Autor: Vortex Cultural

  • O Mercado Literário das Editoras Independentes | Editora Moinhos

    O Mercado Literário das Editoras Independentes | Editora Moinhos

    Entrevista com Nathan Matos, da Editora Moinhos.

    O mercado literário nacional, assim como o país, passa por um momento de baixa. Segundo a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), entre 2006 e 2017 o consumo de livros no país perdeu 21% em volume, um total de R$ 1,4 bilhão conforme pesquisa divulgada no meio do ano. Contudo, a crise do mercado não impediu outro fenômeno: as editoras independentes. As pequenas editoras multiplicaram-se pelo país e, cada qual a sua maneira, conseguem sobreviver ofertando títulos que não seriam publicados normalmente por uma grande editora. Para entender mais um pouco desse fenômeno, o Vortex Cultural inaugura uma série de entrevistas com alguns dos editores independentes do país respondendo perguntas sobre o mercado literário atual.

    A primeira entrevista é com a editora mineira Moinhos (https://editoramoinhos.com.br). A Moinhos abriu as portas em 2016, atualmente consta com 70 livros no catálogo e, entre seus objetivos, consta o “resgate de grandes clássicos da literatura brasileira e estrangeiras, buscando viabilizar obras ainda inéditas no país”. Capitaneada por Nathan Matos e Camila Araujo, o editor conversa conosco sobre o mercado editorial, as livrarias e as melhores parcerias para editoras independentes, entre outros assuntos. Confira a entrevista completa abaixo.

    Vortex Cultural: O mercado literário nacional segue a mesma perspectiva do país e passa por uma fase continuada de crise. Contudo, como explicar o surgimento de editoras independentes, bem como o maior espaço conquistado por elas, entre os leitores?

    Nathan Matos: Com a inserção da impressão digital para livros ficou mais fácil e acessível produzir livros em pequenas tiragens. Tendo isso em conta, o que se percebe é que várias editoras independentes vêm surgindo pelo país e prestando variados serviços a quem deseja ter um livro impresso. Quanto ao espaço conquistado, acho que isso é como qualquer empresa, quando se trabalha sério e com objetivos determinados é possível ganhar o espaço onde se está inserido. Editoras como Patuá, Reformatório, Relicário, entre outras, têm conseguido chamar atenção para alguns livros com uma maior saída e chegando também a finais de prêmios reconhecidos nacionalmente. Ainda não acredito que esse espaço é tão amplo assim, porque não acredito que a grande massa leitora leia, realmente, os livros produzidos pelas editoras independentes. Mas devagar e sempre, uma hora a gente chega lá.

    Vortex Cultural: A queda do número de livros vendidos parece estar concentrada nas grandes editoras (Companhia, Record e Sextante, principalmente). Isso significa que o modelo de trabalho das grandes editoras está ultrapassado?

    Nathan Matos: Não concordo. Desde o último trimestre do ano passado vejo uma queda nas vendas das pequenas editoras. A crise é total. Se algumas pequenas conseguem alguns feitos de vender muitos livros, devemos estudar o caso e analisar o que foi feito em torno do livro e que livro é esse. Entre os amigos e amigas editoras de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, o que tenho sentido, em conversas, é que o faturamento tem caído e que muitos estão repensando os prazos de publicação para alguns livros. Tenho amigos editores que estão com quase 10 livros travados, tentando esperar esse momento tão ruim no país passar (se é que vai passar tão rápido). Dez livros podem parecer pouco, mas para uma editora pequena que, às vezes, precisa publicar para manter um caixa girando é algo bem complicado porque são livros em que a editora acreditou e que tem pressa em ver o investimento retornar. E quando às grandes estarem ultrapassadas, olha, teríamos que analisar o que propriamente. Eu vejo todas essas que você citou e outras, que acompanho, se reinventando sempre, em todas as maneiras, principalmente na divulgação, então não sei bem se está ultrapassado.

    Vortex Cultural: Outro grande problema para o mercado é que as grandes livrarias não estão repassando o dinheiro das vendas às editoras. Atualmente, o pior lugar para vender livro é em uma livraria?

    Nathan Matos: Se eu pensar apenas no valor que tenho para receber, sim, a livraria é o pior lugar para se vender um livro. E não são apenas as grandes livraria que não tem repassado o dinheiro das vendas. Infelizmente, várias livrarias menores têm atrasado os acertos. E quando o fazem, pedem para parcelar mais do que já está acordado. Então, fica bem difícil acreditarmos que a livraria é o melhor lugar para se vender um livro. Contudo, é importante dizer que isso não é, ainda, algo generalizado, temos várias livrarias pequenas que cumprem com o que prometem, pagam em dias e têm feito trabalhos importantes, visando parcerias com editoras menores, para que lançamentos e outros eventos literárias aconteçam.

    Vortex Cultural: Quais são os melhores parceiros para uma editora independente? Influenciadores digitais (booktubers, resenhistas de blogs, perfis de Instagram sobre livros etc) são os melhores aliados para vendas?

    Nathan Matos: Os melhores são os que entendem, realmente, o seu modelo de negócio e estão dispostos a ser parceiros. Eu não vejo o menor problema nos influenciadores digitais. Há um problema dantesco no nosso meio, porque ainda se tem o preconceito de que a literatura não deve ser para todos. Isso é fato. Há muita gente no meio que é preconceituosa com vários gêneros literários e até com os leitores e leitoras que alguns livros possam atingir. Acho isso uma tremenda baboseira. A literatura foi feita para toda e qualquer tipo de pessoa. Atualmente esse preconceito está indo até para os que fazem críticas literárias, seja no meio escrito ou com ajuda das redes sociais. Não me importa se você escreve para Folha de São Paulo ou se fala de livros em seu canal do Youtube. Para mim, enquanto editor, tudo é válido, porque o livro vai ser divulgado. Evidente que algumas mídias e alguns críticos vão atingir mais pessoas que outras, mas serão sempre públicos específicos. Há pouco tempo, criou-se um embate nas redes sociais sobre se é válido os influenciadores digitais cobrarem por fazer as leituras críticas. Poxa, se eu parto do entendimento que a pessoa leva aquilo como um trabalho. Sério. Que faz com cuidado, e que, mesmo quando recebe pra fazer uma leitura crítica, vai fazer uma leitura sincera, sem interferência da editora, qual o problema? Essa pessoa também tem conta pra pagar, e ela está trabalhando, o tempo dela é igual ao de todo mundo. Em contraponto, o artista em geral reclama que todo mundo quer sempre lhe pagar com algo que não seja dinheiro. Então por que fazer isso com outros? Na verdade, devemos nos unir e fazer o mesmo. Autores não deveriam participar de eventos sem serem pagos. Nem que fosse algo simbólico, você me entende?

    Vortex Cultural: Por vezes as editoras independentes passam uma ideia de maior proximidade com o público que lê seus livros. É no melhor relacionamento com seus leitores que uma editora independente encontra sucesso? Quais outras características destaca como fundamentais?

    Nathan Matos: Não sei, tenho achado essa linha cada vez mais tênue e até prejudicial. Por mais profissional que se tente ser numa pequena editora, e devido a essa proximidade, as pessoas tendem a achar que por isso podem lhe desrespeitar por qualquer coisa. Já ouvi histórias em que a primeira reação minha e de quem estava ao redor foi “se fosse editora X ou Y duvido que tivessem agido assim”. E é a verdade. Há muito desrespeito entre as pessoas atualmente. Pode parecer piegas ou nada a ver com sua pergunta, mas, pra mim, tem. Precisamos de mais amor, de mais gentileza. Ninguém é dono de ninguém e ninguém merece ser humilhado. Essa maior proximidade que os pequenos editores possuem com o público deve ser sempre positiva, ou tentar ser sempre positiva. E acredito, sim, que esse relacionamento é importante, porque se consegue responder mais rápido, resolver algumas questões que poderiam ser complicados, comisso seu público fica feliz e até assustado com tamanha atenção que temos com ele e passa a nos olhar de maneira diferente.

    Vortex Cultural: Por fim, qual comentário/informação acha pertinente destacar quando tratamos de editoras independentes?

    Nathan Matos: Que se você chegou até aqui nessa entrevista, pesquise sobre as pequenas editoras e tente, quando possível, e sempre que possível, comprar algum livro delas.

    Texto de autoria de José Fontenele.

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  • Crítica | Infiltrado na Klan

    Crítica | Infiltrado na Klan

    Spike Lee retorna com um dos filmes mais importantes do ano. Infiltrado na Klan, no original BlacKkKlansman, é baseado na investigação real de Ron Stallworth nos anos 70, um policial negro de Colorado Springs que conseguiu se infiltrar na Ku Klux Klan. Com um material tão peculiar em mãos, Lee o prova através de decisões importantes e entrega um longa engraçado e urgente.

