dialogar e mostrar que pode se responsabilizar por Chala à margem do sistema, os representantes oficiais do sistema acham que a melhor solução para ele é mandá-lo para uma escola mais rígida, que dá nome ao título original da produção, Conducta.

    Tal conflito poderia ser conduzido de formas menos sutis, carregadas de moralismo de um lado ou do outro, mas Daranas consegue se manter em uma linha tênue mostrando que ambos os lados estão corretos em suas perspectivas e querem o melhor para Chala, mas só conseguem mostrar isso através das ferramentas que possuem, sem conseguir entender muito bem o outro lado. As encarregadas do sistema educacional representam a visão oficial de uma estrutura burocrática que não pode se organizar de acordo com o romantismo e o sentimento de cada professora do país para cada aluno. Ao mesmo tempo, uma professora com anos de experiência não deveria ser vista como um empecilho a esse sistema, mas sim justamente como a voz de quem sabe o que está falando e que poderia ter algo a acrescentar no caso. A questão mostrada nesse recorte específico é a constante tensão presente na ilha (e em qualquer país com problemas sociais) da vida normal das pessoas e a pressão irracional da burocracia sobre elas, como quando o pai de uma das colegas de classe de Chala é mandado embora de Havana por não ter autorização estatal para estar ali.

    Chala é mostrado ao mesmo tempo como um aluno que poderia ser categorizado como “indisciplinado”, mas ao mesmo tempo é praticamente o responsável pela sua casa, ao criar pombos e cuidar dos cachorros feridos da rinha que seu conhecido organiza, o que garante uma renda a ele, já que a mãe tem problemas com alcoolismo. Este traço, apesar de ajudar a construir a contradição do personagem, resvala no clichê dos “filmes de escola”, em que o heroísmo do personagem justifica mentalmente suas ações, mas não deixa de ser uma exceção em realidades assim. Um personagem um pouco mais comum talvez pudesse ajudar a tornar a história mais palatável nesse sentido.

    Outra característica que também ocorre no mesmo erro é o de Carmela incorporar o professor herói que toma para si a resolução dos conflitos, como se a solução para a educação fosse mágica e dependesse de vontades pessoais. O filme não é carregado neste aspecto, mas o imaginário coletivo já infestado de produções assim nos conduz automaticamente essa imagem ao ver o filme. Neste caso, o ponto forte continua sendo a relação Carmela x Chala x Estado. Carmela, aliás, possui a frase mais forte e impactante do filme a respeito do garoto: “Se você quer que ele seja um delinquente, trate-o como um”.

    Porém, o grande mérito do diretor Ernesto Daranas é justamente nos mostrar uma face desconhecida da realidade cubana, a das escolas, e das relações sociais entre sua população comum, que geralmente são deixadas de lado. Ao mostrar a decadência física do espaço urbano do país, o diretor também mostra a decadência do sistema que em um determinado momento trouxe melhoras para uma população completamente abandonada, mas que rapidamente ficou ultrapassado e preso em um passado rígido que não existe mais. Ao abordar tantos temas, o filme poderia ter uma mão pesada na mão de alguém mais insensível ou preocupado com outras coisas além da história, mas felizmente Daranas foca nos personagens e em contextualizar os pequenos conflitos e dramas das pessoas, em suas lutas diárias, pela sobrevivência em um país com tantos problemas.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Carol

    Crítica | Carol

    696f16f4gw1evwwr5vw06j21k92bcx6p

    Carol se tornou um dos filmes mais aguardados de 2015 por causa do retorno de Todd Haynes à direção desde Não Estou Lá, além de ser baseado no famoso livro de Patricia Highsmith, a mesma criadora de O Talentoso Ripley.

    O bom roteiro de Phyllis Nagy (amiga de Patricia Highsmith e que lutou mais de 20 anos para a história ser produzida) baseado no livro de mesmo nome (do original The Price of Salt) é pontual no seu recorte: a narrativa pretende discutir a pureza do amor. Como é amar alguém? Mais importante, do que é feito o amor? De um olhar, de um gesto, de um contato físico, da convivência, da doação de uma pessoa à outra ou de tudo junto?

    Por mais que enfrentem as resistências diversas de uma sociedade machista e moralista dos anos 50 que dá mais valor a convenções sociais, o roteiro não vai pelo caminho fácil do melodrama e muito menos pelo maniqueísmo. Ele acertadamente humaniza todos os personagens inclusive os mais rasos, como o marido vingativo amargurado pelo divórcio ou o namorado que não aguenta a rejeição.

    Em tempos de intensa militância virtual, o filme foi acusado de abordar a homofobia de forma superficial. No entanto, parte da premissa do roteiro reside justamente no fato de que a homofobia é um dos grandes obstáculos para um relacionamento homoafetivo, mas não é o único ou o maior deles. Primeiro cada uma das partes precisa estar em sintonia, cada uma delas precisa querer. Desta forma, a história nos mostra que as dificuldades para um relacionamento maduro se encontram em todos os lugares e assim o roteiro consegue ser universal e atemporal.

    Uma das cenas mais bonitas do filme

    A direção de Todd Haynes é muito interessante. A sua escolha por ângulos inusitados em boa parte do filme pretende mostrar ao espectador o quão única é aquela narrativa e aqueles personagens. Ao mostrar os detalhes em cada plano fechado e nos closes, Haynes mostra do que o seu cinema é feito: dos pequenos gestos. O diretor nos dá a grande metáfora da sua obra, na curta cena do trem de montar: ela representa as chegadas e partidas de um relacionamento, os encontros entre as duas, como também os desencontros.

    Hábil como poucos, Todd Haynes também consegue extrair o melhor do seu elenco. As interpretações não são canastronas ou excessivas; mesmo nos momentos mais tensos, elas são contidas e soam críveis. As atuações em Carol vêm do detalhe, como dito acima.

    Cate Blanchett e Rooney Mara entregam uma das maiores atuações de suas carreiras. Impressiona a forma como as duas executam com destreza cada gesto, seja através de como andam, da forma como colocam um casaco, de um sorriso e principalmente de um olhar. Não é exagero dizer que a entrega das duas para este filme chegou perto do sublime. Destaque ainda para Sarah Paulson e Kyle Chandler, que acrescentam o filme nas poucas cenas em que aparecem.

    A boa edição de Affonso Gonçalves manteve a uniformidade da obra, ela está invisível na maioria do filme e se destaca nos detalhes da cena do trem de montar além das cenas íntimas entre as protagonistas.

