O Último Homem, de Mary Shelley, edição bilíngue da editora Landmark, é uma das obras inaugurais de ficção científica mundial. Publicado em 1826, o romance narra um futuro apocalíptico na Inglaterra do fim do séc. XXI, sem, contudo, um esforço de imaginação completo sobre o porvir. Ainda encontramos uma sociedade com valores vitorianos onde a Inglaterra é o centro do mundo e diversas tecnologias com inspiração steampunk, como o balonismo, se perpetuaram. Uma obra mais complexa que Frankenstein, sem dúvida, mas por motivos de estilo do que especulação científica e social sobre o futuro.
Primeiro vamos falar sobre a edição da Landmark. Com uma tradução hercúlea (e também notas de rodapé) de Marcella Furtado, encontramos o texto inglês original ao lado da versão em português. A diagramação, contudo, peca pelas letras pequeninas, o que atrapalha a leitura à noite ou em lugares muito claros. Em adicional, falta um texto introdutório (ou “Posfácio”) que explique as particularidades e importância da obra no gênese da ficção científica e quais outros autores foram influenciados por Shelley.
Voltando à história, o romance narra a odisseia de Lionel, órfão de um nobre fanfarrão e empobrecido, e seus amigos e familiares, Adrian, Raymond, Perdita, Idris e Evadne, durante os anos de peste, guerras e mortes na Inglaterra do séc. XXI. O romance, como explicado na Introdução da obra, é o resultado de traduções feitas por uma dupla de cientistas a partir de textos encontrados na Caverna da Sibila, em Nápoles, Itália, em 1818. Sibila, na tradição mitológica, era uma sacerdotisa que recebia sussurros do deus Apollo sobre o futuro. Ela deixou textos registrados em vários idiomas e os cientistas os encontraram, traduziram e publicaram essa profecia do fim dos tempos.
No texto profético de Shelley, a peste bubônica causa o fim da humanidade. Como no século XIX ainda não se sabia exatamente que a doença era transmitida por pulgas entre animais de pequeno porte, e, em séculos anteriores a praga dizimara um terço da Europa, a autora achou conveniente que a morte ceifasse a Humanidade em forma de peste. Este, aliás, talvez tenha sido o componente de inverossimilhança da trama: Shelley não tratou de evoluir a Ciência em seu livro. Ela escreveu atalhos, remendou ideias requentadas (como o uso de máquinas variadas), mas não se ateve a detalhes sobre o funcionamento delas no futuro.
A evolução é mais narrativa que científica. A autora potencializa o romance com um estilo rico (se você gosta de descrições, vai fundo), um certo culto à natureza, exaltação de sentimentos, destino não mais fixo, espectros, donzelas que se passam por soldados, intrigas amorosas etc. Ou seja, é uma obra com componentes de ficção especulativa científica, mas não apresenta foco total em definir ideias sobre o novo gênero. O que a autora faz é alterar alguns componentes narrativos dos cânones do Romantismo e impingir mudanças, sutilezas estruturais, em conjunto com uma imaginação não-totalmente renovada sobre o futuro.
O roteiro de Ponto Cego, assinado por Rafael Casal e Daveed Diggs — que também atuam nos papéis principais, Miles e Collin, respectivamente —, nos apresenta o momento recente e dramático da vida de Collin, cidadão negro, subempregado, que vive na periferia, de um bairro negro de Oklahoma. A história se inicia no antepenúltimo dia da probation (espécie de condicional) de Collin. Por estar nesse período, para poder se ver livre de sua pena, ele precisa andar na linha, tendo horários estabelecidos, trabalhar, ficar abrigado e dormir em casa de reabilitação, proibido de sair do condado de Alabama e não se envolver em nenhuma atividade ilícita.
É facilmente percebido que o foco do filme é a tensão racial que os Estados Unidos ainda vivem, mesmo depois de tantos anos de história de lutas contra o racismo no país. Essa tensão é especialmente sentida nos estados do sul, os que mais demoraram a abolir a escravidão, culminando no provavelmente mais conhecido e estudado episódio da história americana, sua Guerra Civil (conflito armado entre os estados do norte e os do sul que se estendeu de 1861 a 1865). O interesse dos roteiristas e do diretor Carlos López Estrada é nitidamente demonstrar os contrastes sociais e econômicos entre as populações negra e caucasiana no país. Ao ir contando o caso da condenação, da probation e dos acontecimentos recentes na vida Collin, eles vão inserindo esse contexto que querem deixar claro. As cenas de abertura do filme, ainda nos créditos iniciais, servem não para outro objetivo, mas exatamente para isso.
Embora trate-se de drama, há tentativa de inserir certa comicidade na história. A hipérbole figurada pela quantidade de armas na cena em que Collin e Miles estão no carro de Dezz ilustra essa tentativa, bastante frustrada, na minha avaliação. Há muito pouco de cômico no longa. Aliás, há muito pouco de entrega de qualquer coisa nele. Embora cumpra seu papel como meio para entregar a mensagem “Olhem, ainda há muita diferença de vida entre negros e brancos por aqui”, o filme tem um roteiro fraco, com trama bastante previsível, atuações se não ruins, ao menos limitadas e se pode dizer o mesmo da direção. Algumas poucas cenas salvam a composição, destacando-se nesse sentido aquelas em que há maior tensão trágica (como as de brigas e discussões).
Tendo em conta que esse é o motivo de ser do longa, é interessante uma observação mais atenciosa à cena em que Collin está voltando para casa de reabilitação, um pouco à frente da anterior. Já no limite do seu horário de recolhimento, dirigindo o caminhão da empresa de mudanças em que está trabalhando, ele se encontra parado em um semáforo na rua Martin Luther King Jr – obviamente uma tentativa piegas de ironia inserida no roteiro. Nesse momento irá presenciar um fato que ficará reverberando em sua cabeça pelo resto da trama. Um negro andando na rua no meio da noite é sempre um suspeito, um negro correndo na rua no meio da noite é sempre culpado (?!).
Ao tempo em que presencia diversas mudanças sociais e culturais, a personagem central da história está tentando se afastar do que é negativo e construir melhores perspectivas para sua vida (o que inclui sua vida amorosa). Seu sucesso nesse intento é bastante limitado, contudo. Esse parece ser um dos argumentos centrais da obra, a dificuldade que pessoas inseridas em tal contexto de limitação social têm em construir uma vida diferente. Pontos menores e diálogos breves, que podem parecer sem propósito, tentam demonstrar aquelas mudanças. Nesse sentido, atentar para os exemplos: da reinauguração da lanchonete Kwik Way; da festa de CEOs em que há fala mostrando que negros estão ocupando função nesse nível, mas que são extrema minoria; e, no mesmo sentido anterior, como também estão passando a morar em lugares economicamente melhores.
Outro breve momento que pode parecer sem propósito, mas é na verdade de certa profundidade, é a cena em que os dois amigos estão recolhendo quadros para uma mudança. Aqui se apresenta a questão de que indivíduos crescidos em tais condições de restrição econômica e educacional terão dificuldades de apreciar artes mais sofisticadas e de se dedicarem emocionalmente acima do superficial. Veja-se a dificuldade em apreciar quadros e fotografias que esses indivíduos apresentam. Na mesma cena que apresenta essa questão, é interessante olhar com afinco como eles não se permitem realizar o exercício de observar um ao outro. Parece que, de fato, pessoas em tais condições sócio-econômicas se comportam de tal maneira. Fica a interrogação: porque é assim?
“Agora você é um criminoso condenado. Agora você é isso até provar o contrário. Prove o contrário o tempo todo”. Esse é o argumento central do roteiro. Juntando ao já colocado anteriormente: um negro andando na rua no meio da noite é sempre um suspeito, um negro correndo na rua no meio da noite é sempre culpado, um negro condenando por um crime (por menor que seja) será sempre um criminoso condenado e terá de provar o contrário o tempo inteiro. É no mínimo muito difícil fazer um contraponto a isso, para quem já viveu na periferia (e aqui dá para deixar de lado a questão racial), a realidade se demonstra mesmo de tal forma. Sob essa perspectiva nos EUA, a mídia sempre vai tender a mostrar um policial com seu uniforme de trabalho e um negro culpado (correndo no meio da noite) com uniforme de presidiário, caso já tenha passagem pelo sistema judiciário.
A tensão social entre classes (e ambientes) pobres e classes (e ambiente) econômica e socialmente melhor estabelecidos é intensa e constante. A vida, assim, se apresenta como a arena em que indivíduos em um dos lados são incapazes de se colocar no lugar do outro, há medo mútuo, fortes esteriótipos e seus impactos negativos, a convivência no limite de sua possibilidade, por fim. A vida em ponto cego (blindspotting), a incapacidade de enxergar algo diferente do que seu cérebro quer ver primeiro. Numa figura dupla, seu cérebro vai enxergar apenas uma das figuras. Você olha mas não consegue ver a outra imagem que está lá. Mesmo que outra pessoa mostre para você a outra figura, é praticamente impossível ver as duas figuras ao mesmo tempo (e mesmo não ver sempre primeiro a figura que seu cérebro identificou sozinho inicialmente), a não ser com reeducação do cérebro (o que é extremamente difícil). Você não pode ir contra o que seu cérebro quer ver primeiro, se torna instintivamente cego. Uma vez tendo visto um negro espancando outro cara, você sempre vai ver primeiro o negro que espanca pessoas antes de ver qualquer outra coisa nele.