    Porém, focado em seguir uma linha estilística, o diretor escolhe desenrolar tua história de forma didática, as situações são convenientes, algumas camadas de complexidade ou até realismo nunca chegam a serem tocadas e deixa obviedades serem verbalizadas para um andamento sem grandes obstáculos. Mesmo longe de ser uma escolha ruim, o longa não deixa de perder força e conflitos poderosos.

    A comédia, de fato, é bastante funcional ao escancarar o quão peculiar é a operação realizada por Ron (John David Wahington) e Flip (Adam Driver). Os dois atores, além de compartilharem de uma química quase energética nesse ponto, também carregam nas costas cargas dramáticas muito relacionáveis e verdadeiras, o que deslancha Infiltrado na Klan ao que lhe triunfa.

    Ao criar boas relações, Lee entrega nelas as melhores nuances e discussões mais genuínas do longa. O fato de Flip, o personagem do sempre bom Adam Driver,  ser judeu nessa missão como infiltrado rende reflexões muito pertinentes acerca identidade, reconexão e reconhecimento de semelhantes. Outro exemplo é a personagem de Laura Harrier, Patrice, possivelmente inspirada na figura histórica da militância negra americana Angela Davis. O conflito dela com Ron acerta demais em expor posturas divergentes contra o racismo e é uma pena que isso dure pouco em meio a tanta coisa acontecendo logo ali no plot principal.

    Esse, que se desenrola numa tensão crescente com veia de puro entretenimento, é diversão funcional na ação, no humor, no drama, e se equilibra na medida de suas facilitações. Porém, ao final, o longa dá um jeito de derrubar o lençol para olhos mais desatentos, os anos 70 não estão tão longe como gostamos de pensar. Tem gente no mundo todo, como na passeata assustadora da supremacia branca nos EUA ou na recente situação política do Brasil, espalhando discurso de ódio, seja com capuz na cabeça, seja fazendo arma com a mão.

    Spike Lee aos tropeços de um filme difícil e imperfeito em suas complexidades, ainda traz uma obra atual e necessária ao refletir nossos tempos, um puxão de orelha bem dado a nós da memória tão curta.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

  • Resenha | Sob Águas Escuras – Robert Bryndza

    Resenha | Sob Águas Escuras – Robert Bryndza

    Sob Águas Escuras (Editora Gutenberg), de Robert Bryndza, parece um exercício final de uma oficina de escrita criativa. Tem conflito bem marcado, tem uma personagem experiente e trabalhada, tem trama, arquitetura, tem boas descrições, mas não tem vida. Uma história fria, sem cor, perfeita para quando você está em casa fadigado em um sábado chuvoso e fica passando de canal em canal com o clique do controle remoto sem achar nada que agrade. “Sob águas escuras” também é mais um canal que se clica e passa, não desperta curiosidade.

    Erika Foster é a detetive protagonista de “Sob águas escuras”. No livro, após mudar de departamento, ela trabalha em um caso de narcóticos. Após vasculhar o lago de uma pedreira em busca de drogas, encontra 4 milhões de libras em heroína  e um pacote com o esqueleto de uma criança. Os restos pertencem à Jessica Collins, desaparecida há 26 anos. Erika procura informações sobre o caso e deseja reabri-lo como investigadora principal. Apesar de ninguém da corporação estar contente com a postura dela, aceitam que o caso seja reaberto e dão carta branca para a investigadora. (Ficamos na dúvida se tudo não passa de um exercício ao ego da protagonista, mas vamos em frente.)

    A partir daí, a história percorre os passos de Erika para refazer o quebra-cabeças do desaparecimento e morte da menina no lago. Como se trata de um caso que foi muito explorado na época tanto pela Polícia, quanto Imprensa, a família da criança não quer mais falar sobre o passado. As lágrimas já foram esgotadas e o sentimento de luto foi vivido e enterrado. Quando Erika deseja refazer os passos do desaparecimento, a insistência é vista como uma piada de humor duvidoso.

    Enquanto lia, me recordei de “Os cinco porquinhos”, onde o detetive Poirot, de Agatha Christie, também procura desvendar um crime ocorrido no passado. A semelhança entre as duas narrativas faz parte apenas do conflito principal. Em todo o resto, mudanças. Em Agatha Christie, a trama se desenvolve sob uma atmosfera de suspense e incredulidade; em Robert Bryndza, a investigação tem um clima diverso e por vezes caótico, como quando, por vezes, o conflito parece beirar o segundo plano da narrativa.

    Por isso, “Sob águas escuras” peca por desejar uma totalidade narrativa e não se ater à espinha dorsal da trama. Na história, como por vezes, na vida, menos é mais. Robert Bryndza  não alcança uma atmosfera de suspense e investigação suficientes no livro porque falha em explorar as minúcias, aquilo que o torna único. Agatha Christie, ao contrário, alcança esse objetivo. Ademais, a investigação da detetive Erika é narrada de forma muito extensa e por vezes cansativa; os diálogos pouco movem os acontecimentos, os personagens são de alguma forma tão pragmáticos e responsivos, que parecem cópias de pessoas. Falta vida, falta força, falta.

    Livro de oficina literária, Robert aplica uma variação da Jornada do Herói, de Vogler, com adição de um prólogo açucarado que promete entreter o leitor até o fim. Contudo, antes de chegar ao final, a leitura cansa, a história torna-se difusa e o entretenimento se perde, dissipando-se em moléculas do que poderia ter sido. Chega-se ao final porque a detetive Erika resolve seus casos, mas é só. História de detetive de baixa qualidade. O sol continua lá fora e as árvores farfalham, lentas.

    Texto de autoria de José Fontenele.

  • Resenha | Interferências – Connie Willis

    Resenha | Interferências – Connie Willis

    Interferências (Suma das Letras), de Connie Willis é um extenso romance new adult com toques de ficção científica que não tem movimento ou evolução. A promessa de jornada de autoconhecimento para a personagem principal – Briddley – não se concretiza e o resultado é uma trama que dá inúmeras voltas ao redor de si, sempre tentando justificar suas 463 páginas, mas sem qualquer sucesso. Exercício para um escritor que leia esse livro: transforme em um conto.

    A história é simples: Bridley é uma executiva da Commspam, uma empresa de tecnologia que tem como principal concorrente a Apple. O namorado dela, também funcionário da empresa, pede-a em noivado e, para oficializar a união, ele sugere que façam um EED como prova de amor. O EED é um procedimento cirúrgico que conecta as duas mentes e faz com que compartilhem emoções entre ambos. No universo da história, esse procedimento é feito por alguns casais, mas nem todas as pessoas aprovam a cirurgia por conta de possíveis danos no cérebro. Ademais, há uma ideia de que não é necessária uma cirurgia tão invasiva para demonstrar o sentimento um pelo outro.

    Parte do conflito da história é de Bridley com a família irlandesa. Eles não aprovam a cirurgia e ela sequer contou aos familiares sobre o noivado ou a insistência do namorado para que façam o EED. Mesmo assim, ela resolve aceitar o procedimento. O outro conflito é o que acontece após a cirurgia. Bridley não se conecta com o noivo, mas com outro rapaz a quilômetros de distância, também funcionário da Commspam, que ela considera meramente um amigo geek. Se vocês conseguiram entender o meu gancho, já entenderam o livro.

    A história demora. É apenas após a página 60 que começamos a entender o conflito principal. Antes, diálogos e mais diálogos sem nada significante. A personagem vital se mostra passiva na maior parte das vezes e, quando confrontada, recua, fica rememorando suas mazelas e não se movimenta. Ela é sempre levada pelos outros e a promessa de uma protagonista feminina ativa cai por terra. Aliás, a passividade da personagem dá o tom de marasmo da narrativa. Longos diálogos, centenas de travessões sem qualquer vivacidade, é como se lêssemos uma xerox sem vida da realidade.

    Personagens nada cativantes (o único vivo me parecia ser a avó da personagem principal), uma história de amor que não passa de uma paixonite de conveniência, e uma jornada de autoconhecimento que acrescenta pouco ao final. Decepcionante, eu diria. Connie Willis tem outros livros melhor cotados que este e, se o propósito era apenas marcar um lugar na categoria new adult, temos um lugar mal ocupado. Não recomendo.

    Texto de autoria de José Fontenele.