    A ótima fotografia de Edward Lachmann, que também foi diretor de fotografia do bom Longe do Paraíso, além de ser tecnicamente impecável, a influência das pinturas de Edward Hopper e das fotografias urbanas de Vivian Maier é nítida. A escolha pela paleta de cores amarelo, laranja e marrom, além da falta de saturação, ajuda a ressaltar o intimismo e a melancolia que poucos conseguiram alcançar. Ela se destaca também na cena do trem.

    tumblr_o0y0lhe73l1smp3mko1_1280 1927-edward-hopper-automat

    Exemplos das referências de Hopper

    Outro grande destaque do filme é a direção de arte na composição da locação e dos cenários, além da maquiagem e figurino. O trabalho competente de Jesse Rosenthal, Sandy Powell e Heather Loeffer conseguiu não somente ambientar os anos 50, mas dar personalidade a cada um dos personagens e ressaltar o conflito interno das duas protagonistas.

    Carol vale a pena por ser um daqueles filmes que marcam o espectador, seja através de boas atuações, de um roteiro bem escrito, ótima direção ou de uma melhores trilhas sonoras dos últimos anos. Isso tudo combinado faz da obra um dos filmes norte-americanos mais bonitos dos últimos 20 anos, desde As Pontes de Madison.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | O Cavalo de Turim

    Crítica | O Cavalo de Turim

    o-cavalo-de-turim-poster

    A narração em off que abre o filme extingue qualquer referência ao filósofo Friedrich Nietzsche. Afinal, não é ele o tema da obra. A última frase, mencionando a falta de informações sobre o cavalo, é exemplo. O Cavalo de Turim descreve – mais em imagens que em diálogos – o cotidiano do animal, de seu dono e de uma moça que, passados quase 30 minutos de filme, ficamos sabendo que é filha do camponês.

    A obra mostra o cotidiano extremamente miserável, austero e cheio de privações dos personagens. Todos os dias pela manhã, a filha se levanta, veste-se, vai ao poço, volta com dois baldes de água, cozinha duas batatas que pai e filha comem usando as mãos, alimentam o cavalo, limpam o estábulo, voltam para casa. E isso se repete por todos os seis dias retratados na tela, indicados por letreiros brancos num fundo preto – “Primeiro dia”, “Segundo dia”, e assim por diante.

    A fotografia é excepcional: a filmagem em preto e branco enfatiza a austeridade da vida dos personagens. Mas mesmo assim, as imagens são belíssimas. Cada fotograma poderia, sem esforço, ser “transformado” numa foto de qualidade acima da média. É, literalmente, fotografia em movimento. A trilha sonora, quase imperceptível e praticamente encoberta pelo som da ventania contínua, reafirma o cotidiano repetitivo dos personagens.

    Por filmar as mesmas ações repetidas vezes, o diretor consegue a cada dia mostrar algum detalhe a mais, um pouco mais de cada personagem e do ambiente em que vivem. Mesmo que tudo seja sempre igual – inclusive o clima inóspito e o vento incessante -, fatos externos à vida deles acabam afetando sua rotina. Desde a ida inesperada do vizinho – com seu discurso quase apocalíptico -, à sua casa, passando pela “visita” dos ciganos, o poço que seca, mas principalmente a debilitação do cavalo – que parece entregar-se à morte. E, aparentemente, sem outra possibilidade, a vida em torno deles é arruinada, sem que nenhuma ação contrária seja tomada.

    Justamente a falta de qualquer ação que permite ao diretor seu exercício de estilo. Há sim, uma razão para os planos extremamente longos e silenciosos. O próprio Tarr declarou que “não acredita nas palavras, e sim nas imagens, já que trabalha com cinema”. O filme é, em essência, sobre a imagem. Um puro exercício de cinema.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Os Dez Mandamentos: O Filme

    Crítica | Os Dez Mandamentos: O Filme

    poster-filme-os-dez-mandamentos

    Dada a importância narrativa da libertação do povo hebreu e seu apelo entre os fiéis, muitas obras retrataram Moisés em diversas épocas. O recente Êxodo: Deuses e Reis de Ridley Scott mostrou ao público uma versão mais realista da história, com um Moisés trocando o cajado característico de sua jornada por uma espada de ouro. Em 1956, Cecil B. DeMille, com seu Os Dez Mandamentos, narrou a história do profeta com tamanha beleza, produção e efeitos especiais impressionantes para a época que se tornou o clássico definitivo do relato bíblico. Outras produções menos pomposas logo surgiram, como a versão ítalo-britânica de Gianfranco de Bosio, A Terra Prometida – A Verdadeira História de Moisés. Com trilha de Ennio MorriconeBurt Lancaster no papel do emissário de Deus, a obra foi lançada como minissérie em seis episódios para a televisão e depois editada em versão de cinema com duração reduzida pela metade. Assim como a fita de Bosio, Os Dez Mandamentos – O Filme não foi inicialmente pensado para a grande tela, e talvez por isso tenha tantos problemas. Primeiro fruto de uma nova produtora dedicada a projetos para o cinema, a Record Filmes, a película sofre da inexperiência da empresa e também de seu diretor, Alexandre Avancini, que já trabalhou em outras novelas, mas iniciante na sétima arte. Como marco da primeira produção, não condiz com a expectativa de um bom filme.

    A obra é orientada pela estrutura narrativa tradicional da história de Moisés, encontrado em um cesto à beira do rio Nilo pela filha do faraó e educado na corte como príncipe. Mesmo que siga uma sequência cronológica mostrando a vida do profeta, um recurso didático para situar o público em sua trajetória, sobram cortes bruscos em eventos antes da descoberta da origem do protagonista. A interferência da montagem é tamanha que afetou o encadeamento das cenas, perdendo a percepção lógica dos acontecimentos. Sem planejamento, transformou-se em um recorte de sequências que só estão ali para demonstrar o poderio cinematográfico de apelo visual dispendioso investido pela emissora, como as cenas em câmera lenta, utilizadas em exagero no início do filme, e os efeitos especiais em cenas chave, como a das 10 pragas e da icônica abertura do Mar Vermelho.

    os-dez-mandamentos-elenco

    Interpretado por Guilherme Winter, Moisés descobre ser escolhido por Deus para libertar os israelitas da tirania do domínio egípcio. Winter não transmite credibilidade e parece estar o tempo todo discursando para um público distraído. Suas falas são pomposas e passam longe da humildade característica do profeta. À medida que o filme se desenvolve, porém, sua atuação melhora, demonstrando que o ator ainda não havia encarnado no personagem de fato. Uma falha que, se não perceptível em uma novela de 176 capítulos, é ampliada no filme de duas horas.

