Autor: Vortex Cultural

  • Crítica | Zodíaco

    Crítica | Zodíaco

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    Assassinos seriais na história dos EUA existem aos montes. Cada um mais complexo do que o outro. O século XX, por ter sido o século da massificação (inclusive da mídia), trouxe para a população a espetacularização de eventos que antes eram confinados a círculos restritos. Se antes uma série de assassinatos em uma comunidade rural (como retratado no excelente A Fita Branca) ficava restrita a ela, no país da classe média e da informação, a produção de notícias e a reprodução de assassinos, que tinham vontade de aparecer e passar uma mensagem, também cresceram exponencialmente. Junto a esses casos, cresceram também os filmes do gênero, que tentavam reconstruir o passo a passo da investigação policial no percalço do assassino, às vezes tentando compreender o que havia por trás de pessoas tão perturbadas a ponto de cometerem tais atos.

    Dentro desse contexto, um dos casos mais curiosos foi do assassino que se auto intitulou “Zodíaco” e que cometeu seus crimes nos EUA entre as décadas de 60 e 70. O que torna seu caso tão emblemático é, além do assassino usar códigos publicados em jornais para chamar a atenção e ver se alguém conseguiria capturá-lo através deles, o fato de ele nunca ter sido pego. Dentro desse frenesi de teorias a respeito de quem fora esse assassino e as razões por trás de seus atos, David Fincher adaptou o livro de Robert Graysmith, cartunista, jornalista e escritor que investigou a fundo o caso e que no filme é interpretado por Jake Gyllenhaal. Também no  San Francisco Chronicle trabalhou com Graysmith o jornalista Paul Avery (Robert Downey Jr.). No comando da investigação policial estavam os policiais locais David Toschi (Mark Ruffalo) e William Armstrong (Anthony Edwards), que são chamados após um assassinato de um taxista, mas cujas evidências apontam para algo mais complexo do que parece.

    Com aproximadamente três horas de duração, Zodíaco consegue entreter o espectador, que é preso nessa cadeia de acontecimentos e descobertas que vão se desdobrando, ao mesmo tempo que contradições aparecem, criando-se dúvidas enquanto surgem certezas. A história possui três atos distintos, onde os dois primeiros focalizam a evolução de Zodíaco como assassino e instigando as autoridades a investigá-lo, à medida que a dupla de policiais Toschi e Armstrong segue em sua busca, lidando com toda a dificuldade do sistema legal para isso. O terceiro ato volta-se para a jornada pessoal de Graysmith e sua obsessão em descobrir a identidade do assassino, o que terá um alto custo em sua vida pessoal.

    Robert Graysmith é um tímido e introvertido cartunista do San Francisco Chronicle e que adora quebra-cabeças. Quando as primeiras cartas de Zodíaco são recebidas pelos principais jornais da Califórnia, ele tenta compreender as pistas e o fenômeno por trás do assassino, mas é tratado com desdém por seus colegas. A novidade e complexidade do caso são tantas que os órgãos policiais, a imprensa e grande parte da sociedade não conseguem compreender o que está acontecendo, o que irá contribuir para o assassino permanecer solto por todo este tempo. A falta de diálogo entre as divisões, a intensa burocracia e a guerra de egos são fatores determinantes dentro da investigação e acabam por todo o instante a atrapalhá-la.

    Após, atrair a curiosidade de Avery, Graysmith começa a investigar, em companhia dele, algumas das pistas deixadas pelo assassino, tentando encontrar um padrão e, assim, tornar mais fácil sua identificação. Porém, nada se encaixa. Suas vítimas mudam, assim como a hora, o dia e o tipo dos assassinatos cometidos, para o desespero do metódico desenhista. Tamanha dificuldade acabará por levar Avery à exaustão mental, e, após ser ameaçado de morte por Zodíaco, o personagem acaba por se retrair completamente da sociedade, tornando-se jornalista de publicações pequenas.

    Passam-se anos e a dupla de policiais, Toschi e Armstrong, também toma rumos diferentes. Enquanto Toschi permanece obcecado com o caso e sofrendo pressões internas, Armstrong decide deixar tudo de lado e pede transferência para executar trabalhos internos, para a decepção do parceiro. Passada quase uma década após o aparecimento de Zodíaco, Toschi e Graysmith se unem extraoficialmente para tentar aparar arestas e dar um fechamento à investigação de forma definitiva, causando a quase completa exaustão mental de ambos, especialmente de Graysmith.

    Apesar de o final do filme não se resolver por completo, ao deixar o espectador com a mesma sensação que o público tivera ao acompanhar o caso (já que ele nunca foi resolvido), toda a trajetória de investigação é feita de forma meticulosa, característica marcante do cinema de Fincher. A reconstituição material da época, desde os carros, as posições dos corpos, os penteados e roupas das vítimas, as notícias de jornal e TV, além de todo o frenesi causado por Zodíaco na época, contribuem para dar ao filme uma aura quase documental, a ponto de fazer com que o espectador se sinta na pele de Graysmith, querendo saber cada vez mais sobre Zodíaco. Após ver o filme, uma busca no Google pela história do assassino e dos personagens se torna irresistível. Também se torna quase que necessário assistir à obra mais de uma vez, pois, a cada revisão, conseguimos perceber uma nova camada dentro daquele mundo e da investigação. Sentimo-nos mais próximos de saber a verdade, lado a lado dos personagens e suas teorias.

    Mais do que um filme sobre um serial-killer, Zodíaco mexe fundo no imaginário coletivo de uma humanidade que havia acabado de entrar em uma sociedade de consumo e informação de massa. A avalanche de assassinos seriais que os EUA enfrentariam nesse período não é mera coincidência, pois todos nós somos atraídos pelo que há de mais sombrio na nossa natureza. O comportamento coletivo em cima desse fenômeno raramente é racional; a mídia o usou largamente e ainda o usa para lucrar em cima de acontecimentos como esses. A sociedade dos EUA, com sua obsessão por armas, violência e a retidão moral, consegue produzir fenômenos únicos que suscitam diversas análises e entendimentos. O serial-killer se torna, então, um desses fenômenos dentro da cultura pop. Filmes como Zodíaco, ao invés de sensacionalizar o evento, nos ajudam a compreendê-lo de maneira sóbria e séria. Em uma época de tamanha passionalidade, tais obras são sempre bem-vindas.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Do Terror aos Monstros: O Legado da Universal

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    Considerada a época mais favorável aos estúdios, a era de ouro dos anos 30 permitiu que uma grande quantidade de filmes de diversos temas fosse feita, como as aventuras de Errol Flynn, os filmes de máfia de James Cagney, os musicais de Deanna Derbin, os melodramas de Betty Davis e os filmes de monstros que a Universal produziu entre 1923, com O Corcunda de Notre Dame, e 1956, com À Caça do Monstro.

    Para se entender como atuavam os estúdios, é necessário compreender o período. Os primeiros anos após a Primeira Guerra Mundial acabou fazendo com que a Europa voltasse a si para a sua reconstrução e deixasse de lado a hegemonia mundial de diversas indústrias. Esse vácuo foi rapidamente preenchido pelos americanos, que passaram a liderar vários segmentos desde então. Para também passar a liderar o cinema, tiveram que acelerar o processo de verticalização da indústria dos anos 10, em que a mesma empresa produzia, distribuía e exibia os seus filmes. Este processo, aliado à rápida industrialização do país e ao vácuo europeu, permitiu o alcance mundial do cinema norte-americano nos anos 20.

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    Com a liderança em mãos, e cada vez mais contando com diversos profissionais europeus, a era de ouro dos estúdios passou a acontecer a partir dos anos 30, indo até o final dos anos 40 quando a legislação antitruste foi colocada em prática. Nesse período, os estúdios passaram a fazer o que foi chamado de “Studio System”, passando a lançar as estrelas de cinema e apresentar regras de comportamento. Boris Karloff e Bela Lugosi, por exemplo, não eram contratados por filme, mas sim assalariados da Universal.

    invisible_ray_67Bela Lugosi e Boris Karloff em O Raio Invisível (1936), um dos vários filmes em que atuaram juntos.

    Em tempos difíceis como a grande depressão, pode-se associar os filmes da Universal com a época: os monstros dialogam com os fantasmas do desemprego e uma inflação instável. Não à toa, uma das maiores influências para os monstros da Universal foi o expressionismo alemão, que, além do fascismo, também teve relação forte com a economia.

    fvLittle Europe, a cidade cenográfica usada em diversos filmes

    Os filmes alemães, responsáveis pela construção da narrativa e de uma estética de terror própria, foram decisivos para ajudar os diretores do estúdio a popularizar o gênero, como com O Fantasma da Ópera (1925), Drácula (1931), Frankenstein (1931), A Múmia (1932), O Homem Invisível (1933), A Noiva de Frankenstein (1935), O Lobisomen (1941) e O Monstro da Lagoa Negra (1954).

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    Os filmes sem monstros e que são igualmente interessantes são O Gato e o Canário (1927), A Casa Sinistra (1932), O Gato Preto (1934), O Raio Invisível (1936) e Sexta-Feira 13 (1940). O Homem Que Ri (1928) não sei se pode ser considerado filme de terror, no entanto entra como um dos mais importantes do período para a Universal devido principalmente à atuação de Conreid Veidt.

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    O Fantasma da Ópera (1925) recria a história de Gaston Leroux, trazendo Lon Chaney como o compositor maluco e desfigurado que se apaixona pela cantora Christine Daae. Apesar da narrativa simples, a impressionante atuação de Chaney é o grande diferencial.

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    Drácula (1931) eternizou o húngaro Bela Lugosi como o vampiro da adaptação de uma peça baseada no livro de Bram Stocker. O roteiro do filme, no entanto, poderia ter sido mais bem trabalhado.

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    Frankenstein (1931) consegue ser elevado a outro nível devido à direção de James Whale. A atuação do inglês Boris Karloff como o monstro é tão importante quanto o roteiro, igualmente baseado em uma peça de teatro inspirada na peça de Mary Shelley.

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    A Múmia (1932) traz de volta Boris Karloff como o sacerdote Imhotep, que é ressuscitado através de um pergaminho e vai atrás de uma jovem que ele crê ser a reencarnação do seu amor. A recriação do passado egípcio é um dos pontos altos do filme.

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    Em O Homem Invisível (1933) temos James Whale novamente na direção e com roteiro adaptado diretamente do livro de H.G. Wells. Claude Rains encarna o homem que descobre a invisibilidade e se torna louco, cometendo diversos crimes.

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    A Noiva de Frankenstein (1935) talvez seja um dos melhores filmes de monstros na continuação do filme de 1931. O cientista-médico Frankenstein é assediado pelo Dr. Pretorius para criar uma noiva para a criatura, interpretada pela inglesa Elsa Lanchester.

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    O Lobisomem (1941) tem o melhor roteiro dentro dos filmes de monstros, o único original dentre os grandes. A atuação de Lon Chaney Jr., filho de Lon Chaney, como Lawrence Talbot e o Lobisomem está em sintonia com a bela história de um homem cético mordido por um lobo e se transformando na figura folclórica do lobisomem.

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    O Monstro da Lagoa Negra (1954) encerra os grandes filmes de monstros com uma equipe de cientistas americanos que visita a Amazônia e é assediads por uma criatura pré-histórica.

    frankenstein_meets_wolfmanExemplo de um dos vários crossovers entre os monstros: Frankenstein Encontra o Lobisomem (1943) com Bela Lugosi como o monstro

    house_of_frankenstein_poster_06E o maior dos crossovers entre os monstros em A Casa de Frankenstein (1944)

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    | Edição em formato de Caixão

    Livro: Universal Studios Monsters: A Legacy of Horror

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Boyhood: Da Infância à Juventude

    Crítica | Boyhood: Da Infância à Juventude

    Crescer é uma das poucas experiências biológicas e cognitivas que une todos os seres vivos da Terra. Para os humanos, dentro de uma sociedade tão complexa, a tarefa é ainda mais complicada frente a tantos desafios que o mundo moderno impõe às crianças, por exemplo, em que cada uma vai reagir de forma própria a todos os estímulos, positivos e negativos, que recebe. Foi dentro dessa lógica que, 12 anos atrás, o cineasta Richard Linklater decidiu realizar um ousado projeto, o de filmar uma história sobre a vida de uma criança enquanto cresce até ela se tornar um adulto, mas utilizando com isso um ator só durante esse processo.

    Boyhood trata a vida de Mason (Ellar Coltrane), uma criança introspectiva que vive com sua Mãe (Patricia Arquette) e sua irmã Samantha (Lorelei Linklater), enquanto tem contatos esporádicos com o Pai (Ethan Hawke). Sua jornada pelo final da infância, adolescência e início da juventude nos será mostrada, assim como a de sua família e todas as situações que dali resultarão.

    Se o maior mérito desse novo e já cultuado filme de Linklater reside no conceito inovador por trás da filmagem, o mesmo não se pode dizer da história e dos personagens nela retratados. Ao focar Mason, a história tem problemas sérios de ritmo em razão de não conseguir imprimir na narrativa nenhum evento catalisador de mudanças na personalidade dele ou da família, ou mesmo o efeito disso em suas vidas. Apesar de passarem por várias dificuldades, como o convívio com novas famílias e padrastos com problemas de uso de álcool, nada parece afetar suas vidas de forma significativa.

    Mason é retratado com uma apatia irritante. A todo o instante, parece espectador do mundo para, de repente, já na juventude, saltar ao posto de filósofo do mundo contemporâneo. Por vários momentos, seus diálogos não representam nada. Há uma ocasião clara em que ele, adolescente, chega de uma festa e assume que fumou maconha e bebeu álcool com uma série de “sim” para a sua mãe, a qual aceita prontamente todas as respostas, e nada acontece. O mesmo quando ele está com uma turma de amigos discutindo mulheres, festas e bebidas como adolescentes comuns. Nenhuma pista estabelecida possui recompensa.

    Se Mason não garante emoção alguma, o mesmo não se pode dizer de sua família, em especial sua mãe, em bela interpretação de Arquette. Saindo da posição de mãe solteira com subemprego, a batalhadora que estuda e melhora de vida, suas más escolhas na vida pessoal contrastam com a ascensão na vida profissional, que garante uma melhoria de vida para ela e seus filhos (algo que o filme não explora em nada, como se o contexto social da família e do país não importassem). Com uma duração tão longa, de aproximadamente 2h45 minutos, tempo há de sobra para se desenvolver qualquer coisa que saísse da linha reta de emoções representada por Mason. Mas nada disso é feito, infelizmente.

    O pai de Mason, uma figura interessante, também é mal aproveitado. Apesar dos erros cometidos em sua vida, tenta dar o máximo de si ao educar os filhos, falando desde sobre o incômodo tema das relações sexuais na adolescência até conselhos sobre relacionamentos que não deram certo. Mas os diálogos não ajudam a tirar os personagens e suas relações do lugar comum e dos clichês do gênero.

    O que sobra em Boyhood são três horas de eventuais boas passagens e boas sequências de câmera, mas que não dizem a que veio. O hype em cima de sua produção parece explicar seu sucesso atual, e as relações ali representadas falam com os fãs de filmes indie e intimistas, os quais disfarçam a pobreza de seu discurso com momentos que simulam profundidade, mas que, na verdade, não representam nada. Caso houvesse ali uma escolha por um drama familiar clássico, mesmo que se às vezes derrapasse e fosse levado para o melodrama, ao menos teria sido uma escolha e haveria descarga de sentimentos com os quais poderíamos lidar. A obra infelizmente não é nem isso. São aproximadamente três horas de quase nada, mas muito bem disfarçadas.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Review | In The Flesh

    Review | In The Flesh

    in-the-fleshDe certa forma, na contramão do que ficamos habituados a reconhecer como “série de zumbi” – The Walking Dead sendo o exemplo mais recente – , In the flesh deixa de lado a luta pela sobrevivência travada pelos “vivos” e foca a sobrevida dos portadores da “Síndrome de Falecimento Parcial” (Partially Deceased Syndrome – PDS). Por algum motivo desconhecido, os mortos, em 2009, saem de suas covas num evento posteriormente chamado de “A ascensão” (“The rising”). Como quaisquer zumbis que se prezem, saem em busca de humanos vivos para se alimentarem. Enquanto milícias se encarregam de proteger as pessoas, descobre-se que os zumbis sofrem de um distúrbio neurológico que os impede de reproduzir certo tipo de células cerebrais. Descoberto o medicamento que controla essa alteração, os zumbis capturados são medicados, reabilitados e reintroduzidos na sociedade, sendo enviados de volta às suas famílias.