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  • Resenha | A Chuva Imóvel – Campos de Carvalho

    Resenha | A Chuva Imóvel – Campos de Carvalho

    A Chuva Imóvel (Autêntica), de Campos de Carvalho, é o romance mais filosófico e poético dos quatro que o autor assina. Com capa dura e novo projeto gráfico pela Autêntica, “A chuva imóvel” continua A Lua Vem da Ásia e A Vaca de Nariz Sutil (“O púcaro búlgaro” será o último lançamento), no projeto de relançamento dos romances do autor mineiro que viveu em São Paulo e Rio de Janeiro.

    A trama acompanha a história de André Medeiros e sua irmão gêmea, Andréa, que têm um relacionamento incestuoso. Após as mortes do irmão e do pai, André narra, como um Dante sem qualquer guia, uma descida febril até seu inferno interior, no qual acaba por lutar com o Diabo – ou, nas suas palavras, “a Coisa”. Nós, os leitores, somos como um psicanalista ouvindo aqueles relatos (alucinações?) incomuns, mas interessantes.

    Campos de Carvalho é ordenado como autor nonsense, surrealista, onírico. Em “A chuva imóvel”, temos tudo isso encharcado por uma fina filosofia existencial. André é, como explícito pelo próprio narrador-personagem, um centauro que cavalga um cavalo. A imagem incomum e disforme dá uma pista do romance: um homem atormentado que experimenta uma sensação de estar sobre si mesmo, um nível de deslocamento do próprio corpo que o permite transportar o passado ao presente por meio de um discurso interior. Tudo para explicar a nós, os ouvintes-leitores, a relação incestuosa com sua irmã: Andréa.

    O efeito de estar sobre si mesmo lembra o objetivo do machadiano Brás Cubas, que, morto e desprendido da consciência de viver em sociedade, desata seus verdadeiros sentimentos de quando era vivo. André busca o mesmo, mas, como se sofresse de distúrbio psicológico por conta de auto-penitência, cria uma espécie de consciência sobre a própria consciência, uma sandbox (na programação, um ambiente de teste que isola mudanças de um novo programa) no ambiente cerebral que o permite contar sobre o passado, sem, contudo, reviver todos os sentimentos destruidores que advém do exame pleno de si mesmo.

    Nós somos o ouvinte. Nós somos o leitor sobre o centauro que está ao cavalo. Acompanhamos todos os fatos que, por vezes físicos, por vezes abstratos, são construídos a partir do exame do que restou em André: a culpa. Contudo, as cortinas que escondem o potente desejo afetivo pela irmã são descortinadas devagar, solenes, como se o personagem criasse um gatilho para todos os seus atos. Humano, André se justifica com o que por vezes é notório no mundo: o desejo é algo inexplicável.

    Também André é um homem inexplicável; um sujeito que tenta refazer a si mesmo a partir do que sobrou de si além da culpa: um filete de liberdade. Da mesma forma, Campos de Carvalho é um autor emancipado, um homem que escolhe o abstrato e o surreal como metáfora do caos que por vezes ordena a vida dos que andam pela terra. Viva Campos de Carvalho e seu nonsense que nos aproximam do Homem, esse desconhecido. Livro muito recomendado, mas se for sua primeira vez com o autor, leia “A lua vem da Ásia”, primeiro. Montar um centauro a cavalo não é nada fácil da primeira vez.

    Texto de autoria de José Fontenele.

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  • Crítica | No Coração da Escuridão

    Crítica | No Coração da Escuridão

    Paul Schrader, escritor de filmes como Táxi Driver e Touro Indomável, conquistou Veneza em 2017 com o que sabe fazer melhor, um estudo de personagem, mas dessa vez se provam na direção. No Coração da Escuridão traz consigo vislumbres dos outros trabalhos de Paul, mas se destaca por tratar de temáticas de fé e meio ambiente, explorando os limites e a finitude da raça humana em relação a ambos.

    Ethan Hawke é Toller, um padre inabalável que cuida da Primeira Reformada, uma igreja que já passa dos duzentos anos. Perturbado por um passado trágico, sem grandes esperanças em si próprio e com problemas alcoólicos, Toller passa a narrar teus pensamentos em um diário durante um ano, até que um jovem casal –  formado por atuações altamente sensíveis de Amanda Seyfried e Philip Ettinger – lhe solicita conselhos que refletirão na vida dos três.

    Com um formato de tela 4:3 e planos sempre estáticos e friamente compostos, a perspectiva da personagem de Hawke é muito efetiva em transmitir as suas grandes questões, parado no lugar tendo seus pensamentos ricocheteando e sempre voltando para si. Muitas vezes com a câmera extremamente próxima a teu rosto, como uma testemunha, Hawke entrega uma das melhores performances do ano, o passado é marcado em tuas falas limitadas ao necessário e sua desesperança é gritante no olhar.

    Através dos olhos de nosso anti-herói, Schrader conduz o filme em meio a imprevisibilidades e duras reflexões sobre o futuro do planeta Terra, primeiro assusta e aos poucos nos acostuma com a ideia de que a própria existência humana já é duvidosa, assim como nossa fé, nosso sistema e nossos próprios esforços para ignorar tudo isso. E conduz isso em meio ao cinza de igrejas e chãos extensos de uma madeira marrom polida que parecem ter se perdido no mundo dos negócios. Não há mais onde se buscar ajuda.

    De forma niilista, No Coração da Escuridão caminha a passos calmos para um final intrigante e belamente, em meio a certas circunstâncias, compreensível. Schrader traz a reflexão dos tempos e toca em feridas entreabertas que nem nós, nem o cinema, temos coragem de mostrar.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

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  • Resenha | Meu Querido Canalha

    Resenha | Meu Querido Canalha

    Conforme o Aurélio, “canalha” é pessoa desprovida de moral; quem não tem bom caráter. Aquilo que se refere ao que é vil, sem valor; ordinário. Que é próprio da pessoa mau-caráter, desprezível. Que não é honesto; velhaco. E é sobre essa persona tão presente tanto na ficção quanto na vida que versam as histórias deste livro.

    Apesar de a definição ter um viés um tanto negativo, o canalha não é necessariamente cruel. Digamos que sua amoralidade lhe permite colocar em prática ideias que passam pela cabeça de muitas pessoas. Não é perversidade, eles apenas são mal intencionados por princípio. E, nesta obra, o foco é um tipo específico de canalha: o conquistador barato. Aquele tipo esperto, de raciocínio rápido, cheio de malícia, lascívia e “apto” a deixar as mulheres à vontade fazendo as maiores sem-vergonhices.

    La petite mort, de Ruy Castro, conta a história de Guilherme, um Don Juan carioca que morre durante um orgasmo. O narrador, seu melhor amigo, conta algumas de suas aventuras enquanto conduz as cinzas do conquistador ao seu destino final.

    Em Ave-Maria de Schubert, Carlos Heitor Cony conta as peripécias de um jornalista que tenta se tornar um canalha. O leitor acompanha suas andanças por ambientes escusos em que, nos idos dos anos 50, casais não casados, esposas e maridos infiéis entregavam-se à lascívia.

    Baseado numa sinopse de Bráulio Pedroso, Geraldo Carneiro escreveu o conto O Bom Canalha. Luis (ou Antonio) é o clássico golpista que ambiciona dar o golpe do baú, bancando o filho pródigo. E, como narrador, é um bom exemplo de narrador não confiável. Sua mitomania é tão exacerbada que fica difícil acreditar em qualquer de suas histórias.

    Homem que é homem, de Aldir Blanc, conta em detalhes uma tentativa de conquista. Passada durante o período Getúlio Vargas, e repleta de pormenores aparentemente desnecessários, retrata bem a forma como o malandro enxerga as mulheres. O desfecho da abordagem mal sucedida, como não poderia deixar de ser, é a parte mais engraçada da história.

    Marcelo Madureira, mais conhecido como “um dos caras do Casseta & Planeta“, conta em Agnus Dei a história de um sedutor barato, seleto representante da cafajestagem carioca. O narrador conta minuciosamente todos os eventos, alguns até escatológicos, da noitada com a viúva do General. Tudo sem ruindade, afinal, ele é do bem.

    Nas mãos desses autores, os protagonistas, canalhas por excelência, tornam-se personagens “intangíveis, impalpáveis, impossíveis” e, por conta disso, apesar da canalhice fazem o leitor torcer por eles. É uma leitura agradável e totalmente descompromissada.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | NOVA: Dentro da Mente de Einstein

    Crítica | NOVA: Dentro da Mente de Einstein

    O documentário NOVA: Dentro da Mente de Einstein (direção de Jamie E. Lochhead, 2015) é um breve documentário de 53 minutos dedicado a nos mostrar quem foi o gênio da física, e um das maiores mentes da história da humanidade, Albert Einstein. Apesar de curto, é muito interessante, pois vai nos principais pontos, nas características de maior destaque e nos momentos mais marcantes da vida do gênio.