    A maioria dos personagens apresentados é burlesca, exagerada na dramaticidade própria da linguagem da telenovela. Sérgio Marone, o Ramsés, o irmão egípcio do líder hebreu e agora rei, não encontra um tom de atuação: ora condescendente com a figura fraterna, ora perdido com a responsabilidade de governar. Embora o ator tenha nuances, ele não as usa de modo coerente com o personagem. Por outro lado, a atuação de Paulo Gorgulho, que interpreta Amrão, pai de Moisés, sobressai-se perante os demais mostrando-se mais porta-voz da fé que integra o povo hebreu que o próprio filho, liderando os iguais a acreditar na libertação e no retorno a Canaã. Representado por uma voz grave e soturna do além, o conceito de Deus no filme de 1956 de DeMille é mantido, o que comprova que, embora a novela tenha um projeto próprio de adaptar uma história clássica, ainda remete ao que o público já conhece. Ambas reverenciam a entidade sábia e revoltosa do Velho Testamento, escrito em uma época na qual creditavam os infortúnios à divindade dominada pela fúria e justiça divina.

    Os Dez Mandamentos – O Filme, cujo final de semana de estreia já somou mais de dois milhões de ingressos vendidos, não soube transportar uma mídia a outra e parece agradar ao público religioso pela carga popular que a novela sustenta. Levado pelo sucesso do folhetim, que se tornou referência nacional como a primeira telenovela baseada em uma história bíblica, o filme no entanto carece de qualidade cinematográfica e técnica, provando que não basta investir milhões em efeitos especiais quando o básico – montagem, continuidade, ou simplesmente edição – torna-se mero figurante no processo de fazer cinema.

    Texto de autoria de Karina Audi.

  • Resenha | A Pianista – Elfriede Jelinek

    Resenha | A Pianista – Elfriede Jelinek

    A Pianista - Elfriede Jeline

    Erika Kohut tem 36 anos e vive em um pequeno apartamento com sua mãe idosa. Apesar de ter sido preparada toda a vida para se tornar uma grande concertista, não se destacou o bastante na música e passou a trabalhar como professora de piano em um conservatório. A mãe, única figura de autoridade, considera a causa desse fracasso a vaidade de Erika e procura através de uma existência austera lapidar a filha para sublimar essa falha.

    O motor da história em A Pianista, escrito pela vencedora do Nobel Elfriede Jelinek, é a violência, não a violência óbvia e demasiadamente retratada em outros meios, mas a sutil e destruidora violência psicológica que movem nossas relações sociais. A mãe nem mesmo permite a Erika mínimas escolhas do cotidiano, proibindo-a de usar os vestidos que compra em pequenas rebeldias. Todo o dinheiro da casa é controlado pela mãe sob a promessa de proporcionar as duas um apartamento maior. No espaço em que convivem, a mãe cede espaço em sua própria cama para Érika, pois o quarto dessas não é mais que um mero depósito, sem trancas..

    Porém, se dentro de casa Erika é extremamente submissa, em seu trabalho ela é a figura de autoridade. A professora é sobretudo rígida com seus alunos e esconde sua crueldade atrás da intenção de aprimoramento técnico. a personagem acredita que se a professora tão superior em conhecimentos não conseguiu alcançar o estrelato, nenhum daqueles que a procuram como mestra o merecem. Pequenas crueldades pautam o seu dia a dia, apoiada na crença que sua educação artística a faz superior e o incômodo de conviver com o populacho lhe delega o direito de ferir.

    Suas ilusões a respeito de sua superioridade contrastam com seus hábitos autodestrutivos. Na ânsia de sentir, Erika se fere, e se coloca constantemente em perigo. Anda por lugares ermos, frequenta cabines de shows eróticos onde reconhece o perigo de ser violentada. Desenvolve gosto por observar casais fazendo sexo em lugares públicos. Sob a fachada de mulher respeitada, esconde um desejo pela degradação.

    A tão almejada degradação encontra Erika quando um de seus alunos desafia-se a seduzi-la. O esforçado Walter Klemmer está ciente de que sua professora está no crepúsculo de sua juventude, e a considera uma presa fácil, uma escolha inteligente para uma relação passageira. À medida que a professora oferece alguma resistência, o orgulho de Klemmer faz com que ele haja como um apaixonado.

    A narração em terceira pessoa nos dá uma visão total do que pensam e sentem esses três personagens, e de quais são suas motivações. Apesar deste estilo narrativo poder provocar algum distanciamento, a narrativa é demasiadamente subjetiva. Ainda que personagens causem certa ojeriza por conta da intensidade com que  apresentam suas fraquezas e transgressões, seus equívocos forçam uma identificação com o leitor que perdoa as neuroses de cada um dos personagens justificando-as perante o cenário apresentado.

    A Pianista foi publicado em 1983. Porém, a forma como a autora desvela as perversões de seus personagens sem pudores ainda perturba. A história ágil se sustenta principalmente pela força do choque, e em certos momentos pela quebra de nossas expectativas. O livro também conta com uma adaptação para o cinema lançada em 2001 e dirigida por Michael Haneke. No Brasil, o filme fica conhecido como A Professora de Piano, com Isabelle Rupert no papel de Erika Kohut.

    Compre: A Pianista – Elfriede Jelinek

    Elfriede Jelinek

    Mariana Guarilha é devota de George R. R. Martin, assiste a séries e filmes de maneira ininterrupta e vive entre o subconsciente e o real.

  • Resenha | Coração das Trevas

    Resenha | Coração das Trevas

    CoracaoDasTrevas-Conrad-Anyango-Mairowitz

    O ar denso da neblina esconde o terror do desconhecido, onde vivem criaturas sem nome e esperança, à beira da agonia. Nas margens do rio, a violência de quem sofreu a alma arrancada sem dar licença. No coração das trevas não habitam seres humanos, mas humanos que sobrevivem.

    Publicado pela editora Veneta, baseado no romance de Joseph Conrad, com roteiro de David Zane Mairowitz e ilustrações de Catherine AnyangoCoração das Trevas apresenta em uma graphic novel o diário de bordo de Charlie Marlow, capitão de um barco a vapor que conta a própria história na trama. Anos antes, viajou com destino à capital da República do Congo encarregado pelo transporte de marfim, na costa do rio Congo, cenário da aventura, relatando as impressões pessoais sobre o itinerário num misto de fascinação pelo horrendo e o medo da morte. Além do objetivo mercantil, o capitão deve encontrar o chefe de posto Sr. Kurtz, um dos funcionários mais brilhantes e lucráveis da companhia, e para isso precisa adentrar o coração da selva africana. Assim, narra a peregrinação no longo e estranho caminho.

