Autor: Vortex Cultural

  • Resenha | As Relações Perigosas – Choderlos de Laclos

    Resenha | As Relações Perigosas – Choderlos de Laclos

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    Uma troca de cartas repleta de segredos de alcova, engenhosas estratégias de manipulação e cruéis jogos de poder vêm a público em As relações perigosas, clássico romance francês escrito por Chordelos de Laclos no século 18. Considerada uma das obras mais controversas, discutidas e representativas da França pré-revolução, o título ganha nova edição pela Biblioteca Azul, selo editorial da Globo Livros, 20 anos após sua última publicação no Brasil. A obra mantém a tradução de Carlos Drummond de Andrade, que apresentou a história de Laclos ao público brasileiro em 1947, e o posfácio também assinado pelo poeta, com textos revisados.

    O clássico romance francês de 1782 conta, por meio de cartas trocadas pelos personagens, as artimanhas de dois libertinos, o visconde de Valmont e a marquesa de Merteuil, em sua disputa por seduzir e descartar amantes – como Cécile, jovem confidente da marquesa que está prestes a se casar, e a virtuosa, porém já casada, madame de Tourvel.
    (fonte: Globo Livros)

    Criticada duramente na época de seu lançamento, a obra versa basicamente sobre dois assuntos que interessam a todo mundo, mas que ninguém admite conversar a respeito: sexo e a vida alheia. É interessante pensar que um militar de alta patente – Pierre Chordelos de Laclos foi general do exército francês – tenha conseguido abordar tal assunto tão brilhantemente e num formato narrativo que instiga a curiosidade e, ao mesmo tempo, provoca a inteligência do leitor: o livro é todo escrito em missivas.

    Devo admitir que é um dos formatos que me atrai instantaneamente. Caso tenha de escolher entre um livro narrado “normalmente” e um em formato epistolar, indubitavelmente optarei pelo segundo. Agrada-me o desafio de preencher as lacunas, de imaginar quais as intenções do personagem que escreveu a carta e qual a reação do leitor a quem ela se dirige.

    Como se já não bastasse o interesse despertado pelos assuntos principais das cartas citados acima, as entrelinhas conseguem ser tão ou mais interessantes. O retrato da época, a descrição da burguesia – as aparências e o que fica por baixo dos panos -, as relações políticas, sociais e econômicas entre os personagens que povoam as cartas estão ali incrementando a trama para deleite do leitor ávido por algo mais além do enredo cheio de intrigas e imoralidades.

    Laclos permite que o leitor entreveja nas cartas a natureza cruel e ignóbil dos protagonistas. E nos lembra a todo momento que são os vilões da estória. Que são eles os representantes do que havia de mais traiçoeiro e pérfido na elite daquela época. E que se são tão bem sucedidos nessa sociedade dissimulada e decadente é por que – como se diz hoje no futebol – “quem não faz, toma!”. Contudo, é impossível ao leitor não se deixar levar pela loquacidade de suas palavras. O texto melífluo e envolvente o imerge em seus ardis, assim como aos demais personagens – assunto das cartas.

    Mesmo retratando tão fielmente a época em que se passa a estória, é ainda bastante atual em sua crítica ácida aos artifícios do convívio social. Foi adaptada várias vezes, tanto para o teatro quanto para o cinema, mas não se deve prescindir de sua leitura, bastante agradável e fluida.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | Morte em Dezembro – Ivair Antonio Gomes

    Resenha | Morte em Dezembro – Ivair Antonio Gomes

    Às vésperas da realização do Encontro do Mercosul, que reunirá importantes nomes da política e economia das Américas, algo estranho está acontecendo em Florianópolis e região. Uma série de mortes aparentemente não-relacionadas entre si chama a atenção da polícia local, e em pouco tempo a situação evoluiu para uma caçada em grande escala. Está em terras catarinenses um assassino misterioso, identificado pelo codinome Xstranho. Quais são seus alvos? Há como deter esse lendário “fantasma”, temido na comunidade internacional de Inteligência? É o que autoridades brasileiras e estrangeiras precisarão correr contra o tempo para descobrir.

    Essa é a sinopse de Morte em Dezembro, romance de estreia de Ivair Antonio Gomes, publicado pela Editora Dracaena. Este interessante thriller investigativo mostra que nem só de fantasia vivem os novos nomes da literatura brasileira. A estrutura adotada pelo autor chama a atenção logo de cara: são citadas inúmeras agências da lei, nacionais e internacionais, além dos pormenores e burocracias que envolvem seu funcionamento. Fica claro que foi realizada uma extensa pesquisa para construir a história nos moldes propostos. Ainda que a escrita em si tenha um tom seco, conciso e muitas vezes resumido (lembrando até mais um conto do que um romance), essa forma como a trama é contada lembra o estilo de autores como Frederick Forsyth, Robert Ludlum ou John le Carré.

    Tal escolha narrativa tem seus prós e contras. A visão crua e pouco romantizada certamente deve agradar aos ansiosos por “realismo”. Não há um herói infalível, que de peito aberto e na base do improviso, resolve tudo sozinho. Pelo contrário, cada órgão policial, até mesmo em outros países, trabalha arduamente para conseguir uma micro-pecinha do quebra-cabeças. Ao mesmo tempo, o ego e orgulho de cada um as vezes atrapalha o trabalho em equipe. Sensacional a sacada sobre dar o comando da operação para alguém inferior na hierarquia. Assim, em caso de sucesso, mérito da colaboração de todos. Se as coisas derem errado, temos um conveniente bode expiatório. Politicagem na sua mais pura forma. Nessa mesma linha, a figura clássica do super-assassino solitário (imortalizada nos clássicos de espionagem) também é desconstruída. Uma operação complexa, ainda mais nos tecnológicos dias atuais, fatalmente envolve um grupo de colaboradores.

    Por outro lado, a grande preocupação didática/descritiva com o funcionamento de uma grande investigação internacional deixa pouco ou nenhum espaço para serem trabalhados os personagens. O fator humano, pessoal, emocional inexiste. Por exemplo, o Delegado Azevedo, um policial veterano mas com experiência simples, que de repente se vê no centro de algo muito grande. Ele é o que há no livro de mais próximo a um protagonista. Mas, salvo uma breve interação com a esposa, não sabemos quem ele é, o que está sentindo, etc. Outro personagem com certo destaque (pois todos os outros são apenas NOMES que simplesmente aparecem quando a história exige), é o agente da ABIN, Marcelo da Silva. Inteligente, experiente, bem treinado e com um passado um tanto suspeito, também deixa o leitor interessado em saber mais sobre ele. Sem falar no próprio Xstranho, que inicialmente tem algumas “cenas” pra si, mas logo some até o desfecho.

    Entende-se que a proposta era de fato priorizar os procedimentos e não as pessoas. Mas ainda assim, personagens mais desenvolvidos, capazes de gerar empatia, seriam um “recheio” a mais que poderia enriquecer a obra. Outro ponto negativo que infelizmente precisa ser apontado são os erros de revisão do texto.  Apesar do belo projeto gráfico (a capa é muito bonita), tais erros acontecem em número suficiente para incomodar. Em última análise, porém, o saldo final é positivo. Morte em Dezembro é uma leitura rápida e agradável, uma boa recomendação para fãs de histórias policiais e de espionagem. Além, é claro, da diversão particular pra quem conhece Florianópolis, que é identificar os locais onde os eventos se desenrolam.

    Compre aqui.

    Texto de autoria de Jackson Good.

  • Review | Deadwood

    Review | Deadwood

    deadwoodAtenção, este review contém alguns spoilers da série.

    Infelizmente, Deadwood não é tão conhecida na internet pelos adoradores de séries, talvez por ser de época e ter como cenário o velho oeste americano ou mesmo por ter sido cancelada pela HBO após a terceira temporada devido aos altos custos de produção. Seja como for, a série criada por David Milch (também criador de Nova York Contra o Crime), mesmo com os 36 episódios, conseguiu de forma magistral recriar a cidade de Deadwood com seu clima instável de território livre, os mistérios do garimpo do ouro e, principalmente, os personagens históricos que a habitaram.

    Sinopse: durante a turbulenta década de 1870, acompanhamos o período antes, durante e depois da anexação da cidade livre de Deadwood pelo estado da Dakota do Sul, transformando-se em território norte-americano.

    As três temporadas se dividem quase que exatamente entre estas três fases: a primeira é a anterior à anexação e apresenta o clima clássico de velho oeste americano, de uma cidade sem lei que está em guerra eterna com os índios perto dali. Consolidando o elenco principal, ela se foca em mostrar basicamente a vida no local, que alternava entre o bar e as firulagens de Al Swearengen e as disputas dos garimpos de ouro das regiões em volta.

    Ian McShane é o fucking c**ksu**er Al Swearengen.

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    Timothy Olyphant é o xerife durão Seth Bullock.

    A série começa com a chegada na cidade de uma caravana, liderada pelo protagonista Seth Bullock e seu sócio na loja de ferragens Sol Star. No mesmo comboio estão Wild Bill Hickock com Charlie Utter e Calamity Jane, em uma cidade já dominada pelo dono do bar/saloon The GemAl Swearengen, que tem como comparsas Dan Dority e Johnny Burns, além do dono de hotel E.B Farnum e do médico Doc Cochran.

    É logo no começo da série que vemos o clichê do gênero com a figura do lendário atirador Wild Bill Hickcok e a sua repercussão local. Porém, este clichê logo é superado nos primeiros episódios, principalmente ao focar nos dois protagonistas que se transformam em adversários: Seth Bullock e Al Swearengen.

    A segunda temporada ganha com a chegada de um competidor à altura de Al, Cy Tolliver, que monta o seu próprio bar/saloon/puteiro Bella Union com sua ajudante e cafetina Jonnie Stubbs. Além disso, passa-se a mostrar para o espectador todo o processo de negociação com os delegados e juízes estaduais para ver qual estado anexaria a cidade, sempre liderados por Swearengen. É muito curioso ver todos os trâmites legais da época, além, é claro, da repercussão que isso irá gerar sobre todos os envolvidos, principalmente os que possuem negócio, como o jornalista A.W. Merrick, Al e Cy com os bares/saloons/puteiros, e, óbvio, os donos dos terrenos que estão procurando ouro.