    Já de início nos é apresentada uma perspectiva bastante interessante: a descrição que é feita a respeito do processo de pensamento de Einstein, seus experimentos mentais. Experimentos simples no sentido de utilização de conteúdos, mas bastante profundos do ponto de vista da abstração que ele realizava; foi assim que ele, dentre outras descobertas, foi capaz de observar que a matéria molda tempo e espaço. Os recursos visuais, no estilo animação, que são utilizados no filmete são muito interessantes, são aplicados de maneira cirúrgica e inteligente. Ao longo do documentário somos expostos a essas construções visuais, o que nos leva a estarmos praticamente dentro do pensamento de Einstein; atente-se ao exemplo da folha de papel amassada com uma formiga andando sobre ela e como esse recurso visual agrega informação no entendimento dos argumentos.

    Algo que me chamou muito a atenção foi a afirmação de que Einstein, trabalhando praticamente sozinho, especialmente no início do desenvolvimento da teoria da relatividade geral, foi capaz de fazer formulações tão profundas a respeito do funcionamento do universo. Entendi que os autores e o diretor quiseram demonstrar que o gênio tinha poucos ou nenhum interlocutor, não que ele trabalhava absolutamente sozinho; haja vista ser de amplo conhecimento que nessa fase inicial ele discutia muito suas ideias com sua, não menos genial, primeira esposa Mileva Marić.

    O documentário coloca de maneira maneira bastante simples a grande descoberta que o pai da relatividade fez, qual seja: o que se acreditava ser gravidade (a teoria newtoniana) é, na verdade, a contração e a dilatação do espaço e do tempo. Cem anos depois da formulação da teoria da relatividade, só agora nós temos a tecnologia adequada para comprovar grande parte dos resultados dos experimentos mentais de Albert Einstein. Os roteiristas do documentário explanam que as sementes dos pensamentos de Einstein foram plantadas quando ele ainda era uma criança. Explicam o porquê: ele foi uma criança sempre bastante curiosa e persistente. Seu pai, Hermann Einstein, alimentava seu interesse científico, como certa vez em que lhe presenteou com uma bússola. Ainda na infância ele foi fortemente impactado pela série de livros de autoria de Aaron Bernstein, “Livros populares sobre ciência natural”, a qual continha histórias que tratavam de questões como: como seria passar por dentro de um fio elétrico ou viajar pelo espaço.

    Os recursos visuais que o documentário utiliza para ilustrar os pensamentos do gênio da física são realmente um ponto alto do material. Quando ele tinha 16 anos de idade realizou um desses seus experimentos mentais, refletindo como seria se ele pudesse enxergar uma onda de luz (ele entendia que era impossível enxergar, mas se ele fosse capaz de se mover na mesma velocidade da luz e, portanto, enxergá-la). As ilustrações realizadas nessa passagem dão um vislumbre para nós do que se passava na cabeça de Einstein ao realizar esses experimentos. Esse experimento mental o fez ficar nervoso a ponto de suas mãos suarem.

    Aos 23 anos ele se torna um analista de pedidos de patentes num escritório de registro de patentes na Suíça. Isso tem dois grandes impactos: o primeiro é que ele fica imerso em análises de vários detalhes técnicos, o que, por um lado, provavelmente, alimentou suas reflexões a respeito do funcionamento de muitos detalhes da física; e, por outro lado, também o permitiu ter muito tempo disponível para fazer suas análises e suas reflexões, mesmo quando ainda em horário de trabalho (seu superior fazia “vista grossa” para esses seus “desvios do tempo de trabalho”).

    Analisando as teorias de Newton e de Maxwell, o primeiro sobre gravidade e o segundo sobre as ondas de luz, ele pôde perceber uma contradição entre as duas teorias. Elas não conversavam, pois na teoria de Maxwell a luz viajava a uma velocidade constante e na de Newton não. Pôs-se a refletir sobre a contradição dessas duas teorias; investindo meses em análises e reflexões, realiza um experimento mental em que há um homem em uma estação de trem e uma mulher passando pela estação em um trem, e dois raios caem simultaneamente, cada um de um dos lados do homem parado na estação, equidistantes dele. O documentário retrata isso de uma maneira muito interessante, constrói em imagens o pensamento de Einstein e, novamente, faz com que nos sintamos dentro do que ele construiu mentalmente. Interessantíssimo saber que a descoberta de Einstein que levou à famosíssima fórmula E=mc2 foi descrita por ele em um artigo que passou praticamente despercebido pelo meio científico, quando publicado.

    Quando há o reconhecimento dessa sua descoberta, a teoria da relatividade especial, como a denominou, ele é convidado como professor do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique, muito embora dedique a maior parte do seu tempo ao desenvolvimento da sua teoria. No momento de demostrar matematicamente a relatividade geral, ele comete um erro e formula as equações de maneira inadequada. Isso coloca em xeque todos os seus desenvolvimentos até ali. Ele poderia ter desistido de tudo, ter entendido que sua teoria não funcionava. Mas aqui se impôs um dos traços da sua personalidade, foi persistente e continuou se esforçando para encontrar o resultado correto, revendo cada detalhe, buscando descobrir onde tinha errado.

    Entra um outro momento super interessante da vida de Einstein, aos 36 anos, com esse erro em suas mãos, precisando rever tudo que houvera desenvolvido para poder confirmar e provar sua teoria, ele está em competição com famoso matemático da época, talvez o maior matemático do seu tempo, David Hilbert; estando extremamente pressionado, precisando provar matematicamente a relatividade antes de Hilbert. Havia sido convocado para um seminário na Academia da Prússia, no qual ia formulando matematicamente sua teoria em frente a platéia e sempre que encontrava erros parava para se corrigir, explicava o que estava errado, o que havia consertado e continuava a partir de tal ponto, sempre sob forte pressão.

    A narração do documentário é bastante interessante, chama atenção e nos faz ficar atentos. Adicionalmente, existe uma série de entrevistas com especialistas renomados atualmente em física, que fazem comentários a respeito da vida e da obra de Einstein, o que também é um ponto positivo do obra audiovisual. Mas a trilha sonora é muito ruim, não se encaixa com momentos e com as imagens. As músicas nos momentos de ápice da pesquisa, dos resultados do desenvolvimento de Einstein, quando não são melancólicas, são agitadas, são de uma certa tensão, de uma forma que definitivamente não casa com o momento descrito nem com as cenas.

    O documentário também mostra como depois de alcançar grande sucesso com a teoria da relatividade geral na Europa, tendo o governo alemão passado às mãos dos nazistas e também em função do início da Segunda Guerra, ele, sendo judeu, prefere migrar para os Estados Unidos, assumindo posição de professor e pesquisador em Princeton, onde fica até o final de sua vida. Em determinado momento, a física se volta ao estudo do mundo físico natural, das partículas atômicas; e os desenvolvimentos nessa área são incompatíveis com as ideias de Einstein. Isso o incomoda muito, como houvera lhe incomodado a incompatibilidade das teorias de Newton e Maxwell. Assim, ele tenta forçar a explicação do mundo atômico com base na teoria da relatividade geral, o que é demonstrado cientificamente como um erro, e ele morre insistindo em buscar a explicação do mundo atômico com base em sua teoria. Fica praticamente ignorado nesses seus desenvolvimentos teóricos de final de vida e carreira. Isso nos deixa uma lição extremamente importante: mesmo uma grande teoria, que se demostrou verdadeira na análise dos astros, era incompatível com testes, com experimentos controláveis, experimentos de laboratório para explicar outra parte da realidade.

    Einstein foi sem sombra de dúvida um grande gênio. Legou coisas à humanidade que ele mesmo não foi capaz de perceber. Sua teoria sobre o funcionamento do cosmos é muito mais do que física pura. A quantidade de possibilidades de sua aplicação é incomensurável. Precisamos ser gratos a curiosidade e persistência do pequeno Einstein, aos estímulos do seu pai Hermann, aos centros públicos de ciência que o acolheram e o permitiram desenvolver sua ciência (ainda que não se pudesse enxergar seu uso prático e mensurar seu impacto econômico) e aos seus interlocutores ao longo da vida. Essa é uma história que precisa ser continuamente descoberta, contada e recontada.

    Texto de autoria de Marcos Pena Júnior.