André Diniz é um quadrinista com quase 20 anos no mercado, e talvez por conta da experiência, sua adaptação de O Idiota, o clássico de Fiódor Dostoiévski, para quadrinhos,é realmente muito bem feito. Publicado pelo selo Quadrinhos na Cia, da Companhia das Letras, a adaptação de Diniz é dessas obras que funcionam por si só, explorando o tema visual em oposição à escrita excessivamente psicológica e interna do gênio russo.
Em 2018, o romance clássico completou 150 anos de publicação. O livro foi impresso como novela de folhetim e os leitores acompanhavam diariamente o príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin (ou apenas Príncipe Míchkin). Nao me cabe aqui explicar todo o enredo do livro dostoievskiano, primeiramente, por não ser tarefa fácil resumi-lo, já que o romance contém fortes reviravoltas, dezenas de personagens e uma sequência de altos e baixos que se perderiam frente à explicação do todo; segundo porque é um livro de domínio público com dezenas de versões por todos os cantos; terceiro porque é Dostoiévski e se você não leu nada dele ainda, desejo mesmo que você o leia e O Idiota é um bom começo.
Mas voltando ao trabalho de Diniz. O quadrinista foi brilhante em enxugar o discurso interior, detalhista e psicológico que permeia a enredo de Dostoiévski e ilustrá-lo por meio de desenhos áridos, em preto e branco, que muito lembra o estilo dos cordéis nordestinos, uma de suas tantas características como artista. Há um contraste evidente e esperado entre as duas formas, contudo, o silêncio impresso no quadrinho, os poucos balões de textos, as grandes formas em alguns enquadramentos, despertam a curiosidade do leitor durante a leitura.
Ao cortar o diálogo dos quadrinhos, conseguimos emergir mais profundamente no mundo silencioso daquela tragédia. Silêncio exterior, visto que a eloquência é feita de forma mental, em Dostoiévski. A ausência de linhas de diálogo pode até supor uma certa rapidez de leitura ou aproximação falsa do drama, mas atente aos detalhes. André Diniz usa apenas o preto, o branco e escalas de cinza, mas são essas nuances entre as tonalidades que darão o tom pesado da narrativa. As sombras são os detalhes.
O quadrinista também opta por diversos closes nos personagens que devem fazer com que leiamos mais atentamente aqueles desenhos e a narrativa que está se formando. Aliás, talvez o problema do leitor mais apressado é que ele acabe apenas observando, mas não enxergando os acontecimentos da história. Há uma diferença. Apesar de não haver tantos diálogos, é preciso ler os quadrinhos com atenção para mergulhar de vez no drama do príncipe idiota.
Leitura muito bem recomendada. É uma obra que presta grande serviço a todos os tipos de leitores e funciona complementando o trabalho genial do russo. De fato, adaptar não é seguir à risca o cânone, mas implementar um ponto-de-vista original sobre outro trabalho. Assim as histórias são recontadas entre elas mesmas e o fluxo infinito de suas terminações logo frutificará outras ideias e novas histórias.
A Madeline de Madeline (Madeline’s Madeline) é um longa que vem saindo despercebido nessa temporada de premiações, mas se destacando pela singularidade ganhou espaço nas maiores listas americanas de melhores do ano. Escrito e dirigido por Josephine Decker, o filme acompanha a jovem estudante de teatro Madeline que precisa lidar com os cuidados excessivos de uma mãe ansiosa e de sua professora de teatro extremamente exigente enquanto experimenta novas experiências e sensações. E de sentir que Madeline’s Madeline é.
A câmera de Decker viaja vezes fluida vezes nervosa entre corpos de uma maneira muito particular, de fato a protagonista que dá nome a essa história é feita de camadas claramente complexas e a câmera funciona com excelência ao comunicar isso a nós. Proporciona sensações nebulosas e muito bem-vindas em nosso processo de imersão durante o filme, mesmo que seja tão fácil se comprometer com a narrativa.
E se o efeito quase íntimo da fotografia é um grande mérito, as performances do elenco não são tão diferentes. Helena Howard é hipnotizante, enquanto se vê ela imitando animais para a peça ou reagindo aos acontecimentos rotineiros de sua vida real, a atriz nunca revela de mão beijada quem Madeline realmente é, sua performance deixa a crer que se nó espectadores não compreendemos por completo nossa personagem principal, podemos ter certeza que Helena também busca entender quem ela encarna em tela, e isso ressoa positivamente no grau de realidade que o material final entrega.
Os papéis das duas mulheres que orbitam a vida de Madeline felizmente também se desconstroem e se constroem em tela de uma forma muito bela, há cenas tão fortes que é possível sentir eletricidade. O roteiro, de certa maneira, vai por caminhos mais lineares e sutis, sem grandes altos e baixos o engajamento poderia se esvaziar em certo ponto do longa, mas a narrativa não se alonga a ponto de isso acontecer tão cedo.
Decker entrega uma das experiências mais imersivas e diferentes do ano, A Madeline de Madeline não merece ser tratado como algo que “não é pra todo mundo” – assim como qualquer obra – , mas pode abrir boas e novas perspectivas para quem o tem a oportunidade de assistir.
São muitas as assombrações, muitos os demônios correndo soltos entre nós. O diabo mora no pequeno detalhe de que eles são atraentes. Uma pequena olhada em suas faces e é bem possível que nos entreguemos a seu poder de conquista. Mas esses demônios não querem apenas nos conquistar, sua satisfação é nos levar ao limite, à destruição, à autodestruição.
[Esse texto contém spoilers. Não descrições de cenas e desfechos, mas interpretações da história. Sugestão: tendo chegado até aqui, assistir o filme é retornar a este ponto para o restante da leitura do texto.]
Apesar de a descrição do filme indicar que se trata de drama, não é um erro de percepção entender que se está assistindo uma história de terror. A humanidade está sendo atacada por uma força incontrolável, que não se consegue explicar e que se espalha extremamente rápido. Ao primeiro, simples e breve contato com essa força, o indivíduo se torna autodestrutivo e comete suicídio logo em seguida.
O enredo se confunde com a história de Malorie (Sandra Bullock), que, grávida já em estado avançado, se depara com as primeiras “contaminações” próximas a ela justamente quando saía do hospital onde havia ido para mais um exame pré-natal. Ela ainda, mesmo já no final da gravidez, não estava certa se queria ser mãe.
Quando o contágio começa em sua cidade, se alastra de forma estupidamente rápida. O cenário de caos e destruição é apocalíptico. Não apenas um contingente enorme de pessoas ao seu redor, mas inclusive sua irmã Jessica (Sarah Paulson) que dirigia levando-as de volta do hospital para casa se mata.
Malorie, caída na rua, tentando fugir do contágio e recém espectadora do suicídio da irmã, acaba se refugiando na casa de um estranho, juntamente com outros seus completos desconhecidos. Naquele refúgio, eles viverão pelos anos seguintes. Ela, que até ali era uma pintora solitária e reclusa, que praticamente não saia de casa (até suas compras de supermercado quem fazia e a levava era sua irmã), há muito não falava com a mãe, passará a viver com diversos estranhos, um dia após o outro, lutando pelo mais básico: sobreviver.
Não bastasse a profunda metáfora da história, o filme é excelente também pelo nível excepcional de mistura de sentimentos e tensão da história. Suas duas horas passam muito rapidamente, graças a seu enredo muito bem construído. A sequência de fatos, de profundidade das mensagens de cada cena, cada diálogo nos faz ficar vidrados na tela. Embora não seja possível aqui falar sobre o livro que baseia o filme, é relativamente certo que Josh Malerman (autor do livro que deu origem ao filme) entrega uma obra profunda. Também não sendo aqui viável julgar falhas isoladas do livro ou do roteiro do filme, percebe-se que Eric Heisserer (A Chegada) poderia ter feito uma melhor adaptação para tornar a história mais verosímil. Explicações a respeito de disponibilidade de energia elétrica, água e suprimentos gerais ficam um tanto quanto falhas, especialmente se considerarmos os cinco anos em que ocorre a história entre o momento do hospital e o desfecho do filme. Isso não chega, contudo, a comprometê-lo, são detalhes menores diante de todo o resto.