    Como uma narrativa moldura, em que uma história encontra-se dentro da própria história, o roteiro de Mairowitz utiliza-se das descrições do local para conduzir o leitor numa aventura amedrontadora em que se divide o mesmo assombro de Marlow. Mantendo a base argumentativa da trama, o estilo do texto de Conrad, porém, é restringido a balões que retratam o percurso relatado no texto original mas sem a mesma profundidade da novela. No entanto, como adaptação em quadrinhos de um livro canônico, de linguagem rebuscada e com uso demasiado de adjetivos e descrições, além da introspecção diante de uma situação limite, o roteirista consegue transmitir um pouco do tormento do protagonista durante a viagem.

    Os desenhos fantasmagóricos dão a nuance da obra, cujo uso de sombras e tons escuros esfumados mescla dia e noite, num estilo cru, como se o relato inspirasse uma falta de acabamento nas formas e detalhes. Inspirando originalidade, o personagem-narrador é fisicamente ilustrado por Anyango como a representação do próprio Conrad, que também viajou, anos antes, ao Congo na função de capitão de um navio. A ideia de simbolizar a imagem do próprio escritor nas ilustrações demonstra o poder metanarrativo da obra, enfatizando o caráter factual da trama e fazendo uma ponte de diálogo entre autor e sua própria composição. Marlow/Conrad dividem a mesma história no coração das trevas.

    coração-das-trevas-1

    Ao estilo de uma road trip, em que o percurso é mais importante que o destino final, o capitão avança na jornada seguido por escravos presos em correntes com armas apontadas para eles. Marlow diferencia o colonizador do colonizado, dizendo que, apesar dos estrangeiros enfrentarem toda a sorte de contrariedades no país, como o calor, a sede e a sujeira, ainda assim aqueles homens eram considerados mais dignos que o povo local. Tal é a desprezo pelos trabalhadores braçais que, ao contrário dos brancos, nenhum deles possui identidade, fala ou mesmo um retrato nas ilustrações que os remetesse a qualidade de seres humanos, mas sim a fantasmas cadavéricos perdidos e cansados.

    Ao encontrar Kurtz,  personagem lendário e famoso por seus grandes feitos, vê um homem fraco, convalecido e dominado pela loucura. O personagem é o retrato do imperialista ambicioso que busca, acima de tudo, o sucesso da companhia. A ironia se observa quando o maior funcionário, à medida que descobrem seu paradeiro, já não serve mais, visto que agora, louco e doente, não é mais rentável.

    Parte crítica, parte representação de um conceito europeu vigente no século XIX e início do século XX sobre o imperialismo e a escravidão, Coração das Trevas se traduz como um relato espectral do misticismo envolvendo locais longínquos sem a completa dominação da civilização ocidental. Através do recurso visual, a obra consegue transcender o imaginário sombrio contido no relato, demonstrando o talento da dupla Anyango e Mairowitz. Em capa dura e ótimo material gráfico, a graphic novel consegue com excelência homenagear um dos maiores cânones da literatura inglesa.

    Compre: Graphic Novel | Livro

    Texto de autoria de Karina Audi.

    coração-das-trevas-2

  • Crítica | Boa Noite, Mamãe

    Crítica | Boa Noite, Mamãe

    GOODNIGHTMOMMY_POSTER_EW

    Boa Noite, Mamãe é um filme independente, indicado pela Áustria para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2016. Vendido pelo marketing como um filme de terror  — com direito a letras escritas em sangue — ao estilo Invocação do Mal e seus afins. Mas sabe-se por meio de filmes como o sueco Deixa Ela Entrar que o cinema europeu vê o terror por um viés delicadamente diferente do cinema americano, trazendo um terror que raramente assusta, mas que angustia e fere.

    A trama se passa com uma família que vive em uma residência isolada, como uma espécie de retiro em meio a plantações de milho. Com um início bucólico e feliz, capaz de remeter a filmes como Conta Comigo, vemos os gêmeos Lukas e Elias (vividos pelos excelentes Lukas e Elias Schwarz)  brincando e explorando aquela região. Ousados e inteligentes, extraem daquele mundo tudo aquilo do qual ele dispõe. Após dias afastada por conta de cirurgias plásticas, a mãe (Susanne Wuest) volta para casa e não é reconhecida pelos filhos. De início não se sabe bem a origem de suas cirurgias, mas sua figura sempre filmada à altura de uma criança de nove anos é amedrontadora e horrenda por conta das ataduras, em um trabalho de maquiagem inteligente e capaz de fazer tanto com tão pouco. Rapidamente a relação entre mãe e filhos se mostra totalmente desestruturada, e ela, uma pessoa de gosto e posturas bastante duvidosas no trato com os meninos, ignora e chega ao cúmulo de negar jantar para um deles em determinado momento. O que cresce no espectador é a raiva armazenada, raiva que talvez toda criança sentiu de seus pais em algum momento.

    Com as indicações de culpas suprimidas e acidentes violentos, Lukas e Elias tornam-se convictos de que sua mãe na verdade não voltou, e incapazes de reconhecerem naquela figura os rastros de maternidade resumidos na linda canção de ninar que ouvem para se consolarem durante a noite. Partem então em busca da verdade sobre onde está sua mãe verdadeira, explorando os recursos de uma casa que parece não ser feita para crianças, com quadros da mãe em poses glamourosas e desfocadas, como representantes da vaidade adulta que tudo sabe e em nada pode ser questionado.

    Com uma cinematografia linda, estável e límpida, que utiliza o contraste entre luz e escuridão de maneira perfeita, novamente, Boa Noite, Mamãe mostra não ser um filme de terror, destoando da estética habitual do terror que esconde, que é repleto de “jumping scary” e filmagens amadoras formando uma estética pobre de realismo documental. Aqui, a mais terrível imagem é filmada de forma limpa e clara, apostando na crueldade de imagens e diálogos, e não de atos, como na cena em que na brincadeira de “Quem sou eu” a mãe não reconhece o seu personagem, para frustração dos gêmeos.

    A tese principal é exorcizar o ressentimento causado pelos pais e mães incapazes de dialogar e se abrirem com seus filhos, de serem claros, aconchegarem seus medos e identificar suas verdadeiras personalidades. Numa espécie de mimo abandonado, crianças crescem com perguntas ausentes de respostas, apesar de sua urgência e assim gerando seres patologicamente sozinhos e fechados em si.