    É nesta metade que também se insere a figura de Francis Walcott, o procurador de George Hearst (pai de William Handolph Hearst, em que Orson Welles se baseou para criar o Cidadão Kane), que deseja comprar todo o garimpo de ouro, e toda a mudança que Hearst trará para a cidade na última temporada. Nesta metade insere-se a figura da cunhada de Seth Bullock, interpretada por Anna Gunn, a esposa de Walter White na “impecável” Breaking Bad.

    Uma das melhores cenas da série.

    A terceira temporada e o período pós-anexação prefere focar na legalidade da cidade. Como se transformou em território americano, Deadwood agora precisa de xerife, prefeito, banco e outros cargos/necessidades públicos. É aí que esta última temporada tem um ganho substancial, pois mostra como a corrupção é intrínseca à cidade, e agora ela se torna institucionalizada. Outra enorme adição é finalmente a chegada de George Hearst. Poder e corrupção agora se elevam a um nível nunca visto antes por uma pequena e simples comunidade.

    A linda abertura da série.

    A última temporada também apresenta o arco dramático e a relação entre Calamity Jane e Joanie Stubbs. O amor das duas é apresentado de uma forma natural por causa da Joanie, que já mostrava indícios de sentir atração por outras mulheres, e da Calamity Jane, por ser o tipo pessoa agressiva que sempre espantava qualquer um que se aproximasse dela, principalmente homens. O envolvimento entre ambas não deixou de ser surpreendente, e a forma como isso aconteceu foi um dos grandes trunfos da série. Outro destaque é mostrar como George Hearst se tornou um adversário à altura de Al Swarengen e Seth Bullock, que terminaram por se unir contra o magnata.

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    Calamity Jane, interpretada por Robin Weigert, um dos melhores personagens da série.

    A atuação é outra questão a ser ressaltada. Apesar de alguns atores limitados, os personagens principais baseados em personagens históricos estão muito bem representados. O dono de bar/saloon Al Swearengen interpretado magistralmente pelo inglês Ian Macshane pode entrar para a história da televisão moderna como um dos melhores personagens de todos os tempos; o limitado, porém esforçado Timothy Olyphant dá rosto e voz ao xerife Seth Bullock; a igualmente limitada Molly Parker encara Alma Garret, esposa de um interessado em procurar ouro na região; o excelente Brad Dourif, o Grima Língua de Cobra da trilogia Senhor dos Anéis, encarna Doc Cochran em um dos melhores papéis da sua vida; o ótimo ator John Hawkes é Sol Star, o sócio de Seth Bullock na loja de ferragens; Paula Malcomson, a mãe de Katniss Everdeen no plágio de Battle Royale em Jogos Vorazes, é a prostituta Trixie; Dayton Callie é Charlie Utter, o melhor amigo de Wild Bill Hickcock; William Sanderson consegue criar o dono de hotel E.B. Farnum, um dos mais interessantes personagens da série; o pouco expressivo Powers Boothe encarna Cy Tolliver; Robin Weigert é a bêbada Calamity Jane, um dos melhores papéis em Deadwood; Kim Dickens é a cafetina Joanie Stubs; e Gerald McRaney é o inigualável George Hearst.

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    George Hearst, interpretado por Gerald McRaney.

    Deadwood é o tipo de série que envolve o espectador logo de cara pela excelência do roteiro. Diferente da “impecável” Breaking Bad, aqui não há golpes de roteiro aparentes, os furos existentes são pequenos, e, da mesma forma que em The Sopranos, não existe encheção de linguiça – não há um detetive que passa uma série inteira sem saber que seu cunhado fabricava drogas, por exemplo. As situações de tensão e os vários dramas são apresentados, e seus personagens, logo postos à prova. Cada episódio de uma hora em média costuma ter tanta informação que pode ser difícil fazer maratona para quem gosta do tipo.

    A fotografia da série mantém o padrão HBO de qualidade, com o diferencial de adaptar um período histórico riquíssimo. Filtros e tons de marrom são escolhidos o tempo todo por causa da terra batida, das casas e móveis de madeira, além de alguns figurinos. A edição dos episódios segue o padrão televisivo HBO de qualidade, focando no roteiro e na atuação. A direção de arte também merece destaque, pois foi primorosa ao reconstruir de forma crível todos os cenários e figurinos da época.

    Se o seu receio é o cancelamento da série após a terceira temporada, fique tranquilo, pois no final dela se fecha uma espécie de ciclo na história. Portanto, não há motivos para não assistir Deadwood.

    Sem exageros, Deadwood pode ser considerada uma das poucas obras da dramaturgia televisiva moderna que conseguiu atingir a excelência no roteiro, e figura ao lado de The Sopranos e The Wire como as séries que mudaram o roteiro da televisão moderna e a percepção dos espectadores sobre elas. Foram estas três séries que, por exemplo, abriram espaço para que Game of Thrones, Breaking Bad e Mad Men pudessem ser feitas e hoje figurarem nas listas de melhores séries da atual era de ouro da televisão norte-americana.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | A Centopeia Humana 2

    Crítica | A Centopeia Humana 2

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    Quem já assistiu ao primeiro filme, visitava comunidades estranhas no Orkut ou navegava por sites de bizarrices, sabe do que eu estou falando. Você pode não ter visto, mas com certeza já ouviu falar a respeito desse filme. E se não ouviu, vou dar uma resumida no primeiro, só pra sentir o drama:

    Duas garotas americanas em uma viagem pela Alemanha quando o carro quebra em uma noite escura no bosque. Elas procuram por ajuda e encontram uma casa isolada. O médico de meia-idade dono da casa se identifica como um cirurgião especializado em separar irmãos siameses. No dia seguinte, elas acordam amarradas em um hospital improvisado em um porão junto com um japonês. O sinistro doutor planeja ser a primeira pessoa a conectar pessoas pelo sistema gástrico (pra quem não imagina é ânus na boca e boca no ânus), trazendo assim a fantasia de sua vida a realidade: a centopeia humana.

    Detalhe que antes de realizar o “experimento” com humanos, o doutor fez com seus 3 cachorros pra ver se a teoria poderia ser posta em prática, e infelizmente deu. O filme todo gira na preparação pra grande cirurgia (diga-se que 60% do filme é isso), e depois de preparados, todos os cortes minuciosamente calculados, o doutor põe a mão na massa e vai grudando a galera. Feito a cirurgia, o resto do filme é apenas a aventura do doutor com seu novo bichinho de estimação (falei bichinho de estimação por que ele tenta adestrar os 3 como se fossem cachorros). Mas é claro que eu não vou contar o final de como essa bizarrice termina, se vocês estiverem curiosos pra saber se alguém morre, se alguém sobrevive, se acontece uma convivência pacífica entre eles, fiquem a vontade pra enfrente 1h45 de pura mentalidade imbecil, ou google it.

    No final de Centopeia Humana 1, não fica margem para continuação. Não pelo menos com o mesmo tema. Então tiveram a brilhante ideia de fazer um segundo filme, contando a história de um cara (COMPLETAMENTE) perturbado mentalmente que assiste ao primeiro filme e acha que pode fazer igual e fazer melhor, não com 3 mas com 12 pessoas.

    Eu, como já estou acostumada com essas coisas (mentira), resolvi assistir por que a curiosidade sempre fala mais alto.

    Centopeia 2 conta a história de um homem que se torna sexualmente obcecado pelo DVD do primeiro filme e imagina colocar a ideia da centopeia humana em prática. Diferente do primeiro filme, a sequência apresenta imagens gráficas de violência sexual, defecação forçada e mutilação; e o espectador assiste da perspectiva do protagonista. No primeiro longa, a ideia da centopeia era apresentada como um experimento de um cientista louco e com o foco nas tentativas de fuga das vítimas, mas esta sequência apresenta a centopeia como objeto da fantasia sexual distorcida do protagonista.

    Sinceramente, eu nem sei por qual bizarrice começar. Mas vamos pelo protagonista por que por mais que tenha cenas nojentas, violência pra cacete, e toda aquela parte da preparação de corpos e tal, ele SEM DÚVIDA foi o que mais me assustou.

    Martin (Laurence R. Harvey) é um britânico meio anão (ao meu ver), gordo (que adora ficar nu), asmático, não fala meia palavra no filme, doente mental e aparenta ter uns 40 anos. Mora em um pequeno apartamento com sua mãe que também, cá entre nós, não é das mais normais não. Ele foi abusado sexualmente pelo pai quando era um bebê, foi abusado pelo seu psiquiatra e se não bastasse tudo isso ele ainda é obrigado a ouvir de sua mãe todo santo dia, que o pai dele está na cadeia por sua culpa. Ele trabalha como vigia noturno em um estacionamento, e ao assistir o primeiro filme ele fica simplesmente fascinado com a história toda e resolver fazer igual (além de se masturbar com uma lixa. Sim, aquelas lixas de parede).

    Então ele começa a sequestrar as pessoas que voltam de madrugada para buscar o carro no estacionamento e VÁRIOS furos no roteiro vão brotando:

    – 1º ato falho: como é que somem 12 pessoas misteriosamente de um lugar e ninguém vai atrás pra saber o que está acontecendo? Ninguém pega uma filmagem? Oi?

    – 2º ato falho: ele pega um casal que está com uma criança. Ele leva só o casal para o cativeiro e salva a criança. A criança simplesmente some de cena.

    – 3º ato falho: pelas minhas contas, o pessoal ficou pelo menos 3 dias em cativeiro. Todos com ferimento na cabeça, todos baleados, todos perdendo sangue, todos sem comer, todos sem beber. E mesmo assim, toda vez que o Martin entra no recinto, eles arrancam energia sabe lá Deus de onde pra se sacudir freneticamente.