A direção de Susanne Bier (Serena) coroa atuações fenomenais de todos os atores. Sua condução leva a um nível próximo do perfeito de dramaticidade e explosões de emoções. Bullock encarna Malorie a ponto de quase nos fazer esquecer que se trata apenas de uma atriz interpretando um papel. Os companheiros de morada de sobrevivência de Malorie: Douglas, Tom, Cheryl, Lucy, Olympia, Charlie, Felix e Greg, são trazidos à vida por excelentes atuações de (respectivamente) John Malkovich, Trevante Rhodes, Jacki Weaver, Rosa Salazar, Danielle Macdonald, Lil Rel Howery, Machine GunKelly e BD Wong. Destacam-se também as interpretações de Paulson, das crianças Vivien Lyra Blair e Julian Edwards, além de Tom Hollander (Gary) – convincente e importantíssima, por sinal.
Verdadeira trama filosófica, a história nos faz refletir sobre: o quão atrativas são as promessas de satisfação e prazer ao nosso redor (consumo desenfreado, prazeres momentâneos, drogas, soluções rápidas e fáceis para nossos problemas mais complexos?) e ao mesmo tempo quentou elas nos levam à destruição; pessoas próximas a nós que podem de uma hora para outra se entregar a isso; indivíduos aparentemente frágeis poderemos fortes e resistir a essas tentações e mesmo salvar outros de nelas caírem; pessoas ranzinzas, mal-humoradas, de mal com a vida podem ser importantes em apoiar nessa resistência; existirem pessoas deslumbradas com aquelas promessas, as quais conseguem, contudo, resistir à autodestruição, e também sentirem satisfação em levar outras a sucumbirem; tentar ajudar uma pessoa aparentemente frágil poder ser uma armadilha de um ser ardiloso e vil; a fragilidade da juventude, que se entrega facilmente aos prazeres e à satisfação, acreditando ser imbatível; a existência de comunidades dedicadas a entender a importância de se manter cego a tais promessas e como ler sobre essa cegueira (a alegoria da escola para cegos no final do filme é fenomenal); dentre outras questões nas entrelinhas.
Como uma linha que costura todas as peças de pena que compõem todo esse tecido, se apresenta a importância da mãe como protetora, guia e educadora de suas crias. Sem perder de vista o risco da super proteção e do exagero (incluindo o potencial de fazer o filho lhe temer e querer se afastar de si), somos colocados diante do fundamental papel da mãe que se mantém cega e cega seus filhos para a contaminação da maldade. Pássaros se agitam com a aproximação do mal, é importante estarem isolados dele (engaiolados?) e voarem em ambiente seguro!
Quem não recorda de Coração valente (filme de 1995 dirigido e estrelado por Mel Gibson)? Um épico e excelente longa com suas quase três horas, que conta a história verídica do revoltoso escocês William Wallace. Líder popular que liderou um pequeno exército de resistência ao jugo inglês.
Para quem gostou do filme, há um outro mais recente que é imperdível: Legítimo Rei (Outlaw King). Lançado esse ano, o filme dirigido por David Mackenzie apresenta a história de Robert the Bruce – o oitavo do seu nome (Chris Pine), filho do também chamado Robert the Bruce – o sétimo do seu nome (James Cosmo), Rei de uma Escócia subjugada pela Inglaterra em finais do século XIII e início do XIV. Foi justamente a sanha de domínio de todas as terras britânicas por parte do Rei Edward I (Stephen Dillane), da Inglaterra, que despertou a resistência revoltosa de William Wallace e seus seguidores.
Depois que o exército do Rei Edward I conseguiu capturar, executar e esquartejar o corpo de Wallace (ponto exato da história onde termina o filme de Gibson), começa a exibir partes de seu corpo pela Escócia. Aproximadamente no mesmo período Robert the Bruce – o pai (o VII) falece. Revoltada com o que o Rei Edward I faz com Wallace, parte da população escocesa, liderada por Robert the Bruce – o filho (o VIII), decide iniciar nova resistência ao Rei inglês. Sem adentrar em muitos detalhes para não gerar informação prévia (spoiler) sobre o filme, importa dizer que ele sofre derrotas, grandes perdas e desterro. Passa anos fugindo até se organizar e retornar para sua terra para lutar contra o Rei inglês (nesse momento já não mais Edward I, falecido, mas seu sucessor Edward II).
O ponto baixo do filme é a aceleração da trama para ficar dentro do padrão comercial, duas horas de duração. Fosse produzido com mais ousadia, e com trama desenvolvida mais em consonância com o espaçamento temporal da história real, a película alcançaria o nível das inesquecíveis como alcançou a de Gibson.
Legítimo Rei é uma bela produção. Locações fenomenais (a Escócia tem paisagens naturais deslumbrantes), figurinos e ambientações mais qua adequados e convincentes; fotografia que transmite a sensação de estarmos dentro da época e das cenas, com destacado papel na composição das emoções. Talvez uma pequena falta seja a trilha sonora, praticamente inexistente.
Como destaque final ficam as atuações de Pine e Dillane. Se a direção de Mackenzie (A Qualquer Custo) não chega a ser um primor, ao menos não compromete a qualidade do filme. A história de Robert the Bruce (o VIII) é fenomenal e cativante. Não há dúvidas de que merecia uma película dedicada a ela; poderia ser um pouco melhor, contudo. Importante saber que Robert the Bruce VIII é ascendente de James I da Inglaterra (reinou os dois países, unificado-os), da casa de Stuart, e que permanece como linhagem direta da atual família real britânica.
Um dos retornos mais aguardados de 2018, Under the Silver Lake é o novo longa do diretor David Robert Mitchell, o cara que fez muita gente ficar de olho em seu trabalho depois de estrear Corrente do Mal (It Follows), um clássico do horror contemporâneo e um dos percursores da controvérsia teoria do pós-terror. Nesse seu novo trabalho, ele ainda bebe da fonte do horror, mas constrói uma narrativa surrealista cheia de comédia de humor negro.
Sam (Andrew Garfield) é um jovem desempregado que está prestes a ser despejado de seu apartamento e passa o dia olhando a vida dos vizinhos pela sua sacada. Ele conhece a bela Sarah (Riley Keough) na piscina do prédio e consegue passar uma noite com ela, porém, no dia seguinte Sarah e suas coisas desaparecem e o rapaz entra numa jornada alucinante pela cultura pop de Los Angeles para descobrir o que aconteceu com a garota.
O cineasta a princípio parece querer misturar muitas histórias em uma só, porque a sinopse que você leu no parágrafo anterior é apenas uma pequena parcela de tudo que acontece no longa. O personagem de Garfield vai se apropriando de novas narrativas a cada sequência do filme, em meio a lendas urbanas, festas estranhas, cultura pop americana e perseguições, ele vai se mostrando um retrato muito verdadeiro do jovem millenium.
A impulsividade, aleatoriedade e os efeitos de se enfiar de cabeça em novas informações a todo momento que são tão presentes em tempos como o nosso é o principal acerto da produção. O protagonista e o restante do elenco se enquadram bem em performances surrealistas, assim como o design de produção que é muito afinado, entregando momentos muito bem compostos pela inventiva fotografia.
Mas mesmo que os movimentos de câmera do filme façam de tudo para entregar algum ritmo, é ele o principal erro do longa. São mais de duas horas que mesmo com as constantes novidades narrativas, não se sustentam com o espectador, pois apesar dos contextos, algumas personagens e cenas soam gratuitas demais e próximo do final são até anticlimáticas. De fato, os olhos ainda devem estar atentos no trabalho do diretor por conta da sua originalidade e de seus referenciais, mas aqui o efeito não é tão bom quanto há 4 anos atrás.
Tango, com Violino descreve o dia a dia de Abeliano, um professor de história da arte aposentado que envelheceu “ex abrupto, no momento em que se deu conta de que poderia viajar gratuitamente nos ônibus municipais”. A partir daí ele desenvolve o hábito de andar ao acaso nos coletivos da cidade, na esperança de que seu itinerário lhe revele algo inusitado. Desse modo, acaba por transformar a banalidade cotidiana em uma série de aventuras que atribuem importância a cada contato humano, a cada paisagem urbana. Alimentando-se do que vê e do que ouve, em todo ônibus que entra Abeliano vive um universo possível e fugaz, que se desfaz a cada fim de viagem para ressurgir na próxima, o que lhe possibilita “adiar o mergulho no isolamento irremediável e definitivo”.
Elogiado por Antônio Houaiss, que afirmou que sua escrita é “diabalmente aliciente”, o autor nesta obra – diferente do juvenil Memórias de um Assoviador – aborda o universo da terceira idade. O protagonista, Abeliano, com 76 anos, começa contando suas memórias. Aposentado, não sabe muito bem o que fazer com tanto tempo livre. Até que descobre as vantagens de ser velho. E a melhor delas é desfrutar da gratuidade do transporte público. Essa descoberta quebra sua rotina, acabando com o tédio.
Diferente de outras obras sobre essa fase da vida, Tango, com Violino não foca na idade, na aposentadoria, nas doenças, enfim, na velhice em si. A partir de sua “descoberta”, ele sai todos os dias passeando por São Paulo, conhecendo lugares e conversando com pessoas. E conversa com os mais variados tipos, sobre os mais variados assuntos: política, arte, filosofia, o sentido da vida. Ouve causos, confissões, o que quer que tenham a dizer ao encontrarem nele um bom ouvinte. Ocasionalmente, sai para passear “disfarçado”, com a ajuda de seu amigo Theo, que trabalha em uma loja de fantasias. E não hesita em envolvê-lo em suas brincadeiras, aproveitando-se da timidez do amigo.