    Com roteiro de Dominic Mitchell e direção de Johnny Campbell, a série acompanha Kieren Walker (Luke Newberry), um adolescente parcialmente falecido, em seu retorno à casa dos pais, em Roarton. Vemos o constrangimento entre eles, sem saber exatamente como agir – principalmente os pais, Sue and Steve Walker (Marie Critchley e Steve Cooper), oscilando entre a alegria de ter o filho de volta e o receio devido à sua condição. E vemos o estranhamento deles com sua aparência – os zumbis são instruídos a usarem lentes de contato e maquiagem para ficarem mais parecidos com os vivos. E conhecemos Jem Walker (Harriet Cains), irmã de Kieren, que, membro da milícia local, não faz qualquer esforço para esconder seu asco e sua desaprovação pelo retorno do irmão.

    É interessante perceber como reações semelhantes em relação aos zumbis são retratadas de formas quase opostas pela família de Kieren e de Bill Macy (Steve Evets), o comandante da milícia. Se, por um lado, os Walker se esforçam por reintroduzir Kieren no cotidiano da família, tentando encará-lo como o portador de uma doença e não como um monstro em potencial, Bill, ferrenho defensor da cidade contra os “rotters”, cujo filho retorna ao mesmo estado que Kieren, apenas vê defeitos e ameaças nos outros, preferindo agir como se nada tivesse acontecido. É agoniante a forma como ele se autoengana sobre a condição do filho. E, por seu status na cidade, ninguém se atreve a contradizê-lo – qualquer semalhança com “A roupa nova do rei” (não) é mera coincidência.

    É óbvio que, apesar de toda a qualidade do roteiro, a primeira temporada não está isenta de alguns defeitos e furos. Mas nada que atrapalhe a imersão no universo da história. Possivelmente, o que mais incomoda o espectador são alguns fatos “jogados” na história sem conexão aparente com nada, como o “esquecimento azul” ou a seita de zumbis. Mas principalmente incomoda o fato de a personagem Amy Dyer (Emily Bevan) entrar sem mais nem menos na vida de Kieren – e também sair dela sem muitas explicações. O que se salva é que a personagem é cativante, apesar de aparentemente não ter razão de estar ali. E, depois de Newberry, Bevan é a melhor performance da série.

    À semelhança de Sherlock e Black Mirror, a primeira temporada tem três episódios com duração aproximada de uma hora cada um. E, assim como nas duas séries citadas, essa opção garantiu a ótima qualidade da temporada, agarrando o leitor desde a sequência inicial e mantendo-o preso à história até a cena final. Pena que não mantiveram essa escolha na segunda temporada, com seis episódios. A qualidade do roteiro decaiu e há várias inconsistências em relação à primeira temporada.

    Tem-se a impressão de que a série havia sido “pensada” apenas para uma temporada e, devido ao sucesso, uma segunda foi logo engatada já sem tanta preocupação com a qualidade nos detalhes. Além disso, os questionamentos sobre preconceito, minorias, (in)tolerância foram reduzidos a uma “caça às bruxas”, que inclui tolhimento da liberdade de ir e vir, além de trabalho compulsório – para não dizer forçado. E essa alteração de abordagem fica personificada em uma parlamentar desconhecida que aparece em Roarton sem ter sido chamada e se arvora como a autoridade máxima da cidade. Por outro lado, a motivação dos portadores passa a ter um enfoque bíblico, com ares de profecia, ao buscarem “O primeiro” para darem início à Segunda Ascensão. Em alguns momentos, nem parece a mesma série, tamanha a falta de coerência de alguns personagens.

    Mas nem tudo são defeitos na segunda temporada. Vale destacar o enfoque dado à autoaceitação. À importância de as pessoas se aceitarem como são, para então estarem em condições de cobrar a aceitação dos outros. Simon (Emmett J. Scanlan), mentor de Amy e chamado por ela de “o profeta”, é o catalisador dessa reação nos portadores de Roarton. Outro ponto a ser destacado é o arco dramático de Philip (Stephen Thompson). Muito interessante acompanhar o amadurecimento do personagem, que deixa de ser capacho do vigário e se revela um rapaz íntegro, com hombridade suficiente para assumir sua paixão por Amy em meio à repugnância (quase) generalizada pelos zumbis.

    A série é sobre zumbis, mas poderia ser sobre qualquer minoria que já foi oprimida e rechaçada na história da humanidade. Como qualquer minoria, os portadores de PDS são vítimas de preconceito e perseguição. Os habitantes de Roarton abominam os zumbis e não querem saber de sua reintegração à sociedade, mesmo que o governo assegure que a medicação evite que eles voltem a seu estado “rabbid” (raivoso). A forma com que os portadores são tratados faz lembrar bastante os primeiros anos da descoberta da AIDS, um misto de temor e intolerância.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Review | Six Feet Under

    Review | Six Feet Under

    six-feet-underAtenção: este review contém spoilers de toda a série. Siga por sua conta e risco.

    Figurando entre as cinco séries consideradas revolucionárias, ao lado de The Sopranos, The Wire, Breaking Bad e Mad Men, a série criada por Alan Ball conseguiu atingir um alto nível de roteiro e direção, colocando Six Feet Under em um patamar acima das séries comuns.

    Ao longo de cinco temporadas, acompanhamos as vidas de Ruth, Claire, David e Nate Fisher,  donos da funerária Fisher & Sons (depois Fisher & Diaz). Entre os seus desentendimentos, familiares e amorosos, e a luta contra a compra de uma multinacional, vemos como uma rotina cercada de morte pode significar tanto.

    As cinco temporadas conseguem ser divididas por temas sempre gerados pela morte. Por se tratar da rotina dos mesmos personagens, o diferencial é pautado pelas situações das mais absurdas que ocorrem com os protagonistas.

    O elenco principal da série: Freedy Rodriguez como Rico, Rachel Griffith como Brenda, Lauren Ambrose como Claire Fisher, Peter Krause como Nate Fisher, Frances Convoy como Ruth Fisher, Michael C. Hall como David Fisher e Matthew Patrick como Keith

    O seriado começa com a morte do patriarca Nathaniel Fisher. A partir daí, todos os personagens acabam se livrando de diversas amarras sociais: Ruth se liberta sexualmente, assumindo o caso que tinha com o seu cabeleireiro; Claire passa a ser uma pessoa menos rebelde; David se revela gay e assume seu namoro com Keith; e Nate deixa a cidade onde morava e volta para a casa. O tema é claro na primeira temporada: a libertação.

    É através da rotina da funerária que sabemos como o negócio funciona. Por conta disso, os Fishers passam a ser assediados pela Kroehner, gigante do ramo. O dilema de vender ou não o negócio da família permeia esta primeira temporada, ainda mais utilizando a estrutura do filho renegado, Nate, que não quis assumir o empreendimento familiar.

    Toda a série tem personagens que se destacam dos demais de alguma forma, seja pela condução do roteiro, seja pela atuação. Em Deadwood, é Al Swarengen e em The Wire, é Omar Little. No caso de Six Feet Under é Brenda Chenowith, a namorada e segunda esposa de Nate. Ser criada por pais psicanalistas e que a usaram como tema de um livro, além de ter um irmão psicopata, transformou-a na melhor personagem da série.

           Uma das muitas cenas da série em que os protagonistas conversam com os mortos do começo dos episódios

    A segunda temporada tem como tema a decisão. Ruth começa a ficar na dúvida do que fazer da vida e se fica ou não com Nikolai; Nate e David são assediados novamente pela Kroehner; David ainda tem incertezas sobre se assumir gay publicamente; e Claire não sabe o que fazer quando se formar na escola; e Brenda passa a trair Nate com várias pessoas assim que fica noiva. Porém, as maiores indecisões da temporada recaem sobre Nate: a partir de uma ida a sua antiga cidade, Seattle, ele revê uma antiga amiga. Meses depois, ela o procura com barriga grande, e ele reflete se vai assumir a filha ou não. Outra grande indecisão de Nate ocorre ao descobrir que sofre uma espécie de AVC, que resolve operar mesmo correndo o risco de ficar em coma.

    É aqui também que vemos que Rico, o ajudante embalsamador de Nathaniel, se torna sócio da empresa, fazendo com que a funerária passe a se chamar Fisher & Diaz. Ao mesmo tempo, ocorre um processo, esquecido pela série, que iria levá-los à falência. A Kroehner também não é mais mencionada daqui em diante.

    Na terceira temporada, temos a própria vida como tema. Nate cria a sua filha, Maya, e aceita se casar com a mãe dela; David começa a ter desejos de adoção, junto a Keith, após tomar conta da sua sobrinha; Claire entra na faculdade de arte e deseja iniciar um relacionamento adulto; e Ruth acaba se envolvendo com Arthur, o novo empregado da funerária. Brenda se mantém fora da maior parte dessa temporada, voltando, no final, após a morte do seu pai, enquanto Ruth acaba se casando com George.

    É também aqui que temos um dos momentos mais tensos da série em relação à morte. Lisa, a esposa de Nate, desaparece nos episódios finais, o que faz com que Nate se altere de uma forma nunca vista. E a forma como o roteiro e a direção trata o tema faz com que os episódios finais tenham uma carga muito pesada.

    Na quarta temporada, temos como tema o castigo. Nate enterra a esposa da forma como ela queria, e não como a família dela gostaria, e acaba descobrindo que talvez o próprio cunhado tenha matado Lisa; Claire se sente perdida e desiste da faculdade de arte; Brenda começa a se dar bem com o vizinho, até que Nate chega; Keith é demitido do emprego de guarda-costas após transar com a cantora; Arthur se demite; Rico se divorcia após ser infiel; e David sofre um sequestro que o deixa traumatizado.

    É aqui também que temos uma guinada na vida de Brenda, que deseja ser psicanalista, finalmente seguindo a profissão dos pais. Nesta temporada, aparecem dois novos personagens, George, novo marido de Ruth apresentado na temporada passada, e sua filha Maggie, cuja função é ajudar o pai, que começa a apresentar sinais de demência.


    As melhores mortes dos começos dos episódios

    Na quinta e última temporada, o tema é o perdão, fechando o ciclo. Nate e Brenda finalmente se casam após os preparativos da temporada passada, e logo depois Brenda perde o bebê; David e Keith conseguem adotar dois meninos, depois de muitas tentativas, e acabam tendo dificuldades em criá-los; Claire desiste da faculdade de arte e começa a trabalhar em um emprego que odeia; Ruth se divorcia de George; Brenda engravida novamente; Rico volta para a esposa, mas sem ser como antes; Nate trai Brenda com Maggie, e Nate morre após um novo AVC.

    Nos dois últimos episódios, os personagens acabam seguindo a cartilha padrão, e o que poderia ser um bom final se transformou no dramalhão apelativo nível novela das oito do Maneco. Nível este que já havia se instaurado na série desde meados da terceira temporada. O término da série foi fraco, piegas, e a última cena, desnecessária.

    A estrutura dramática da série ainda se aproxima da tradicional, no entanto cada episódio começa com uma morte aleatória, algo que vai significar trabalho para a funerária. A partir daí, as circunstâncias que levaram a esse falecimento passam a dialogar com o tema de cada episódio. Literalmente os Fishers conversam com os mortos enquanto os preparam para o velório, dando, inclusive, mais tridimensionalidade aos protagonistas. Nathaniel sempre volta para conversar com sua viúva, Ruth, e seus três filhos, ao longo de toda a série.

    Ao incorporar a morte como tema principal e trabalhá-la a partir de vários outros assuntos, a série mostra que a sua principal característica é a diversidade. A morte tem a função de sustentar aquela família, que por si oferece algum conforto para os parentes dos mortos. Dessa forma, a morte gerou vida, uniu, separou, perdoou, criou indecisões e, por fim, libertou, seja quem estivesse em vida ou em uma morte dolorosa. E essa diversidade também é mostrada através das minorias, a exemplo de latinos, negros, gays e mulheres como os protagonistas da série.

           Uma das melhores cenas da série, com Nate chapado de ecstasy

    A atuação é um dos pontos altos de Six Feet UnderRachel Griffiths interpreta a melhor personagem da série, Brenda Chenowtiz; Frances Convoy dá vida à matriarca Ruth Fisher; Peter Krause é Nate Fisher; Michael C. Hall faz de David Fisher o melhor papel de sua carreira (colocando Dexter no bolso); Lauren Ambrose é Claire Fisher; Richard Jenkins faz as ótimas aparições momentâneas de Nathaniel Fisher; Matthew Patrick é Keith, o namorado e depois marido de David; Freddy Rodriguez dá voz a Frederico ‘Rico’ Diaz e Justina Machado, à sua esposa, Vanessa; Jeremy Sisto interpreta Billy, o irmão psicopata de Brenda; Tina Holmes como Maggie; Lili Taylor como Lisa, a mãe da filha do Nate. E ainda há espaço para a menção de três excelentes atores que emprestaram o seu talento para a série de Alan Ball: James Cromwell como George Sibley, o segundo marido de Ruth; Kathy Bates como a amiga de Ruth, Bettina; e Patricia Clarkson como Sarah, a irmã de Ruth.

    Six Feet Under merece ser vista não só pelo tema diferencial de uma família que ganha a vida como agente funerária, mas também por atingir um nível de roteiro como poucas séries o fizeram, principalmente nos primeiros episódios. Quem quiser mais detalhes pode se aventurar pelo Wiki da série.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Interestelar

    Crítica | Interestelar

    Interestelar

    Desde que o primeiro homem andou sobre esse planeta, o céu e as estrelas exercem uma fascinação na espécie como nenhum outro fenômeno da natureza. Não à toa, praticamente todos os povos terrestres tinham como deuses planetas e estrelas, dadas sua magnitude, distância e beleza. Portanto, nada mais natural que, na era moderna, as artes tentem reproduzir esse senso de admiração pelo desconhecido. Dentre todas, o cinema é a que chega mais próxima de construir e reproduzir essas sensações para o público dito “comum”, que em meio à correria do dia a dia, mal tem tempo de olhar para o lado, quanto mais para cima.

    Desde Georges Méliès, passando pelo sempre cultuado 2001 – Uma Odisseia no Espaço, Contatos Imediatos de Terceiro GrauContato e, mais recentemente, por Gravidade, o Universo exerce um fascínio por sua exuberante beleza, ao mesmo tempo que assusta por suas escalas inimagináveis de grandeza e a sensação de que, ali, estamos perto de ser literalmente nada. Ciente de todas essas questões, o cultuado diretor britânico Christopher Nolan se lançou em uma empreitada arriscada, a de fazer uma história que se passa nesse cenário e que, ao mesmo tempo, possa emplacar um sucesso comercial.

    Interestelar gira em torno do piloto Cooper (Matthew McConaughey), que cuida de sua fazenda no interior dos EUA junto a sua família. Em um futuro não muito distante, que flerta com uma distopia onde a humanidade não foi destruída, mas passa por dificuldades e tenta viver normalmente, a sociedade não precisa mais de engenheiros e pilotos, pois a exaustão natural do planeta, junto ao crescimento da população, provocou a escassez de comida, sendo essa a atual função de Cooper, que nunca superou o fato de não ter levado adiante sua vocação. Sua filha, Murph (Mackenzie Foy/Jessica Chastain/Ellen Burstyn), mostra uma grande inteligência e inclinação para a ciência, enquanto seu filho, Tom (Timothée Chalamet/Casey Affleck), se mostra contente em seguir seus passos de fazendeiro, tudo aos cuidados do pai de sua falecida esposa, Donald (John Lithgow).