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  • Crítica | O Vazio de Domingo

    Crítica | O Vazio de Domingo

    Desde muito cedo desenvolvi um sentimento um tanto negativo a respeito das últimos horas dos domingos. Um misto de preguiça, melancolia e ansiedade. Preguiça de ter de dormir cedo e acordar em tempo para as obrigações da segunda-feira; melancolia por sentir que ainda havia tanto a fazer e pouco tempo disponível mais uma vez (ah! Mais um domingo que acaba); e, ansiedade em relação a mais um início de semana e a tudo que me aguardava ao longo dela. Motivos para sentir tudo isso? Não tenho clareza, mas quando paro para pensar, acredito ter algumas respostas. Entretanto o foco aqui não é tratar disso. Todavia, entendo ser importante dizer que hoje esse sentimento já é mais que o resultado de hábitos, faz parte de quem sou.

    Lembro aqui dos argumentos de Aristóteles em Ética a Nicomaco a respeito de como se forma o caráter. Simplificada e resumidamente, corresponde àquela velha máxima: tuas ações se tornam hábitos e esses se tornam teu caráter. No fim, escolher suas ações moldará seu caráter. Aristóteles chama isso de prévia escolha. Contudo, vertente majoritária da psicologia defende que o caráter se forma pela conjunção de inconscientes mecanismos de defesa. Se por escolhas (conscientes ou não) ou se por mecanismos de defesa, o fato é que para mim a segunda metade do domingo é a expressão do que é vazio.

    Semana passada eu buscava um filme para assistir e me deparei com o título O Vazio do Domingo (em português). Já foi suficiente para me fazer decidir vê-lo. (Sem dúvida tive uma identificação direta e imediata). Se a versão para português do título fosse mais honesta ao original “La enfermedad del domingo“, certamente eu buscaria mais detalhes para decidir se o assistiria ou não. Ao me permitir a decisão tendo como base apenas o título, me expus ao risco de perder tempo com um filme de baixa qualidade. Para minha alegria e deleite, a película espanhola é excelente, profunda e faz valer cada minuto de cada cena e todos aqueles investidos em pensar sobre ele e sentir seu impacto após seu fim.

    O roteiro traz um clima de mistério, que leva o espectador a ficar atento e se sentir instigado a aguardar o desenlace da história. Como um quebra-cabeças complexo, faz com que tenhamos de observar bem para irmos construindo o quadro completo. Da primeira à última cena, esse é o processo para quem está acompanhando o encaixe dos acontecimentos. Palmas ao roteirista (e diretor do filme) Ramón Salazar.

    Se na função de roteirista o espanhol dá um banho de talento, não é possível dizer o mesmo sobre sua direção. Muitas cenas são conduzidas com base em certo exagero. Não o exagero afetado, espalhafatoso, justamente o oposto, um excesso de apatia que torna menos verossímeis muitas passagens. Em certos momentos, pequenas correções na postura, na fisionomia ou na entonação dos atores seria suficiente para elevar o padrão do filme. Aqui entra minha leitura a respeito das atuações: excetuando Bárbara Lennie interpretando Chiara, que encarna sua personagem e nos faz acreditar ser ela um indivíduo real (especialmente pela expressão de sua dor), todos os demais entregam muito pouco como resultado cênico. O que é uma pena, pois ao representar Anabel em toda sua complexidade de vida, Susi Sánchez poderia ter sido um dos pontos altos do filme. Infelizmente, ela não nos emociona como teria conseguido se melhor direcionada. Se a intenção de Salazar foi colocar verossimilhança, nos legou apenas uma frieza muito pouco real.

    O verdadeiro destaque, nosso grande deleite, é a fotografia que nos é aí presenteada. Ricardo de Gracia, diretor de fotografia, foi de uma felicidade inadjetivável. Pelo que fui capaz de apurar, este é seu único trabalho em tal função. Desejo que ele possa ter outras oportunidades de executar esse talento; que mantenha sua cabeça, suas mãos e seus olhos tão bem afiados; e, que eu possa aproveitar seus futuros trabalhos. Em O Vazio do Domingo, ele conseguiu pintar a beleza da dor, a dor constante, intensa e profunda. Ainda consegue envolver tudo isso em uma atmosfera nebulosa, sem deixar de apresentar como os detalhes visuais podem ser gratificantes  para a alma (claro, mérito compartilhado com o diretor). A paleta que aplica, majoritariamente em tons pastéis, é extremamente coerente com o todo.

    Diante da dor, do vazio e da angústia desiludida de Chiara com tudo aquilo que lhe faltou em praticamente toda a vida – que por mais simples e comum que seja, é extremamente essencial e lhe é certo nem mesmo ter a chance de conquistar -, não posso me manter tão negativo em relação aos meus domingos. Tudo que eu sempre senti que me falta nesses dias é feito de puras mesquinharias ridículas frente ao que Chiara esperava ter nos seus.

    Texto de autoria de Marcos Pena Júnior.

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  • Crítica | Custódia

    Crítica | Custódia

    Na academia, o primeiro desafio de um estudante de Cinema é entender a importância da ação, como dar à imagem a força de contar uma história. E conseguir empenho de um público, a partir de ações, é o sinal mais claro que algo está funcionando. Custódia é o longa-metragem de estreia do francês Xavier Legrand e além de ser uma aula de como desenvolver uma narrativa através da imagem, é um dos dramas mais aterrorizantes dos últimos anos.

    Custódia segue as retaliações de um casal recém divorciado após decidirem na justiça sobre a guarda do filho mais novo Julien (Thomas Gioria), então a pressão fica sob o garoto que se nega a ficar com o pai, o acusando de ser uma pessoa violenta. O filme também acompanha a filha mais velha Joséphine (Mathilde Auneveux), que está prestes a completar dezoito anos.

    Xavier Legrand constrói um drama de imprevisibilidades, se na cena de abertura as intenções dos pais são turvas e encobertas pelas defesas de suas advogadas, aos poucos elas vão ficando mais evidentes quando o jovem Julien deve ficar entre elas. É puramente crível a situação que o filho se encontra, ela é contada por sua perspectiva e dá ao filme a atmosfera que o marca. Com uma câmera na mão que mira através de vidros sujos e a longas distâncias, Custódia vai ganhando pontos com sua força.

    Os diálogos são rasgados e carregados, eles vêm depois de segundos de silêncio onde tivemos acesso apenas às reações das personagens, mas como já dito, Xavier aposta na imprevisibilidade. Até um ponto não sabemos a veracidade de alguns fatos, pois ele deixa de lado o maniqueísmo, estabelecendo Custódia como verossímil e absolutamente contemporâneo. Certa sequência, em uma festa, é um jogo de olhares, sussurros e ações mais tenso que bons thrillers de tão real, é de uma direção impecável.

    O final, se já tenha pesquisado o mínimo sobre o longa você sabe disso, é o assunto mais comentado do filme desde que passou por Veneza, e é inegável o quão impactante ele é. O trabalho de Legrand até ali ganha uma justificativa mais do que satisfatória e assusta ao se chocar com decisões tomadas desde os primeiros minutos de filme. É assustador e de difícil digestão.

    Excelente trabalho de estreia do diretor e com uma sequência de incríveis atuações, Custódia finaliza como um olhar sensível e forte sobre uma sociedade que libera e recebe violência nos meios mais íntimos, sobre uma juventude que espera se espelhar, mas que tem que crescer o quanto antes para sobreviver.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

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  • Crítica | Peles

    Crítica | Peles

    O filme do jovem ator e diretor espanhol Eduardo Casanova, que recebeu as bênçãos do já cultuado realizador Álex de la Iglesia, arrebatou sucesso de crítica ao passar pelo prestigiado festival de Berlim. Além de Berlim, Peles (Pieles) angariou outros prêmios em importantes festivais ao redor do mundo.

    A história do filme não nos é apresentada a partir do ponto de vista de um único personagem. Como encontramos normalmente em narrativas mais convencionais e de forte apelo comercial. O que encontramos no longa de Casanova, é um enredo que se constrói a partir de microuniversos pertencentes a um universo maior, em que personagens vivem um intenso conflito sobre como lidar com suas deficiências diante de uma sociedade embebida de tabus e preconceitos.

    Mesmo que divido em diferentes esquetes tendo ao centro personagens com algum tipo de deficiência, como queimadura, nanismo, e outras inventadas pelo roteirista. Casanova une de uma forma inteligente todas essas pequenas tramas em uma maior. Pondo o escatológico e bizarro em cena, de forma a se perceber o tom provocativo e a forte influência do cinema trash de John Waters.

    Formado por uma paleta de cores onde predomina-se um roxo profundo e alguns tons pastéis, o qual imprimem ao quadro fílmico certo glamour, que contrastam ferozmente com o conteúdo das cenas. A semiótica por detrás de cores tão vivas e suntuosas está no discurso do diretor sobre o que ele pensa sobre beleza.

    A câmera de Casanova ora estática- desenhando encantadores planos simétricos; ora em movimento- bailando envolta dos personagens. Funciona tal qual um microscópio como dissera décadas antes o cineasta alemão Fritz Lang, nos revelando o âmago das personagens. Mesmo pecando em certos momentos de pura fetichização estilizada.