    – 4º ato falho: Martin não é doutor como o cara do primeiro filme. Ele não tem objetos cirúrgicos e quartos limpos. Então ele resolve realizar o procedimento usando um grampeador de escritório mesmo (além de usar laxante pra fazer a “comida” fluir mais rápido, oh que beleza). Pensando nisso, qual a chance de sobrevivência considerando o fato de que está todo mundo jogado em um porão abandonado, imundo e cheios de ferimentos? Bem baixa.

    Momento WTF: tinha uma grávida que ele sequestra no porão e ela se finge de morta. Ela começa a dar à luz quando ele tá colando todo mundo. Então ela simplesmente sai correndo, entra em um carro que está do lado de fora E O BEBE SAI NATURALMENTE. Ela pega e tenta protege-lo? R: não. Ele cai no chão e quando ela acelera o carro pra fugir, acaba esmagando a cabeça da criança. (?????)

    Filme de tortura sempre rolou no mercado. Um exemplo de “sucesso”, foi Jogos Mortais (que embora tivesse uma história por trás de toda carnificina gratuita, todos já estavam cansados após o 3º filme). Agora A Centopeia Humana, nada explica terem feito um filme desse. Não tem diálogos, não tem boas imagens, não tem nada. É pura tortura. Tão ruim que chega a ser engraçado. E isso por que eu vi a versão censurada (foi proibido em diversos países, e não encontrei a versão original de jeito nenhum). Se a curiosidade fala mais alto com você (do mesmo jeito que ela fala comigo) fique tranquilo e assista. O filme inteiro é em preto e branco, o que diminui e MUITO a sensação de mal-estar diante das cenas mais pesadas. Prepare-se para um final estilo WTF?, e por favor evite assistir antes ou após as refeições.

    Texto de autoria de Larissa Tinoco.

  • Crítica | Matadores de Velhinha (2004)

    Crítica | Matadores de Velhinha (2004)

    74 - The Ladykillers (Matadores de Velhinha)

    Um grande problema dos grandes artistas é que sempre após uma grande obra, as atenções se voltam para a próxima com a inevitável comparação de qualidade entre ambas. Desde fins dos anos 80, os Coen se mantiveram em produções de altíssimo nível, mesmo em gêneros diferentes. Porém, no início dos anos 2000, a famosa crise parece ter chegado, dando sinal de esgotamento em “O Amor Custa Caro” e comprovando isso definitivamente agora com Matadores de Velhinha.

    Adaptação de um filme de 1955, aqui traduzido como “O Quinteto da Morte”, a história gira em torno do professor Goldthwait Higginson Dorr (Tom Hanks), arquiteto de um grande plano para assaltar um cassino. Ele aluga um quarto na casa da senhora Munson (Irma P. Hall), uma simpática velhinha, onde convoca seus comparsas para o plano de ação, que era o de disfarçar o ato transformando o grupo de ladrões em um conjunto musical. A situação se complica quando a senhora Munson descobre o plano, o que faz com que os ladrões tenham de alterar os planos várias vezes, até chegarem a conclusão que deveriam matá-la.

    Caracterizado novamente no sul dos EUA, o filme dá espaço a toda a musicalidade negra, assim como em “E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?”, porém, na música gospel, com toda a energia característica dos cultos evangélicos daquela região. Também há no filme as características clássicas dos Coen, como o humor negro (porém, aqui um pouco gratuito e deslocado), os erros que avançam a história e os estereótipos clássicos, porém, o elenco dessa vez não ajuda muito. Se antes tínhamos Frances McDormand, agora temos o irritante e previsível Marlon Wayans, trazendo o lado negativo dos estereótipos, ao contrário daqueles que favorecem a história e familiarizam o espectador com o ambiente, como a personagem da sra. Munson.

    Apesar de ter um arco fechado, a história passa sem que envolva o espectador nela. O filme é plano em todos os aspectos e não consegue sensibilizar. Apesar de garantir uma ou duas risadas por conta da boa atuação de Tom Hanks, a tentativa um tanto quanto rasteira de se apelar ao humor de “tipos” garante mais olhadas no relógio do que diversão, na curta duração do filme (apenas 1h36). O filme também falha na tentativa propositadamente simples de emplacar uma discussão moral a respeito de justificar um roubo se ele fosse para uma causa nobre, onde a incorruptível sra. Munson não cai na tentação e no argumento dos fins justificam os meios do prof. Dorr.

    Tecnicamente, o filme é primoroso, como tudo o que os Coen fazem. Tanto os planos milimetricamente encaixados quanto os diálogos quase ininteligíveis e rápidos para os não fluentes em inglês. O destaque dado à música gospel também é louvável, pois dá um vigor a mais em uma narrativa lisa e com poucas emoções.

    Ninguém discorda da capacidade dos Coen de produzir grandes obras cinematográficas, de apresentar e desenvolver personagens das mais variadas formas, de estabelecer tramas, simples e complexas, que envolvem o espectador de maneira inteligente e tudo isso de forma comercialmente viável, o que a indústria adora. Mas também poucos discordam que Matadores de Velhinha é provavelmente o ponto mais baixo da genial carreira dos diretores/roteiristas/produtores.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Invocação do Mal

    Crítica | Invocação do Mal

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    Muitos roteiros valem-se do recurso de afirmar que a trama é “baseada em fatos reais” para dar mais peso à história. Neste caso, não é apenas um recurso narrativo. Essa tática já é tão manjada e utilizada tão sem critério que confesso ter duvidado dessa premissa e “googlei” o nome dos personagens depois de assistir ao filme. Ed e Lorraine Warren realmente existiram, foram demonologistas amplamente conhecidos e reconhecidos, e o roteiro baseia-se nos arquivos dos casos investigados pelo casal.

    O roteiro não prima pela originalidade, afinal não há muita margem para a criatividade ao escrever sobre uma casa mal-assombrada. Não há como escapar de sussurros e ruídos estranhos, portas e janelas se abrindo, ou se fechando, aparentemente sozinhas, pancadas no chão e paredes, quadros e objetos decorativos sendo jogados ao chão. Mas mesmo assim é bastante eficiente ao focar-se mais na tensão causada pela existência da “assombração” do que nos sustos em si.

    O prólogo – quase uma pegadinha para quem não faz ideia do que se trata o filme – funciona muito bem ao apresentar o casal de investigadores e seu modus operandi. Há, embutida nele, a dica de que o filme não se resumirá a sustos e gritos histéricos, como boa parte dos filmes de terror infelizmente costuma ser.

    A estória se passa no início dos anos 70 e vale a pena reparar na reconstituição de época que não deixa a desejar. Desde os carros, até as roupas – as estampas de vestidos e camisolas, os cortes dos ternos e camisas – passando pelos penteados – o que são aquelas costeletas? rs – e elementos do cenário – mobília e eletrodomésticos. Sem contar a trilha sonora, quase toda diegética, com ótimos hits da época.

    O elenco está muito bem, com destaque para Vera Farmiga (Lorraine Warren), lógico. Um rápido flashback sobre um caso investigado que “desandou” talvez explique sua constante melancolia, mas mesmo assim, sua cara de tristeza durante todo o filme às vezes parece meio forçada. Patrick Wilson (Ed Warren) não desaponta. Lily Taylor (Carolyn Perron), quase no mesmo clima de Hemlock Grove, consegue nos fazer esquecer do péssimo A casa mal assombrada. Ron Livingston, o eterno Tenente Lewis Nixon em Band of Brothers, é bem convincente como o único homem numa família de seis mulheres.

    Não sei se é realmente o melhor filme de terror dos últimos tempos. Mas certamente James Wan – responsável por Jogos Mortais (o primeiro, de 2004), pelo razoável Sentença de Morte (2007) e pelo recente Sobrenatural (2011) – conseguiu fazer um filme de terror acima da média, competente e com várias referências para os fãs do gênero.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | Stieg Larsson: Antes de Millenium

    Resenha | Stieg Larsson: Antes de Millenium

    Stieg Larsson – Antes de Millenium é uma história em quadrinho, ou Graphic Novel se você é fresco, biográfica sobre o autor sueco da famosa trilogia Millenium. Foi concebida por Guillaume Lebeau e Frédéric Rébéna, escrita pelo primeiro e desenhada pelo segundo.

    Sinopse: as três fases mais marcantes da vida de Stieg Larsson são mostradas na história, a primeira se passa nas florestas suecas enquanto o jovem autor vivia com seus avós paternos, depois o vemos no meio da guerra civil da Eritréia no final dos anos 70, e por último, na Suécia no meio dos anos 90 quando a sua revista anti-fascista Expo é fundada, e um epílogo para 2004, meses antes do autor morrer.

    De forma biográfica, a história parte da premissa questionável de que o autor da trilogia Millenium teve uma vida tão fascinante quanto a dos livros que criou. De fato a sua trajetória pessoal foi curiosa e turbulenta, mas partir do pressuposto de que Stieg Larsson como personagem é tão interessante quanto a enigmática Lisbeth Salander ou o marcante Mikael Blomkvist é de uma insensatez tamanha. Apesar de dignos de nota, os episódios marcantes da vida do autor não se comparam com as aventuras policiais vividas pelo casal de protagonista da trilogia de livros.

    A vida de Larsson pode perfeitamente ser retratada em no máximo 4 ou 5 parágrafos no fim de cada um dos livros, mas a princípio não se justificaria a elaboração de uma HQ para retratá-los. Mesmo pensado em atingir os fãs da série, ele pode vir a acabar decepcionando quem espera o mesmo clima policial. Em suma, o material apresentado nesta obra seria muito mais interessante e rico se fosse a quadrinização de um dos livros, um prequel, ou até histórias extras dentro do seu universo expandido. Aliás, parte do título “Antes de Millenium” e a capa de uma pessoa idêntica à Lisbeth Salander soa enganador para quem acha que se trata de um prequel dos livros.

    milleniumA outra capa.