“Será que você ainda não percebeu que neste país um sujeito com mais de sessenta anos adquire o dom da invisibilidade?! Você pode andar pela rua, entrar numa repartição pública, ir ao baile, almoçar no restaurante, de peruca, sem peruca ou com uma peruca de duas cores, metade ruiva, metade morena, vestido de odalisca ou pelado, que ninguém, estou dizendo, absolutamente ninguém vai botar os olhos na sua insignificante e envelhecida pessoa! Para gente como nós, meu caro, acta est fabula, a representação terminou!”
A narrativa em terceira pessoa tenta – no meu entender, de forma pouco eficiente – emular Saramago, com diálogos sem marcações. Protagonista, personagens, perguntas, respostas, tudo junto e misturado, prejudicando a fluidez da leitura. Não é apenas uma questão de habituar-se a esse formato narrativo, como nos livros de Saramago, em que bastam algumas páginas para a leitura encontrar seu ritmo e fluir agradavelmente. A voz dos personagens se misturando à voz dos demais personagens exigem atenção redobrada, o que acaba tornando a leitura cansativa, apesar de a trama ser interessante.
Antes mesmo de 1968 quando o cosmonauta soviético Yuri Gagarin foi lançado, literalmente, para fora da Terra a humanidade já conhecia o espaço sidera.Além de ter aterrissado na lua e conhecido os seus formidáveis habitantes. Tudo isso quando o francês George Méliès decidiu adaptar a obra de Jules Verne, Da Terra à Lua, para o esplendoroso e jovem mundo do cinema.
Mise-en-scène. Expressão bastante usual no meio cinematográfico, nascera no ventre do teatro anos antes do surgimento desta jovem manifestação artística chamada cinema. De origem francesa tem como tradução em português “por em cena”, tendo sido utilizada na linguagem teatral do século XIX para remeter à movimentação dos atores pelo cenário e o posicionamento dos adereços pelo palco de forma a contribuir para a história que estava sendo contada.
Não obstante, a mise-en-scène ao invadir a sétima arte teve seu uso e significado ampliado. Cenário, iluminação, figurino, maquiagem e interpretação são os componentes formadores dessa técnica cinematográfica. Acrescento ainda, que tudo aquilo que nos salta aos olhos aglutinando-se em nossa memória logo após sairmos da sala de cinema, integra esse fabuloso universo.
Porém, ela não brotou pura e simplesmente no terreno do cinema. Mas, sim, fora plantada e aos poucos cultivadas pelas mãos de jardineiros e jardineiras para lá de habilidosos. George Méliès, ilusionista, cineasta, ator, roteirista e pai dos efeitos especiais, foi o responsável pela migração da expressão do universo cênico para o cinematográfico. Ele dirigiu, atuou e roteirizou inúmeros filmes e foi um dos primeiros diretores de cinema a orquestrar os elementos da mise-en-scène a fim de criar mundos totalmente imaginários e fantasiosos. Como muito bem expresso na sua célebre obra Viagem à Lua (1902)
Para cada cena do filme Méliès fez inúmeros esboços, algo semelhante ao que conhecemos hoje como storyboards, onde se tornava possível ver os cenários, figurinos das personagens e o posicionamento dos atores e atrizes dentro do quadro fílmico. Desta forma, Méliès estando na posição de diretor tinha total controle sobre O QUÊ apareceria em cena, semelhante ao compositor que minuciosamente seleciona as notas e acordes a serem postos na partitura e ao pintor que pensa e repensa quais cores estarão presente na tela.
Méliès, sem sombra de dúvidas, foi uma figura ímpar na história do cinema, influenciando inúmeros diretores e diretoras com seu olhar sensível em criar mundos para além do imaginário daqueles que aos poucos se cansavam do cinema como registro do cotidiano. Filmou em seu estúdio na França, Star Film Company, mais de 500 filmes, e deu os primeiros passos na inserção da expressão mise-em-scène no vocabulário cinematográfico e transformou nossas fantasias e sonhos em película; para então projetá-las sobre a tela do infinito.
Vencedor do Grande Prêmio da Semana da Crítica no Festival de Veneza e eleito como o melhor filme do ano pela revista francesa Cahiers du Cinéma, Os Garotos Selvagens é o primeiro longa-metragem de Bertrand Mandico, conhecido por curtas e médias de cunho experimental.
Passado no início do século XX, o longa acompanha cinco jovens rapazes de famílias ricas que acabam cometendo um crime bárbaro. Na expectativa de mudarem o comportamento agressivo dos filhos, as famílias confiam os jovens ao misterioso Capitão, que promete transformar todos eles em seres dóceis e antiviolência em uma viagem em alto-mar.
Lembrando de forma honrosa Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, Os Garotos Selvagens é um dos filmes mais originais do ano, assim como também traz temáticas e símbolos extremamente pertinentes para a atualidade. A passos tímidos, essas temáticas vão surgindo na narrativa de maneira que a primeira parte do longa flutue na percepção do espectador como uma incógnita, o visual entre espectros do fantástico e do sinistro sustenta bem o filme, ainda mais com sua montagem sugestiva ao experimental.
Quando o grupo de rapazes chega ao destino da viagem e inicia-se a segunda parte desta história, fica mais claro do que se trata a obra de Mandico. É delicado discursar sobre este segundo momento do longa, até exaltar o elenco se torna perigoso, e para não interferir em futuras experiências pode-se dizer que de fato é um trabalho de atuação minucioso e bastante interessante.
O filme percorre os campos temáticos da masculinidade, da violência, das crenças, e principalmente, da sexualidade e o que vem dela ou através dela. Com uma direção de arte inspirada nesses caminhos, é um deleite se perder entre espaços estranhos e simbólicos, além da fotografia que se utiliza na maioria do tempo do preto e branco, reforçando talvez o quanto assuntos são mais antigos e enraizados do que imaginamos.
Em um apuro estético irretocável e com discurso afiado, mas prejudicado pelo final expositivo e até certo ponto anticlimático, Bertrand Mandico estreia entregando uma fábula atrativa e incômoda. Que tenha nossa atenção.
Sempre explorando novos caminhos, o cineasta mexicano Alfonso Cuarón entrega esse ano pela Netflix o seu trabalho mais pessoal, Roma é um filme de resgate de memórias numa espécie de carta ao passado. Na intimidade de uma casa de classe média da Cidade do México no início da década de 1970, Alfonso nos apresenta Cleo, uma empregada jovem e bondosa, que trabalha para a família de Sofia.
Sofia é casada com Antonio e juntos eles têm 4 filhos, porém problemas no relacionamento dos dois vai mudando as relações da casa enquanto Cleo precisa lidar com uma nova descoberta. A personagem criada pela estreante Yalitza Aparicio é de uma sensibilidade rara, sua Cleo é silenciosa mas fala muito só com o movimento de seus lábios nas tantas vezes que sorri.
Como a narrativa, ela é delicada e absolutamente amável, suas feições comunicam de maneira sutil e por isso em momentos mais dramáticos ela se sai tão bem, é como presenciar um momento cru e real. E Roma caminha bem com sua protagonista tanto em clima quanto estética, Cuarón dispensa a parceria de sucesso com o fotógrafo Emmanuel Libezki e faz ele mesmo a fotografia do longa, além de também co-editar. E ele não poderia se sair melhor.
O preto e branco cai com uma luva em cenários cheios e ostentadores, contrastes e silhuetas realçam uma atmosfera nostálgica encantadora e a câmera se movimenta ressignificando espaços e ações, sabendo muito bem balancear com planos estáticos de muito impacto narrativo. O longa mesmo que linear e sem pressa para revelar um grande plot, entrega momentos pontuais de pura carga emocional que ecoam na mente do espectador, cenas marcantes e que nascem clássicas na frente de nossos olhos.
Roma é de fato uma obra muito especial, além de carregar entrelinhas questões sociais como relações trabalhistas e divergências de classe que nunca parecem gratuitas, mas sim naturais, o filme traz um dos retratos mais fortes sobre as circunstâncias de ser mãe e mulher. Cuarón cuida de memórias nessa sua nova empreitada e consegue enraizar sua narrativa em imagens contemplativas e de significâncias das mais abstratas. Uma bela experiência, daquelas que se agradece por acontecer.
Bravura Indômita, de Charles Portis, publicado pela editora Alfaguara por conta do filme de mesmo nome dirigido pelos Irmãos Coen — o romance teve sua primeira adaptação para os cinemas em 1969, dirigido por Henry Hathaway (A Conquista do Oeste) e estrelado por John Wayne — e é uma clássica aventura de faroeste de época. Protagonizado por Mattie Ross, uma menina de quatorze anos que abandona a fazenda natal para caçar o homem que matou traiçoeiramente seu pai e roubou seus pertences. Ela convence o agente federal Rooster Cogburn, e posteriormente, o Texas Ranger LaBoeuf a ajudá-la na empreitada. O resultado é uma aventura com toques de humor negro, surpresas e violência que resgata a atmosfera árida e agressiva presente durante a expansão da costa Oeste norte-americana de meados do século XIX.