    Desta forma, as relações, entre castigos e falas típicas de pais e filhos, ganham uma dimensão a mais devido à capacidade do filme de tensionar as pessoas na poltrona e “adultizar” as crianças que são no fundo a materialização exacerbada de um relacionamento familiar tipicamente ignorante e solitário tradicionalmente rompendo nos filhos, já futuros pais, irreconhecíveis entre seus descendentes, demonstrando que cafuné é muito diferente de carinho.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | Era Uma Vez em Tóquio

    Crítica | Era Uma Vez em Tóquio

    105706Era Uma Vez em Tóquio (Tōkyō Monogatari, Japão, 1953, Dir: Yasujirô Ozu) é considerada a obra-prima de Yasujirô Ozu, o seu filme mais famoso, muito provavelmente por conter mais atores, mais diálogos e uma mise-en-scène mais dinâmica comparada aos outros filmes do diretor.

    Um casal idoso viaja à Tóquio para visitar seus filhos e é ignorado por todos, exceto pela antiga nora que era casada com o filho deles que morreu. A posterior morte da matriarca volta a unir todos em uma última despedida.

    O roteiro do próprio diretor junto de Kôgo Noda, que trabalhou com Ozu na maioria dos seus filmes mais famosos, tem a estrutura simples e acerta ao focar no casal de idosos protagonistas e menos na sua relação com os filhos. Assim, vemos aos poucos a desconstrução da unidade familiar à medida que a relação com os filhos vai ficando mais distante.

    O grande tema do filme é a perda, tanto das relações familiares e das tradições, quanto de Tomi, a matriarca, que acaba morrendo no final da história. A perda também pode ser estendida às amizades da época da guerra que Shukichi até conseguiu rever alguns dos amigos na sua passagem por Tóquio, mas ficou pelo tempo.

    A atuação é uma das marcas de Era Uma Vez em Tóquio, ainda mais para quem não assistiu outros filmes do Ozu. É importante ressaltar que a direção de atores de seus filmes não deixa os atores imprimirem muitas emoções e mudanças de personalidade ao longo dos filmes. Ozu foi um dos que primeiro buscou o realismo no cinema, bem antes do movimento neorrealista italiano, portanto ele buscava reações mais naturais e menos catárticas.

    Chishû Ryû e Setsuko Hara voltam a trabalhar com o diretor, repetindo a ótima parceria depois do belo Primavera Atrasada, de 1949. Ryû interpreta o pai e consegue imprimir a alegria e a felicidade de rever os filhos no meio da angústia pela falta de tempo deles. Hara passa todo o mal que sente por desejar outros homens mesmo o seu marido já ter morrido. Chieko Higashiyama é a matriarca que, igual a Shukichi, passa alegria no meio da tristeza pela falta de tempo dos filhos.

    Mesmo podendo ser considerado um filme diferente na sua carreira, as principais características do diretor estão lá: a decupagem em Plano Geral da maioria dos planos, a direção de atores valorizando os tempos mortos na ação completa dos personagens (por ex, um senhor  bebendo o chá, a mulher varrendo o chão), os atores falam lentamente, paisagens como planos de  passagem, transição crua entre sequências e, claro, escolher uma história familiar que seja universal.

    A fotografia de Yûharu Atsuta, que costumava trabalhar com o diretor. O jogo entre preto e branco que podia ser uma das marcas do filme, que preferiu buscar o naturalismo da cena. A edição de Yoshiyasu Hamamura é cadenciada, mas tem ritmo lento, já que ele trabalhou com Ozu outras vezes. Os cortes dão independência a cada plano dentro do filme, cada unidade é plena dentro do seu corte.

    Era Uma Vez Em Tóquio é tido como um dos grandes filmes da história pela sua importância dentro do cinema neorrealista, mas também pode servir como chamariz para os outros filmes do diretor, que tem filmes tão bons e tocantes quanto.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | No Auge da Fama

    Crítica | No Auge da Fama

    o-TOP-FIVE-POSTER-570

    No Auge da Fama traz o famoso Chris Rock em uma jornada de descobrimento de sua própria arte. No papel de Andre Allen, um famoso comediante que iniciou sua carreira no stand-up comedy dos bares nova-iorquinos, migrou para o cinema com filmes de besteirol e hoje resolve que é hora de ser levado a sério em um filme histórico sobre a revolução haitiana. Ex-alcoólatra, tem como maior sucesso o filme no qual interpreta um urso policial. Preocupado em divulgar o filme que não fará mais dele uma piada, aceita ser acompanhado pela jornalista Chelsea Brown (Rosario Dawson) e assim mostrar seu “verdadeiro eu”.

    E é com essa mistura de humor nonsense com encucações artísticas sérias que Cris Rock volta a dirigir e escrever para o cinema. Em um filme profundamente biográfico, apesar de não usar seu nome, questões sobre relevância artística são levantadas com base na sua personalidade e trajetória artística já conhecida. O cenário é aquele onde o ator cresceu, a família histriônica de Todo Mundo Odeia o Chris. Tudo lá parece corroborar que Andre e Chris em alguma instância são Chris Rock.

    Na trama que acompanha o período pré-nupcial de Andre com a celebridade instantânea de reality show Erica Long (Gabrielle Union) numa clara alusão às irmãs Kardashian e afins, Andre vive uma crise não só na carreira, mas também uma crise pessoal que o impede de fazer aquilo que gosta e que o deixou famoso pelas desconfianças de sua própria capacidade como artista, enquanto sua noiva ganha sua vida expondo a própria privacidade e vendendo sua vida mesmo que não possua nenhum talento aparente. Sóbrio, já não se sente confiante em se expor ao público e então planeja se rever. O medo é de ser apenas aquilo que parecia no começo, como se fosse pouco.

    Já a personagem de Rosario Dawson representa o papel e impacto da crítica na vida do artista, que muitas vezes recorre a sensacionalismos ou simples raiva passiva, ou uma espécie estranha de incentivo nostálgico que faz com que aquele que ontem era o melhor de todos, hoje seja massacrado. Em certas nuances e temas, No Auge da Fama tem muitas das discussões apresentadas no filme Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) ao testar essa dinâmica estranha entre crítica e artista e os olhos do público sobre isso tudo. Da apelação capaz de provocar o público e abrir suas carteiras à necessidade de encontrar sua verdadeira arte.

    Feito para divertir, porém, Chris Rock apresenta um final muito mais otimista do que seu equivalente dirigido por Alejandro Iñárritu e se dispõe desde o começo a se reconciliar com este vendaval que atinge sua vida, e do qual inicialmente não pretendia sair por simplesmente aceitar ser aquilo que as pessoas esperam dele, ou o que ele acha que esperam. Como resultado de público e crítica favoráveis, este filme traz Chris Rock para uma luz nova, amadurecida e igualmente irreverente e contestadora, com um número incrível de participações super especiais, demonstrando todo o poder do carisma e inteligência deste artista.