    A história de vida do autor mostra como aos poucos o universo da trilogia Millenium foi sendo construído: uma fotógrafa da Expo que se parece muito com Lisbeth, a própria revista fundada por Larsson, Mikael é um amigo jornalista que trabalha na mesma revista, além, é claro, dos neo-nazistas e grupos fascistas figurando na Suécia nos anos 80, 90 e anos 2000. O mais interessante da trama, no entanto, é a metáfora da raposa. No início da história, Stieg e seu avô estão caçando o animal por ter feito estragos. Ela se assemelha a um inimigo que o autor tomou como pessoal: as ideias fascistas. Inclusive a parte mais interessante se dá no que parece ser a página 09, já que as páginas não são numeradas, quando uma piada com o animal se realiza pela avó do jovem Stieg.

    A arte curiosa de Frédéric Rébéna soa como um rascunho, um esboço ainda a ser arte-finalizado. Isso dá um caráter curioso para a obra, pois mostra como a vida de Stieg Larsson não foi totalmente completa, já que o autor não se casou com a sua companheira por temer ser encontrado por grupos fascistas e morreu meses antes dos livros serem publicados e de obter o merecido reconhecimento e sucesso mundial.

    A edição da Veneta poderia ter numerado as páginas, além de melhorar o papel, que soa simplório. A capa com a moça que se parece com a Lisbeth, apesar de interessante, soa de fato enganador para quem procura algo dentro do universo dos livros. Nesse sentido, outra capa com o desenho de Stieg Larsson seria mais honesta. A editora também colocou informações curiosas sobre Larsson nos extras, que poderiam inclusive ter entrado no material original, mas, obviamente isso recai sobre os autores da HQ. Apesar de enriquecer a obra, ao mesmo tempo reforça o que eu disse ali em cima: a vida de Stieg Larsson foi interessante, mas não a ponto de realizar uma história em quadrinho de mais de 60 páginas.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Sem Dor, Sem Ganho

    Crítica | Sem Dor, Sem Ganho

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    Após passar alguns anos dedicando-se aos blockbusters de uma popular e milionária franquia, um cineasta resolve respirar novos ares. Orçamento baixo (estimado em 26 milhões de dólares), roteiro baseado em fatos reais… é de se imaginar algo mais intimista, mais “cabeça”, talvez? Não quando estamos falando do explosivo Michael Bay. Dinheiro e efeitos especiais à parte, a alma do diretor permanece em Sem Dor, Sem Ganho – uma divertida comédia de ação que até surpreendeu os detratores deste gênio incompreendido.

    Situada em meados dos anos 1990, a trama acompanha um trio de fisiculturistas de Miami que decide tentar um grande golpe pra mudar de vida. Daniel Lugo (Mark Wahlberg) é um personal trainer que assiste a uma palestra de auto-ajuda e sai iluminado: ao invés de ficar reclamando da vida, ele vai agir para ter aquilo que julga merecer. Com isso, entenda-se sequestrar um endinheirado frequentador da sua academia (Tony Shalhoub) e “convence-lo” a transferir seus bens pra ele. Os parceiros de crime de Lugo são Adrian Doorbal (Anthony Mackie), um simplório marombeiro que enfrenta problemas de disfunção erétil; e o ex-presidiário arrependido e hoje cristão, Paul Doyle (Dwayne “The Rock” Johnson). Atrapalhados até dizer chega, os fortões agem na base do improviso e tentativa e erro (e são muitos, muitos erros), e acabam tendo que se dedicar mais a consertar as próprias furadas do que a aproveitar o sucesso do plano.

    Como citado anteriormente, Michael Bay não deixou de lado suas marcas. Aspectos visuais impecáveis, apesar do orçamento reduzido, algo que faz lembrar da estreia de Bay em longa-metragens. O primeiro Bad Boys, de 1995, também se passava em Miami e trazia a ensolarada fotografia que aqui se repete. Ainda que Sem Dor, Sem Ganho tenha consideravelmente menos cenas de ação (pelo menos para o padrão do diretor), o ritmo ainda é frenético, com cortes e diálogos rápidos. Mesmo em cenas expositivas, a sensação de correria permanece. E claro, estão lá as câmeras lentas, a luz do sol estourando em diversos reflexos, e até mesmo uma explosãozinha básica, com direito ao trio de “heróis” de costas para ela, andando lentamente.

    O que acaba sendo um diferencial do filme é que o roteiro justifica – ou pelo menos acompanha – esses exageros visuais. Quando algo se anuncia como “baseado em fatos reais”, nossa reação normal é ligar o desconfiômetro e considerar a velha “magia do cinema”. Mas neste caso isso não afeta tanto, primeiramente porque ninguém duvida que os norte-americanos sejam capazes de maluquices. E depois, porque o filme se assume, desde o início, como um causo insanamente divertido, sem exibir qualquer pretensão documental/moralista.

    Nessa pegada, é uma diversão à parte especular até que ponto foram intencionais as zoações com o Sonho Americano. Começando com o protagonista dizendo que os EUA passaram de “um punhado de colônias mirradas” para “o país mais bombado do mundo” através de muito suor e trabalho duro. Conceitos de auto-ajuda tipicamente rasos se fundem tão bem, não só com o ideal capitalista estadunidense do “self-made man“, mas também com o simples (e povoado por mentes simples) universo da musculação. Impagável. E provavelmente involuntário, ou alguém acredita que Bay e os roteiristas Christopher Markus e Stephen McFeely se preocuparam em trabalhar camadas de ironia?

    Os atores que acompanham toda essa proposta escapista estão muito bem encaixados em seus papéis. Mark Wahlberg meio que repete seu papel em Ted, como um palerma que não se toca do quanto é estúpido. E, por se levar a sério e agir de acordo, acaba sendo muito mais engraçado do que seria se tentasse fazer humor. Abandonando um pouco a pose de fodão, The Rock também diverte como o incrivelmente ingênuo Doyle. Seja se entregando a Jesus ou à cocaína, ele consegue ser o mais tapado do grupo. Anthony Mackie e Rebel Wilson, ambos estereótipos, nada de especial. Ed Harris, ok trabalhando no automático. E Tony Shalhoub, o único que atua no filme, consegue fazer um personagem tão asqueroso que não desperta simpatia em momento algum, mesmo sendo uma vítima inocente. Ah, sim: a gatíssima Bar Paly confirma a habilidade de Michael Bay de transformar magrelas em deusas da gostosura na telona.

    Sem Dor, Sem Ganho não é, como alguns exagerados apontaram, o melhor trabalho de Michael Bay (isso só mostra que chega a ser irracional o ódio que muitos têm dele). É uma aventura descompromissada, um entretenimento bem executado. E deixa a interessante lição de que limites podem fazer bem ao diretor. Resta saber se ele entendeu isso, afinal, o quarto Transformers vem aí.

    Texto de autoria de Jackson Good.

  • Os Maiores Golpes de Roteiro de Breaking Bad

    Os Maiores Golpes de Roteiro de Breaking Bad

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    Atenção: contém spoilers de toda a série. Siga por sua conta e risco.

    De forma merecida, Breaking Bad entrou para o seleto grupo de séries da considerada atual era de ouro da televisão americana. A esta lista, em que também figuram SopranosMad Men, The Wire e A Sete Palmos, eu acrescentaria ainda a pouco comentada Deadwood da HBO, que, apesar de ter sido cancelada após a terceira temporada, em 2006, continua sendo uma das séries mais bem escritas até hoje.

    No entanto, algumas pessoas creditam a ótima série criada por Vince Gilligan para o canal pago AMC como a melhor série de todos os tempos, que dividiu a televisão entre antes e depois, e que Breaking Bad é um exemplo Impecável da televisão como forma de arte. Não sei se chega a tanto, já que ela tem problemas narrativos perceptíveis, entre eles muitos “golpe de roteiro”. Golpe de roteiro é quando o roteirista e/ou diretor resolvem forçar uma situação não natural entre os personagens para que se crie uma tensão entre eles. Quando bem feita, tudo passa desapercebido e o roteiro chega ao nível de excelência de Sopranos e Deadwood; agora, quando não é, quebra a quarta parede e tira o espectador da história.

    Como desconstruir é muito mais interessante do que construir, sem mais delongas, vamos a elas:

    01 – Episódio “Sunset” (6º epi/3a temp): Hank deixa o ferro-velho onde está encurralando Jesse e Walt no trailer e segue correndo para o hospital depois de receber uma ligação informando que Marie está internada.

    Golpe de roteiro: encontrar uma solução para livrar Hank de quase prender Walt e Jesse.

    Forçada de barra: entende-se que o personagem pode entrar em choque ao receber uma notícia do tipo, mas não é do feitio do melhor agente investigativo do DEA não checar e confirmar a veracidade de qualquer informação que receba, ainda mais um que lide com chefões do crime organizado.

    02 – Episódio “Sunset” (6º epi/3a temp): Walt ignora o aviso de Badger sobre avisar Jesse de que mudariam o trailer de lugar, mesmo sabendo que Hank o estava seguindo.

    Golpe de roteiro: fazer com que Hank quase prenda Jesse e Walt por causa do trailer.

    Forçada de barra: o sempre cuidadoso Walter White não o foi dessa vez por conveniência do roteiro.

     03 – Episódio “4 Days Out” (9º epi/2ª temp): Jesse “esquece” a chave do trailer ligado durante todo o final de semana, arriando a bateria.

    Golpe de roteiro: deixar os dois protagonistas à revelia no meio do deserto.

    Forçada de barra: eles sempre passaram dias cozinhando no meio do deserto e nada nunca aconteceu, somente quando os roteiristas quiseram.

    04 – Episódio “ABQ” (13º epi/2ª temp): Sob o efeito da anestesia, Walter revela o segundo celular para Skyler.

    Golpe de roteiro: além da grande revelação bombástica, iniciar o arco de decaída do protagonista ao mostrar o começo da ruptura familiar, a falta de apoio de Skyler e Jr.