    Cooper tenta ao máximo se esforçar para cumprir suas tarefas como fazendeiro e pai, mas a frustração de não ser piloto sempre o impede de dar a tudo a atenção e importância que merecem. A passagem em que ele discute com os responsáveis da escola de seus filhos, onde os livros de história sobre a exploração espacial foram alterados, é excelente na medida em que mostra o descompasso entre aquele estágio da humanidade, que se contenta em apenas sobreviver, e a reminiscência de um passado sonhador, na figura de Cooper, que imaginava expandir as fronteiras da humanidade rumo ao espaço. A discussão a respeito do pioneirismo da exploração espacial – relembrando o Velho Oeste -, e o papel da ciência como salvadora da humanidade também poderia ser mais problematizada. O filme ignora condições sociais e ideologias das quais a ciência é fruto. Ela não existe sem seres humanos dotados de vontade produzindo-a, e da mesma forma que ela é tratada sozinha como a salvadora da humanidade, também poderia ter sido a causadora de sua extinção.

    Dentro deste mundo, os fenômenos naturais com os quais estamos habituados não acontecem mais do mesmo jeito. Elementos como uma poeira constante (que às vezes se transforma em tempestades) e alterações na gravidade por vezes acontecem, mas a preocupação com o dia a dia é tão grande que poucos ligam. Menos Murph. A criança percebe em seu quarto que algo estranho, que ela chama de “fantasma”, acontece, já que os livros de suas estantes sempre caem sozinhos. Cooper diz a ela para compilar dados e analisá-los, para depois se chegar a uma conclusão, como manda a lógica científica. Prontamente, Murph realiza o pedido do pai e em pouco tempo descobre uma mensagem codificada, em código Morse, e que, para a surpresa e espanto de Cooper, os leva a uma instalação secreta da NASA.

    Lá, Cooper reencontra um antigo amigo de seus tempos de piloto, o professor Brand (Michael Caine), e conhece a filha dele, Amelia Brand (Anne Hathaway). Então, a história dá uma guinada. Cooper é convidado para fazer parte de um projeto de tentativa de salvação da humanidade, que será extinta por uma “praga” que consome nitrogênio e altera o balanço da atmosfera. O projeto, que estava em andamento há anos, levou equipes diferentes de cientistas para outra galáxia através de um buraco de minhoca posicionado perto de Saturno por “alguém”, que ninguém sabe quem, mas que não estaria ali por acaso. E esse seria o caminho da viagem, o qual envolveria muitos riscos, provavelmente sem retorno.

    Nesse momento, o desenvolvimento dos personagens e suas angústias é parado para dar vazão a uma velha mania de Nolan, que é explicar para o espectador tudo o que os especialistas do filme pretendem fazer. Nesse caso, o professor Brand explica todo o passo a passo para Cooper, e o fato de escolherem um ex-piloto e fazendeiro, que apareceu por acaso naquela base para pilotar a missão mais importante da humanidade, causa um certo estranhamento, em que a explicação dada, onde “algo” o enviou ali, convence o espectador mais crédulo, mas não aquele mais exigente. A explanação do professor Brand sobre os planos A (resolução de sua equação e retirada da população da Terra para outro planeta) e B (popular o novo planeta com material genético guardado) também é acometida por isso.

    Chamado de volta a sua vocação, Cooper aceita a missão e precisa deixar a família, para o desespero de sua filha. A promessa do retorno do pai não resolve o conflito, que ecoará para sempre na vida de ambos. O relógio que Cooper dá a Murph como uma tentativa de criar um elo sentimental e temporal entre ambos também falha nesse sentido.

    Ao abandonar a Terra e ir para o espaço, o filme toma outra proporção, e as discussões científicas entre os personagens, para decidirem o próximo passo da missão, são sempre explicativas dentro de um limite do aceitável, mas bem perto deste limite. Para um espectador sem nenhum tipo de conhecimento científico, talvez ajudem-no a entender alguns conceitos básicos e o que estaria acontecendo em determinados momentos. Porém, para este mesmo espectador, explicação alguma ajudaria a entender fenômenos mais complexos, como o que acontece dentro de um buraco negro, o que, na verdade, ninguém sabe. Se em A Origem o excesso de explicações sobre uma trama relativamente simples acaba entediando o público, em Interestelar isso não acontece, pois as informações estão inseridas em um contexto totalmente diferente do que estamos habituados, e os diálogos ajudam-nos a familiarizar tanto com o tema quanto com as motivações por trás de cada personagem. Obviamente, escorregões acontecem, quando Amelia Brand discorre sobre o amor, mas são poucas as vezes.

    A sequência de aproximação, e quando entram no buraco de minhoca, é belíssima e lembra muito a viagem de Ellie, em Contato, ao transformar uma viagem espacial sob condições inéditas e extremas em uma aventura por si só. Ao mesmo tempo, a chegada ao local se transforma em uma paisagem visual para o vislumbre do espectador e dos protagonistas. Juntos na viagem estão os outros cientistas Doyle (Wes Bentley) e Romilly (David Gyasi), além dos computadores com inteligência artificial TARS (voz de Bill Irwin) e CASE (voz de Josh Stewart), que garantem bons alívios cômicos.

    Ao transformar o desconhecido do espaço em potenciais riscos para os astronautas, Nolan consegue criar situações de tensão de forma eficiente, e utilizando-se de toda a complexidade de estar em uma realidade com tempo e espaço totalmente diferentes, o horror da situação aumenta ainda mais, como na excelente sequência dentro do planeta aquático onde estava uma das cientistas que buscavam mundos habitáveis. Lá, tudo o que poderia dar errado, deu, em referência a uma própria brincadeira do filme com a “Lei de Murphy”. O fato do planeta estar próximo do buraco negro Gargantua faz com que poucas horas ali se transformem em quase 30 anos perdidos na Terra, e o peso de tais erros, ainda mais brutal sobre os tripulantes. Ao retornar à nave, percebem que se passaram 23 anos na Terra, e muita coisa aconteceu. Os filhos de Coop cresceram, e Murph, que agora trabalha com o professor Brand na NASA, ainda não superou a partida do pai, enquanto Tom permanece cuidando da fazenda. A teoria da relatividade é citada, usada e explicada extensivamente no filme e serve de fundo para explicar a motivação de Coop para tentar retornar logo para a Terra.

    Por perderem muito tempo e combustível nesse planeta, sobram mais dois para visitarem: um do Dr. Mann (Matt Damon), brilhante cientista, e outro do Dr. Edmmonds – que tinha um relacionamento amoroso com Amelia -, ambos com motivos para serem visitados. Porém, o lado racional de Cooper fala mais alto e eles seguem para o planeta de Mann, que, desesperado pela solidão e medo da morte, manda o sinal mesmo sem ter encontrado nada para tentar escapar, o que também garante boas sequências de ação e tensão, mesmo que previsíveis, com os velhos discursos do vilão e tudo mais. Aqui, ele poderia encarnar de forma mais enfática o papel crítico sobre a ciência, mas foi feita a escolha mais simples.

    A transformação do homem racional e altruísta em um homem egoísta, contradizendo todos os argumentos racionais de Cooper para escolherem aquele planeta, é feita de forma rasa ao contrapor o velho “sentimento versus razão”. A fuga do Dr. Mann danifica o equipamento espacial que acopla as naves, e a sequência para tentar encaixar a nave pilotada por Cooper e Amelia lembra bastante Gravidade, ao colocar seres humanos em risco no espaço, realizando manobras praticamente impossíveis para tentarem se salvar, mas sempre sem abusar da expectativa e tensão, que poderia cansar caso fosse esticada demais.

    Nesse momento, é também revelado para Murph e para Coop e Amelia que o plano original do professor Brand sempre foi o B, e a sua equação gravitacional não resolveria o problema de como salvar a humanidade, que sempre esteve condenada. Portanto, a viagem de volta de Coop seria impossível.

    Com o gasto excessivo de combustível, agora não havia o suficiente nem para Cooper voltar para casa, nem para irem ao planeta de Edmmonds. A solução é usar os recursos para contornar Gargantua e usar sua força para impulsionar a nave, mas Cooper engana Amelia e solta sua nave, caindo no buraco negro. E dentro do buraco negro onde Nolan se rende a homenagear, à sua maneira, o clássico espacial de Kubrick. Se em 2001 – Uma Odisseia no Espaço estamos sozinhos com Dave, dando a cada imagem o nosso próprio significado, Cooper faz questão de perguntar ao computador TARS cada passo da etapa no qual se encontra, em uma conversa que não chega a incomodar, mas tira um pouco o poder do espectador de ter a mesma epifania visual e criativa que Kubrick corajosamente permitiu.

    Assim como em 2001, a estrutura de dentro do buraco negro falou diretamente com Cooper, dando a ele elementos de sua natureza para conseguir se comunicar – no caso, a biblioteca do quarto de Murph quando criança. Lá, todas as condições são radicalmente diferentes de tudo o que conhecemos, e tanto o tempo quanto a gravidade são distorcidos. A estrutura consegue distorcê-los de forma padronizada, fazendo com que Cooper envie os dados da equação gravitacional que resolveria o problema de como salvar a população da Terra, ou seja, ele era o fantasma de Murph quando criança tentando se comunicar com ela. Todas essas cenas dentro do buraco negro, apesar de serem atrapalhadas por tanta explicação, brincam com conceitos da física, ao mesmo tempo que garantem uma gama enorme de emoções, em grande parte por causa da brilhante atuação de McConaughey.

    Após enviar a mensagem para Murph usando o mesmo relógio que havia dado à menina, ela consegue decifrar os dados e salvar a humanidade, enquanto Coop é reenviado pela estrutura do buraco negro e encontrado pelos terráqueos do futuro em Saturno. Nessa conclusão, um pouco da magia inicial se perde, pois o objetivo principal do desenlace é explicar e resolver praticamente todas as pontas soltas do filme, não deixando margem para praticamente nada, a não ser o paradeiro e situação de Amelia Brand. O reencontro de Coop com Murph, já idosa e prestes a morrer, não garante muitas emoções, e o passeio turístico dentro da estação espacial em Saturno soa desnecessário.

    Porém, em relação ao aspecto técnico, a produção funciona muito bem. As sequências no espaço, sempre em silêncio, garantem uma atmosfera de suspense que se mantém, até misturar com o som dos ambientes fechados dos atores. O jogo de luzes dentro das naves, remetendo sempre ao sol (o nosso, ou não), é sempre interessante de acompanhar. A também já criticada parceria com Hans Zimmer mostra sinais de cansaço, mas ainda funciona para compor canções que, por vezes, casam perfeitamente com os momentos vividos na tela, em especial nas cenas finais.

    Muito se tem comparado Interestelar a outras produções do gênero, mas nenhuma comparação é justa. Nolan, como qualquer artista, retira influências de suas obras preferidas e as coloca ali, misturadas a seus próprios elementos dentro de uma narrativa própria, que tenta fazer uma homenagem não só à ficção científica, mas ao próprio sentimento humano de querer saber o que existe além. Quem condena a exploração espacial por ser gasto inútil de dinheiro não consegue ver mais adiante. Como o próprio filme cita, a tecnologia espacial gerou vários outros frutos para a humanidade, como as comunicações via satélite e a máquina de ressonância magnética, que poderia ter salvado a vida da esposa de Coop. Se a humanidade gasta dinheiro à toa, ali realmente não é o lugar. O Professor Brand também afirma que cada pedaço de metal sendo usado na construção daquelas naves poderia ser utilizado na fabricação de uma bala de uma arma, então, de certa forma, tudo aquilo foi positivo. É junto a esse conceito básico e humanitário que o filme se posiciona e se constrói, em como a ciência, ao desvendar o funcionamento por trás da natureza, nos ajuda a entender como ela é bela e, principalmente, nos torna mais humildes e capazes de admirar tudo o que está lá fora.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Tim Maia

    Crítica | Tim Maia

    De todos os tipos de produção em moda no cinema nacional atualmente, as biografias têm sido um dos mais utilizados. Em grande parte pela atração que o público brasileiro sente por grandes nomes e grandes feitos somados a narrativas novelísticas, o cinema nacional tem produzido várias obras sobre importantes figuras do cenário artístico brasileiro, resultando em produções que geralmente possuem as mesmas qualidades e defeitos.

    A produção de 2014 do diretor Mauro Lima, sobre a vida do cantor brasileiro Tim Maia e baseada no livro de Nelson Motta, reflete bem essa dualidade do cinema nacional. Tim Maia é interpretado enquanto jovem por Robson Nunes e adulto por Babu Santana. Ambas as interpretações são boas e convincentes no papel do polêmico cantor, com destaque para Babu Santana e sua semelhança física com Maia. Também estão no longa vários outros atores globais conhecidos do grande público brasileiro, como Alline Moraes no papel de Janete, esposa de Maia, e Cauã Reymond no papel do amigo Fábio, dentre outros.

    O tom do filme segue uma narrativa clássica de biografia, começando pela infância pobre de Sebastião Rodrigues Maia na Tijuca, entregando marmita para sua mãe e sofrendo os efeitos do racismo da sociedade brasileira por ter menos oportunidades que seus amigos brancos. Ao crescer, o jovem Maia, vendo toda essa desigualdade, acumula uma raiva, que, somada a seu gênio forte, irá causar várias das situações complicadas com as quais lidará em sua vida pessoal e profissional.

    A narração do filme, feita por Reymond, é um dos elementos que mais se destaca negativamente, não só pela narração em si, mas pelo tom quase de leitura de folheto de missa que o ator faz, sem acrescentar emoções ou informações relevantes à história. Por várias vezes, a narração simplesmente descreve o que estamos vendo em tela.

    Porém, se antes sofríamos com a baixa qualidade técnica das produções, atualmente esse não é mais um problema. Em vários dos filmes nacionais lançados recentemente, a qualidade de imagem, captação de som, enquadramento, figurino, maquiagem, dentre outros, cada vez mais se torna um nível de excelência, o que deveria favorecer o surgimento de novas produções de qualidade, já que essa tecnologia está cada vez mais acessível. Mas, infelizmente, as grandes produções ainda estão submetidas ao padrão Globo, e as produções alternativas ainda se encontram fora dos circuitos e do acesso da maioria da população.

    O filme também utiliza-se de um vício muito comum no cinema nacional, que é o apelo ao humor fácil usando situações engraçadas, muitas vezes com um tom artificial, e o abuso de palavrões para arrancar risos do espectador. Porém, nem mesmo esse artifício resiste à enrolada trama. Se o primeiro ato possui passagens muito bem filmadas, como a da briga, filmada em preto e branco e em câmera lenta, de Maia com um integrante da banda, nos outros dois o filme se perde em meio a tantos personagens e idas e vindas na vida do artista. O que parece é que a vida de Maia é tão complexa que nem mesmo o diretor conseguiu acompanhá-la nas filmagens.

    O padrão Globo também é uma das razões pelas quais a narrativa se torna tão conservadora e fechada, tornando a experiência de acompanhá-la um tanto quanto enfadonha, como usar muito tempo de tela para aprofundar relações que são secundárias, como a de Maia com Roberto Carlos (George Sauma). A duração do filme é um de seus principais problemas. Os 140 minutos se tornam totalmente desnecessários não para contar a história da vida do artista, grande e complexa, mas para mostrar a visão que Mauro Lima quis. Várias polêmicas a respeito da fidelidade do filme sobre a trajetória de Tim Maia foram levantadas por seus amigos e parentes, mas, como obra de ficção e adaptação, a questão a ser levantada não é essa, mas sim como uma história de 140 minutos poderia ser facilmente condensada em 90 ou 100 minutos.