    Compre: No Auge da Fama (Dvd | Blu Ray)

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | Straight Outta Compton: A História do NWA

    Crítica | Straight Outta Compton: A História do NWA

    Straight_Outta_Compton_poster

    Straight Outta Compton: A História do N.W.A. era um dos filmes mais aguardados pelos fãs de rap e de música alternativa em geral dos últimos anos, e conseguiu entregar o que prometeu: a cinebiografia de um dos principais grupos da história do hip-hop.

    Na metade dos anos 80, cinco jovens da cidade de Compton, Califórnia, se juntam e fundam o grupo de hip-hop N.W.A. e acabam se destacando no meio do cenário local, e depois nacional, com a proposta de músicas mais realistas, que retratam a rotina violenta das gangues e do tráfico de drogas. Assim nascia o gangasta rap.

    O roteiro de Jonathan Herman e Andrea Berloff, baseado na história escrita por ela, Alan Wenkus e S. Leigh Savidge, preferiu seguir a ordem cronológica dos eventos que levaram a formação do grupo de rap e o consequente sucesso local e nacional. No entanto, faltaram mais informações para ajudar na contextualização e dar ao espectador uma melhor compreensão da origem do N.W.A., de como eles se conheceram até o sucesso consolidado, entender como funcionava aqueles bastidores. As informações são brutas, jogadas. Faltou lapidar, deixar o roteiro mais didático. É nítido o descaso com a narrativa no início até a metade do filme. Uma ou outra cena também podem incomodar por causa do maniqueísmo desnecessário que acabou por dar um tom panfletário, como na cena da abordagem no estúdio de gravação e quando a polícia interdita o show.

    O roteiro evolui bastante quando começam as desavenças internas e Ice Cube e Dr. Dre deixam o grupo, enquanto Easy-E tenta segurar os outros junto do empresário. A ruptura através do bom personagem do Suge Knight e os bastidores da Death Row ajudaram a elevar os conflitos, e as rápidas aparições de Tupac e Snopp Dogg deram um ganho substancial de qualidade ao filme. Apesar de centrar boa parte da narrativa na figura de Easy-E, um grande acerto foi não criar protagonistas, deixando o grupo como um personagem enorme e disforme, um Frankenstein cheio de conflitos. A conclusão foi satisfatória: a morte de Easy-E não representou somente a morte do grupo, mas sim de uma era. O gangsta rap precisava acabar ali para evoluir e evoluiu.

    CapturaaaaaaarOs atores que interpretaram e os integrantes reais do N.W.A. Mais informações aqui.

    Nenhuma das atuações foi memorável, porém nenhum ator comprometeu o personagem em algum momento. O filme poderia ter um bom diferencial dramático, mas acaba preferindo se segurar no roteiro. Dos destaques, O’Shea Jackson é a cara do pai, Ice Cube, e o bom Paul Giamatti consegue dar qualidade sempre que aparece.

    Como diretor, F. Gary Gray podia ter exigido um melhor tratamento para o roteiro. Seu domínio da narrativa visual não condiz com o material que recebeu, e o resultado final acaba ficando incompleto. Faltou uma direção de atores mais atenciosa. É nítida a sua negligência com o elenco principal.

    A fotografia levemente estilizada de Matthew Libatique ajuda na retratação da época. O ótimo fotógrafo, de filmes como Cisne Negro e Réquiem Para Um Sonho, conseguiu dar qualidade à obra nas cenas de festas e dos shows.

    A edição de Billy Fox e Michael Tronick poderia ter cortado cenas desnecessárias, e dar mais ritmo ao filme teria tornado-o melhor. No geral, a edição foi satisfatória: como a fotografia, ela se destaca nas cenas de festas, de shows e nas cenas da Death Row.

    Straight Outta Compton: A História do N.W.A. vale a pena para quem é fã do universo musical. Para quem gosta de rap, é essencial. Apesar das críticas, o filme acaba funcionando no quadro geral.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Review | Fargo – 1ª Temporada

    Review | Fargo – 1ª Temporada

    fargo_poster

    Um dos trabalhos mais ingratos que se pode ter no mundo do entretenimento é cutucar um clássico, seja por meio de reboot, remake, ou transposição para uma outra mídia. Como então mexer em Fargo, o excelente filme dos irmãos Coen, que aqui produzem a série. Fargo, o filme, conta a história de uma pequena cidade na Dakota do Norte onde uma série repentina de assassinatos é desencadeada pelo acordo desastrado de um vendedor de carros que planeja sequestrar sua esposa e assim conseguir o dinheiro do resgate de seu detestável sogro, mas que precisa lidar com as adversidades e inteligência determinada de uma policial grávida.

    E assim, tão inesperado quanto os acontecimentos da série, Fargo se estabelece como a melhor série de 2015, não só por concorrer a diversos prêmios, mas principalmente por conter aspectos cinematográficos com qualidade vista apenas em alguns poucos longas-metragens, quanto menos na TV.

    Simplesmente tudo parece estar no lugar, e o grande mérito desta ousadia está em no criador e roteirista da série Noah Hawley, que dirige o primeiro episódio e roteiriza os demais e faz um trabalho irrepreensível.

    Fargo se passa na pequena Bemidji, em Minesota, e conta a história de Lester Nygaard, brilhantemente interpretado por Martin Freeman (O Hobbit, e a série Sherlock Holmes), um agente de seguros inseguro e passivo, sem força para revidar a qualquer ataque que seja, inclusive de sua esposa que vive a compará-lo com seu irmão mais novo e bem-sucedido. Tragado pela cidade e sua mediocridade, Lester parece estar sempre à beira de um colapso emocional. Frágil, em certo dia reencontra um antigo colega da escola o qual relembra os episódios de bullyng que praticou contra Lester, bem como um breve enlace amoroso com sua esposa. Com medo, Lester acaba se machucando, e no hospital se depara com uma figura estranha com olhos de tubarão e personalidade cínica chamada Lorne Malvo. O personagem interpretado por Billy Bob Thornton (Papai Noel às Avessas, Na Corda bamba), magnético como sempre.

    Rapidamente numa conversa, Lester se abre e deixa em aberto a estranha proposta de auxílio através do assassinato de seu agressor. Mas este pequeno encontro desencadeia uma série de mortes que ultrapassam os limites geográficos.

    Tudo isso é investigado pela ainda jovem, mas brilhante Molly Solverson (Allison Tolman), que desata os nós e relaciona Lester com Lorne Malvo. Tudo isso com bom trabalho policial e inteligência, mas sem jamais ser levada a sério pela atrapalhada força policial da cidadezinha.