    Forçada de barra: mesmo tendo falado “sem querer” e sob o efeito do anestésico, nada justifica o descaso do roteiro, jogando a informação sem mais nem menos, com o único propósito já dito acima.

    05 – Episódio “Half Measure” (12º epi/3ª temp): Tomás, o irmão da namorada de Jesse, aparece morto mesmo depois de Gus Fring fazer os traficantes prometerem não usar mais meninos.

    Golpe de roteiro: fazer com que Jesse busque vingança do modo mais desesperado possível, a ponto de uma catástrofe em potencial surgir.

    Forçada de barra: mesmo sendo inconsequente durante boa parte da série, Jesse já havia tido o seu momento estúpido minutos antes do encontro com Fring, ao tentar envenenar os traficantes ao lado da prostituta. Fring sempre foi conhecido como um homem de negócios razoável e que sempre cumpriu a sua palavra, portanto, não é justificável o acontecido com o menino.

    06 – Episódio “Say My Name” (07º epi/5ª temp): Walter mata Mike para pegar os nomes dos comparsas de Mike que estavam na prisão.

    Golpe de roteiro: matar um dos personagens mais carismáticos da série.

    Forçada de barra: para evitar que o roteiro fosse criticado como um grande furo, o roteirista tratou de colocar que o próprio Walter “se lembrou” de que Lydia tinha a lista.

     07 – Episódio “Gliding Over All” (08º epi/5ª temp): Hank finalmente descobre que Walter é Heisenberg.

    Golpe de roteiro: promover uma das maiores revelações da série e iniciar o último arco da história.

    Forçada de barra: assim, do nada, enquanto está cagando, Hank percebe que Walter é Heisenberg por causa da dedicatória WW, sendo que é algo que “o maior investigador da DEA” poderia ter deduzido uma temporada e meia atrás. Então tá, né.

    Antes que algum leitor apele para a “humanidade” dos personagens como justificativa para seus atos falhos nestes exemplos citados aqui, lembro que a humanidade emBreaking Bad é mostrada de forma exemplar quando Walter aos poucos vai se transformando no Heisenberg durante toda a história, Skyler traindo o Walt com o Ted Beneke, Jesse tendo suas recaídas de drogas e se sentindo deprimido de vez em quando, Hank tendo sua crise de pânico e a difícil recuperação do hospital, além de Marie tendo o seu dia de cleptomaníaca.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

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  • Crítica | Incêndios

    Crítica | Incêndios

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    Produção franco-canadense, de 2010, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Direção e roteiro de Denis Villeneuve. Baseado numa peça (de mesmo nome) de Wadji Mouawad. Com: Lubna Azabal, Mélissa Désormeaux-Poulin e Maxim Gaudette.

    Em Montreal, Nawal Marwan (Azabal) é mãe do casal de gêmeos Jeanne (Désormeaux-Poulin) e Simon Marwan Gaudette) e sempre tratou ambos com distanciamento. Trabalhava há mais de 15 anos como secretária de um notário, cuja esposa (assim como ele) afeiçoou-se a ela e seus filhos. Nawal faleceu e durante a leitura de seu testamento os irmãos são surpreendidos com alguns dos desejos da mãe. Ela pede para ser enterrada sem caixão, sem lápide, sem epitáfio. Deixou duas cartas, ou melhor, três. Uma a ser entregue por Simon ao pai, que não conheceram e julgavam morto. Outra a ser entregue por Jeanne ao irmão, cuja existência desconheciam. E a última a ser entregue a eles depois das outras duas chegarem a seus destinatários.

    Os irmãos reagem de forma totalmente diversa. Enquanto Simon reluta em cumprir as disposições do testamento, querendo simplesmente dar à mãe um enterro convencional e seguir com sua vida; Jeanne entrevê a possibilidade de descobrir e entender a causa do silêncio de sua mãe nas semanas que antecederam sua morte, assim como de aprender sobre sua própria origem e a de sua família. E Jeanne viaja para o Líbano a fim de iniciar sua busca pelo passado.

    Inicialmente, pode parecer que se trata de um misto de filme de detetive e road-movie. Mas é muito mais que isso. O espectador acompanha duas linhas temporais, a viagem de Jeanne à procura de informações e a jornada de Nawal desde sua juventude. A alternância entre elas não gera confusão, ao contrário, as narrativas são complementares. As revelações são feitas aos poucos, sem pressa. E o espectador descobre, junto com Jeanne, os motivos que levaram Nawal a ser tão distante e a manter esses segredos durante todo o tempo.

    A peça em que se baseia o filme foi inspirada na estória de Souha Béchara, membro da resistência libanesa, que atualmente mora em Genebra. O pano de fundo da estória é a guerra civil libanesa, os conflitos entre cristãos e muçulmanos. Sem nunca nomear quaisquer dos personagens e localidades reais envolvidas, o roteiro evita cair no lugar-comum e tomar partido. Imparcialmente, enquanto o espectador acompanha o desenrolar da estória de Nawal, presencia a violência que passou a fazer parte do dia-a-dia da população local. É como se a trajetória dela fosse um resumo do momento histórico que vivenciou tão intensamente.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | O Amor Custa Caro

    Crítica | O Amor Custa Caro

    o amor custa caro

    Todo grande cineasta, vez ou outra, se depara com projetos onde precisa ceder para conquistar público ou agradar seus empregadores a fim de mantê-los felizes o suficiente para continuarem bancando seus projetos pessoais, e poucos são os felizardos que nunca precisaram passar por isso. Com um orçamento de U$ 60 mi e uma renda mundial de U$ 120 mi, pode-se dizer que neste aspecto o filme atingiu seus objetivos. Artisticamente falando, porém, a produção não faz jus à filmografia dos Coen.

    A história gira em torno de Miles Massey (George Clooney), um bem-sucedido advogado especialista em divórcios que está entediado e em busca de novos desafios em sua carreira e em sua vida particular. Marylin Rexroth (Catherine Zeta-Jones) é uma mulher que deseja se tornar rica através do dinheiro conseguido em diversas separações, e que conhece Miles por este ser o advogado de seu ex-marido, Rex Rexroth (Edward Herrmann). Miles consegue a separação a favor de Rex, mas acaba se apaixonando por Marylin.

    O elenco, como de costume, é bem escolhido e Clooney está exagerado na medida certa como o advogado caricato. Zeta-Jones às vezes destoa nas caras e bocas sensuais, mas faz bem o papel que lhe é dado. A boa sequência inicial com Geoffrey Rush (que serve inicialmente só para apresentar-nos a Miles) também rende uma participação maior e muito boa no final, assim como a pequena (mas importante) participação de Billy Bob Thornton.

    Porém, apesar de o filme conter algumas das principais características dos Coen (como o humor negro e as viradas de roteiro), esses elementos não são suficientes para salvar o roteiro de certo cansaço no avançar da história, que de certa forma se torna previsível. O que realmente a salva são os personagens empáticos e cenas hilárias (e infantis, na medida certa) que tiram sorrisos agradáveis do espectador, que, graças a essas qualidades, acaba esquecendo e relevando as falhas estruturais da narrativa.

    O Amor Custa Caro funciona como comédia romântica ao dar espaço para protagonistas inteligentes se apaixonarem, ao utilizar clichês do gênero ao seu favor e como diversão pura e simples, mas fica aquém da capacidade de uma dupla que já nos deu produções como Fargo, apesar de estar bem acima da média das comédias românticas dos últimos anos, gênero desgastado como poucos.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Resenha | Luz e Sombra: Conversas com Jimmy Page – Brad Tolinski

    Resenha | Luz e Sombra: Conversas com Jimmy Page – Brad Tolinski

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    Ao olhar para o título do livro Luz e Sombra – Conversas com Jimmy Page, é possível que o leitor pense, ao menos num primeiro momento, que se trata de apenas um título sem maior significado.

    Engano.

    O conceito de “Luz e Sombra” talvez seja o que melhor define uma das principais características da obra do guitarrista inglês: a alternância de dinâmica entre peso e leveza, velocidade e lentidão dentro de uma mesma canção.

    Exemplos da aplicação desse conceito não faltam. Principalmente na obra do Led Zeppelin, uma das maiores bandas de todos os tempos e o grupo ao qual Page é imediatamente associado, como fundador, líder, produtor e principal compositor. Canções como “Ramble On”, “Dazed and Confused” e “‘Stairway to Heaven”, entre tantas outras, são provas vivas de que, para ele, uma composição é formada, antes de qualquer outra coisa, por nuances e variações.

    Page é declaradamente avesso a entrevistas. Nunca escondeu que detesta falar com jornalistas. A postura defensiva é fruto do massacre que praticamente todos os álbuns do Zeppelin sofreram nas mãos da crítica americana. Um dos poucos que conseguiram furar o silêncio do músico foi Brad Tolinski, editor da revista Guitar World. O livro é justamente o resultado da compilação de várias conversas que ambos tiveram ao longo dos anos.

    Organizado de forma cronológica, a obra mostra toda a história de Jimmy Page – desde seu nascimento até o primeiro contato com a guitarra, ainda na infância. As excursões em grupos pequenos e pouco no início da carreira. O longo período em que trabalhou como músico de estúdio, quando gravou com praticamente todos os grandes nomes da música britânica na década de 1960. A entrada nos Yardbirds. A formação, ascensão e dissolução do Led Zeppelin. Os trabalhos posteriores com o The Firm e o álbum que gravou em parceria com David Coverdale. A reunião com Robert Plant para os álbuns “No Quarter” e “Walking into Clarksdale”. O show solitário do Zeppelin na O2 Arena, lançado ano passado nos cinemas, e a participação no documentário A Todo Volume.

    Tudo está lá, costurado por longas entrevistas com o próprio Page e também com pessoas que passaram pela sua vida profissional, como Chris Dreja (Yardbirds), John Paul Jones (Led Zeppelin), Jack White (The White Stripes e Raconteurs) e Paul Rodgers (Bad Company, The Firm e Queen).