Como muitos romances do século XIX e XX, Bravura Indômita foi publicado originalmente em folhetins de jornal durante o ano 1968. Por conta disso, é daquelas histórias que entretém a cada capítulo, porque, para garantir a edição do dia seguinte, tinham que fisgar o leitor diariamente em poucas páginas. Um sintoma da criação voltada ao jornal é o primeiro parágrafo da narrativa. Em duas frases extensas, Portis conta o motivo e o desfecho da narrativa, sobrando, ao público, acompanhar como uma garota de quatorze anos conseguiu sair de casa para matar o assassino de seu pai.
Os outros parágrafos do primeiro capítulo cuidam de informar mais sobre o pai da menina e a fazenda onde moravam, tudo para que os leitores tomem um lado: condenar o assassinato contra o homem de família. Assim, acompanhamos Ross,uma menina muito prática e decidida, mas também teimosa e mordaz, e é justamente essa vingança de onde menos se espera, com a companhia de dois anti-heróis, que torna a trama fabulosa e interessante.
A aventura é uma montanha russa. Entre se apresentar, convencer que a acompanhem na tarefa e chegar ao destino combinado, Mattie Ross ultrapassa barbáries, momentos trágicos, cômicos e mantém a compostura destemida de quem vai vingar o pai. Nota muito positiva aos diálogos; todos eles desvendam os temperamentos dos personagens e funcionam impulsionando a narrativa e complementando as informações descritas.
Frases, em geral, curtas, dão o movimento e força da aventura. Tudo é descrito de forma coesa, sintética, como a transparência única de um Oeste ainda não totalmente conhecido. É uma jornada de descobrimento, é bom que tenhamos certeza, e personagens bem feitos, situações das mais variadas e excelentes descrições nos mantêm ansiosos até o desfecho onde Mattie Ross finalmente encontra o nêmesis de seu pai. Apenas uma observação, os filmes de 1969 (Hathaway) e 2010 (Irmãos Coen) possuem um final diferente do livro de origem. Por isso, indico que leia a obra de Portis e se decida sobre qual o melhor desfecho para a história de Mattie Ross, Rooster Cogburn e LaBoeuf.
A Perpetuação da Espécie (Editora Penalux), do escritor e crítico literário Fernando Andrade, molda e reconstrói, com seus poemas, o Homem e sua descendência. Com uma poesia íntima e plena de construções, jogos verbais e metáforas, o poeta explora a própria gênese do Homem enquanto carne e mito de si mesmo. A poesia funciona como microscópio e filosofia em Andrade e o resultado é um livro singular e forte, que, a despeito de suas 66 páginas, impacta e assombra, porque pensar sobre nós mesmos sempre traz arrepios do desconhecido.
Dividido em 5 partes (nascimento, infância, lembranças, imagens e gênero), o livro explora poeticamente as fases do humano, da ideia à morte, passando pela infância, gênero, memória, sexo, tanto nos campos físicos quanto abstratos da espécie. Versos sem forma fixa, desconectados formalmente da tradição clássica, mas construídos para facilitar alguns enjambement (quando um verso pode ser lido complementando o verso posterior) que o autor gosta de usar, a poética do autor (este é seu quarto livro solo), é atual e com forte apelo à tradição oral da poesia.
Assim, em seu novo trabalho, o que encontramos são poemas maduros, concisos e bem amarrados com o tema central do livro. E, dentre os 37 poemas da obra, destaco dois subtemas muito bem trabalhados no diálogo de Fernando Andrade com o Humano. O primeiro deles é o Tempo. O autor trabalha poeticamente o espaço cronológico entre o nascimento e a morte como um lembrete. Voltaremos ao pó primordial, então, o que fazer com o Tempo que nos resta? “Minuto a Minuto / O tempo acomoda / Um personagem / De hora em hora / Incorpora sua / Memória / (…) Pergunto às moiras / o livre arbítrio / É uma ampulheta cheia ou vazia?” São os versos de “Clepsidra”.
Outro subtema que perpassa as linhas de “A perpetuação da espécie”, é a Política enquanto natural ao corpo, um Corpo Político. “Pequena e diminuta Revolução / – Todas as suas ações serão provisórias / Até serem reescritas ou revogadas. / Nada em tom indefinido será admitido.” São os versos de “Trecho em ironia”. E se a Política é natural ao corpo, quer dizer que a maçã do Éden era então uma fruta política? Talvez o poeta responda.
Por fim, o tom amarelo puxando ao barro que compõe o livro dá uma dica de que Andrade trabalha a olaria poética do Humano. Surgindo do barro, como nas escrituras, e voltando ao pó, o poeta suja a forma da poesia com versos que olham dentro de nós mesmos; versos como microscópio e poema como tese sobre homens e mulheres. Reflexivo e metafórico, A Perpetuação da Espécie é uma ótima indicação de poesia singular e contundente.
Mike Flanagan é um dos principais nomes do cinema de terror nessa segunda metade da década. Porém, desde seu curta Lights Out, o diretor não conseguia entregar algo que faça brilharem os olhos para algo novo, que o destacasse técnica e artisticamente do restante de Hollywood. Agora ele conseguiu. A Maldição da Residência Hill que entrou recentemente na Netflix é o melhor trabalho de Flanagan e uma das visitas mais preciosas ao terror esse ano, se não dos últimos.
Alternando entre passado e presente, a série conta as influências que uma casa mal-assombrada tem sob a família Crain. O objetivo do casal é reformar a mansão durante as férias de verão dos 5 filhos para revendê-la em um valor maior, mas eventos peculiares levam a família a presenciar uma noite assustadora que reverbera anos, até algo no presente fazer com que todos, agora mais velhos, se reúnam para entender de uma vez por todas o que aconteceu naquela noite.
A produção lida muito bem com essas duas linhas temporais, e a responsabilidade disso cai sob um elenco afiado. De um lado, o elenco infantil dá um show de carisma e personalidade, e do outro os atores adultos transparecem sensibilidades e camadas muito interessantes, fazendo com que A Maldição da Residência Hill tenha coração, mais do que qualquer coisa. É uma série de terror, mas nas entrelinhas de jump scares nem sempre eficazes, ela bombeia delicadeza e emoção.
De fato, Flanagan encontra soluções genuinamente criativas para lidar com sua atmosfera de horror, mesmo que ainda falha e às vezes pontualmente reciclada, mas é nos momentos dramáticos que a série sobe níveis mais altos, quando se mergulha em complexos dramas familiares e se assume como uma história sobre traumas e perdão.
Por isso, é preciso enfatizar o episódio 6. Sem estragar experiências, deve-se dizer o quão magnífico é o trabalho de elenco, roteiro, direção e produção nesse capítulo chave da narrativa. É exemplo dos mais belos de consciência de mise-en-scène, controle absoluto da narrativa e seus conflitos e afinamento técnico e artístico de toda a equipe de trás das câmeras. É um episódio de 4 planos sequência que se unem como uma grande cena de 1 hora. Há momentos de se arrepiar, de medo e de encantamento.
Com uma abordagem cinematográfica, um roteiro brilhante e o mérito de fazer uma história de terror com puro coração, Mike Flanagan e cia. entregam uma produção ousada e especial, e não por isso livre de vícios do próprio gênero.
A terceira entrevista da série do Vortex Cultural com editoras independentes é com a baiana Mondrongo (http://www.mondrongo.com.br/). Conversamos com o editor e escritor Gustavo Felicíssimo, que fundou a editora em 2011 como um braço editorial do Teatro Popular de Ilhéus, mas que atualmente está em voo solo. A Mondrongo publica poesia, prosa, estudos acadêmicos, literatura infanto-juvenil e livros de arte. Confira a entrevista completa abaixo.
–
Vortex Cultural: O mercado literário nacional segue a mesma perspectiva do país e passa por uma fase continuada de crise. Contudo, como explicar o surgimento de editoras independentes, bem como o maior espaço conquistado por elas, entre os leitores?
Gustavo Felicíssimo:Primeiro é necessário dizer que é evidente que as tecnologias que possibilitaram as tiragens de baixas demandas são cruciais nesse processo. Isso abriu portas para quem sempre sonhou empreender no meio literário, mas tinha receio dos altos custos. Por outro lado, o editor “independente”, como você fala, descobriu que é aquele que mais depende de todo mundo, então trabalhamos em rede, nos ajudamos, desenvolvemos estratégias para estarmos juntos em grandes eventos. E, apesar do comércio eletrônico, ainda dependemos muito do empenho do autor para que o livro circule.
Vortex Cultural: Em quais características diferem o modelo de negócios de uma editora independente e de uma de maior porte? Comente as que considera principais.