    Como uma extensão do filme original, a série estabelece a região e Fargo e seus condados como uma espécie de fenda moral, um local onde aquilo que pode dar errado certamente dará errado. Um cotidiano absorvente que por algum motivo se mostra quase surreal, inclusive ao analisar a cadeia dos acontecimentos. Outra característica trazida do filme é que existem pessoas extremamente lúcidas carregando a trama, permitindo que não haja qualquer tipo de raio de manobra para que o roteiro não subestime a força de sua narrativa e o espectador.

    A escala crescente de violência funciona como motor da trama, que mais do que envolver algum mistério, ou coisa assim, fala do desenvolvimento dos personagens, todos frente àquelas situações. Assim como o filme que deu origem à série não é sobre o que irá acontecer, mas sim como irá acontecer. Sem recorrer à pirotecnia ou tramas rocambolescas, tudo é relativamente simples de acompanhar, mas feito de forma a se comunicar continuamente com o espectador que poderá vir a ter empatia com qualquer um daqueles personagens em seus dilemas morais, pois exatamente todos os personagens da trama são muito bem escritos.

    Outro destaque está na escolha dos diretores, com destaque nos episódios 7 “Who Shaves the Barber?” na direção, que traz um humor inspirado e envolvente, bem como soluções de cena geniais; para o episódio 9 “A Fox, a Rabbit, and a Cabbage” que consegue alavancar ainda mais uma história que em nenhum momento empalidece e segue em frente com determinação ímpar, algo que pode enfraquecer no caso de algum ponto anti-climático. Aqui a série se coloca em um estado introspectivo, mas mantendo a força de sempre. E por fim, o Season Finale “Morton’s Fork“, que consegue amarrar toda a trama de maneira simples e extremamente recompensadora, novamente demonstrando que a luta moral com o acaso é parte inerente daquela região e a aura quase surreal da neve intensa, onde o clima inóspito marca a população que se perdeu no tempo e ainda acredita ser tão pura quanto a neve, mesmo que constantemente manchada pelo vermelho do sangue.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | Pasolini

    Crítica | Pasolini

    Pasolini 1

    Há uma conexão peculiar a ser observada entre os cinemas de Pier Paolo Pasolini e de Abel Ferrara. Pasolini, cria da segunda geração do neorrealismo italiano, inicialmente poeta, seguia o que chamava de cinema de poesia, onde filmava símbolos, ideias, referências e ideais com pouco compromisso com a realidade, preservando as regras do jogo de sua própria razão, alternando entre o lírico e o lúdico para questionar os elementos sociais italianos. Tal ideologia o levou a filmar disparidades, de Saló ou 120 Dias de Sodoma até Édipo Rei, e de alguma forma todos pareciam se completar e complementar naquele universo “pasolinesco” criado pela figura complexa que foi Pasolini, um dos grandes cineastas da Itália nos anos 70, que encontrou seu fim trágico em um assassinato bárbaro em 1975.

    Em contrapartida, Abel Ferrara surge no underground dos anos 70, profissionaliza o cinema policial nos 80 e se consolida como um dos grandes cineastas dos anos 90 através dos viscerais O Rei de Nova York e Vício Frenético, onde se preocupa em emergir naquelas que se tornariam a maior característica de seu cinema: o pecado e a redenção. Usando das duas pulsões inatas a qualquer ser humano, o cineasta meio americano, meio italiano sempre tenciona uma implicância em seus filmes. Por seus olhos, todos somos capazes de andar por dois caminhos estritamente opostos onde todos tentam sobreviver às tentações e se libertar de qualquer grilhão. Há uma fé componente no cinema de Ferrara, mas nenhum dogma. É uma linha tênue existencialista, com filmes muito mais focados nas escolhas do que na predestinação característica.

    Ser homem é vasto e perigoso. É um tratado em que Pasolini e Ferrara pensam de forma igual. Se o cineasta italiano naturalmente filmava a prazerosa entrega ao desejo com o horror perverso do autoritarismo e do moralismo e só por si já era um flutuante por entre movimentos políticos e círculos intelectualistas, nobrezas e periferias, um saudoso provocador que encontrava preciosidade em fazer com que moralistas fossem para suas camas com olhos estalados, cutucando o povo e os fazendo (se) questionar, sendo o 8 ou 80 do “ame ou odeie”, então não há nada estranho que o encontro entre os dois cineastas acontecesse sem qualquer estranhamento. Na quarta colaboração de Abel Ferrara com Willem Dafoe (que encarna Pasolini), todas as polaridades do italiano são expostas. De um lado, temos as últimas horas do cineasta em sua autodestruição. Do outro, vemos o que seria o futuro: um novo filme após Saló, com Eduardo de Fillipo e o ator fetiche Ninetto Davoli.

    Não por motivo qualquer, a cinebiografia carrega um tom que parece ensaiar o diretor italiano. Inicialmente, o projeto de Ferrara era tão afundo na obra de Pasolini que o cineasta era mera inspiração para um filme estrelado pela atriz e roteirista Zoë Tarmerlis Lund, que interpretaria uma diretora vivendo da mesma forma que Pasolini. Seria a segunda parceria com o diretor americano. Anteriormente, a atriz já havia trabalhado no roteiro de Vício Frenético. O projeto foi frustrado pela infeliz morte da atriz. Dados os fatos, o filme assume uma narrativa episódica, recheada de momentos que não se enveredam pela história principal, mas partem dela para criar momentos delirantemente visuais em algum tipo de homenagem ao cineasta italiano, usando de algumas das marcas registradas do diretor, como os atores-fetiche, narrativas simbólicas e histórias deslocadas dentro de histórias. Se estende uma série de parábolas “pasolinescas”.

    Ferrara vai atrás de um Pasolini caseiro, que acaba de chegar de sua viagem. Um Pasolini que reencontra família e amigos e que, em momento algum, veste a casaca do gênio ou do maldito. É um homem coloquial, seguindo sua história coloquial, com sua acalorada simplicidade de estar no mundo. Um homem como qualquer outro e, ao mesmo tempo, único. Após uma entrevista incompleta sobre Saló e uma advertência familiar para que pare com as polêmicas cinematográficas provocativas,, ganha sua queda pelo garoto de programa que, momentos depois, assassina o diretor com mais um grupo de homofóbicos. Pasolini em todo tempo se mostra sincero no que deseja e ácido no que questiona, tomando rumos próprios com coragem e com uma intolerante e variável rotina. Torna-se a dizer mais uma vez: Pasolini era um homem comum, mas, ao mesmo tempo, único.