    Nas conversas, o guitarrista fala sobre a vida, os detalhes das turnês, seu processo criativo, o trabalho como produtor e as técnicas utilizadas por ele para captar o som em estúdio.

    Para quem não sabe, Page é considerado um revolucionário no que se refere à captação do som de bateria. Se quiserem um exemplo dessa habilidade, ouçam com atenção o bumbo fantasmagórico e cheio de ambiência tocado por John Bonham no início de “When the Levee Breaks”, do  Led Zeppelin IV.

    No entanto, há um assunto sobre o qual o guitarrista se esquiva todo o tempo: o seu envolvimento com magia e ocultismo. O entrevistador se esforça para conseguir detalhes, mas Page concede apenas respostas evasivas, o que aumenta ainda mais o mistério sobre este aspecto da sua vida.

    Como se sabe, o músico é tão fascinado pelo oculto que, em 1971, comprou a Boleskine – mansão localizada às margens do Lago Ness, na Escócia, e que antes pertenceu ao mago Aleister Crowley. Ele também é o responsável pela adoção dos quatro símbolos rúnicos associados a cada integrante do Zeppelin.

    Além de tudo isso, o livro traz uma parte dedicada apenas aos aspectos técnicos da vida de Page como músico: uma relação detalhada de guitarras, amplificadores e pedais usados pelo guitarrista.

    Luz e Sombra – Conversas com Jimmy Page é item fundamental para todos aqueles que querem saber mais sobre a história do Led Zeppelin, mas principalmente para quem deseja mergulhar nos detalhes da vida de um dos maiores guitarristas da história do Rock.

    Compre aqui.

    Texto de autoria de Carlos Brito.

     

  • Crítica | Perigo por Encomenda

    Crítica | Perigo por Encomenda

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    Todo motorista que circula pelas ruas de São Paulo já está habituado aos motoboys. E quando digo habituado, refiro-me à presença deles e não às suas estrepolias no trânsito, geralmente súbitas e inseguras. Imagine se essa horda de “cachorros loucos” fosse formada por couriers pilotando bicicletas ao invés de motos. Conseguiu imaginar? Se sim, você acaba de visualizar Nova Iorque. Agora imagine que alguns desses “ciclistas” estejam correndo contra o tempo, não para fazer a entrega no menor tempo possível, mas para resolver um problema causado pelo conteúdo de uma das entregas. Imaginou? Então você acaba de vislumbrar o roteiro de Perigo por Encomenda.

    Wilee (Joseph Gordon-Levitt) é um quase advogado (falta fazer o exame final, algo similar ao da OAB) que trabalha como entregador-ciclista, ou bike messenger, suprindo sua demanda por adrenalina pedalando ferozmente pelas ruas de Nova Iorque. Na gíria dos ciclistas, ele é um fixeiro, ou seja, usa uma bicicleta sem marchas, sem roda livre (os pedais se movem o tempo todo junto com as rodas) e sem freios – já que os próprios pedais podem ser utilizados para frenagem. Ele é o que se poderia chamar de adepto do ciclismo “de raiz”.

    Bobby Monday (Michael Shannon, o General Zod de Homem de aço) é um policial viciado em jogo que quer o conteúdo de um envelope que deve ser entregue por Wilee. Vanessa (Dania Ramirez) é a ex-namorada, também entregadora, que desaprova o modus operandi de Wilee. Manny (Wolé Parks) é outro bike messenger da mesma empresa, que cobiça Vanessa e inveja Wilee.

    Gordon-Levitt literalmente deu o sangue pelo papel, sua atuação é intensa o bastante para convencer o espectador de que ele realmente consegue pedalar daquela maneira. Contudo, o filme basicamente se resume a perseguições frenéticas pelas ruas de Nova Iorque enquanto Bobby tenta impedir que o tal envelope chegue a seu destino, com direito a um alívio cômico proporcionado por um policial nova-iorquino, também ciclista. Alguns flashbacks intercalados explicam como cada personagem chegou à situação atual. Inserções no estilo Google Maps and Navigation ilustram as rotas a serem seguidas pelos messengers. E o próprio Wilee tem “previews” dos caminhos possíveis a seguir quando um obstáculo se apresenta.

    E é apenas isso. Um filme de perseguição, rápido, não cansativo, interessante de assistir num sábado de ócio no sofá com pipoca. Diverte sem ser tolo, apesar de algumas situações improváveis. Mas também não leva a qualquer reflexão pós-filme. Puro entretenimento.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?

    Crítica | E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?

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    Os Irmãos Coen são conhecidos por criarem exóticos personagens em meio ao retrato realista de um determinado local ou época, como podemos ver em Fargo, O Grande Lebowski e principalmente Arizona Nunca Mais. Em E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?, voltamos ao sul dos EUA, no período da Grande Depressão, quando três presidiários, Everett Ulysses McGill (George Clooney), Delmar (Tim Nelson) e Pete (John Turturro), fogem da cadeia rumo a uma missão de resgatar o tesouro que Everett havia roubado e escondido.

    Logo no início do filme, somos avisados que o roteiro é baseado n’A Odisseia de Homero. Como em Fargo os Coen já haviam pregado uma peça no espectador ao dizerem que o filme se baseava em uma história real, todo cuidado é pouco na hora de levá-los muito a sério. Porém, o que vemos é que o filme realmente se utiliza de elementos da narrativa do clássico grego, mesmo no nome do personagem principal, até mesmo nos confrontos e sucessivas confusões que os protagonistas se deparam, como o “Ciclope” Big Dan Teague (John Goodman), as três sereias no rio e a urgência de se chegar em casa antes que a esposa de Everett se casasse com outro homem.

    O filme tem tons de comédia pastelão, em homenagem ao cinema da época, com frases feitas e situações bobas, mas nunca gratuitas. Os três protagonistas se completam, cada um dentro de sua atuação, personificando um estereótipo da época: o bandido sulista malvado clássico, o bandido culto e o bandido de bom coração. A fotografia do sul do Mississipi, com seus pântanos e florestas quentes e densas, é bem utilizada em cada sequência, nos fazendo sentir que estamos naqueles locais, pois cada tomada tem um propósito singular de servir unicamente à história.

    Outro destaque é a trilha sonora, composta por canções folk do sul norte-americano muito bem executadas, e que são um personagem à parte na história, pois fazem os bandidos virarem astros de uma pré-indústria cultural quase de forma nativa, em uma alusão ao fato de que a musicalidade é inata ao sulista, tão forte é esta característica na região. Destaque também para o sotaque sulista, em que podemos ver, assim como em Arizona, a entonação perfeita de cada palavra e letra da forma simpática que os sulistas fazem. Isso infelizmente perde-se um pouco na tradução do título original para o português; “Ó Irmão, Onde Estarás?” ficaria mais fiel à proposta original.

    Outros pontos mais polêmicos são abordados, como política e racismo: há uma disputa política entre dois figurões da cidade que concorrem ao cargo de governador do estado, e apesar de nos ser mostrado desde o início que um seria ruim e outro bom, logo essa falsa crença é desmontada ao colocar a figura que supostamente iria renovar a política em um encontro da KKK, também tratada da forma como deve ser, a de uma interpretação simplista e falsa da complexa realidade local.

    Em meio a tantas informações subjetivas que temos de absorver, a história principal acaba ficando em segundo plano, assim como alguns personagens que poderiam ser mais desenvolvidos, como Tommy (Chris Thomas King), um músico que acaba de vender a alma ao diabo para tocar bem o violão, mas que só fica nisso, deixando no ar uma oportunidade perdida de flertar com outro elemento cultural conhecido do sul.

    Apesar de não ter a profundidade de Fargo, E Aí, Meu Irmão, Cadê Você? garante uma boa diversão e uma imersão a um universo fabulesco que garante boas risadas e nos remete a uma época e lugar que poderiam ter sido boas, mesmo que a realidade nos diga o contrário.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Dose dupla

    Crítica | Dose dupla

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    O filme é uma adaptação da série de quadrinhos homônima publicada em 2007 pelo Boom! Studios. Escrita por Steve Grant e ilustrada pelo brasileiro Mateus Santolouco, a HQ conta a história de um agente do departamento de narcóticos (DEA), Robert ‘Bobby’ Trench (vivido no filme por Denzel Washington), e de um oficial da inteligência naval, Michael ‘Stig’ Stigman (no filme, Mark Wahlberg), que investigam um ao outro sem saber de suas reais identidades. No filme, trabalham juntos tentando se infiltrar em um cartel, mas algo dá errado e ambos acabam perseguidos por seus próprios empregadores.

    É um típico buddy movie, mas com algumas particularidades que incrementam a narrativa. A fórmula “dupla combatendo o crime”, apesar de bastante batida, funciona bem aqui. Isso se deve principalmente ao detalhe de que cada um deles não sabe da verdadeira identidade do outro, ao menos no início da trama. Trabalhando para agências diferentes, acham que o parceiro é um traficante de verdade, o que resulta em situações bem divertidas. Depois de descobrirem que ambos estão do mesmo lado da lei, a “graça” persiste ao se tornarem uma versão século XXI de Murtaugh e Riggs, discutindo o tempo todo feito um casal ranzinza.

    É uma pena que a estrutura “dupla age baseada em fatos que se revelam falsos / dupla se ferra / dupla se safa” repita-se tantas vezes durante todo o filme, a ponto de se tornar cansativa. Na segunda metade do filme, o espectador já assiste às cenas aguardando o momento em que o roteirista “puxa o tapete” dos protagonistas para ver como eles conseguirão escapar.

    Não fosse o carisma da dupla central e a ótima dinâmica entre os personagens, o filme seria um daqueles em que o espectador começa a checar o relógio passados apenas 40 minutos de projeção. O pavio curto de Stig, assim como a aparente carência de uma inteligência mais aguda, fazem o contraponto ideal para a malemolência de Bobby e seu distanciamento de relações sociais.