Gustavo Felicíssimo:Sou um micro-editor e tenho o foco da Mondrongo centrado no seu network institucional e no network dos meus autores, essa é a principal diferença, pois tem a ver com o foco do negócio. Minha opção é por fazer livros de excelência com baixas tiragens, esse é o primeiro passo para um dia estarmos no mesmo patamar das grandes editoras. Enquanto eles vão diminuindo de tamanho, nós vamos crescendo. Um dia nos encontraremos no meio do caminho.
Vortex Cultural: Com o maior número de editoras, feiras literárias independentes despontam e ganham corpo pelo país. Você acredita que essas feiras concorrem com as livrarias? Por quê?
Gustavo Felicíssimo:Não há dúvidas. Aqui na Bahia há pelo menos três grandes eventos literários por ano, a Flipelô – Festa Literária Internacional do Pelourinho, a Flifs – Festa do Livro de Feira de Santana, e a Flica – Festa Literária Internacional de Cachoeira. Em todas elas a Mondrongo está associada a outras editoras e seus autores em função do livro do autor baiano, livro esse que dificilmente você encontrará nas grandes livrarias, mas que tem público muito interessado. Também está ocorrendo que os micro-editores estão produzindo eventos individuais das suas editoras. Faço aqui na Bahia, em Salvador, ao menos um evento individual da editora por mês, mas só nestes anos já produzi eventos no Rio, Curitiba, Ilhéus, Recife, João Pessoa e Campina Grande. A gente vai onde o público está.
Vortex Cultural: Por vezes as editoras independentes passam uma ideia de maior proximidade com o público que lê seus livros. É no melhor relacionamento com seus leitores que uma editora independente encontra sucesso? Quais outras características destaca como fundamentais?
Gustavo Felicíssimo: O sucesso, que nem sei exatamente o que é, está na melhor relação com o autor. Estar aberto para acolher a obra do autor que lhe procura o faz se sentir valorizado, e isso, por consequência, faz toda a diferença em relação ao público.
Vortex Cultural: Por fim, qual comentário/informação acha pertinente destacar quando tratamos de editoras independentes?
Gustavo Felicíssimo:Vejo que o Brasil possui uma vasta tradição de escritores que são também editores, essa nova geração de editoras possui à frente, quase sempre, um escritor que sabe que, em última instância, ele não trabalha com o livro físico, o objeto livro, mas com os sonhos do outro, e com isso não se brinca.
A minha experiência como leitor de quadrinhos começou numa banca perto da minha casa. Todo domingo a minha mãe me dava o direito a um gibi, mas a tarefa de escolher nunca foi assim tão simples. Eu sempre acabava com alguma edição nova do Homem-Aranha ou do Batman, mas sempre tive uma coceira de entender um dos títulos que ficava nas partes mais altas, já que parecia mais um dos filmes de faroeste da coleção do meu tio Marcos que um quadrinho. A curiosidade sempre fazia folhear uma, mas tudo parecia muito mais adulto, e menos colorido, do que eu conseguiria entender. Uns vinte anos depois eu tenho contato com o número 1 de Tex Gold, coleção lançada pela editora Salvat.
A edição é bem diferente das minhas memórias de infância, além de vir num formato americano e com capa dura, as histórias são todas coloridas. Quando criança, parte da impressão de que as histórias vinham de outra época era pela falta de colorização das páginas, que deixavam as coisas mais próximas de Na Pista do Traidor do que com Três Homens em Conflito, ao menos na minha cabeça. E os próprios temas e personagens de Gian Luigi Bonelli são algo entre os dois filmes, entre a pureza dos filmes mais clássicos de faroeste ao desencanto do western spaghetti.
A primeira edição da série traz a história O Profeta Indígena, roteirizada por Claudio Nizzi e desenhada por Corrado Mastantuono. A discussão de temas como o fanatismo religioso e a indução de um povo ao conflito através dessa arma é mais atual do que nunca. Há uma esforço em não demonizar os povos indígenas que é bastante atual, mas que às vezes perde um pouco a mão e os caracteriza como “ingênuos”, revivendo um pouco a perspectiva do “bom selvagem” e um racismo ainda enraizado ao se representar esses povos. Quanto a arte, tanto o traço quanto as cores revivem ainda mais a ideia de que estamos lendo algo trazido do passado. O estilo é uma releitura do utilizado pelo criador do Tex, Aurelio Galleppini, trazendo o realismo tanto nos cenários quanto nos personagens. Isso significa que vamos ter um uso de sombras e hachuras que pode incomodar quem está acostumado com os quadrinhos mais novos, mas que cumpre o seu papel perfeitamente.
Ler Tex é como pegar aquele filme de faroeste clássico, às vezes você alguma memória gostosa, às vezes apenas uma curiosidade muito grande, mas que dificilmente o decepciona. E de quebra sai com com a tradicional música do Ennio Morricone tocando na cabeça, querendo um duelo ao meio-dia no centro da cidade.
Os irmãos Coen (conhecidos, dentre outros, por Fargo: Uma Comédia de Erros e Onde os Fracos Não Têm Vez) assinam o roteiro e são responsáveis pela direção de The Ballad of Buster Scruggs. Não à toa, o filme parece uma coleção de contos. Aliás, essa é a maneira pela qual se apresenta a obra, algo como se o espectador estivesse lendo um livro de contos (assim mesmo, em primeira pessoa).
O longo se inicia com a história do criminoso Buster Scruggs (Tim Blake Nelson), um animado pistoleiro do antigo oeste americano, que anda trajado de branco, sempre sorridente e cantarolando. Essa primeira história começa numa locação deslumbrante em meio um deserto repleto de formações rochosas. Embora haja, aparentemente, algum tratamento digital para as imagens, já há aí uma grande entrega da obra. Na trama, Scruggs se mete em uma disputa ao chegar num típico saloon de época. Ao tentar recusar assumir uma mão numa disputa de poker, seu adversário lhe diz: “You see’em, you play’em!” (algo como: Você viu as cartas, então você joga com elas). Esse é o momento em que Scruggs deixa a todos atônitos com sua ação e sua habilidade. “Eu não tenho uma natureza má, mas quando se está desarmado suas táticas precisam ser de Arquimedes”. Apenas 12’45” de filme já são suficientes para conquistar o espectador.
Logo após, o ladrão interpretado por James Franco entra num banco no meio do nada e disputa a existência com um velhinho baixinho e meio louco. Uma atuação para ser lembrada, embora curta. A vontade de ver essa história num longa com Franco atuando dessa forma se torna enorme tamanho carisma. Ironia fina, hilário, comicidade no meio da selvageria sem lei. Joel e Ethan Coen não precisam pensar em assaltar um banco, merecem receber sacos de dinheiro.
Toda a tragédia, todo o drama, toda humilhação e dor pode ser concentrada numa única vida? Liam Neeson é incapaz de ser um personagem diferente? Um ser humano pode ter menos valor que uma galinha? Alguns homens se sentem satisfeitos em usar outros como instrumentos. Se sua moralidade os permitirem, são capazes de usar outra vida como um meio para o alcance de um pequeno objetivo. Da mesma forma, são capazes de se desfazerem de tal vida, facilmente, sem que lhes custe muito. Segundo Abraham Lincoln, “… government of the people, by the people, for the people, shall not perish from the earth” (governo do povo, pelo povo, para o povo, não perecerá na terra); a mensagem dos irmãos Coen nessa citação direta do Discurso de Gettysburg – do então Presidente dos EUA, proferido durante a Guerra Civil Americana em 19 de novembro de 1863 – não poderia ser mais clara.
Pode o homem ser uma força que assusta toda a natureza? Parece certo que a força que impulsiona o homem à conquista, à vontade de ter, o leva a superar o que precisar passar por cima. Tom Waits tem uma excelente atuação, faz saltar da tela a mensagem do quanto a impulsão do homem ao trabalho como meio para o ganho é forte, e tão mais forte quanto maior a possibilidade do ganho. O trabalho pode ser suado, penoso e moral ou amoral, sujo e traiçoeiro (em verdade, o não-trabalho). Muitas vezes, “Só as pegadas no campo e a terra mexida restaram da vida turbulenta que havia interrompido a paz do local e seguido em frente”. O que verdadeiramente importa se o potencial de ganho é alto?!
E a vida pode dar uma pirueta ou piruetas, e fazer tudo que parecia sólido e certo se transformar em areia movediça. Só o desespero sobra. Só falta e ausência. E mesmo em ausência é a cooperação que nos move à frente. A história do homem não é uma história de bravos, fortes, inteligentes, astutos conquistadores solitários. Os solitários, por mais corajosos e fortes, morreram sem disseminar seus genes. Os seres humanos que cooperaram entre si foram mais longe, viveram mais, construíram mais, superaram desafios, lograram mais prole, deixaram para a história a disseminação dos seus genes.