    Pasolini, como o próprio dizia, vivia de impulsos. Dizia não para si mesmo e não para o povo. Há uma recusa de qualquer drama fácil, de qualquer transgressão didática em nome de uma necessidade de um filme realista, que choque o público ao mostrar o choque da expressão contra a repressão quando o artista expõe sua obra. Entretanto, o medo da repressão nunca impediu nem Pasolini nem Abel Ferrara. Não há, em momento algum, uma separação entre carne e espírito e fantasia e realidade. Há apenas Pasolini sendo quem é. E Pasolini, antes de ser qualquer obra de homenagem, é um discurso. Um discurso onde Ferrara fala sobre sua mais íntima criação em sua obra estritamente intimista.

    Texto de autoria de Matheus Mota.

  • Friamente Calculado | Nós temos a Bomba

    Friamente Calculado | Nós temos a Bomba

    FC2

    Recentemente, o “glorioso” país da Coréia do Norte declarou que conduziu com sucesso um teste militar com um dispositivo termonuclear. Isso mesmo: a Coréia do Norte tem uma bomba de hidrogênio. Repito: a Coréia do Norte tem uma bomba de hidrogênio.

    Kim Jong-unKim Jong-un: líder da Coréia do Norte e única pessoa gorda de todo o país.

    Depois dessa declaração eu considerei certas questões:
    1 – Sendo que a população norte-coreana é uma das mais pobres, alienadas, malnutridas e oprimidas do planeta, como é possível que eles tenham desenvolvido um artefato de alta tecnologia nuclear se nem sequer dominaram a tecnologia dos automóveis?

    2 – Porque os norte-coreanos são tão loucos?

    3 – Qual a intenção do Governo Norte-Coreano com esse tipo de declaração?

    4 – Seria esta uma estratégia do “querido líder”, Kim Jong-un, para aumentar a moral da sua população desnutrida e torturada?

    5 – Onde está Dennis Rodman?

    Após cinco minutos de profundas elucubrações geopolíticas, cheguei a conclusões chocantes:

    1 – Eles estão blefando. A Coréia do Norte não tem uma bomba de hidrogênio e dificilmente terá uma no futuro próximo. Se eles tiverem fogos para o São João desse ano já será um grande avanço.

    2 – O povo norte-coreano não tem culpa, eles são tão alienados quanto o governo quer que eles sejam. Ninguém contraria o que o “querido líder” diz, sabendo ou não que é um monte de bobagem. Se Kim Jong-un declarar amanhã que seu exército desenvolveu rifles que disparam raios de puro ódio concentrado para matar os imperialistas americanos, o povo vai acreditar e vai querer saber quando eles vão desenvolver rifles com mais ódio ainda.

    3 – Considerando que eles já fizeram isso no passado, inclusive ameaçando os EUA, o que eles querem realmente é abrir um diálogo com o Ocidente. E eles precisam de dinheiro para manter o “paraíso” que é aquele país… A Coréia do Norte é o equivalente internacional daquele nosso primo alcoólatra, que em uma reunião de família enche a cara, ofende todo mundo e começa uma briga, para depois, quando a festa termina, ficar em um canto chorando e pedindo dinheiro, porque as coisas estão complicadas na vida dele.

    4 – Claro que não. Kim Jong-un é um monstro e não se importa com o povo. Aliás, foda-de Kim Jong-un!

    5 – Eu não quero saber a resposta para isso.

    Dennis_RodmanDennis Rodman: fazendo o que ele faz (?).

    Mas isso é irrelevante. Porque depois dessa declaração incrível do Governo Norte-Coreano, ao invés do mundo todo se unir em uma longa e histérica risada, os membros do Conselho de Segurança da ONU se reuniram para discutir qual seria a abordagem mais segura para lidar com essa situação. Foi nesse momento que eu aprendi a parar de me preocupar e comecei a amar a bomba.

    Vamos analisar isso: se um país como a Coréia do Norte consegue deixar as potências mundiais preocupadas com um blefe vagabundo desses…. Qual país não poderia fazer o mesmo?

    Digamos, hipoteticamente, que a presidente Dilma em uma reunião da ONU, dissesse que os brasileiros desenvolveram uma arma nuclear… com a energia dos ventos. Seria ridículo, não é mesmo? Mas considerando a importância que deram a ameaça norte-coreana eu não ficaria surpreso se as Forças Armadas dos EUA entrassem imediatamente em DEFCON 2 e Donald Trump declarasse que os malditos mexicanos do Brasil deveriam ser deportados.

    Isso abre um precedente interessante na política internacional. Qualquer pessoa, empresa, ou país poderia fazer o mesmo tipo de ameaça idiota contando com o medo irracional do resto do mundo. Qualquer um poderia fazer isso, até mesmo um site… Hmm.

    Queridos leitores,

    Eu, The Nindja, amado e querido líder supremo do site vortexcultural.com.br, o maior portal de conteúdo inútil e ilegível da internet, venho declarar que nós possuímos uma bomba de hidrogênio. É verdade, e temos imagens incontestáveis para provar isso:

    FaggyPablo-minFaggy Pablo: a primeira bomba de hidrogênio do vortexcultural.com.br

    Carinhosamente apelidada de Faggy Pablo, nosso artefato termonuclear foi desenvolvido e projetado por mim mesmo. Para construí-lo eu só precisei de um elástico, dois clips de papel, um chiclete e minha vontade implacável de destruir os imperialistas americanos. O dispositivo tem o potencial destrutivo de três mil bombas atômicas, ou um quintilhão de rojões “cabeça-de-nego”.

    Nossas exigências são simples.

    Primeiro: queremos que nosso site receba o devido respeito. Não é porque só produzimos dois podcasts por ano e temos 4 ouvintes fiéis que devemos ser motivo de chacota para a podosfera internacional. Não é porque só falamos de filmes iranianos que ninguém assiste que devemos ser desconsiderados pelo resto da Internet. Aliás, deveríamos ter o mesmo reconhecimento (e lucros) que o jovemnerd.com!

    E chega dessa mania de tirar sarro do analfabetismo funcional do Filipe Pereira. Aquelas “críticas” são o melhor que ele consegue fazer, pessoal.

    Segundo: exigimos a completa e absoluta destruição dos Estados Unidos da América. Nós acreditamos firmemente que nenhuma espécie de progresso seja possível no Universo enquanto esse governo corrupto, genocida e cristão exista. Aceitamos a entrega da cabeça decepada de Barack Obama pelo correio (usem Fedex, se for possível).

    Terceiro: nós queremos um bilhão de dólares, trocados em moedas de dez centavos.

    Esperamos que nossas exigências sejam atendidas até a próxima sexta-feira. Lembrem-se: nós temos uma bomba H e não temos medo de usá-la. A qualquer momento Faggy Pablo pode explodir e ninguém vai gostar de ver isso.

    Isso é tudo. Obrigado.

    Texto de autoria de “The Nindja”.