    Ao retratar a vida adulta do cantor, mergulhado no consumo autodestrutivo de drogas e álcool, cujo problema, somado a sua personalidade problemática, acaba por afastar amigos e família, o filme dá um salto na história tentando compensar o tempo desperdiçado anteriormente. Se perdemos vários minutos acompanhando o cantor seguindo Roberto Carlos por São Paulo, subitamente sua vida pula vários anos: de um fundo do poço da carreira a uma mal explicada volta por cima, e de repente, morte.

    Em resumo, como figura história, polêmica e importante no cenário musical brasileiro, Tim Maia merecia ter sido retratado de forma mais objetiva. As escolhas de Mauro Lima tentam mostrar o lado problemático do cantor, mas acabam se perdendo em meio à complexidade do personagem, resultando na confusão da linha de condução da história, o que o diretor parece perceber e tentar consertar, sem sucesso, em seu final. Falta ao cinema nacional aprender a sair desse emaranhado de limitações artísticas e começar a se movimentar no sentido de produzir boas obras biográficas.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

    Compre aqui: Tim Maia: Vale Tudo – Nelson Motta.

  • Crítica | Drácula: A História Nunca Contada

    Crítica | Drácula: A História Nunca Contada

    Vlad III, O Empalador foi o príncipe da Valáquia, atual Romênia, por três vezes. Adquiriu o nome Drácula (Draculea) quando seu pai, Vlad II, foi nomeado cavaleiro da Ordem do Dragão, no caso, um Dracul. Assim, após a morte do pai, Vlad III passou a ser chamado Vlad Draculea, ou seja, o filho do dragão, sendo que hoje, em romeno, significa filho do diabo.

    Conhecido por ser sanguinário, Vlad, ainda criança, foi entregue aos otomanos como parte de um acordo e, ao retornar à Valáquia, se tornou muito conhecido por empalar os inimigos mortos no campo de batalha, impondo, assim, certo respeito entre os outros feudos. Sua confusa história acabou dando origem a certas lendas urbanas, já que, na época, século XV, achava-se que ele era imortal simplesmente porque as pessoas pensavam que Vlad III na verdade era o seu pai. Tentem imaginar uma época sem a quantidade de informações que temos hoje. Aliado a esses fatos, a predileção de Vlad pela violência fez com que acreditassem, inclusive, que ele bebia o sangue dos inimigos mortos, algo que até hoje é discutível. Desta forma, teve-se material o bastante para que ele se tornasse o tão conhecido Conde Drácula, um dos personagens mais conhecidos e queridos da literatura mundial, criado pelo escritor irlandês Bram Stoker e imortalizado no cinema diversas vezes, com o destaque para Drácula, dirigido por Francis Ford Coppola.

    Drácula: A História Nunca Contada, além do título, tem a intenção de contar ao espectador a história de Vlad, O Empalador, antes dele se tornar o vampiro que conhecemos hoje, trazendo elementos históricos, baseados nas vidas de Vlad Dracul e de seu filho, Vlad III. Percebe-se, portanto, a fusão de duas pessoas em um único personagem.

    Logo no início, Vlad (Luke Evans), já detentor de sua terrível fama, e seus homens estão numa incursão com a finalidade de descobrir quem está por trás de algumas mortes na região da Montanha do Dente Quebrado. Essa incursão faz com dois homens sejam mortos, além de colocar o protagonista em contato com uma força sobrenatural e desconhecida ali presente. Ao retornar ao seu castelo, Vlad é surpreendido com a notícia de que o sultão Mehmed (Dominic Copper) ordenou que todos os jovens do feudo fossem enviados com a finalidade de serem treinados como guerreiros, incluindo o único filho de Vlad e de sua amada esposa Mirena (Sarah Gadon), o jovem Ingeras (Art Parkinson, o Rickon Stark de Game Of Thrones).

    Após salvar seu filho, o que foi uma declaração de guerra ao sultão, Vlad acaba pedindo ajuda à citada força sobrenatural, vivida por Charles Dance (o Tywin Lannister, também de Game Of Thrones). O “vampiro prime” explica ao protagonista que é daquele jeito por conta de uma maldição que ele carrega há eras e que Vlad ficaria livre de tal condenação se conseguisse sobreviver à sede por três dias. Com isso, dotado de uma habilidade e força superiores a qualquer homem, Vlad enfrenta sozinho um pequeno exército turco de mil homens, ganhando tempo suficiente para fugir com seu reino para outro castelo.

    E é aí que se encontra o problema de Drácula: A História Nunca Contada, pois a cena de batalha em questão foi filmada no escuro, o que não teria problema se o público enxergasse alguma coisa. Imagina-se que a passagem tenha sido proposital, mas nem tanto. Tudo isso, aliado ao fato de que Vlad não pode mais ficar sob o sol, faz com que a história se desenvolva sempre durante a noite, mas uma noite, que, por algum motivo obscuro (com o perdão do trocadilho), tornou-se difícil de enxergar. A fotografia do veterano John Schwartzman, infelizmente, atrapalha muito, e faz com que a direção do estreante Gary Shore e da dupla de roteiristas, os também estreantes Matt Sazama e Burk Sharpless, não se sustente.

    Em resumo, o filme fica tecnicamente prejudicado, uma vez que tem como destaque o departamento de figurino e efeitos especiais, incluindo arte e som, que são impecáveis. Vale destacar que a caracterização de Vlad é bastante parecida com as pinturas retratando o príncipe da Valáquia, com o tradicional bigodinho e o cabelo crescendo na região da nuca, sendo sua armadura inspirada na que foi usada por Gary Oldman no filme de Coppola.

    Com relação ao restante, Luke Evans destaca-se muito mais do que os outros, o que faz com o time de coadjuvantes fique bastante à sua sombra. Porém, por ter um nome em ascensão em Hollywood, o ator galês ainda merece ser protagonista de um filme bem melhor, tornando o saldo deste Drácula bastante regular.

    Mas, ainda assim, os fãs conseguirão identificar algumas referências e homenagens à obra de Bram Stoker, algo que, ao menos, gera alguma alegria.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Resenha | The Walking Dead: A Queda do Governador – Parte Um – Robert Kirkman e Jay Bonansinga

    Resenha | The Walking Dead: A Queda do Governador – Parte Um – Robert Kirkman e Jay Bonansinga

    Após a tentativa fracassada de golpe de estado vista no volume anterior, a poeira parece ter se assentado em Woodbury. Lilly Caul se mostra resignada com sua vida nesse terrível mundo novo e, talvez, até disposta a acreditar e aceitar a visão de seu líder. Phillip Blake, por sua vez, exerce tranquilamente seu comando sobre a cidade, já que é amado pela maioria da população, e seus poucos opositores baixaram a bola. Porém, tal tranquilidade é a clássica calmaria antes da tempestade. Publicado pelo selo Galera da Editora Record, A Queda do Governador – Parte Um é o início do fim para o mais icônico vilão do universo de The Walking Dead.

    Neste terceiro capítulo da saga literária, os autores Robert Kirkman e Jay Bonansinga apresentam uma espécie de fusão dos dois anteriores, resultando numa história de altos e baixos, ligados diretamente aos dois protagonistas. Diferente de O Caminho para Woodbury, todo baseado no conflito entre Lilly e o Governador, desta vez os dois mal se cruzam e seguem, na verdade, jornadas paralelas. E mais uma vez os segmentos do segundo são infinitamente mais interessantes.

    Lilly surge mais decidida, mais durona, deixando de lado a faceta insossa e choramingante vista antes. E o fato dela cogitar a possibilidade de Blake estar certo, afinal, não deixa de ser uma triste ironia, pois ela não vê o tirano gradativamente perder o controle e passar dos limites. Mas essa “nova Lilly” dura pouco: logo ela realiza autoquestionamentos tediosos e superficiais, motivados por seu namoro água-com-açúcar com o jovem Austin Ballard. Argumento e condução dignos de romances juvenis e que destoam da tensão e brutalidade presentes na outra trama do livro.

    O volume anterior terminou com a mensagem de que a psicopatia é algo necessário para a sobrevivência no cenário pós-apocalíptico. Agora, este conceito é expandido e, de certa forma, quebrado. Fica claro que não há como confiar numa imprevisível mente perturbada; qualquer suposto controle é ilusório e temporário. O Governador se mostra disposto a tudo para preservar seu poder. Alegando agir em nome da “segurança da comunidade”, basta a mais leve suspeita, ou simples aborrecimento, para levá-lo a matar inocentes. Ou pior: se antes seus atos eram justificáveis, ou quase, agora esta linha foi irremediavelmente cruzada. E o karma chega rapidamente, na forma de uma figura muito conhecida pelos fãs de The Walking Dead.

    Com o aparecimento de Rick, Glenn e Michonne em Woodbury, o livro cruza com a mídia principal da franquia, os quadrinhos. Alguns eventos já conhecidos são mostrados sob outro ponto de vista, enquanto outros são apenas rapidamente mencionados. Isso pode ser confuso para quem não leu as hqs, ou mais ainda para quem tem como referência apenas a série de TV, dadas as consideráveis diferenças na adaptação. De qualquer forma, o cruzamento funciona a contento. Como o foco é o Governador, os novos personagens são aqui breves coadjuvantes. Exceção feita, naturalmente, à Michonne.

    A carismática personagem é muito bem retratada no livro, que acentua suas principais características. Ela é misteriosa, inquietante, passa um ar selvagem, é quase uma força da natureza. E, a seu modo, tão assustadora quanto Blake. Além disso, vingança é uma das motivações mais simples do mundo. Para a maioria das pessoas, é fácil de entender e concordar com atos extremos praticados em nome desse sentimento. Pois, através da interação entre Michonne e o Governador, essa noção do olho por olho como algo aceitável é testada.

    Detalhando em descrições macabras aquilo que o quadrinho deixou subentendido e o seriado ignorou, o desfecho do livro é um torture porn de causar inveja em filmes como Jogos Mortais e O Albergue. Nada gratuito, porém. O contexto para os eventos é bem desenvolvido – o que não diminui em nada o impacto da coisa. Ao final, fica a perturbadora certeza de que a linha entre mocinhos e bandidos é muito tênue naquele mundo, quase uma questão de simples ponto de vista.

    Agradando e irritando na mesma medida, A Queda do Governador – Parte Um é uma leitura rápida, até por ser mais curto que seus antecessores (265 páginas). Servindo essencialmente como aquecimento para o grande final, o livro prova mais uma vez que The Walking Dead é uma história sobre pessoas (tanto que é possível concluir uma análise sem mencionar a palavra com Z). E que, para narrativas desse tipo funcionarem, é preciso que os personagens sejam cativantes. Resta conferir se Lilly Caul aproveitará a nova chance para mostrar a que veio, ou se a conclusão da saga valerá a pena mais uma vez por causa de Phillip Blake, vulgo O Governador.

    Texto de autoria de Jackson Good.

  • Crítica | O Juiz

    Crítica | O Juiz

    Filmes de tribunal sempre foram recorrentes na história do cinema. O ótimo 12 Homens e Uma Sentença, de 1957, provou que é possível fazer um filme com assuntos jurídicos ser interessante para o público. Mas foi em 1993 que o gênero explodiu com A Firma, estrelado por Tom Cruise e Gene Hackman. Hollywood viu no autor John Grisham uma fonte quase inesgotável de roteiros vindo de seus livros. Grisham, até hoje, é bastante respeitado pelos seus romances extremamente competentes, recheados de intrigas, mistérios e com histórias bem diferentes umas das outras. Com isso, pudemos assistir a O Dossiê Pelicano, O Cliente, Tempo de Matar, A Câmara de Gás, O Homem que Fazia Chover, Até Que a Morte Nos Separe e, mais recentemente, O Júri, todas adaptações dos livros do autor.

    Quando O Juiz foi anunciado, os atores estavam no primeiro estágio de negociação. O astro Robert Downey Jr., além de confirmar presença como protagonista, assina também como produtor executivo e, para contrabalancear com ele, o nome de Jack Nicholson chegou a ser cogitado. Infelizmente, as negociações não avançaram e coube ao veterano Robert Duvall dar vida ao juiz Joseph Palmer, ou juiz Palmer, como é chamado.

    O que difere O Juiz das adaptações de Grisham é que o filme tem uma premissa extremamente simples, e até mesmo clichê. Porém, o diretor e roteirista David Dobkin, que tem no currículo filmes como Bater Ou Correr em Londres e Penetras Bons de Bico, surpreende ao inserir um humor pouco convencional à trama, além de outras situações extremamente sutis que acabam funcionando por completo.

    Hank Palmer (Downey Jr.) é um advogado bem-sucedido que há anos abandonou sua cidade natal por não se dar bem com seu pai, o juiz Palmer (Duvall). Embora Hank more numa mansão e seja casado com uma bela jogadora de vôlei, ele se vê no meio de seu próprio divórcio e, para piorar a situação, durante um julgamento, recebe uma ligação de que sua mãe havia morrido. Era hora de retornar à sua cidade depois de tantos anos. Era hora de confrontar o seu pai depois de tantos anos.

    A sutileza do diretor já é percebida logo quando Hank chega ao velório. Somos apresentados ao seu caçula e especial irmão, Dale (Jeremy Strong), e o irmão mais velho, Glen (Vincent D’Onofrio). O juiz Palmer, ao chegar, cumprimenta todos, menos seu filho, mostrando que nem o luto da esposa amoleceu seu coração. Aliás, a maneira como Hank é tratado pelo pai faz que ele resolva ir embora no dia seguinte ao funeral, sendo que, dentro do avião, ele fica sabendo que seu pai foi acusado de homicídio por ter atropelado um ex-condenado que agora está solto.

    Com o sucesso de Homem de Ferro, Downey Jr. resolveu de vez assumir a identidade de Tony Stark, tanto que nas junkets de divulgação do filme do ferroso, o astro ia praticamente vestido como o gênio, bilionário, playboy e filantropo da Marvel, usando o mesmo cavanhaque e os mesmos ternos, algo que faz até hoje. Essa fusão entre ator e personagem atrapalha o primeiro ato de O Juiz, pois não se enxerga Downey Jr. como Hank Palmer, mas sim como Tony Stark.

    Isso muda quando Hank decide ficar e ajudar seu pai. Ele encontra na sua antiga bicicleta e numa camiseta surrada do Metallica um propósito para poder relembrar a sua infância e sua adolescência, revendo, inclusive, seu antigo amor, Samantha (Vera Farmiga), que hoje é dona de um restaurante e mãe solteira de uma bela jovem, que morde o cabelo da mesma forma que a filha de Hank.

    A química entre Downey Jr. e Robert Duvall funciona bastante, rendendo ótimos momentos de tensão e drama, o que pode levar o telespectador a diversas emoções. Aos poucos, também conhecemos o motivo pelo qual os dois se odeiam e como isso interfere diretamente no curso do processo e do julgamento do juiz Palmer.

    Aliás, a relação entre todos os personagens e suas boas subtramas acaba deixando a trama principal em segundo plano, o que faz com que um dos personagens fundamentais, o promotor Dwight Dickham (Billy Bob Thornton), fique meio apagado, o que de certa forma não chega a ser ruim, já que o filme, como dito, tem uma premissa bastante simples. E isso talvez seja mérito do diretor por escrever e filmar ótimas cenas que intercalam drama junto ao humor de forma sutil e delicada sem ficar chato ou fora do lugar. Não há nenhuma cena cômica que não se encaixe.