E aonde chega o ser humano, por fim? Tentar entender o que somos? Entender o que, no limite, faz diferir um de outro… Cada um de nós aparenta acreditar ter as respostas, não importa o quão amplas ou estreitas são nossas experiências, cada indivíduo teima em ter (e em ser) a medida correta. É possível observar isso na mais populosa multidão em uma grande “arena” ou no mais estrito grupo no menor dos cubículos. Cada indivíduo vai levando sua vida, julgando os outros, sendo repulsivo, afastando-se pouco a pouco por motivos fúteis uns dos outros, entretidos com bobagens, deixando de fazer, de ser, desperdiçando grande parte da vida. Quando a viagem acaba, quando chega o fim da linha, não é incomum o viajante ter jogado fora a oportunidade de aproveitar a viagem, sem ter nunca entendido de fato o que passou e o que está acontecendo ao seu redor.
Aos irmãos Coen, resta agradecer pelas excelentes doses de comicidade, drama, tragédia, suspense e motivos para refletir. As seis histórias do filme têm uma sequência e lógica entre elas incrível, ainda que sejam sutis e difícil de perceber – não estão no “campo do roteiro em si”, mas no da natureza humana.
Flores Artificiais (Companhia das Letras), de Luiz Ruffato, é um livro polifônico, cosmopolita e com grande valor literário baseado em um tema caro ao autor: a vida comum. É mais um trabalho onde o escritor mineiro explora o limite entre o real e o ficcional, o humano e o inventado, para re-construir a Literatura enquanto nova invenção do mundo, onde baseia-se na realidade, mas não a repete. A escrita consegue mais que o real, é Ruffato que nos mostra isso.
Quando informei que o livro de contos é resultado de uma vida, não exagerei. O livro é baseado em seis cadernos de cem páginas onde o engenheiro Dório Finetto escreveu suas memórias como consultor de projetos da área de infraestrutura do Banco Mundial. O autor foi procurado, por carta, pelo engenheiro (como menciona na “Apresentação” do livro), com o objetivo de talvez utilizar aquelas memórias em um livro. A proposta singular tomou mais corpo por conta de os dois homens serem da mesma cidade, Rodeio, em Minas Gerais, e do rico material biográfico enviado por Finetto.
Assim, Ruffato escolheu passagens da vida do engenheiro e desenvolveu oito contos marcados por personagens globais interpelados por um brasileiro que os encontrava por motivos de trabalho. Como o escritor deixou claro que menos da metade do material de Finetto foi utilizado para a versão final do livro, logo percebemos que o mérito de Ruffato reside na colagem ficcional que adicionou à vida daqueles personagens. O resultado é o máximo de eficiência literária possível. Histórias mirabolantes e dramáticas, pessoas ricas em todas as formas e nacionalidades e um sentimento de não-pertencimento ao mundo que reitera um dos grandes temas da Literatura e da Humanidade: a angústia de viver. Uma dúvida, porém, se faz presente em todos os contos: onde a ficção completa o drama humano? Sem lermos as memórias de Finetto, nunca saberemos a resposta. E assim o livro se torna mais saboroso.
Alguns assuntos são comuns em todas as histórias escolhidas. O principal é a guerra. O componente bélico paira como uma grande sombra extensa por todo o planeta. Nos contos, ultrapassamos golpes militares, perseguição a minorias étnicas, guerras civis, entre outros conflitos. O segundo é a família. Temos filhos à procura de pais, casamentos despedaçados, traições, arrependimentos familiares, a tragédia de compor um núcleo familiar e observa-lo soçobrar sem nutrir esforço para mantê-lo. O homem solitário, adoece.
O terceiro tema presente no livro é a memória. Histórias singulares sobrevivem pela contação do absurdo. Esse estranhamento é característica que prende o leitor ao livro e prende a vida ao inusitado de viver. Se a vida pede coragem, como bem o afirmou Riobaldo, o que temos nos contos de Ruffato são porções de realidade que desafiam a sobrevivência dos personagens enquanto sãos e falíveis. (Aliás, o falível é o notório para nosso contentamento de leitores.)
Por fim, a qualidade de Ruffato como escritor ficcional tem especial brilhantismo nesse livro globalizante. As descrições, os eventos citados, as localidades listadas, as particularidades de cada nacionalidade, os exames psicológicos, o contista é especialmente prodigioso em manter uma linha de entendimento ao compartilhar aquelas informações conosco. Uma leitura soberba para um livro soberbo. Livro muito indicado.
Depois de entrevistar Nathan Matos, da Editora Moinhos, o Vortex Cultural conversa com Eduardo Lacerda, editor da paulista Patuá em nossa série sobre editoras independentes e o momento de baixa do mercado literário no país.
A editora Patuá (http://editorapatua.com.br/) abriu as portas em 2011 e conta com quase 700 títulos no catálogo. Com foco em Literatura Contemporânea, publica gratuitamente poesia, conto, crônica e romance. Entre seus prêmios, conquistou duas vezes o Prêmio São Paulo de Literatura, outras duas vezes o Prêmio Jabuti e o Prêmio Açorianos, além de figurar com autores e autoras finalistas e semifinalista em vários prêmios literários do país. Além de tocar a Patuá, Lacerda também administra o Patuscada, um bar/livraria na Vila Madalena onde realiza os lançamentos da editora e funciona como point literário na região. Confira a entrevista completa abaixo.
Vortex Cultural: A queda do número de livros vendidos parece estar concentrada nas grandes editoras (Companhia, Record e Sextante, principalmente). Isso significa que o modelo de trabalho das grandes editoras está ultrapassado?
Eduardo Lacerda:As grandes editoras, alinhadas com o pensamento de nossa elite, nunca se preocuparam na formação de público leitor, que no fim é público consumidor de livros. Sabemos que o descaso com a educação e com a cultura são projetos. Também estamos em uma época de menos dinheiro circulando no país, da mudança de cultura do impresso para o digital (embora o livro digital ainda não seja uma prioridade para nossos leitores). Mas pensando em uma lógica capitalista, fazer uma quantidade maior de produtos significa ter preços unitários menores. Hoje é possível fazer livros de qualidade por menos de R$ 2,00 (para uma editora pequena o custo de produção fica em R$ 15.00), então esse modelo de produzir altas tiragens não está ultrapassado, o que está ultrapassado é não entendermos que sem público leitor, não há público consumidor de livros. Que todas as pessoas desse país precisam ter acesso ao livro, precisamos de bibliotecas, de livrarias, de valorizar os profissionais da cadeia do livro. Mas, como sou um editor de uma editora independente, não sei dizer se esse modelo das grandes editoras está ultrapassado, eu acho que não, mas é um modelo que pouco me interessa (embora me interesse ter títulos feitos em altas tiragens e poder vendê-los a preços acessíveis e encontrando mais leitores).
Vortex Cultural: Outro grande problema para o mercado é que as grandes livrarias não estão repassando o dinheiro das vendas às editoras. Atualmente, o pior lugar para vender livro é em uma livraria?
Eduardo Lacerda:Eu sempre evitei vender livros em livrarias, mas é importante deixar claro que adoro livrarias e considero uma parte importante para que as pessoas tenham acesso ao livro. Mas, como todo negócio, a maior parte das livrarias que temos prioriza o lucro e não o livro e a Literatura. As livrarias cobram de 40-55% do preço de capa de um livro, pegam o produto em consignação (com possibilidade de devolução se não for vendido), o frete é sempre responsabilidade da editora, é um negócio quase perfeito e sem riscos. O autor não ganha 50% do preço de capa, a editora não ganha 50% do preço de capa (e ainda que ganhe, ela assume todos os riscos da edição, não pode consignar a impressão dos livros, por exemplo). A livraria acaba não assumindo nenhum risco, mas aceitamos – por décadas – esse sistema para conseguir ter um mínimo de distribuição. A internet, a venda direta, a Amazon, a Estante Virtual e outras plataformas tiraram o protagonismo das livrarias que precisam se reinventar. Elas, mais do que as editoras, têm sim um modelo ultrapassado. Agora, é importante dizer que o que está ultrapassado é o modelo de negócio, não a nossa necessidade de mais livrarias. Um governo sério daria incentivos à criação e manutenção de livrarias no país, não destinar recursos milionários para uma rede, como o aporte que a Livraria Cultura recebeu há alguns anos, mas incentivos como isenção ou redução de impostos, por exemplo.
Vortex Cultural: Em quais características diferem o modelo de negócios de uma editora independente e de uma de maior porte?
Eduardo Lacerda:Cada editora tem um modelo de negócio próprio, mesmo as independentes, cada uma trabalha de uma maneira (o que é incrível e abre possibilidades para a criação de editoras plurais e democráticas). Não acho que o trabalho das editoras independentes é melhor (embora mais democrático e diverso), nem que o das grandes é menos importante (embora seja urgente darem maior espaço e visibilidade). Precisamos fortalecer toda a cadeia do livro, isso inclui desde pequenas editoras que trabalham com tiragens de 5 exemplares (ou menos), com tiragens únicas, com livros artesanais, impressões em casa, livros cartoneros, passando pelas editoras independentes como Patuá, Moinhos, Oito e Meio, que, apesar de pequenas e independentes, trabalham com um formato de livro mais tradicional e constam atualmente na lista dos maiores prêmios literários, até as editoras grandes, que publicam best-sellers. Não acredito que existam inimigos disputando nada nesse meio (ou pelo menos acredito que não deveríamos).