    Rompendo com ideais estéticos o filme fala sobre beleza e sobre a aceitação do diferente. Sobre como certos tipos de pessoas podem aparentar serem estranhas para certos olhares e para outros não. No fundo, percebe-se que o filme grita o questionamento: Afinal, o que é beleza?

    Texto de autoria de Harllon Filho.

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  • Resenha | Blacksad: Arctic-Nation

    Resenha | Blacksad: Arctic-Nation

    Uma coisa que eu descobri com o passar do tempo é como não descartar alguma coisa devido ao tema ou gênero, digo isso porque existem pessoas que não curtem muito os temas detetivescos ou mesmo o chamado Noir. Confesso que curto muito essa estilo história sobre investigação, conspirações e suspense, e nesse sentido, Blacksad: Arctic-Nation é sensacional.

    Arctic-Nation é o segundo volume da série Blacksad, dos autores Juan Díaz Canales e Juanjo Guarnido, em que o protagonista é um gato preto e detetive. Na verdade, isso já se trata de uma das principais características da série, os personagens são representações antropomórficas de animais, então você vai ter o delegado como um pastor alemão, o detetive como um gato, o bandido como um crocodilo e vários outros animais representados dessa maneira. Isso já confere um ar bastante interessante a história, uma vez que os tipos de animais usados muitas das vezes estão ligados a uma região ou clima específico. Neste volume, por exemplo, são utilizados muitos animais brancos pertencentes a climas frios, e essa opção tem relação direta com a trama.

    A trama, aparentemente simples, é sobre o desaparecimento de uma criança que, curiosamente, apenas uma professora pareceu se importar. Sendo assim, o detetive John Blacksad se apresenta para tentar solucionar o caso comovido até com a dedicação dessa educadora. Porém, o que se apresenta como simples termina rapidamente, o que se vê é uma trama que envolve traição, sociedades secretas, relações escusas e segredos que toda pequena cidade e seus moradores possui.

    Uma das coisas que acho mais interessante na série é a relação entre os títulos e as cores principais apresentadas. Arctic Nation, que destaca o branco, traz todo em enredo envolvendo a questão de um grupo de animais brancos e sua visão racista e preconceituosa da sociedade. Aliás, neste sentido, vale destacar a arte estupenda de Guarnido. O traço, cores, fluidez e até mesmo o cuidado editorial fazem com que até mesmo detalhes da arte não passem desapercebidos pelo leitor.

    Outro ponto interessante é como os autores conseguem criar uma obra de ficção, mas que está claramente ligado a questões histórico-sociais. Claramente se consegue estabelecer um elo entre as relações políticas e sociais apresentadas com momentos da história norte americana, fazendo com que tudo fique mais crível, ainda que estejamos lendo uma história protagonizada por animais. Aliás, isso é digno de destaque, o clima, as revelações e os fatos ficam cada vez mais pesados, e em nenhum momento os personagens caracterizados como animais fazem com que a experiência fique prejudicada.

    Um grande trabalho dos autores e uma decisão editorial mais do que acertada da editora Sesi-SP de, finalmente, publicar Blacksad integralmente no Brasil.

    Compre: Blacksad – Arctic-Nation.

    Texto de autoria de Douglas Biagio Puglia.

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  • Resenha | O Tango da Velha Guarda – Arturo Pérez-Reverte

    Resenha | O Tango da Velha Guarda – Arturo Pérez-Reverte

    Os romances atuais, em média, apequenaram-se de extensão. Seja por questões de mercado, preço do livro, pouca atenção dos leitores em acompanhar uma narrativa grande ou por a história, em si, não seduzir por muito tempo, o certo é que as prateleiras das livrarias contam com pouquíssimos lançamentos que ultrapassam as duzentas páginas. Escrever longos romances é sempre um desafio complexo. Entretanto, quando o escritor consegue vencer todas essas barreiras e, ao final, entrega uma história encantadora, é como se o leitor encontrasse um tesouro a ser lembrado.

    O Tango da Velha Guarda (Editora Record), do espanhol Arturo Pérez-Reverte, do primor de suas quase 400 páginas, é um tesouro literário. Dos conflitos ao ambiente e os personagens, o livro seduz pelo seu complexo vigor. Primeiro, a história. Um trio amoroso: o famoso compositor europeu Armando de Troeye, sua esposa Mecha Inzunza e o dançarino argentino de tango Max Costa. A relação entre o casal é de posse, Troeye alimenta seu ego artístico com a beleza estonteante de Inzunza; mas ela parece ser compelida conscientemente para Max, seja pelos dotes sedutores do dançarino, seja para tentar abalar o pedestal onde o marido se encontra. A indefinição dessas relações é uma das armas do autor para manter a atenção do leitor.

    O drama entre o trio de personagens funciona muito bem porque Pérez-Reverte trabalha de forma minuciosa as descrições físicas e psicológicas dos personagens. De fato, o escritor faz com que conheçamos o trio pelas suas manias, obsessões, trejeitos, a tal ponto que, durante os diálogos, podemos entender o tom de voz utilizado ou as intenções por trás das ações dos personagens. É um uso muito bem feito da regra de escrita “Narre, não conte”. Ou seja, ao invés de o escritor despachar uma dúzia de adjetivos sobre seus personagens, os encontramos em seu ambiente comum e as descrições sobre suas atitudes nos entregam informações das mais importantes no desenlace da trama.

    Outro fator de grande riqueza no livro é o tempo cronológico da narrativa. Trata-se de uma história contada em três épocas diferentes: a primeira é na Buenos Aires de 1928; depois Nice, França, em 1937, no ambiente conturbado e beligerante que antecede a Segunda Guerra Mundial; e a terceira parte se passa em Sorento, Itália, em 1960. A narração ultrapassa essas três épocas com ritmo, concisão e imersão. Não há um desgaste ou espaços que rasguem a lógica interna da história, ao contrário, Pérez-Reverte consegue passar ao leitor uma pluralidade de sentimentos ligados aos lugares visitados pela narrativa. A própria relação com o tango, que por vezes se mescla ao modo de agir de Max, sensual, trágico e ambicioso, por vezes é uma espécie de música interna que impulsiona os acontecimentos. E afinal, como contar uma história de amor sem mencionar o tango?

    E o mais importante: a trama mostra-se ambiciosa e atinge seus objetivos. Autores megalomaníacos por vezes têm dificuldades com o desfecho de seus livros (vide Stephen King e George R. R. Martin, por exemplo), mas em O Tango da Velha Guarda, temos uma conclusão concisa que contrasta e agiganta-se por conta das pretensões anteriores. Uma solução sóbria e eficaz que finaliza bem a leitura.

    Livro dos mais deliciosos que li, me lembrou outra obra-prima Shalimar, o Equilibrista, do também ambicioso literariamente Salman Rushdie. Histórias distintas, mas livros irmãos. Carregam uma bonança vocabular, preciosidades descritivas, personagens bem delimitados, palpitantes, e uma sedução cadenciada que perdura, perdura, perdura por todas as páginas (“Shalimar” tem outras 400 páginas).

    O romance de Pérez-Reverte é vivificante. Desperta (ou redesperta) o prazer pela leitura lenta, o estilo conciso, os personagens verticais, e nos lembra a riqueza e magia que a boa literatura produz.

    Texto de autoria de José Fontenele.

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  • Resenha | Desejo de Status – Alain de Botton

    Resenha | Desejo de Status – Alain de Botton

    A obra Desejo de Status do autor Alain de Botton é um “simples” manual explicativo das causas e soluções da obsessão contemporânea, o desejo de  status em sociedade. Publicado pela editora Rocco, a edição a ser resenhada é da coleção L&M Pocket com texto integral. O autor é o escritor Alain de Botton com formação nas áreas de Historia, Literatura e Filosofia.

    Percebemos em uma leitura prévia que o autor divide a obra em duas partes, as causas de um desejo de status e as soluções do que as causas podem provocar. Botton começa definindo e diferenciando o que é o status e o que seria o desejo de status. Conforme o autor, dentro dos motivos primogênitos das causas, poder-se-ia dividir os sintomas da ambição em subgrupos: A falta de amor, o esnobismo, a expectativa, a meritocracia e a dependência. Essas causas levantadas pelo autor ocuparão boa parte da obra de forma explicativa com dados históricos, políticos, religiosos e filosóficos.

    Botton aprofunda a questão de causas de forma detalhada, trilhando o caminho originário das pressões sociais e nos leva a entender como essas afetam a psique de forma involuntária. A segunda parte é clara quanto  ao que seria segundo o autor as soluções para os males que o desejo de status pode trazer, que também é dividida em subgrupos: filosofia, arte, política, Cristianismo e boêmia.