    O Juiz, por ter participado de festivais, poderá ser um dos nomes do Oscar em 2015, rendendo indicações para Downey Jr. como melhor ator, Robert Duvall, como melhor ator coadjuvante, e talvez para melhor roteiro e direção.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Annabelle

    Crítica | Annabelle

    O sucesso Invocação do Mal começa com a primeira entrevista feita por Ed e Lorraine Warren (Patrick Wilson e Vera Farmiga) às estudantes de enfermagem Debbie (Morganna May) e Camilla (Amy Tipton), que falam a respeito da misteriosa boneca que estava lhes causando problemas. Acreditava-se que a boneca estava, de alguma forma, amaldiçoada. A cena termina com Ed Warren dizendo que irá ajudar as meninas. No decorrer do filme, a boneca reaparece dentro de um vidro e sua história é contada rapidamente aos personagens pelo casal Warren. Quando Annabelle se inicia, a mesma cena se repete, com Debbie (novamente vivida por Morganna May) falando da boneca. Então, logo se imagina que a fita contará a história da futura enfermeira, juntamente com o trabalho do casal Warren no caso, (considerado baseado em fatos reais), certo? Errado.

    A história volta ainda mais no tempo para contar um fato que se passa antes da boneca ir para as mãos de Debbie, e, consequentemente, antes do casal Warren entrar em cena, o que, de certo modo, decepciona. Porém, o episódio em questão nos apresenta o jovem casal Mia (Annabelle Wallis – onde qualquer semelhança é uma estranha coincidência) e John (Ward Horton), prestes a ter seu primeiro filho, passando por um trauma muito forte quando sua casa é invadida por Annabelle Wallis (Tree O’Toole) e seu namorado (Trampas Thompson), que fazem parte de uma seita satânica. O casal assassino tinha acabado de matar os pais de Annabelle e passaram a atacar Mia que teve sua barriga esfaqueada. Com a chegada da polícia, Annabelle acaba morrendo no quarto do bebê, tendo parte de seu sangue derramado dentro de uma boneca que estava lá. Assim, a família, que agora possui um bebê saudável passa a experimentar em sua casa estranhos acontecimentos, encerrando um ótimo primeiro ato.

    É uma pena que o filme perde muito de seu fôlego. Por conta das experiências vividas na casa onde ocorreram os assassinatos, Mia e John se mudam para um apartamento, porém a televisão insiste em dar defeito, as portas continuam a bater e a boneca insiste em aparecer numa posição diferente da que foi deixada. É o bastante para Mia buscar conhecimento sobre entidades, demônios e tudo relacionado ao ocultismo numa livraria perto de sua casa. Lá, ela é auxiliada por Evelyn (Alfre Woodard), dona da livraria e com a cabeça bem aberta por já ter passado por experiências estranhas. E quando descobrem a real ameaça, decidem procurar a ajuda do padre Perez (Tony Amendola), conhecido do casal por ser o padre da igreja que frequentam.

    Talvez pelo fato de toda a equipe técnica de Invocação estar diretamente envolvida (emocionalmente, inclusive) com a produção de Velozes e Furiosos 7, a direção ficou a cargo de John R. Leonetti, responsável pela fotografia de Invocação, sendo o único a retornar juntamente com o responsável pela trilha sonora da franquia, Joseph Bishara. Com isso, o roteiro escrito pelo estreante na tela grande Gary Dauberman não se sustenta, trazendo soluções manjadas e experiências idem, vindo, inclusive a adaptar, de certa forma, o final de um grande clássico do horror. Pelo menos, deixa uma ponta para o aparecimento do casal Warren em um eventual segundo Annabelle, contando então a história da estudante de enfermagem mencionada no começo deste texto. Não custa sonhar.

    Apenas a título de curiosidade, recomenda-se uma pesquisa na internet sobre a boneca Annabelle, bem como do casal Warren. É possível, inclusive, visitar o local onde a boneca está guardada na caixa de vidro, além de outros artefatos recolhidos pelos Warren nos seus 50 anos de investigações paranormais. Também é possível encontrar gravações reais de entidades se comunicando com os Warren em algumas de suas investigações.

    Desta forma, chega-se à conclusão que Annabelle foi mais uma tentativa do estúdio faturar algum dinheiro com o sucesso de Invocação, enquanto o diretor James Wan, ao terminar VF7, decide ou não fazer a sequência de seu maior sucesso.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Clube da Luta

    Crítica | Clube da Luta

    Clube da Luta 1

    Por vezes, a humanidade passa por períodos de conflitos. Do antigo com o novo, do espiritual com o material, do “certo” com o “errado”, dentre outros. Também nessas épocas, a humanidade tenta produzir obras para interpretar esses fenômenos e as angústias do homem. Atualmente, em uma sociedade pós-industrial e com gerações de jovens com cada vez mais recursos e cada vez menos perspectivas, o livro de Chuck Palahniuk oferece uma visão singular sobre nós. Adaptado para o cinema em 1999 por David Fincher, o filme Clube da Luta não fez sucesso em sua estreia, e foi muito mal falado por muitos dos principais críticos de cinema do planeta. Porém, hoje, é cultuado por jovens e adultos que identificam na obra a crítica ao vazio existencial de milhões de pessoas frente a uma cultura de consumo em massa, que propõe definir personalidades através da compra de produtos.

    A história gira em torno do narrador (Edward Norton), um funcionário de uma indústria automobilística nos EUA e que leva uma vida tediosa, enquanto descarrega suas frustrações consumindo itens para decorar sua casa, mesmo que não use nada disso. Ao conhecer o excêntrico Tyler Durden (Brad Pitt) em uma viagem de negócios, sua vida irá mudar completamente.

    Dividido em três atos, o primeiro se concentra em detalhar o vazio da vida do narrador (fazendo uma analogia com a vida moderna da humanidade em geral) e sua tentativa de vencer a insônia que lhe impede de dormir. Quando passa a frequentar os grupos de ajuda a pessoas com doenças graves, encontra um certo conforto na profundidade de emoções de pessoas perto do fim, até sua hipocrisia ser desmascarada por Marla Singer (Helena Bonham-Carter), uma mulher atormentada que também procura os grupos de ajuda, segundo ela, por ser mais barato que cinema e ter café de graça.

    O primeiro ato tem como maior mérito a direção de David Fincher, e a edição, com cortes rápidos e usando artifícios para exemplificar o vazio existencial do narrador. As luzes da máquina de xerox se relacionando com a passagem do tempo, e a correria do aeroporto para hotéis com a velocidade dos aviões fornecem um importante elemento de como sua vida está passando, e ele parece sempre estar correndo atrás dela.

    O segundo ato, quando o narrador conhece Durden em um avião, é focada em estabelecer a relação entre ambos. Enquanto o narrador, que já conhecemos, mantém se mostrando superficial e preocupado com bens materiais, Durden oferece outra perspectiva ao fazer uma série de críticas ao consumismo e a forma como somos programados para simplesmente fazer o que a propaganda manda.

    O ponto alto dessa sequência é quando Durden pede para que o narrador lhe dê um soco, o mais forte que conseguir, pois nenhum homem sabe muito sobre si até que tenha entrado numa briga. Tal ato desencadeia a principal linha narrativa do filme a partir de então: a de autodescoberta e autoconhecimento do homem enquanto atinge seus limites físicos e mentais no chamado Clube da Luta, que consiste em pessoas comuns lutando de forma crua e brutal, com as famosas 10 regras, replicadas à exaustão na cultura pop. Funcionando como válvula de escape do homem selvagem preso dentro do reprimido homem moderno, o clube funciona como um elo entre todas aquelas vidas sem sentido, e a camaradagem ali surgida, além da devoção a Durden, servirão também de elemento principal da construção do terceiro ato.

    Simplesmente a libertação individual através do clube da luta não adiantava mais. Era necessário levar essa etapa adiante com o Projeto Caos, onde atos de vandalismo e depois “terrorismo” eram cometidos seja para mandar mensagem, seja para realmente tentar mudar a lógica da sociedade moderna ao explodir os prédios e os centros de informação das empresas de cartão de crédito para zerar as dívidas de todas as pessoas do sistema.

    O terceiro ato, então, se dá exatamente na construção e clímax das ações do “Projeto Caos”, onde o narrador acorda assustado para uma realidade que foi construída sob seus olhos. Quando descobre o que está realmente acontecendo em sua volta (e consigo mesmo), é tarde demais.

    Um dos segredos do sucesso de Clube da Luta é se focar justamente em uma geração que tem todas as necessidades materiais satisfeitas, e como isso não consegue satisfazê-los por completo enquanto seres vivos, ao contrário de toda a propaganda do século XX. Cada vez mais doenças comportamentais como obesidade, associadas ao consumo de drogas prescritas (além de uma nova geração de doenças como depressão, TDHA, DDA, etc.) indicam que o homem moderno não está feliz onde se encontra. Utilizando-se fartamente de metalinguagem, a história tenta mostrar por um lado tragicômico esse quadro. A sequência criada unicamente para o filme, dos protagonistas levando sacos de gordura de lipoaspiração feitas em madames ricas para fazer sabão, que será revendido a elas, demonstra a genialidade agressiva e brutal de um círculo tão simples de acontecimentos.

    A narração, ferramenta tão criticada e tão comumente mal usada, é perfeita no objetivo de clarificar ao espectador o que se passa na cabeça do narrador, aflito por tantas questões no início, e depois nos acompanhando em sua descoberta de um novo mundo, apresentado por Tyler Durden.

    Também importante são os diálogos milimetricamente pensados. Nenhuma fala está desconexa junto ao contexto do filme, ou apresenta contradição. Cada personagem tem sua personalidade e funções definidas, e suas interações representam esse universo de forma crível, fortalecendo a história. Por vezes usando passagens literais do livro, às vezes alterando-as, e até mesmo criando outras totalmente novas, Fincher consegue criar novos elementos dentro deste universo que avança a discussão colocada pelo livro de Palahniuk, o que também é bem raro na indústria cinematográfica. As atuações de Pitt e Norton, talvez as melhores de suas carreiras, também contribuem para isso.

    A música dos Dust Brothers, com toques eletrônicos e industriais (que lembra um pouco o que Fincher iria buscar depois na parceria com Trent Reznor), também contribui para criar o clima seco e caótico do filme, também construído pelas cores de tom alaranjado, azul e cinza usadas, cada um com seu propósito.

    Além da parte técnica, os méritos do filme vão para as citações, iconizadas e reproduzidas por fãs no mundo todo. Frases como “As coisas que você possui acabam te possuindo”, “É somente após perder tudo que você está livre para fazer qualquer coisa” e outras simbolizam essa dicotomia entre uma humanidade que consome para preencher um vazio, mas que nunca consegue. A atração por ideias tão radicais também se dá pela necessidade do espectador procurar um contato com sua natureza interna, ao mesmo tempo em que nega a propaganda a que foi submetido por toda a sua vida. A ação direta contra o sistema, passando longe dos gabinetes políticos e discursos oficiais vazios soa como música para uma geração intermediária, que não construiu nada, não lutou contra nenhuma ameaça real, e aproveitou todos os frutos dessas conquistas. Como o próprio Tyler diz, a falta de desafios reais torna essas vidas uma grande depressão. O próprio conceito de luta de classes é ressignificado não só como interpretação teórica da realidade, mas na ação direta, no puro caos criado pela classe trabalhadora na vida dos ricos através de ações como urinar em sua sopa ou colocar cenas de filmes pornográficos em filmes infantis.

    Clube da Luta funciona, então, como um retrato não só de como as atuais gerações jovens se sentem, mas como elas gostariam de se sentir, e experiências que gostariam de viver. Os clubes da luta e a violência física funcionando como um abandono a toda a sofisticação da vida moderna, e a busca pelo contato com o lado selvagem perdido da humanidade. Talvez o filme não fale para todos. Para aqueles poucos que se sentem confortáveis frente a imensidão do planeta, soe tudo bobo, inocente e negativo demais. Porém, análises profundas da realidade social soam negativas e atraem antipatia ou indiferença de quem não compreende, não se importa ou ainda não se viu em contato com essas questões. Mesmo nestes casos, Clube da Luta pode ser muita coisa, mas não é “simplista”. Nem perto disso. Sua mensagem, produzida nos anos 90, ainda menos “moderno” do que hoje, continua atual e profunda, atraindo novos fãs que também sentem em si esse eterno desconforto com a sociedade. E a tendência deste desconforto é a de só aumentar.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Resenha | Foras da Lei…

    Resenha | Foras da Lei…

    Você vai curtir essa coisa maluca (no ótimo sentido da palavra): Foras da lei barulhentos, bolhas raivosas e algumas outras coisas que não são tão sinistras, quem sabe, dependendo de como você se sente quanto a lugares que somem, celulares extraviados, seres vindos do espaço, pais que desaparecem no Peru, um homem chamado Lars Farf e outra história que não conseguimos acabar, de modo que talvez você possa quebrar esse galho. O candidato a livro com titulo mais extenso é uma compilação de 11 contos contemporâneos da editora Cosac Naify.

    Um livro estranho com trabalho gráfico lindo e duas capas (uma delas destacável). A capa fixa tem apenas a foto de um monstrengo verde numa convenção perdida de cosplayers falidos. A destacável tem este imenso título ordenado em cores brilhantes e, na parte interna, um mini conto incompleto do autor Lemony Snicket (Desventuras em SérieQuem Poderia Ser a Uma Hora Dessas?), convidando (provocando) o leitor a completar a trama (na própria capa) e enviar para a editora (algo que não sei se funciona, já que o livro foi lançado em 2012).

    Dito isso, a tônica é infanto-juvenil, mas tem um pé adulto e peludo no desenrolar dos contos fantásticos. Pudera, com esse time: Clement FreudGeorge SaundersJames KochalkaJeanne DuprauJon ScieszkaJonathan Safran FoerLemony SnicketNeil GaimanNick Hornby e Sam Swope. Todos equipados com convidados ilustradores pra dar um toque imagético entre as páginas.

    Não basta o diferente na parte física do livro, alguns dos contos têm também propostas visuais inusitadas, como uma história em quadrinhos maluca de James Kochalka e um miniconto de Jon Scieszka feito todinho com slogans de produtos norte-americanos.

    Destaco o conto de Neil Gaiman: O pássaro-do-sol. Se o ler e não o amar, você está morto por dentro. Leitura de diversão que flutua por pouco mais de 3 horas. Se você estiver saindo de algum livro denso, use este como refresco, certamente não se arrependerá. Colecionadores de conto: saiam um pouco das antiguidades e constatem a qualidade de quem vive e escreve no agora.

    Então, a partir de hoje, após pensar muito em como resenhas são chatas e, às vezes, longas e líricas (!?!), inauguro com esta minha proposta de analisar apenas livros de contos, de forma rápida e tentando acrescentar algo diferente. Blargh… Vamos em frente. Beijos, beijos.

    Texto de autoria de Sergio Ferrari.

  • [Friamente Calculado] Uma Odisseia no Orkut

    O Orkut está morto. Morto e enterrado sobre uma pilha de lamentos cibernéticos incoerentes. Mas isso significa pouco para mim. Como bom arqueólogo do impossível que sou é meu dever explorar as mais baixas e absurdas expressões da experiência humana. E decidi fazer isso desbravando as várias facetas do Orkut no seu derradeiro mês.

    “Infelizmente”, lembrei-me que não tinha mais uma conta no Orkut. Por isso, com o auxílio de um amigo (que vou identificar somente como M.), consegui acesso à essa “maravilhosa” rede social. Ao meu amigo, posso dizer: o avião foi abatido como planejado. Ninguém desconfia de nada. Eles acreditam que foi acidental.

    *****

    2 de Setembro de 2014

    O Orkut me dá as boas-vinda indicando que o número de visitantes ao meu perfil na semana passada foi zero. A Sorte do Dia é: “A poesia é um eco convidando uma sombra para dançar. – (Carl Sandburg)”. Eu rio amargamente e lembro-me porque odeio redes sociais. Na página do perfil está disposta a mensagem de que o Orkut não estará mais disponível depois do dia 30 de setembro. Em meus devaneios eu me deleito com a ideia de que um dia lerei algo semelhante no Facebook.