Vortex Cultural: Quais são os melhores parceiros para uma editora independente? Influenciadores digitais (booktubers, resenhistas de blogs, perfis de Instagram sobre livros etc) são os melhores aliados para vendas?
Eduardo Lacerda:As editoras independentes precisam se reinventar todos os dias e todos os dias aparecem novas oportunidades para isso. Novas plataformas, novas redes sociais, novos eventos. Dependendo do perfil editorial de uma pequena editora um resenhista de blog funciona mais para as vendas do que um booktuber, mas acho que é necessário buscar ocupar todos os lugares, respeitar os diferentes trabalhos e criar cada vez mais espaço para o livro.
Vortex Cultural: Com o maior número de editoras, feiras literárias independentes despontam e ganham corpo pelo país. Você acredita que essas feiras concorrem com as livrarias? Por quê?
Eduardo Lacerda:Eu insisto que não há (ou não pode haver) concorrência e quero acreditar que as feiras ajudam a formar público que depois frequentará as livrarias. Feiras são eventos, eventuais, não estão no dia a dia das pessoas, dos leitores. São importantes e cumprem sua função, sim, mas o público precisa ter acesso sempre, todos os dias, em todos os lugares. Gosto de pensar que um homem ou mulher qualquer, que nunca entrou em uma livraria, pode descobrir livros bons em uma feira e procurar outros em uma livraria. Para isso, é claro, precisamos de mais livrarias (e de mais feiras, mais eventos, mais leitores).
Vortex Cultural: Por vezes as editoras independentes passam uma ideia de maior proximidade com o público que lê seus livros. É no melhor relacionamento com seus leitores que uma editora independente encontra sucesso? Quais outras características destaca como fundamentais?
Eduardo Lacerda:Costumo dizer que existem 3 camadas de leitores para um autor estreante / desconhecido (e um autor pode ter dezenas de livros e ainda ser desconhecido): a primeira camada é formada por amigos, parentes e colegas de trabalho, quanto maior a rede da pessoa, maior o número de “compradores” do livro em um lançamento, esses primeiros leitores não devem nunca ser desprezados, eles não só ajudam o trabalho do livro começar, como, apesar de parentes e amigos, podem ser leitores do livro (e não comprar apenas pela proximidade com o autor), já vi muita gente como tia, primo, sobrinho comprar um livro pela primeira vez na vida pela proximidade com o autor e depois se tornar um leitor frequente. Formar leitores passa por dar acesso ao livro para as pessoas.A segunda camada é formada por outros escritores, críticos, jornalistas, professores, pessoas que se interessam por Literatura, mas que ainda mantém um interesse externo à obra, geralmente essa camada de leitores não adquire / compra o livro, acaba ganhando ou trocando (livros e leituras), essa camada pode ajudar a sedimentar um livro, a torná-lo conhecido (de uma centena de pessoas, mas conhecido), a encontrar a última camada de leitores.A última camada é a do leitor que não tem nenhuma relação com o autor, que se interesse apenas pela obra, pelo que está escrito. Esse leitor, talvez o leitor ideal, aquele que todos os escritores procuram, que vai se debruçar e ler o que está escrito sem se preocupar, desculpe a brincadeira, se você vai tomar cerveja com ele depois, se vai ler também seu livro, esse leitor é muito raro de encontrar, mesmo porque sabemos que o público leitor ainda é pequeno, mas a quantidade de livros publicados não para de crescer. As pequenas editoras passam mesmo essa imagem de proximidade com os leitores, sabendo da importância deles estamos sempre nos lançamentos, nos eventos, nos debates, feiras, festas, mas a proximidade com o leitor vem da leitura do livro, é isso que estamos perseguindo.
Vortex Cultural: Por fim, qual comentário/informação acha pertinente destacar quando tratamos de editoras independentes?
Eduardo Lacerda:O que me encanta hoje no mercado editorial é saber que qualquer pessoa em qualquer local do país pode criar uma pequena editora independente e criar livros que dialoguem com seu espaço, com sua cultura, com sua região, valores, arte. É uma revolução muito maior do que as pequenas-grandes editoras independentes como a Patuá. Quero dizer, acho que um garoto ou garota que se arrisque a conhecer a Arte e a Literatura de sua cidade, de sua região, que se aventure a produzir onde muitas vezes nada é feito, em cidades que não têm nem bibliotecas e nem livrarias, isso é muita coragem e tenho visto isso acontecer todos os dias.
Uma Breve História do Mundo, do historiador australiano Geoffrey Blainey e publicado no Brasil pela editora Fundamento, é o perfeito livro de História para quem não tem costume de ler sobre o passado. Com linguagem muito acessível, mapas para situar o leitor e preocupação constante por exibir os pontos mais importantes da permanência histórica do Homem no planeta, a obra do professor australiano é perfeita para introduzir e seduzir o leitor no ensino da História. E como bem advertiu o filósofo Edmund Burke sobre a importância dessa disciplina: “Aqueles que não conhecem a História estão fadados a repeti-la”.
O rastro Humano deixa marca nos continentes. Ao se aproximarem dos primeiros homens do planeta, os historiadores, através do estudo de seus costumes e acontecimentos, visam construir uma escada de conhecimento que guiará a tomada de decisões para as próximas gerações do planeta. Aprendemos com o passado, sempre. Contudo, o desafio não é apenas contar e refletir sobre o passado, mas, pensar em como transmitir a mensagem sem ser muito singelo nem muito catedrático.
Blainey é bem recebido na comunidade científica como um daqueles grandes humanistas que pensam na disseminação do conhecimento ao público mundial. Como o astrônomo Carl Sagan, o físico Stephen Hawking, e o também astrônomo e celebridade científica do momento, Neil deGrasse Tyson, só para citar alguns, Blainey se preocupa com a mensagem. Uma Breve História do Mundo dá importância à forma de exposição do conteúdo e transita uma linha perfeita de inteligibilidade; não é simples, não é infantil, mas não é extenso ou super específico em contar a História do Mundo.
Livro para quem ama História ou quer ler e entender bem sobre o passado do mundo sem depender de um vocabulário técnico avançado. Na medida para quando você deseja ler não-ficção como entretenimento e ainda aprender sobre os gregos, egípcios, Gengis Khan, a domesticação do cavalo e as grandes guerras do mundo. Os capítulos são sintéticos, mas muito bem aproveitados. Temos uma noção de totalidade histórica que destrincha os acontecimentos com análise precisa. Um excelente trabalho de disseminação histórica.
A Mulher Entre Nós, escrito por co-autoria entre as americanas Greer Hendricks e Sarah Pekkanen e publicado no país pelo selo Paralela, da Companhia das Letras, é um livro de suspense que peca pela previsibilidade e pouco carisma da história. Uma trama de violência conjugal que se utiliza de protagonistas femininas em condições fragilizadas ao redor de um masculino impávido e com fortuna, contudo violento. História que não justifica e passa longe da promessa de “Leitura da sua vida” na contracapa da edição.
Como é comum nos thrillers moderno, temos um Prólogo, uma espécie de capítulo fora da curva que, em tese, funcionaria como atrativo para nos mantermos firmes na leitura. Nessa página especial, lemos uma pequena perseguição: a ex-mulher do protagonista da história persegue a atual noiva dele e, entre grandezas de paranoia e inveja, afirma que causou grande ruína àquela mulher. A perseguidora e arquiteta da ruína alheia é Vanessa, uma mulher de 37 anos, deprimida, que descobre o noivado do rico ex-marido. Sem forças para reconstruir sua vida, ela infla uma obsessão com o objetivo de impedir o casamento dele com a mulher mais jovem.
Do outro lado da narrativa, temos Nellie, uma jovem sonhadora desejando começar a vida em Manhattan, mas detentora de um segredo que a fez fugir da cidade natal. Richard, o protagonista e homem comum as duas, é mais um cara abastado de comercial de margarina que é imune ao tempo e às mazelas das pessoas, entretanto, logo o entendemos psicopata que se aproveita da imagem de bom moço para manter relacionamentos violentos.
Sinteticamente, uma trama previsível onde os personagens não suscitam empatia. Os acontecimentos narrados singram as 340 páginas do livro sem vivacidade e tudo parece sem cor. A trama demora a acontecer e, subitamente, se torna óbvia. Os diálogos são simples, não cativam, e padecem da mesma falta de criatividade que flagela a trama. Tudo é previsível, como uma novela para adolescentes.
As qualidades, que existem, giram em torno de algumas descrições físicas e de ambientes que funcionam como raro brilho no horizonte opaco da narrativa. As autoras, ao abordarem o sensível tema da violência conjugal, apenas repetiram o atual – faltou energia para ousar uma nova construção do tema. Faltou inovação. Dica para a editora Paralela: há escritores no país que escrevem tramas melhores do que essa.