    A falta de amor, segundo Botton, está profundamente ligada ao desejo de status. Somos seres morais e sentimentais em busca de amor, de forma que nosso desejo é intensamente ligado à esse grito desesperado pelo amor total e absoluto. O autor escreve, “Pode-se dizer que a vida adulta é definida por duas grandes histórias de amor. A primeira – a da busca por amor sexual – é bem conhecida e bem representada, suas peculiaridades formam a matéria-prima da música e da literatura, ela é socialmente aceita e celebrada.” (de Botton, Alain; Desejo de Status; p.16)

    Em seguida o autor entra na causa da sede de desejo de status, o esnobismo. Vemos que o esnobismo é comum e parece invencível dentro do meio social, uma espécie de doença coletiva. A frustração e a incompreensão diante do esnobe parece fomentar nossa vontade de parecer melhores, de uma forma totalmente inconsciente.

    Segue o autor no que seria a terceira causa, a expectativa. Aqui Botton inicia com o fato ocorrido em 1959, onde o vice-presidente americano, Richard Nixon, viaja a Moscou para uma exposição tecnológica, demonstrando a busca pelo progresso material, após explicar como seria o modelo moderno de cozinha. Aqui ele estaria relatando não só a realidade que os EUA estavam vivendo nesse período, mas também o restante do mundo Ocidental, que vinham buscando modernidade e facilidade nos vários segmentos do cotidiano, aprofundado muito a busca por tecnologia. Todo esse contexto histórico em busca de uma vida mais superiormente confortável e de certa maneira invejável, provoca, segundo Botton um aumento nos níveis de preocupação com o que se tem. “É o sentimento de que podemos ser um pouco diferentes do que somos – um sentimento transmitido pelas realizações daqueles que consideramos nossos iguais –  que gera desejo e ressentimento. Se somos baixos e vivemos entre pessoas que são todas do nosso tamanho, não seremos perturbados pela nossa altura. Mas se os outros em nosso grupo crescem e ficam um pouco mais altos, ficamos sujeitos a um desconforto súbito e podemos ficar insatisfeitos e sentir inveja…” ( Botton; Desejo de Status; p. 42-43).

    No capitulo seguinte, Botton adentra ao tema sobre ao mito da meritocracia, abordando algumas fábulas que são muito úteis para o entendimento do que sugere esse fator social. Enquanto, no último capítulo, o autor desenvolve sobre as causas dessa dependência, exemplificando os tantos motivos de sermos escravizados por uma dependência social em vários âmbitos no mundo contemporâneo.

    A partir daí Botton aborda oque poderia ser as soluções para todas essas causas sociais, e então é um mergulho nos fantásticos universos que não são explorados pela mídia, pelos coachings e pelos messiânicos, os caminhos da filosofia, política, espiritualidade e o mundo recluso dos boêmios.

    A leitura de Desejo de Status é extremamente prazerosa e viciante, apesar da complexidade do livro em atrelar dados e fatos históricos, mas não é um livro para ser lido apenas uma vez. De certa forma ele nos alivia e nos ajuda a entender como é complexo nosso mundo atual e como muitos acontecimentos considerados normais e obrigatórios não são simples e tem um fator muito explicativo do por que ocorrem. Certamente ao chegar no fim do livro percebemos que a opinião do senso comum diante de tantos fatos relevantes da nossa trajetória pode ser uma maldição. Botton é recomendadíssimo nessa obra não só para leitores de filosofia e psicologia, mas para todos que estão em busca do verdadeiro autoconhecimento.

    Compre: Desejo de Status – Alain de Botton.

    Texto de autoria de Ana Oliveira (Críticas de Livros).

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  • Resenha | O Elefante Desaparece – Haruki Murakami

    Resenha | O Elefante Desaparece – Haruki Murakami

    Por definição, tempestades perfeitas são eventos raros e únicos, com vestígios duradouros para o bem ou para o mal. Chegam com imponência justamente quando se esquece o guarda-chuva em algum lugar. Se o maldito estivesse em suas mãos, gota alguma cairia do céu. Mas você está vulnerável: tênis novos, cabelos penteados, celular e livros caros em uma mochila que não, meu amigo, não é impermeável. Tempestades perfeitas, veja só, precisam chacoalhar o seu núcleo e arrastar com fúria as barricadas internas, promover enxurradas que destroem a letargia erguida por horas de televisão e discussões rasas. Do contrário, será um chuvisco.

    Meu primeiro Murakami foi uma tempestade perfeita. Chegou sem aviso logo nos primeiros capítulos de Norwegian Wood. Fui o primeiro a estranhar o impacto que o livro de Haruki Murakami causou na minha cabeça. Mas depois da primeira caneca de café na frente do livro, fiquei absorto nas páginas frias de um protagonista sem nome, distante e preso num triângulo amoroso abalado por um suicídio.

    Eu estava em Londres quando comecei o livro. sentado na mesa da cozinha na casa da minha irmã. Tinha um tempo limitado para terminar a pesquisa de mestrado, mas durante três ou quatro dias, tudo em que conseguia pensar era no livro de Murakami. Longe de casa há tempos, com cicatrizes emocionais tão recentes que voltavam a sangrar ao menor dos toques, vivia a maior parte do tempo sozinho, flutuando entre livros e escrita, quilômetros corridos e conversas passageiras, pesquisas e aulas, sempre com a cabeça em outro lugar, como se jamais fosse permitido pertencer ao presente.

    Caminhando nas ruas escuras e encharcadas de Londres, sentia os efeitos da minha tempestade perfeita exclusiva. E não podia ser diferente. Foram meses em que me fechei para quase todo contato humano e me concentrei em entender o que acontecia comigo. Vislumbrar algum tipo de caminho para me guiar. Norwegian Wood me pegou sem guarda-chuvas. Um livro com personagens de impressionante complexidade e diálogos rítmicos que fluem suavemente com facilidade, como dançarinos acostumados com o piso do salão.

    Do frio ao calor, anos mais tarde, tenho em mãos O Elefante Desaparece, conjunto de contos recém-lançado pela Alfaguara com tradução direto do japonês por Lica Hashimoto. Entre o garoto no meio da tempestade em Londres e o homem de volta ao seu país natal, as feridas foram bem cicatrizadas.

    Os 17 contos da coletânea representam o maior festival para os que jogam o Bingo Murakami. Contos que buscam a estranha beleza nos diálogos entre desconhecidos que se abrem numa decisão de último instante, derramando sobre pessoas aleatórias os mais profundos medos e reflexões. Ao mesmo tempo que evocam detalhes vívidos com a maestria de um texto bem composto. Histórias rápidas que cortam a gordura narrativa, porém, entregando ao leitor um texto que não se desperdiça com reflexões sobre o tempo.

    É como se cada pequena história fosse uma versão condensada e com menos impacto dos livros mais longos: obsessão por partes específicas do corpo. Gatos e mais gatos. Pensamentos sexuais estranhos. Discos de jazz e espaguete às dez da manhã. Telefones que tocam de forma peculiar enquanto o protagonista decide, à lá Shakespeare, se deve atender ou não. Desaparecidos sem deixar vestígios. Gatos desaparecidos com algum vestígio. Escritores que saem todos os dias para correr entre 5 a 7 quilômetros.

    Como a obra do autor é urbana, na maioria dos contos estão presentes contrastes entre a cacofonia do trânsito e do santuário doméstico, de apartamentos apertados aos grandes casarões dos ricaços. Tókio, populosa, apertada, confusa e alienante é um palco onde se procura, antes de tudo, silêncio e privacidade para reencontrar a identidade mais profunda. Uma busca que pode terminar na composição de outro indivíduo.

    O tema da identidade é um dos mais caros ao autor. Desde Norwegian Wood, passando pelos contos, até chegar ao Kafka à Beira Mar e o divisor 1Q84, há uma procura da segunda metade de um indivíduo. Uma busca que talvez termine na figura do outro. Uma análise profunda que nos faz navegar por águas estrondosas, mesmo quando o mar está tranquilo. Uma jornada que resulta em ruas estranhas e passagens subterrâneas que não são facilmente acessíveis. Não raro, a procura leva ao total desprendimento do indivíduo, uma quase alienação de si, de suas estruturas temporais e sociais. É quase irônico o quanto Murakami explora essa ideia, perder-se ao procurar a si mesmo. Assim, das ruínas, sabemos que o trabalho será árduo e tomará boa parte dos próximos anos, mas é quase uma resiliência derrotista que toma conta de algumas personagens: do fundo do poço, só há um caminho a seguir.