    Vou até a comunidade “Fiz um filme pornô em 1932” (17.1889 membros). A última resposta no fórum foi em 30/06/2013. Não há ninguém aqui, nenhuma atividade.

    Menções Honrosas do Fórum:
    • “NINFAS ATREVIDAS AFIM SEXO VIRTUAL WCAM”
    • “Os 20 penteados mais incríveis de uma xana”
    • “alexandremassagem.com.br”

    Vou até a comunidade de música “Uh! indie” (347 membros). Parece que eles têm um novo fórum no Facebook. Eu os ignoro completamente e clico na comunidade “Florence and The Machine” (12.013 membros) ao invés disso.

    Na descrição eu descubro que: Florence Welch, uma formando do curso de artes, diagnosticada com dislexia, dispraxia e dismetria, leva mil e um mundos diferentes para a música.

    É… Acho que por hoje foi suficiente.

    14 de Setembro de 2014

    Por quase duas semanas eu esqueci completamente dessa jornada no Orkut. O que prova duas coisas:
    1. O Orkut é, de fato, completamente irrelevante.
    2. Eu realmente não dou a mínima para essa coluna.

    De qualquer maneira, decido continuar minha exploração virtual dos anais orkuticos.

    Entro na comunidade “Dia da Toalha 25/05 (ao Guia)” (1.754 membros). Na descrição somos apresentados ao significado dessa punheta coletiva da comunidade nerd, que quer tentar dar algum propósito a sua existência fútil tentando trazer aspectos ficcionais para um mundo frio e desumano… É bastante patético.

    Ironicamente, o último tópico do fórum foi no próprio Dia da Toalha, trazendo atenção para o evento nesse ano. Só há a mensagem do criador no tópico, o que faz dele uma das pessoas mais solitárias da Terra (ou da galáxia?).

    Me despeço desse episódio deprimente e tento outra comunidade. Entro na “O dom de ser idiota” (2.120 membros). A último tópico é de 2010, onde uma mulher pergunta como é a versão 2011 do Orkut e se ela é boa. Eu saio dessa comunidade imediatamente.

    Para me divertir, entro na comunidade “Eu sou ninja” (18.736 membros). Não há nada de especial aqui.

    Menções Honrosas do Fórum:
    • “ninja com poderes”
    • “O QUE SERIA SER NINJA?”
    • “Qual a sau arma ninja?”
    • “SUPER HEROIS PODEM EXISTIR”

    Para terminar, vou até a comunidade “Problema mental na cabeça” (11.982 membros), onde um tópico de 2011 me chama atenção. Ele declara: “EU CONFESSO =D”.

    Minha curiosidade me força a clicar no tópico, onde descubro que a confissão da criadora do mesmo é: “EU CONFESSO =D Eu adoro caralho bem grande e grosso”.

    …Eu odeio esse lugar.

    22 de Setembro de 2014

    Me arrependo de verdade por essa coluna… Eu não podia imaginar que o Orkut seria mais deprimente que o suicídio do Robin Williams. Por isso vamos mudar as coisas aqui. Trouxe o melhor amigo dos escritores para me auxiliar nessa jornada maldita: o Sr. Jack Daniels!

    Que comecem os jogos!

    (Primeira dose)

    Eu tento entrar no Orkut e ele falha. Eu olho o calendário e descubro que ainda é dia 22, para minha desgraça. Tento novamente e consigo entrar nessa porcaria.

    (Segunda dose)

    Vou na comunidade “Here is Johhnny!” (230 membros) Aparentemente é uma comunidade para fãs do Iluminado de Kubrick. A última atualização é de 2006. É uma merda.

    (Terceira dose)

    Comunidade “Topa uma suruba???” (174 membros). Bem, esse lixo é autoexplicativo. E vendo os números de membros, pelo jeito ninguém quer transar.

    Menções Honrosas do Fórum:
    • “web cam atva todas as noites”
    • “tem alguem ai afim de uma suruba…”
    • “Descubra seu nome de ator pornô”

    (Quarta e quinta dose)

    Comunidade “Jesus: O Obina de Israel” (73 membros). Pois é… A última atualização é de 2007. É basicamente isso.

    (Sexta dose, bem caprichada)

    Comunidade “Namoro meu computador” (13.188 membros). Segundo a descrição: Para quem é apaixonado por seu computador e não consegue viver sem ele e blá blá blá e um monte de coisa gay.

    Menções Honrosas do Fórum:
    • “COMPROVADO!”
    • “PRIMINHAS GOSTAM SEXO ONLINE NA WEBCAM”
    • “KASAIS ONLINE FAZEM SEXO VIRTUAL WEBCAM”

    (Sétima dose. Porra, tem água nisso aqui?)

    Comunidade “Mulheres de Visual 80´s” (1.285 membros). Tem uma gostosa no… negócio da comunidade. Bem gostosa. A última atualização é de 2012.

    Caralho, só tem tópico merda aqui. Não tem nada de bom. Não tem nada de bom no Orkut. Nada.

    (Sétima dose… Para garantir)

    Comunidade “Monty Python” (4.277 membros). Não tem descrição. Última atualização em 8 de janeiro desse ano… Quem diria?

    Menções Honrosas do Fórum:
    • “Jogando,net/um *27*”
    • “Podcast sobre Monty Python”
    • “Monty Python = Filme Pornô”
    • “UMA DISCUSSÃO POR FAVOR”

    (Oitava, nova e décima dose)

    Comunidade “Alborghetti” (16.811 membros). Comunidade foda, foda mesmo. O Alborghetti é foda. Tudo que ele fala é engraçado. Já viram aquele vídeo dele falando cê é louco? É foda demais. A última atualização é de 2 de julho.

    Mas a comunidade não presta. Só tem viado e puta. É mais uma comunidade que não vale nada nessa bosta de Orkut! Porra! Não tem nada que preste nessa porra de rede social! Porra! Que merda!

    (Foda-se o copo. Eu não preciso dele. Eu não preciso de nada.)

    Comunidade “Sylvester Stallone” (14.493 membros). Última atualização em 2013. Porra, já estamos em 2014…

    Anos 2000, a Era da ficção científica! Qual o problema com o mundo, porra? Nós já devíamos ter bases na Lua agora… E o máximo que a gente conseguiu foi tablets! Fodam-se os tablets, cara! Tablet é coisa de bicha! Cadê a minha mochila a jato, porra?

    PORRA!!!

    (Dose X)

    Eu admito, essa não foi minha melhor coluna. Eu pensei que a ideia seria divertida… Ver o fim de uma rede social e tal. O problema é que não tem ninguém nessa merda. Ninguém mesmo. Isso aqui está mais morto que o Hermes e Renato.

    Mas que se foda. Mesmo sendo uma merda, essa coluna já foi melhor que todas essas críticas gays postadas no Vortex Homossexual. Porra, será que esse site não tem nada de legal? Não tem nem peitinho nessa porra!

    Ah, que se foda… Eu vou dormir. Falooooooou!

    28 de Setembro de 2014

    Estamos de volta no Orkut. Por quê? Porque você merece, leitor.

    Entro nessa porcaria de Orkut e ele me diz que a Sorte do Dia é: “O futuro pertence àqueles que acreditam na beleza dos sonhos (Eleanor Roosevelt)”. É tão bonito que eu quase choro.

    Vou tentar acabar com isso rápido.

    A primeira comunidade do dia é “Graduações inexistentes” (11.459 membros). É uma comunidade para jovens virginais que não sabem o que fazer na faculdade, etc. A última postagem é de 2012 e o site parece cheio de comunistinhas de faculdade.

    Menções Honrosas no fórum:
    • “ESSE VÍDEOS É INÉDITO! MULHER MELANCIA METENDO DLÇ”
    • “MuSpace”
    • “PQ DEVERIAMOS LUTAR PELA DEMOCRACIA DIGITAL”
    • “Injustiça na china! Devemos Boicotar?”

    Segunda comunidade: “CHARLES BRONSON” (7.795 membros)”. É obviamente uma comunidade dedicada ao brucutu original. A última atualização é de 2013 e os tópicos do fórum se concentram quase que exclusivamente em lançamentos de DVDs dos filmes do velho Charles. Aparentemente é uma comunidade normal.

    Terceira Comunidade: “Eu vejo capacitores” (10.557 membros). Na imagem da comunidade temos Haley Joel Osment, participando do filme “O Sexto Sentido”. Como descrição temos:
    “- Com que frequência?
    – 60 Hz.”

    É… vamos para quarta comunidade.

    Quarta Comunidade: “Eu vou matar todo mundo” (74.459 membros). Surpreendentemente existem pessoas aqui. No fórum, o último tópico nomeado de “Confessionário” tem atualizações do dia 17 de setembro.

    Leio as últimas mensagens e, sem nenhuma surpresa, é só lixo.

    Quinta Comunidade: “MELHORES DO MUNDO” (1.606 membros). Na descrição temos: Um site de nerds safados sobre Cinema, quadrinhos, TV, bonequinhos em um só lugar. O Ápice da cultura Nerd! E um link que não funciona mais.

    Menções Honrosas no Fórum:
    • “Upload de Podcasts antigos perdidos”
    • “Ajuda com nomes de desenhos”
    • “Saiu do ar”
    • Enquete: “Qual o MDM Autoboqueteador???”

    Isso me fez lembrar de uma coisa. Procuro uma comunidade no Orkut e encontro o que buscava: “Incrível Hulk (BRASIL)” (9.591 membros). Clico em “Seguir comunidade” e começo a fazer parte desse antro infectado, surpreso por ainda estar em atividade.

    Crio um tópico chamado “NOVO FILME DO HULK CONFIRMADO PELA MARVEL!!!” e deixo essa imagem para eles: http://noyouare.lixlink.com/wp-content/uploads/2012/06/hulk_banging.jpg

    Eu quase me lembro do quanto o Orkut era divertido.

    Por fim, procuro pela comunidade “Vortex Cultural” e o Orkut não consegue encontrar nada. Absolutamente nada.

    30 de Setembro de 2014

    Finalmente.

    Tento acessar essa sucursal da depressão e sou surpreendido com a seguinte mensagem: De janeiro de 2004 a setembro de 2014, milhões de pessoas, espalhadas pelo mundo todo, se reuniram para discutir interesses comuns em uma vasta coleção de comunidades do Orkut. Com o objetivo de preservar a história de conexões e conversas do Orkut, este arquivo traz todo o conteúdo público dessas comunidades.

    Traduzindo: embora o Orkut esteja morto, essa ignorância coletiva de milhões de pessoas continuará a fazer parte da Internet pelas décadas que virão. E quem sabe, talvez para todo o sempre.

    Eu não tenho nada de positivo para dizer sobre isso.

    *****

    Eu passei o último mês desbravando o moribundo Orkut, visitando comunidades que chocariam Dante Alighieri e descobrindo pessoas que enojariam Charles Manson. Se eu soubesse o que eu sei agora… Eu nunca teria empreitado essa jornada.

    Essa experiência só reforçou um ensinamento que aprendi a muitos anos atrás: Às vezes, a morte é uma coisa boa.

    Texto de autoria de “The Nindja”.

  • Resenha | Marcada Para Morrer – Kim Harrison

    Resenha | Marcada Para Morrer – Kim Harrison

    Inaugurando a série Hollows no Brasil, a editora Alaúde nos oferece Marcada para Morrer de Kim Harrison, pseudônimo de Dawn Cook. O livro lançado com o selo Pavana (391 páginas, tradução de Frank de Oliveira) nos apresenta a bruxa Rachel Morgan que, além de suas aventuras sobrenaturais, divide conosco angústias típicas de uma jovem em início de carreira e buscando realização profissional.

    Funcionária pública, Rachel trabalhava na S.I., órgão análogo ao F.B.I, responsável por manter na linha os Impercebidos. Vampiros, Lóbis, Fadas, Pixies, Bruxas e demais seres mágicos ainda são chamados Impercebidos mesmo depois de se revelarem para a humanidade. A revelação aconteceu após suposto acidente quando um vírus dizimou parte da população humana da Terra. Imunes à doença, com o tempo Os Impercebidos  se igualaram à humanidade em termos numéricos.

    Em uma sociedade que busca se adaptar à nova realidade após vencer uma ameaça de tais proporções, os Impercebidos são olhados com desconfiança. A humanidade se sente insegura diante da nova classe de cidadãos, mesmo compreendendo o interesse em manter sua população saudável. Isso se expressa também de forma geográfica na cidade de Cincinnati, em que tensões constantes acabam criando Hollows (o nome que batiza também a série de livros), uma espécie de gueto onde a população é formada por maioria Impercebida, e, assim, uma pulsante sociedade paralela se desenvolve.

    Se destacando entre outras obras de fantasia urbana, Marcada para Morrer vai além dos clichês da literatura de gênero, embora saiba utilizar estes maneirismos à vontade. Se pode decepcionar com tipos previsíveis, a obra salva-se pelo fascínio exercido pelo pano de fundo dessas sociedades paralelas que tentam coexistir.  Sem grandes pretensões, o livro cumpre sua proposta e oferece uma leitura divertida. Pode não estar na lista de livros da sua vida, mas você terá dificuldade de largá-lo até chegar à última página.

    Lançado originalmente em 2004, a saga Hollows possui, atualmente, treze títulos no exterior, sendo o último lançado em setembro deste ano. Uma prova do sucesso da autora é que ele, possivelmente, será lançado também no país.

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    Mariana Guarilha é devota de George R. R. Martin, assiste a séries e filmes de maneira ininterrupta e vive entre o subconsciente e o real.

  • Crítica | Colegas

    Crítica | Colegas

    “Eu quero ver o mar!”, “Eu quero voar!”, “Eu quero me casar!”.

    Sob o clima revolucionário da trilha sonora de Raul Seixas, a comédia de Marcelo Galvão traz à tona temas mais do que reais e sérios. Colegas acompanha os sonhos de Stallone (Ariel Goldberg), Márcio (Breno Viola) e Aninha (Rita Pook), três amigos com Síndrome de Down que fogem da instituição onde moravam desde crianças, em busca da realização seus maiores desejos, respectivamente: ver o mar, voar e se casar.

    Inspirados pelos seus filmes favoritos, eles vivem dias de Thelma & Louise, viajando até Buenos Aires enquanto são caçados por uma dupla de policiais bonachões e pela imprensa sensacionalista que os transforma em uma gangue de criminosos fortemente armados e perigosos.

    O filme é uma trama cheia de citações e referências a grandes clássicos do cinema, como Pulp Fiction, Cães de Aluguel, Homens de Preto, Exterminador do Futuro e A Vida é Bela. Para os colegas que trabalhavam na videoteca, esses filmes eram realmente inspiradores e sustentam um enredo tão surreal quanto as histórias que eles desejavam viver.

    A aventura de Stallone, Márcio e Aninha começa com a invasão a um circo abandonado, assaltos a restaurantes, uma pescaria em alto mar, um casamento, um show onde arrumam briga, um tango ao ar livre e um jantar francês sofisticado. Nesse meio tempo, os protagonistas, vividos por um elenco altamente talentoso e preparado, se deparam com questões comuns à vida das pessoas com e sem deficiências, como a sexualidade, a saudade e a independência.

    A produção aborda um tema de grande peso polêmico com a leveza da comédia e um sutil descompromisso com a verossimilhança, lembrando uma epopeia contada por um narrador (Lima Duarte) que brinca com a realidade em cenas improváveis na vida de um adolescente. A deficiência é abordada com poucos tabus, transformando o preconceito em algo risível.

    O tom pastel presente na fotografia de Rodrigo Tavares contribui para a ambientação do filme entre as décadas de 1970 e 1980, mostrando a alta qualidade da produção que teve reconhecimento internacional e levou sete prêmios no ano de 2012.