    Usando uma paleta de cores “estouradas”, a fotografia deixa o espectador o tempo todo com a mesma sensação de desconforto causada pelo calor e pela aridez do deserto mexicano. Trilha sonora bacana – composta pelo responsável pela trilha do ótimo Distrito 9, Clinton Shorter – complementa bem tanto as cenas de ação quanto as (poucas) cenas mais calmas. Não é daquelas que se sai cantarolando do cinema, mas é boa o suficiente para não ser notada quando não é necessário.

    Filme de ação quase ininterrupta, diverte sem ofender (muito) a inteligência do espectador. Basta relevar alguns exageros e nonsenses da trama – comuns a esse estilo de filme – e a diversão está garantida, com direito a muita pipoca.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Raul: O Início, o Fim e o Meio

    Crítica | Raul: O Início, o Fim e o Meio

    69 - Raul - O Início, o Fim e o Meio

    Provavelmente não existe um brasileiro que não saiba ao menos um trecho de uma música de Raul Seixas. Mesmo que ele esteja morto há mais de 20 anos e não seja fenômeno de mídia em tempos tão efêmeros, Raul ainda move multidões anônimas que sempre se manifestam em qualquer show com o irritante “Toca Raul”. Porém, há tempos que o cinema necessitava de contar a história por trás do mito, como foi chamado por várias figuras populares no Brasil, como Paulo Coelho e Caetano Veloso. E esse filme de Walter Carvalho faz jus ao personagem.

    Começando com uma estrutura reta de documentário, o filme se inicia contando a história do jovem Raul e seus amigos na Bahia, montando um fã-clube de Elvis Presley e aprendendo frases, trejeitos, penteados e roupas do Rei do Rock, mostrando um ótimo trabalho de levantamento da juventude de Seixas. O início romântico e conturbado da carreira se mescla a seu primeiro casamento com Edith, fato que se repetirá ainda diversas vezes na vida do cantor, que teve várias esposas e amantes. A cada novo sucesso, uma nova fase, com novo comportamento, nova mania e novo vício, o que mais pra frente se tornará motivo da decadência de Raul.

    Com entrevistas que vão desde suas ex-mulheres, filhas e amigos, o filme se foca mais na vida pessoal do cantor do que em sua carreira, ao mesmo tempo louvando a genialidade de Raul, mas ignorando aspectos práticos, como o processo criativo, as gravações, o nome dos discos, época do lançamento, e tudo o que poderia situar o espectador no entendimento das razões pelas quais Raul fazia tanto sucesso. Da mesma forma, o filme falha em explicar porque o ídolo, de uma hora para outra nos anos 80, passa a ser esquecido e não fazer mais sucesso como antes, necessitando da ajuda (ou aproveitamento, como é discutido) de Marcelo Nova para voltar aos palcos, mesmo que se arrastando, o que alguns dizem que prolongou a vida de Raul, outros, que a abreviou. O fato é que sua carreira foi tratada de forma menor em detrimento de sua vida pessoal, o que atrapalha um pouco o entendimento do tamanho de sua obra.

    Porém, o espaço enorme dado a Paulo Coelho e a tentativa intencionalmente falsa de deixar em segundo plano o enorme ego do escritor (que sempre tenta passar como humilde, mas não resiste em pateticamente se mostrar atirando flechas em sua casa na Suíça) mostra claramente como algumas feridas ainda estão longe de serem cicatrizadas, e talvez a batalha dos egos, mesmo com Raul morto, não tenha terminado. E nunca terminará.

    O fato é que Raul Seixas, como mito e como ser humano, é indecifrável, e por alguma razão, extremamente atraente a determinados tipos de pessoas, como os “malucos beleza” que todos conhecemos. Não à toa, todo ano em SP há uma reunião de fãs e sósias do cantor para se reunirem e saudarem o ídolo. Por mais que Raul não seja hoje o fenômeno da indústria cultural, basta ouvirmos um trecho de suas músicas para nos fazer ficar com ela na cabeça durante um bom tempo, pois esconde em melodias relativamente simples letras recheadas de simbolismo. Isso basta para definir um ícone. Ou como Paulo Coelho prefere, um mito.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Jobs

    Crítica | Jobs

    Jobs

    O filme enfoca a vida do sócio-fundador da Apple, desde sua juventude hippie, passando pela fundação da empresa que lhe garantiu a fama de inovador até sua volta à empresa como CEO, depois de ter sido relegado ao ostracismo durante alguns anos.

    Mesmo não conhecendo a fundo os eventos e nem tendo lido a biografia de Steve Jobs, percebe-se que parte das críticas feitas ao filme por Steve Wozniak (fundador da Apple junto com Jobs) procedem. Nota-se que é dada muita ênfase à figura de Jobs, às suas decisões, às suas ideias e ao seu modo de conduzir os negócios. Os demais personagens, apesar de provavelmente terem participado bem mais ativamente dos acontecimentos, ficam relegados quase a meros coadjuvantes. Não que Jobs não tenha seu mérito, isso é inquestionável. Mas o roteiro exagera ao tentar induzir o espectador a achar que Jobs foi o principal – senão, único – responsável para a Apple ser o que é. Steve Jobs vai de underdog a gênio inovador quase num piscar de olhos. Sim, é clichê. Assim como é extremamente clichê a cena em que ele tem sua epifania sobre o futuro a seguir.

    O filme tem um problema de ritmo. Apesar da duração ser de pouco mais de duas horas, tem-se a impressão de que se arrasta por muito mais tempo. Mesmo que aparentemente alguns eventos tenham sido “acelerados” a fim de caberem no tempo da narrativa – o que por vezes compromete o entendimento – o fluxo narrativo parece truncado, sem fluidez. Inevitavelmente, tentar condensar cerca de 25 anos num roteiro de duas horas incorreria em problemas dessa natureza. Há ainda falhas no roteiro que atrapalham a boa compreensão da estória. Em vários momentos, Jobs tem certas atitudes cujas motivações não ficam claras e o espectador fica com a impressão de ter cochilado por alguns minutos e perdido algo importante (talvez isso aconteça eventualmente).

    Contudo, discordo de Wozniak quanto à responsabilidade de Ashton Kutcher nessa visão de Jobs. O ator apenas interpretou o que estava no roteiro. Kutcher, aliás, apesar de bastante inspirado em alguns momentos – a ponto de fazer o espectador “ver” Jobs na tela – em outros, pende para a caricatura de um modo que chega a incomodar. É necessário ressaltar o excelente trabalho de Mary Vernieu na seleção do elenco. O “garimpo” deu um ótimo resultado, pois os atores escolhidos se assemelham bastante a seus correspondentes reais.

    Ainda sobre semelhança, a cenografia e o figurino remetem o público diretamente aos anos 70, logo no início. A reconstrução de época é muito eficiente, e mesmo o efeito “foto antiga” do filme não chega a incomodar demais. Para completar a imersão, destaque para a trilha sonora bastante emblemática. A fotografia também é boa, favorecendo ângulos que deixem Kutcher ainda mais parecido com Jobs.

    Para um filme que tem a missão de contar a trajetória de alguém responsável por uma revolução no modo como as pessoas encaravam a informática e os computadores, a obra passa longe de qualquer conceito inovador, beirando a mediocridade. Não há dúvidas de que se o filme fosse um produto da Apple, após o preview, Jobs enviaria o projeto de volta para a prancheta.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | O Beco do Pânico – Clovis Levi

    Resenha | O Beco do Pânico – Clovis Levi

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    No prefácio da edição nacional de O Beco do Pânico, de Clovis Levi, livro originalmente lançado em Portugal, onde foi muitíssimo bem-sucedido, e que chegou ao Brasil pela Globo Livros, Jairo Bouer aponta a dúvida como ponto focal da trama. A interpretação me parece acertada, e, ao longo dessa pequena história que explora os infindáveis questionamentos de Caíque, um adolescente de classe média alta, a incerteza será de fato o fio condutor.

    Namorando a garota mais bonita da escola, mas se vendo subitamente atraído pelo professor de Teatro, nosso protagonista, tido por todos como um pegador, começa a questionar sua sexualidade – fato que, atrelado a outros males da idade, como o desinteresse pelos estudos, a dificuldade de diálogo com os pais e mesmo a revolta juvenil sem objetivo claro, dá ao leitor a dimensão da confusa psique de um jovem que, como quase todos os outros, não sabe ao certo quem é.

    E a multiplicidade não se encontra apenas nos dilemas de Caíque. É impressionante o número de temas tratados por Clovis Levi, que, trabalhando uma gama enxuta de personagens, consegue trazer às páginas desde a ambígua relação que até hoje temos com a Ditadura Militar, na figura do autoritário e intolerante Barbosa, avô de Caíque, até as diferenças de classe que assolam todos os cantos da nação, representadas por Cuca Fresca, o favelado melhor amigo de nosso herói. Contudo, essa vastidão de assuntos abordados acaba por configurar antes uma falha que uma qualidade; o 11 de setembro, bullying, homofobia, preconceito étnico – nada parece escapar à ânsia de Levi de enriquecer sua história, o que, por fim, torna superficiais quase todas as reflexões alcançadas sob o prisma adolescente dos narradores.

    E embora suas construções psicológicas sejam louváveis, a forma como esses adolescentes efetivamente se expressam passa grande estranheza e, vale dizer, simplesmente não condiz nem com a realidade nem com o universo no qual se encontram. Onde já se viu, por exemplo, um jovem repleto de revolta, como é Caíque, no momento de extravasar essa ira utilizar de jargões como “Vai se catar”?

    Ao ler O Beco do Pânico, o leitor se depara com uma trama que gira em torno de dúvidas, e, como não poderia deixar de ser, sai com algumas delas em aberto. É uma pena que, ao concluir suas 111 páginas, talvez a única dúvida que realmente o incomode seja: valeu a pena?

    Texto de autoria de Alexandre “Noots” Oliveira.