    O filme também alcançou grande notoriedade com a campanha #vemseanpenn, realizada pelo ator Adriel, que, inspirado pelo seu personagem, lutou pela realização de seu sonho: conhecer seu ídolo. Em Uma Lição de Amor (I Am Sam, 2001), Sean Penn viveu o papel de Sam Dawson em uma história de um deficiente intelectual que cria a filha com a ajuda dos amigos, filme que trouxe grande notoriedade para o tema. A abordagem da deficiência no cinema de forma pouco comum e estigmatizada como foi feita em Colegas, abre os olhos do público para a simplicidade e espontaneidade com que o assunto deve ser tratado.

    A atuação de Leonardo Miggiorin, Marco Luque, Juliana Didone, Otávio Mesquita e tantos outros nomes populares da televisão brasileira fica ofuscada diante do talento e da autenticidade da interpretação dos protagonistas, que mesmo enfrentando tantas adversidades, seguem inabaláveis em suas jornadas fictícia e real.

    Texto de autoria de Mayra Massuda.

    Compre aqui: Blu Ray

  • Crítica | Uma Relação Delicada

    Crítica | Uma Relação Delicada

    A diretora Catherine Breillat frequentemente causa controvérsia devido à forma aberta com que aborda a temática sexual em seus filmes. Sua marca registrada são histórias que exploram a sexualidade feminina com um estilo frio e analítico, sendo explícita de modo pouco usual. Em 2005, Breillat sofreu um AVC que a deixou hemiplégica, com o lado esquerdo paralisado, o que não a impediu de continuar fazendo filmes. Depois de fazer Une vieille maitresse, em 2007, planeja rodar Bad Love, filme escrito especificamente para ter Naomi Campbell como protagonista. Conhece Christophe Rocancourt, um golpista reconhecido, e quer que ele esteja em seu filme, como par de Naomi. O produtor recusa Rocancourt e, por esse e outros motivos, o filme acaba não sendo rodado. Aproveitando-se da debilidade de Breillat, Rocancourt consegue “extrair” dela mais 800 mil euros. Acusado pela diretora em 2009, Rocancourt foi indiciado e julgado culpado de abus de faiblesse (abuso de fraqueza) – aproveitar-se da vulnerabilidade de uma pessoa tendo ciência desse estado vulnerável, exercendo pressão no intuito de levá-la a ter atitudes prejudiciais a ela mesma. No final de 2009, Breillat escreveu o livro Abus de faiblesse, em que relata esses eventos e que serviu de base para o filme.

    No filme, Maud Shainberg (Isabelle Huppert) é a diretora que sofre o AVC; e Vilko Piran (Kool Shen) é o escroque que se aproveita da vulnerabilidade de Maud. A atuação de Huppert é excepcional. Tão verossímil que chega a ser aflitivo ver as tentativas da personagem de se virar sozinha. A empatia causada é tamanha que o espectador se percebe fazendo os mesmos trejeitos da atriz, principalmente com as mãos e lábios. E não apenas isso. É irritantemente incômoda a falta de coordenação da personagem e mais incômoda ainda a percepção de que não deveríamos nos irritar com algo que está fora do controle dela. Não há qualquer dúvida de que Huppert carrega o filme nas costas, transpondo para a tela a personalidade incisiva da diretora. O que fica evidente é que o corpo pode ter sido debilitado pelo AVC, mas a personalidade continua “firme e forte”. E justamente por isso fica difícil para o espectador acreditar que seja possível que uma pessoa tão enérgica – beirando a prepotência – e tão resiliente se deixaria enganar dessa forma por um escroque assumido.

    Em contrapartida, Kool Shen é tão inexpressivo quanto o vigarista promovido a ator que representa. Noveleiros das antigas se lembrarão da atuação “emblemática” de Ricardo Macchi como o cigano Igor, na novela Explode coração. Shen tem uma performance tão carismática quanto Macchi. E o restante do elenco é tão apático, que mal se consegue lembrar quem é quem na história.

    Enquanto o primeiro terço do filme envolve o espectador na recuperação de Maud e na adaptação, nada fácil, à sua nova condição; o restante perde força enquanto vemos Vilko se “infiltrando” na vida de Maud e se aproveitando da fragilidade dela para explorá-la. A falta de empenho da diretora em tornar palpável e crível a situação de abus de faiblesse em que Maud se encontra faz a narrativa perder ritmo e intensidade. Não ser convincente o bastante faz o espectador ficar se perguntando por que diabos alguém inteligente agiria assim – assinando cheque após cheque – em vez de se compadecer dela em sua derrocada.

    Fugindo do seu estilo habitual, o filme talvez permita a Breillat uma espécie de catarse, uma forma de sublimar e deixar para trás o que lhe ocorreu. Contudo, mesmo sendo um filme bem executado, não consegue impressionar o espectador o suficiente para ser lembrado além daquele bate papo pós-sessão.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Angry Video Game Nerd: The Movie

    Crítica | Angry Video Game Nerd: The Movie

    Quem é o Angry Video Game Nerd e por que fazer uma crítica desse filme? Bom, para quem passou os últimos dez anos dentro de uma caverna sem acesso à internet de qualidade (Esse fato pode ser questionado, mas quem liga? Esse post é meu!), devo primeiramente contar uma breve história de um rapaz e seu trabalho.

    Apaixonado desde a infância pelo gênero dos filmes de horror dos monstros da Universal, James Rolfe cresceu um fanático pelo gênero da sétima arte. Começou fazendo histórias e até mesmo fotonovelas para seu próprio divertimento e o de seus amigos. Ao por suas mãos em uma filmadora caseira, começou a desenvolver suas próprias produções. Em 1999 cursou a Universidade de Artes da Philadelphia até seu término, em 2004, depois começou trabalhando como editor de vídeos enquanto trabalhava em seus próprios projetos. Juntava suas ideias com amigos, preparava um pequeno cenário no quintal de sua casa e começava a filmar. Essas brincadeiras renderam a Rolfe vários filmes amadores até os dias de hoje. Mais tarde, em 2007, largou o emprego para se dedicar à carreira e ao seu website, o Cinemassacre, onde divulga todos os filmes de sua autoria, reviews, séries e, lógico, os episódios do AVGN. Seus vídeos também foram divulgados através dos sites Gametrailers e Screw Attack, aumentando ainda mais seu público.

    Por volta de 2004, quando houve o início da onda de vídeos e séries amadores lançados na internet, nascia uma criatura ranzinza, tosca e nerd. O Angry Vídeo Game Nerd (AVGN), personagem criado por James Rolfe e estereótipo de gamer aficionado, surgiu através de uma paródia de sua própria frustração com jogos de vídeo game que costumava jogar na infância. Não que ele realmente detestasse os jogos, mas eram jogos primordiais, no início de uma era, e, por isso, eram tão difíceis e complicados que acabavam por despertar raiva e frustração quando ele não conseguia terminar o dito jogo, desferindo palavras de ódio e gestos obscenos para acalmar a amargurada experiência. Originalmente chamado de Angry Nintendo Nerd, o projeto focou primeiramente os jogos do NES – o Famicom no Japão ou Nintendinho para nós, brasileiros – mas acabou tendo o nome trocado para prevenir problemas de direitos autorais e também para expandir seu repertório de xingamentos e lamúrias para outras plataformas, aumentando a quantidade de reviews e também de público. Em 2006, essa brincadeira acabou crescendo junto a Rolfe, destacando sua imagem por todo o mundo através da internet e do Youtube, alcançando um grande e fiel público além do próprio vídeo game.

    O lançamento do filme põe fim a oito longos anos de produção que envolveram grande parte da vida de Rolfe, que contou com a ajuda de um crowdfunding realizado na internet para ter seu projeto finalizado. A história do filme se baseia em uma piada em cima de um jogo real, que é citado no seriado E.T. – O Extraterrestre, baseado no filme homônimo lançado em 1982. A lenda diz que o game era tão ruim que foi o responsável pelo crash da indústria de jogos em 1983, e, para tentar arcar com as despesas, a Atari, produtora de E.T., teria sumido com mais de centenas de cópias, enterrando-as no deserto de Alamagordo no Novo México. A história é demasiada ridícula, confesso, mas, por incrível que pareça, tem até um pouco de verdade nesse caso (que não tem a ver com a história, então deixa pra lá).

    O AVGN: The Movie tem como base os próprios episódios da série do personagem de Rolfe, O Nerd, que aqui trabalha em uma loja que vende jogos de vídeo game e tem um vlog onde constantemente fala sobre o assunto, porém somente comentando os piores e mais frustrantes jogos já feitos. Isso o leva a criar uma legião de fãs que passam a comprar e dar maior valor a estes games, contrariando tudo o que ele fala em seus vídeos.

    O filme inicia-se mostrando o que seria uma empresa desenvolvedora de jogos, as Indústrias Cockburn, começando a desenvolver o que seria a continuação do pior de todos os jogos já criados e que seria propositalmente ruim para poupar gastos com desenvolvimento e produção. Para arcar com as despesas, Mandi (Sarah Glendening), a produtora, diz que fará com que O Nerd faça um vídeo-comentário a respeito do jogo, dando toda a mídia necessária para que as pessoas comprem-no. Para fugir da tarefa de realizar essa crítica, O Nerd, junto a seu colega Cooper Folly (Jeremy Suarez), irá provar que o mito sobre o primeiro jogo, que é um dos maiores mistérios do mundo do jogo eletrônico, nada mais é do que uma farsa para pôr fim a uma perseguição de sua vida: ter que jogar o pior jogo já criado. Ao tentar desvendar o mistério, ele descobre que o jogo está ligado a uma conspiração governamental envolvendo a queda do OVNI de 1947 em Roswell e a área 51. Como se nada mais bastasse, acidentalmente é despertado Death Mwauthzyx, o deus-mostro de todo o universo (!?) que estava adormecido dentro do Monte Fuji. Cabe agora ao Nerd não somente desvendar o mistério do jogo como também salvar a humanidade.

    A história é muito tosca, completamente sem noção e dotada de feitos toscos com miniaturas e fantasias de monstros dignas dos seriados japoneses. É hilariante! Para um fã, tanto de filmes B como dos seriados de Rolfe, se torna um filme super divertido, como se fosse um grande episódio de quase duas horas. Não por ser feito por seus próprios criados, mas por ser uma adaptação bem fiel a seu personagem, bem melhor que muitas adaptações que surgem hoje em dia. Além de um projeto pessoal, esse filme também funciona como uma grande homenagem a diversos filmes e jogos, mostrando diversas piadas que fazem referência ao público nerd e à cultura pop atual. A produção teve um orçamento de pouco mais de 350 mil dólares, e, apesar dos efeitos toscos mencionados, estes foram inclusos propositalmente para garantir o visual exageradamente precário dos filmes antigos. Todas as menções de jogos, produtos e lojas foram maquiadas com nomes paródicos (E.T., por exemplo, ganhou o nome de Eee Tee) para também evitar problemas de direito autoral. Mas isso só deixa o filme mais engraçado. Além disso, há várias aparições especiais, como a do próprio desenvolvedor do jogo original mostrado em E.T.

    O filme teve sua premiere em 21 de julho em alguns cinemas selecionados dos EUA e no dia 27 foi exibido no Fantasia International Film Festival (FIFF). Seu lançamento foi no dia 2 de setembro no Vimeo.

    Texto de Autoria de Bruno Gaspar.

  • Crítica | Os Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda do Santuário

    Crítica | Os Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda do Santuário

    Os Cavaleiros do Zodíaco é um anime japonês que chegou ao Brasil há exatos 20 anos. O desenho contava a história de cinco amigos que se tornaram protetores da Deusa Atena e, apesar da violência, tinha como foco, basicamente, a amizade, o perdão e a superação, já que era recorrente que os os protagonistas não se davam por vencidos, sacrificando (muitas vezes) suas vidas em prol do próximo. Juntando estes três conceitos numa disputa de poder bem elaborada e bem amarrada, não tinha como dar errado.

    O enredo ambientado na Grécia teve como ponto de partida a fuga de um cavaleiro chamado Aiolos, que carregava um bebê que acreditava ser a reencarnação de Atena. O bravo guerreiro acabou sendo morto a mando do Mestre do Santuário, que o acusou de ser um traidor. Porém, ainda vivo, Aiolos consegue entregar o bebê ao senhor Mistumasa Kido, o qual promete criá-lo, além de guardar sua armadura da constelação de Sagitário para o cavaleiro mais honrado quando este tiver a idade necessária. Com isso, a Fundação Kido foi criada, abrigando crianças órfãs das mais diversas nacionalidades. Posteriormente, cada uma das crianças foi enviada a várias partes do mundo para ser treinada. Assim, cerca de 10 anos depois, a jovem Saori Kido, dando continuidade ao legado de seu avô, Mistumasa, realizava a Guerra Galáctica, um torneio, disputado entre todos os cavaleiros do orfanato, cujo prêmio era a bela armadura de Sagitário de Aiolos.

    Essa simples premissa mudou para sempre a vida de Seiya, Shiryu, Shun, Hyoga e Ikki, além de ter mudado a vida de muita gente (inclusive deste que vos escreve). O anime fez um sucesso estrondoso no Brasil e no mundo.

    O arco seguinte ao da Guerra Galáctica faz com que Seiya e os outros percebam exatamente onde eles estão metidos, uma vez que os cavaleiros que cresceram no orfanato não são os únicos cavaleiros existentes. Eles apenas fazem parte de um universo de 88 cavaleiros, cada um sendo protegido por uma constelação do zodíaco, sendo que sua maioria acredita que Saori Kido é uma impostora, o que coloca os outros cavaleiros como traidores, dando início a uma saga de mais de 50 fantásticos episódios.

    E é exatamente dessa saga que se trata A Lenda do Santuário, dirigido por Kei’ichi Sato e roteirizado por Chihiru Suzuki simplesmente para homenagear os 40 anos de carreira do mestre Masami Kurumada, criador e desenhista do mangá Os Cavaleiros do Zodíaco. Com isso, a animação em CGI buscou condensar, em apenas uma hora e meia, mais de 50 episódios na tentativa de fazer com que um novo público conhecesse o anime, além de trazer aquela nostalgia a todas aquelas crianças que hoje estão na casa dos 30 anos. Mas foi em vão.

    Partindo do princípio de que o filme se chama A Lenda do Santuário, significa que a história, por ser uma lenda, não precisava ser contada exatamente do jeito que aconteceu, o que tornariam plausíveis as muitas alterações na história. Mas, infelizmente, não foi isso que aconteceu. Não há problema algum no fato de todas as armaduras terem sido alteradas; ou até mesmo a manifestação do cosmo nos cavaleiros ter sido reduzida a brilhos nos detalhes de suas armaduras; ou o cavaleiro de ouro de Escorpião ser uma amazona (que mostra o rosto). O problema está justamente onde não houve alteração. Aqui no Brasil, a Diamond Films, que cuidou da distribuição, fez um esforço tremendo e competente para trazer os dubladores originais da saga, mas, ainda assim, Seiya (Hermes Baroli), Shiryu (Élcio Sodré), Shun (Ulisses Bezerra), Hyoga (Francisco Bretas) e Ikki (Leonardo Camilo) se tornaram completos estranhos, talvez por terem muito pouco tempo de tela, visto que o filme é centrado em Seiya, deixando muito pouco espaço e diálogos para os outros. Ikki só aparece duas vezes e isso é um absurdo.

    As lutas também sofreram pesadas alterações e muitas das consideradas clássicas nem chegaram a acontecer, tornando a transposição das 12 casas algo relativamente fácil. Talvez o maior absurdo tenha sido a luta entre Shiryu e Máscara da Morte, de Câncer, o cavaleiro mais cruel das 12 casas que, aqui, foi reduzido a uma cópia barata da pior imitação de Jack Sparrow já vista (ele tem até o cavanhaque com miçangas). Se no anime a casa do Cavaleiro de Câncer é toda adornada com os rostos agonizantes das pessoas que ele matou, em A Lenda do Santuário, os rostos são coloridos, alegres e cantam, ajudando o cavaleiro em um número musical ridículo, buscando emular de forma pífia o que a Disney faz de forma competente.

    E não é só. Tirando as partes que foram mal aproveitadas da versão original, não há nada que seja nostálgico no filme. Por mais que todos os cavaleiros gritem seus golpes conhecidos, não se vê, em nenhum momento, por exemplo, os movimentos que eles fazem antes de tais golpes, como o “balé do cisne” de Hyoga ao soltar seu Pó de Diamante ou os movimentos de Ikki ao invocar a Ave Fênix.

    A trilha sonora é péssima e muito baixa, reduzida sempre à mesma música, não remetendo em nada à ótima trilha sonora original, que consistia em poucas músicas empregadas em momentos certos na história. Pegasus Fantasy só toca no trailer.

    Porém, o filme não é um desastre completo. O Santuário não é localizado na Grécia e fica numa outra dimensão. Tanto que, para chegar lá, os cavaleiros precisam unir seus pingentes onde estão suas armaduras para que os personagens possam se teletransportar. De qualquer forma, o Santuário é lindo. O visual respeita bastante a série clássica, mas traz detalhes grandiosos que a animação dos anos 80 não tinha qualidade técnica para mostrar. Há uma população que mora lá, o Mestre se reporta à população e é escoltado pelos imponentes Cavaleiros de Ouro. As 12 casas são enormes e bem distintas umas das outras, como no anime, e aparentemente são casas de verdade, como as sensacionais mansões dos sheiks árabes que estamos acostumados a ver, o que faz com que as batalhas, portanto, sejam nos saguões dessas mansões.

    E, finalmente, as armaduras. Quando as primeiras imagens começaram a ser divulgadas, percebeu-se que as armaduras sofreram muitas alterações, porém ainda é possível reconhecê-las vestindo os cavaleiros de bronze, cada qual com sua cor predominante. O acabamento é caprichado e conta com uma gama maior de tons. Elas não brilham tanto como no desenho, mas contam com detalhes incríveis, e o destaque fica para as armaduras de Pégaso e Fênix. Já no que diz respeito aos Cavaleiros de Ouro, suas armaduras foram as mais alteradas. Consegue-se reconhecer as ombreiras de Shaka de Virgem ou o chifre de Mu de Áries, mas alguns cavaleiros, como Aiolia de Leão, tiveram suas vestimentas totalmente reformuladas, sendo o destaque (presente em todos os cavaleiros) a adição de um capacete que se fecha durante a batalha, o que deixa o visual dos cavaleiros bem agressivo.

    Infelizmente, Os Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda do Santuário deixou muito a desejar, porém, embora o desempenho nas bilheterias tenha sido modesto, mas chegando a liderar por algum tempo aqui no Brasil, o filme deverá ganhar uma continuação, conforme confirmado pelo produtor Iosuke Asama (também responsável pela Saga de Hades), o que é bom, considerando que os defensores de Atena poderão ganhar uma segunda chance e mostrar a que vieram.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Arquitetura da Destruição

    Crítica | Arquitetura da Destruição

    De todos os temas da história, o Nazismo provavelmente é o mais conhecido e comentado pelas pessoas em geral, tanto por causa da dimensão do grotesco causado pelos nazistas quanto pela propaganda americana realizada por meio de seus filmes, que reforçam ser este o momento em que os EUA salvaram a humanidade deste mal. Portanto, fazer uma análise sóbria do que foi o fenômeno da ascensão e consolidação do poder nazista na Alemanha não é tarefa fácil.

    Felizmente, o documentarista sueco Peter Cohen consegue desvendar em grande parte o que está por trás de toda a psicologia do Nazismo em seu filme de 1992, Arquitetura da Destruição. A obra deixa de lado grande parte das análises superficiais e sensacionalistas feitas até então sobre Hitler e parte para tentar compreender os fatos enquanto fenômeno da própria humanidade, que é o que todos temos medo, de nos enxergar como iguais aos autores de tais atos.

    Narrado por Bruno Ganz (que ironicamente iria interpretar Hitler em A Queda, de 2004), o documentário tem três eixos principais. O primeiro, em que Hitler e grande parte da cúpula nazista eram artistas e por isso davam tanto valor à estética do III Reich, baseada principalmente na arte clássica greco-romana, quanto à perseguição à chamada “arte degenerada”; o segundo mostra que os nazistas viam na ciência e na Medicina uma forma de aumentar a expectativa de vida da “raça superior”, ao mesmo tempo em que os médicos alemães também estavam por trás da “solução final”; e finalmente o terceiro, em que aventa a tentativa quase desesperada de patologizar o “judeu” na sociedade alemã, investindo pesado em propaganda associando-os a insetos e ratos e outras pragas que contaminavam o “corpo alemão”.

    A visão artística do III Reich era influenciada principalmente pelo romantismo alemão, movimento que vinha de uma forte herança nacionalista prussiana e antissemita e personificado na figura do compositor Richard Wagner, um dos ícones de Hitler. Também havia uma forte sensação de que o III Reich era o responsável por manter a linhagem da cultura greco-romana na era moderna, com foco especial em Esparta, sociedade considerada “ideal” por Hitler. As ruínas da Grécia exerciam forte fascínio sobre o Führer, tanto que ele e seu arquiteto, Albert Speer, projetaram vários prédios para a reconstrução de várias cidades alemãs, as quais imitavam a arquitetura grega para, no futuro, os povos olharem as ruínas dos nazistas com a mesma admiração com que, hoje, vemos as ruínas gregas. Por isso ele também proíbe expressamente o bombardeio de Atenas durante a invasão nazista a Grécia.

    Portanto, é fácil entender a importância que a arte tinha para os nazistas. Tanto que os artistas considerados “degenerados” foram perseguidos ferozmente e tiveram suas obras confiscadas e muitas vezes, destruídas. Para Hitler, a arte degenerada era a arte moderna, judaica e bolchevique, ou seja, sem traços definidos, o que para eles representava sinais de doença mental de seus autores, enquanto a arte considerada correta era aquela romântica, de paisagens campestres e bucólicas, sem nenhum tipo de conflito.

    O componente médico/científico do nazismo é também muito forte. Somos apresentados a dados impressionantes (como o de que quase metade dos médicos alemães aderiram à ideologia) e que reforçam ainda mais a tese de que o Nacional-Socialismo era muito mais um fenômeno de elite do que popular. Enquanto havia campanhas públicas para o alemão fazer exames e evitar a tuberculose e o câncer (tudo centrado na figura do “médico salvador de vidas”), os mesmos médicos estavam por trás dos primeiros passos do programa de extermínio dos “indesejáveis”, mostrando claramente que o uso dos campos de concentração era o passo final de um projeto que começa bem antes, sempre com o auxílio de vídeos feitos pelo governo. Um muito interessante mostra várias imagens de deficientes mentais vinculando-os a informações alarmantes (e falsas) de que, caso nada fosse feito, essa população iria ultrapassar a população alemã “saudável”, mostrando um indicativo de qual caminho os nazistas pensavam em seguir.

    Tendo em mãos relatórios, cartas e documentos da época, Cohen remonta em detalhes todo o plano de execução destes “indesejáveis” e a preocupação dos nazistas em esconder este fato, o que mostra que, mesmo no poder, suas ações não eram 100% aceitas ou inquestionáveis. Os primeiros modelos de execução, muito precários, eram em caçambas de veículos com o escapamento acoplado, o que causava a asfixia das vítimas por monóxido de carbono, enquanto os fornos incineravam os corpos em regiões próximas à cidade. Relatos de funcionários das tabernas, o cheiro forte e pedaços de cabelo nas ruas geravam um clima tenso. Foi quando os nazistas decidiram que migrar para longe das cidades seria melhor.

    Cohen também defende a tese de que a ação final contra os judeus acontece na parte final da Segunda Guerra Mundial, por conta da demora do conflito. Então Hitler decide acelerar os planos e passa a agir utilizando meios de comunicação em massa, especialmente o Cinema, para convencer a população alemã de que o judeu era uma praga que parasitava o estado e o povo alemão, portanto deveria ser exterminado. São categóricas as imagens de alemães dedetizando casas cheias de ratos e cupins com o mesmo gás que seria utilizado nas câmaras dos campos de concentração, o Zyklon B.

    Em resumo, Arquitetura da Destruição se mostra um filme indispensável a qualquer um que tenha a mínima pretensão de entender a fundo o que foi o Nazismo. Muito bem construído e documentado, é daquelas obras que se eternizam no tempo por sua qualidade e profundidade, pois, em um tema tão complexo, é fácil deslizarmos para o senso comum. Segundo o próprio filme, não é chamando Hitler de artista frustrado (ou monstro) que iremos entender tal fenômeno. Tampouco achando que foi uma obra feita por meia dúzia de alucinados ou, tão errado quanto, pela totalidade dos alemães do período. O Nazismo cresceu e virou o que virou porque foi fruto de pessoas de sua época, de contradições de sua época, da anuência do Ocidente com uma ideologia militarista e extremista; mas, acima de tudo, foi um fenômeno totalmente humano. E isso é o que mais nos assusta.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Review | The Killing

    Review | The Killing

    the-killingA série canadense-americana de quatro temporadas, produzida pela Fox e distribuída pela AMC, é um remake da bem-sucedida série dinamarquesa Forbrydelsen, de 2007. A série se passa em Seattle e acompanha a investigação do assassinato da adolescente Rosie Larsen (Katie Findlay). Cada episódio é, aproximadamente, um dia na investigação conduzida por Sarah Linden (Mireille Enos) e seu novo parceiro Stephen Holder (Joel Kinnaman).

    O roteiro se apoia em alguns clichês que, mesmo sendo clichês, ainda funcionam bem por estarem cuidadosamente estruturados:

    O investigador que está prestes a abandonar seu cargo, trocando-o por uma nova vida e que se vê “obrigado” a ficar e resolver um último caso. Na série, Linden vai se mudar para outra cidade com o filho e seu futuro marido, mas vê-se envolvida demais com a história da vítima e protela a viagem indefinidamente.

    Uma parceria não desejada – e não planejada – que desagrada o protagonista, ao menos no início. Na série, Holder chega à divisão de Homicídios, vindo da divisão de Narcóticos, para ocupar a vaga deixada por Linden. Como ela vai ficando, decidida a resolver o caso, acabam se tornando parceiros.

    Parceiros com personalidades diferentes – este é um clássico, quase obrigatório em filmes com duplas. Na série, enquanto Linden é a veterana mal-humorada, calada e durona, Holder é o recém-chegado falastrão, descolado e com ginga de malandro. Ele fuma feito uma chaminé; ela largou o vício e passa o tempo todo mascando chicletes com nicotina. Ela tem família, mas a negligencia em detrimento das investigações; ele está sozinho, tentando resgatar a confiança da irmã e o convívio com o sobrinho. E mais um rol de características que se opõem e, ao mesmo tempo, se completam.

    Há alguns detalhes que fazem lembrar bastante Twin Peaks. Além da referência óbvia, já que a premissa de ambas é o assassinato de uma jovem, aparentemente sem motivos. Troca-se “Quem matou Laura Palmer?” por “Quem matou Rosie Larsen?”. Mas não é apenas isso. A investigação, encontrando pistas falsas que levam a falsas suspeitas, apesar de todos os envolvidos serem culpados de alguma coisa – não exatamente do crime sendo investigado. As revelações sobre as atividades extra-curriculares da adolescente, totalmente desconhecidas dos familiares. Some-se a isso o fato de que as suspeitas apontam para um cassino em território indígena, de que uma das pistas vem de um reflexo num vídeo, de que há uma rede de prostituição que permeia a trama. Mas diferente da obra de David Lynch, esta não tem um pé no fantástico, nem se vale do nonsense para envolver o público.

    A primeira temporada cobre as duas primeiras semanas da investigação. E para desgosto dos espectadores, termina sem ter resolvido efetivamente o caso. Na verdade, há uma suspeita muito forte sobre um dos personagens dada por uma prova cuja autenticidade é questionada nos últimos minutos do episódio. A segunda temporada abarca mais duas semanas de investigação, em que, além de caçar pistas que apontem o verdadeiro assassino, Linden e Holder vêem-se enredados em tramas cada vez mais complexas que colocam em risco inclusive sua confiança mútua, além de questionar a integridade da força policial de Seattle.

    A terceira temporada reaviva um caso do passado, resolvido por Linden e seu ex-parceiro – e ex-amante – James Skinner (Elias Koteas), quando um assassinato apresenta várias coincidências no modus operandi com esse outro. As investigações fazem Linden mergulhar no passado e mexer em “cicatrizes” mal fechadas. Com o roteiro um pouco mais enxuto que as duas primeiras temporadas, talvez com ritmo um pouco lento no início para alguns espectadores, tem um arco dramático cujo desfecho é de tirar o fôlego. O final é daqueles que dá vontade de “voltar a fita” e rever para se certificar de que foi aquilo mesmo que ocorreu. Há outros, mas esse é o “momento PQP” mais significante de toda a série.

    A série que, para desagrado do público, havia sido cancelada após o término da terceira temporada, voltou para uma quarta temporada graças à Netflix, que solicitou que fosse dado ao público um desfecho decente numa temporada de encerramento. Lógico que não foi apenas boa vontade da empresa. A Netflix notou o desempenho que a série vinha tendo no chamado binge watching (mais conhecido como maratona de série), acreditou nesse potencial e bancou a quarta temporada. Nela, enquanto Linden e Holder lidam com as consequências dos atos do final da terceira temporada, investigam o assassinato de toda uma família em que o filho mais velho, principal suspeito, foi baleado na cabeça e perdeu a memória do acontecido.

    É lógico que a resolução dos crimes é importante, mas vale notar que nem por isso as tramas secundárias são deixadas de lado. Mesmo que eventualmente alguns arcos menores possam ser classificados como fillers (no popular, “encheção de linguiça”), pouco agregando ao arco narrativo principal – principalmente na segunda temporada – , é inegável o cuidado no seu desenvolvimento. Mais incrível foi a forma como pequenos detalhes da primeira temporada foram resgatados de modo a se encaixarem nos eventos da terceira. A convergência dos arcos narrativos foi bastante consistente, não deixando pontas soltas nem perguntas sem respostas.

    Mas de nada adianta uma boa história, se os personagens não cativam o público. E a construção dos personagens é mais um trunfo da série. Nenhum deles é raso, uni ou bidimensional. Todos são tridimensionais e complexos como qualquer pessoa. E como qualquer pessoa, o espectador vai conhecendo cada um deles aos poucos, reunindo informações que vão sendo dadas com parcimônia. E por se ter tão poucas informações, inicialmente nem é assim tão fácil se identificar com Linden ou Holder. Não há flashbacks lacrimosos, explicando essa ou aquela motivação do personagem, nem mesmo atos altruístas ou heroicos no intuito de cativar o público imediatamente. Não há qualquer didatismo, o roteiro confia que o espectador tem capacidade de pensar suficiente para juntar os pontos sozinho.

    Emendando, não bastam bons personagens se os atores não tiverem boas performances. E Enos e Kinnaman formam uma das melhores duplas policiais dos últimos anos. Não dá para saber o quanto estava no roteiro e o quanto se deve aos dois, mas a interação entre eles vai além do contraste entre duas personalidades fortes e distintas. Certamente, o sorrisinho cínico que Linden dá para quase tudo foi uma adição muito bem-sucedida feita por Enos, assim como a fala malemolente de Holder. Mas além dos protagonistas, vale destacar o vilão da terceira temporada, Ray Seward (Peter Sarsgaard). Sarsgaard representa com perfeição a ambiguidade do personagem que, mesmo condenado à morte, ainda destila sua verve violenta sem poupar ninguém.

    Num primeiro olhar, a série pode parecer depressiva, principalmente por ser ambientada num local em que sempre chove, o que contribui para o clima mais lúgubre. Mas, ao final, recompensa o espectador por privilegiar sua inteligência, entregando uma season finale que faz jus ao restante da série.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.