  • Resenha | Assassinato no Expresso do Oriente – Agatha Christie

    Resenha | Assassinato no Expresso do Oriente – Agatha Christie

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    Publicado em 1934 – e reeditado até os dias atuais (a minha edição é a 18ª) – este talvez seja um dos livros mais importantes da “Dama do crime”. Junto com Os dez negrinhos – na minha opinião, o melhor de todos – e O Assassinato de Roger Ackroyd – o primeiro que li da autora – representa o que há de melhor em termos de narrativa de suspense e mistério. Não é à toa que o livro foi adaptado inúmeras vezes tanto para a televisão quanto para o cinema, sendo talvez por isso mais conhecido do público em geral que os demais. Quem tiver curiosidade de assistir a uma das adaptações, sugiro a dirigida por Sidney Lumet, de 1974, com o famoso detetive Hercule Poirot representado por Albert Finney.

    Pouco depois da meia-noite, uma tempestade de neve para o Expresso do Oriente nos trilhos. O luxuoso trem está surpreendentemente cheio para essa época do ano. Mas, na manhã seguinte, há um passageiro a menos. Um americano é encontrado morto em sua cabine, com doze facadas, e a porta estava trancada por dentro.

    A partir dessa premissa simples, a autora desenvolve uma trama envolvente que deixa o leitor em suspense até o momento em que se revela a solução do mistério. Extremamente criativa e engenhosa, tanto a ‘mise-en-scène’ – grupo de pessoas confinadas em local temporariamente inacessível onde ocorre um crime – quanto a solução – que obviamente não irei revelar – foram reaproveitadas exaustivamente por diversos outros autores e roteiristas, inclusive pela própria Agatha, em Morte no Nilo.

    Sem fazer uso dos recursos de estruturação de romances tão na moda hoje em dia – capítulos muito curtos, alternância de pontos de vista e cliffhangers a cada final de capítulo – a autora prende o leitor em sua trama, deixando-o intrigado e curioso o bastante para não interromper a leitura. A estrutura do livro, dividido em três partes – “Os fatos”, “Os testemunhos”, “Hercule Poirot para para pensar” – também contribui para enlaçar o leitor, que se sente quase na obrigação de, tendo os fatos e os testemunhos assim como Poirot, solucionar esse imbroglio.

    Engana-se quem pensa que, por ter sido escrito há quase um século, é um texto de difícil compreensão. A linguagem é simples, sem ser simplista, e a autora é mestra em descrever personagens e cenários na medida certa, sem detalhes demais nem de menos. Agatha Christie conduz o leitor de uma suspeita a outra com maestria, deixando-o com aquela ‘pulga atrás da orelha’ característica dos bons livros de suspense. Enfim, um deleite para os fãs do gênero e uma ótima opção para os não iniciados adentrarem o mundo maravilhoso de Christie.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Apenas o Vento

    Crítica | Apenas o Vento

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    Após a onda de bons filmes vindos da Romênia alguns anos atrás, entre os quais o ganhador de Cannes Quatro Meses, Três Semanas e Dois Dias, o cinema do leste europeu como um todo vem ganhando atenção. Filmes da Bulgária, Bósnia e Hungria ganharam mostras específicas, atraem filas nos grandes festivais e passaram a ser distribuídos comercialmente nos cinemas independentes do país. É o caso de Apenas o Vento, longa de Benedek Fliegauf, diretor experiente e conhecido em seu país, mas que só agora teve um de seus longas exibidos no Brasil.

    O filme se baseia em uma série de ataques a famílias ciganas ocorridos em vilarejos da Hungria um tempo atrás, mas ao invés de buscar construir um panorama largo, ou tentar explicar o problema do racismo no país, ele se foca em apenas uma família e acerta por causa disso. A protagonista é Anna, uma menina de 13 ou 14 anos que vive com o irmão, a mãe e o avô doente em um casebre em uma comunidade cigana enquanto esperam o pai, que se mudou para o Canadá, mande dinheiro para juntar-se a eles.

    Anna acorda o irmão, vai a escola, fala com o pai ao skype, cuida da menina pequena de uma vizinha e é, em linhas gerais, uma menina quieta e responsável. Ela não é particularmente diferente de qualquer outra adolescente e talvez isso seja importante para que a brutalidade dos fatos narrados alcance todo seu potencial. Anna cumpre suas funções e tenta fazer seu melhor, mas Rió, seu irmão menor, parece mais consciente do beco sem saída em que se encontram: ele falta aulas e constrói um esconderijo, ele sabe, melhor que qualquer membro de sua família, que eles vivem em perigo apenas por serem quem são e que agirem como “bons cidadãos” não os livra de nada.

    Fliegauf enfatiza o senso de comunidade dos ciganos, especialmente a preocupação deles em cuidarem da própria segurança, uma vez que a polícia do país nada faria por eles. Em uma das melhores cenas do filme, dois policiais visitam a cena de um dos crimes e um deles expressa, se não sua aprovação, ao menos sua indiferença para com o que está acontecendo. Esse policial é da região e sua cor de pele e feições indicam que ele provavelmente tem origem cigana, mas uma vez fora, uma vez incorporado pela sociedade oficial, ele já não se importa e chega mesmo a odiar o povo “primitivo” de onde saiu. Portanto, resta a comunidade criar sua própria milícia: homens armados vigiam as estradas, interrogam os passantes a respeito de movimentação estranha e tentam vigiar a casa das famílias, mas não tem sucesso.

    O diretor não tenta em momento nenhum explicar, ou investigar, o acontecido. Ele apenas o relata a partir do ponto de vista de uma menina. Tudo é filmado com uma câmera na mão e praticamente sem recursos de iluminação: a maior parte das cenas são externas e a internas são tão escuras que mal se consegue ver o que está acontecendo. Não é, a princípio, uma escolha estilística, é simples falta de recursos, mas o fotógrafo de Apenas o Vento sabe tirar o melhor de sua situação e constrói oposições entre os campos livres e a casa claustrofóbica, a escola ameaçadora e o aconchegante esconderijo de Rió. O ar documental conferido pela câmera manual também é útil e enfatiza o anúncio de “baseado em fatos reais” exibido antes do filme.

    Apenas o Vento acerta ao não tentar ser mais do que é, ao tratar de um tema social espinhoso e uma ferida profunda da Hungria sem pretensões sociológicas, mas a partir dos seres humanos envolvidos. É memorável a cena que dá título ao longa em que Anna, após ouvir um barulho, diz “é apenas o vento” e não sabemos se ela o diz como um desejo, ou para enganar-se. Rió, no entanto, é mais cínico que a irmã e não se deixa enganar. Entretanto, o filme é excessivamente arrastado, fazendo com que 86 minutos pareçam mais de duas horas, sua sutileza, embora bem feita, não é suficiente para sustentar a história, que é no fundo inexistente. Fliegauf tenta construir um retrato de uma situação e uma família, usando-os como metonímia para um povo, contudo, ele se recusa a dar algum tipo de conflito ou vida interior a essa família (a exceção relativa de Rió) e acaba perdendo o espectador, que é incapaz de se conectar com seus personagens.

    Por causa disso, no fim o que era uma história sobre o lado humano da coisa, acaba sendo fria e distante, um retrato de alguém de fora para pessoas de fora. Ainda assim, Apenas o Vento é um exemplo notável de um cinema feito fora dos grandes centros, com poucos recurso s e que ainda assim se recusa a cair nos clichês do cinema de “mazelas sociais”. É um bom filme, principalmente na cena final quando afirma que não importa o quanto aquelas pessoas sejam seres humanos, elas serão, para a Hungria, ciganos acima de tudo.

    Texto de autoria de Isadora Sinay.

  • Resenha | Retalhos (2)

    Resenha | Retalhos (2)

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    Quando pegamos uma obra em nossas mãos, estamos praticamente fazendo um pacto com o autor de nos relacionarmos com aquela como um todo. Usufruir de uma obra demanda todo um trabalho valorativo, o qual chega a cada pessoa de uma maneira diferente. Quando estamos com uma auto biografia em mãos, a coisa muda de figura, pois sabemos que desde o começo não estamos usufruindo de uma mera obra, mas da vida de outra pessoa – ou pelo menos um pedaço dela.

    Retalhos (Blankets, no original) é uma graphic novel auto biográfica de Craig Thompson e conta a história de sua infância e o começo de sua vida adulta. Iniciando-se quando pequeno, Craig retrata sua infância dentro de uma família religiosa no interior do Wisconsin, Estados Unidos. Craig se aprofundou nos estudos da bíblia pra poder fugir de um mundo em que se sentia deslocado. Ao mesmo tempo que foi crescendo, distanciou-se do seu irmão, com o qual dividiu a mesma cama por anos de sua juventude. Já na adolescência, Craig conhece e se apaixona por Raina, uma garota de personalidade forte. Adentra assim em um relacionamento que vai mudar a forma como enxerga a vida, Deus, a si mesmo e o amor.

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    Craig Thompson possui uma habilidade notável de contar histórias. Não apenas possui uma arte suave e incrível que consegue expressar bem os sentimentos retratados em cada cena – brincando com estéticas de luz e sombra ou até mesmo quebrando o formato dos quadros das páginas – , mas também possui um roteiro que beira a poesia. A junção dos dois componentes em Retalhos é poderosa e demonstra um trabalho delicado, meticuloso e verdadeiro.

    O intimismo da obra não se esconde. A HQ pesa como um desabafo do autor, de toda uma vida e histórias que nunca teve coragem de contar, a não ser naquele momento. É sincero e, portanto, profundo, mas sem cair em um sentimentalismo piegas.

    Retalhos é uma história de amadurecimento, dos perigos dos extremos e da obsessão – desde a sua busca incessante por Deus ou por um amor idealizado em uma pessoa – e da importância das experiências em nossas vidas. Qualquer detalhe a mais é expor injustamente uma obra que merece ser lida e recebida com toda sua intensidade.

    Compre aqui.

    Texto de autoria de Pedro Lobato.

    Ouça nosso podcast sobre Retalhos.