    O Elefante Desaparece também segue os que fogem das pequenas facetas do mundo banal. O casamento, a vida acadêmica, horas intermináveis no escritório apertado, o que não deixa de ser uma fuga de si mesmo. No conto Sono, este resolve faltar a uma esposa de dentista, uma mulher que vive o máximo tédio, deixando-se levar pelas águas do tempo. É o tipo de casamento em que uma das partes divaga durante o sexo, cujo tesão há muito secou e apenas a rotina os mantém. Ela, então para de dormir. E na ausência do descanso, da restauração do sono, encontra vitalidade. Devora livros, move o corpo por mais tempo e pesquisa os motivos do sono. É uma escolha difícil, buscar uma cura para o que acontece – a incapacidade crônica de dormir – e viver uma  entediante vida em família, se ela pode viver ao máximo enquanto a falta de sono rapidamente clama o resto de seus dias.

    Em outra história encontramos no fundo da garrafa o escape das obrigações sociais. Na constante luta pela liberdade, há uma sutil crítica de que somos animais sociais de hábitos tão complexos e contraditórios, que nem mesmo percebemos a falta de nexo. O resultado? Escolhemos correr, mas nos prendemos sempre ao mesmo percurso, um quilômetro depois do outro, cada passo por vez. Uma fuga em círculos.

    Claro, poderia discorrer longamente sobre os contos do livro, mas procuro apontar ao leitor as nuvens no céu. Olhe para elas. Pesadas, não? E esse vento? Sinta a umidade carregada no ar, a estática que parece dançar ao nosso redor por toda nossa pele, o cheiro de ozônio de uma tempestade de raios. Vai chover.

    Ao menos é o que parecia.

    Sou escritor. Nos últimos anos, tudo que li se encaixa em fantasia, exceto por um ou outro título de não-ficção aqui e ali, sempre comprimidos entre títulos do A Roda do Tempo, Malazan ou qualquer coisa com sílabas demais para enumerar. Li para me entender e me educar no campo, mais a trabalho do que por lazer, apesar de meu amor por tudo que a Fantasia representa. Aos poucos, senti os efeitos da overdose de Balrogs e Dragões, dos clichês do herói bucólico que encontra o mentor e parte até a caverna secreta, e comecei a ansiar por outras áreas da ficção. Escolher um Murakami era o mais óbvio, uma velha luva para cobrir minhas mãos na fria escuridão. Sim, as nuvens ainda estão sobre nossas cabeças. Mas porque a chuva não veio?

    Foi com surpresa que encarei meu céu limpo, eternidade em azul, cada nuvem tão presente quanto o elefante desaparecido. Uma gota sequer para molhar o rosto. Um dos fatores que manteve o ar tão seco vem da brevidade dos contos. Por natureza, não há espaço para desenvolver todos os temas propostos, explícitos e implícitos. Não é por acaso que o primeiro conto do livro, O Pássaro de Corda e as Mulheres de Terça-feira, voltou na forma de romance, o Crônica do Pássaro de Corda – o mesmo aconteceu com Norwegian Wood, originalmente Firefly, que aparece em Blind Willow, Sleeping Woman, ainda inédito no Brasil.

    Por vezes, quando a história finalmente ganha impulso, encontramos um final abrupto. É uma falsa impressão de que o texto é raso, pois todo o conteúdo está lá, em cada página, em cada uma das linhas bem escritas. Talvez o problema venha do próprio Murakami, cujo estilo pede um pouco mais de volume para encontrar seu próprio ritmo. Eis o trompetista, que com maestria toca o Jazz, apresentando ao ouvinte uma coletânea de músicas pop. A verdadeira beleza de suas narrativas estão no prazer das longas e solitárias corridas. Não nos tiros explosivos que deixam os músculos das pernas queimando.

    Assim, a chuva é uma promessa no horizonte, nada mais. Como leitor, também sou diferente daquele rapaz afogado na tempestade perfeita. Marido, pai e escritor, não mais perdido em ruas de tom noir. Quando meu cérebro não desliga e o sono foge, é por conta de ansiedades diferentes daquelas, um tanto reais e assustadoras, distante das questões que outrora me consumiam quando Norwegian Wood me aguardava na cabeceira da cama.

    Todos mudamos, é o que criaturas vivas fazem. Adaptamo-nos ou não. Ganhamos e perdemos. Odiamos. Amamos. Tomamos partidos e escolhemos dentre religiões. Por vezes, decidimos não acreditar, fácil assim. O fato é que tempestades perfeitas podem chegar e nunca cair. Algo não estava perfeito, afinal.

    E desta vez, a culpa também é minha. O Elefante Desaparece não deve nada ao leitor quando todos os contos foram lidos. Porém, eu mudei. Em muitos aspectos, ainda sou o mesmo. Gosto de matar monstros imaginários ao jogar dados de vinte lados; não gosto de funk ou livros da Ayn Rand. Ao mesmo tempo, não sou mais o mesmo. E isso é o que basta. Se hoje abrisse Norwegian Wood e mergulhasse no livro pela primeira, talvez não encontrasse uma tempestade perfeita. No fim, Murakami tinha razão: eu me perdi e assim, consegui me reencontrar.

    Talvez um dos contos tenha o jazz ideal de tempestade. E se não o tiver, tudo bem: tempestades perfeitas são raras.

    Maurício Ieiri é um historiador que não faz História. Atualmente, tentando descobrir o que fazer com sua vida, partindo deste exato momento até o dia em que morrer. No meio tempo, escreve ficções. Participou do blog coletivo Os Caras do Clube e recentemente lançou seu primeiro romance, Incursões. 

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  • Crítica | Anon

    Crítica | Anon

    Para compreender o que Anon é, é primeiro preciso compreender quem é Andrew Niccol, seu realizador. Roteirista e diretor de filmes como, O Show De Truman (Roteirista e produtor), Gattaca (Roteirista e diretor), O Terminal (roteirista), e Senhor das Armas (Roteirista e Diretor), Niccol demonstra, primeiro, seu tino para contar histórias envolventes e reflexivas sobre o futuro da humanidade e das pessoas, e segundo, sua preocupação constante com a vigilância e os rumos da tecnologia ao tomar conta de nossas vidas como uma entidade onipresente e onisciente.

    Em Gattaca sua preocupação era a engenharia genética e nossa autoimagem como senhores da natureza. Em O Show de Truman, sua preocupação foi nosso crescente interesse em ver a vida através de uma tela, profeticamente (O filme é de 1998, quando mal havia internet) antecipando as relações intermediadas através de likes e views que se percebe hoje com facilidade em qualquer rede social. Em Senhor das Armas, vemos suas preocupações com as relações comerciais e as redes de criminalidade a partir do tráfico de armas. Em O Terminal, seu roteiro fala de forma interessante e divertida sobre as pessoas e as conexões (De aviões e entre as pessoas).

    O resumo é que Andrew Niccol sabe ser inteligente, e não apenas soar como inteligente, e sabe contar uma boa história, demonstrando particular interesse na humanidade como uma rede interligada e intermediada pela tecnologia, mas onde a real substância dessas relações se encontra na transposição de nosso egoísmo e no compartilhamento da nossas características mais mundanas. Mas em algum momento de sua carreira, o interesse virou cacoete, e já se podia observar isso no esquisito S1m0ne (Com Al Pacino), mas que ficou evidente nos terríveis O Preço do Amanhã e A Hospedeira, quando demonstrou muito menos brilho e sagacidade do que o habitual, falando dos mesmos assuntos que o consagraram, mas agora de maneira rasa e banal. Anon (Netflix) não chega a ser ruim, mas é um filme pálido e incomodamente desinteressado em si mesmo.

    Na trama, Sal (Clive Owen) é um detetive em um mundo onde o governo tem acesso à tudo aquilo que já vivemos e sentimos, e ao ver alguém na rua, sabemos exatamente seu nome, idade e informações pessoais. Conversas são traduzidas instantaneamente entre pessoas e boa parte das relações são intermediadas de modo online ,bem como as conversas. Crimes ainda são realizados, mas com acesso à tudo aquilo que já passou pelos nossos olhos, são todos solucionados em cerca de minutos. É possível acessar a visão de qualquer pessoa e fazer download de diversas informações, e mesmo assim, por algum motivo, as pessoas ainda se mostram surpresas ao serem rapidamente descobertas. Eis que em algum momento surge uma fantasma no sistema. Uma pessoa não identificada começa uma onda de assassinatos não identificados, e o hackeamento da rede e de seus usuários coloca em xeque toda a estrutura social deste mundo. A partir disto, toda a polícia se debruça sobre encontrar a principal suspeita: uma mulher não identificada que o personagem de Owen viu sem querer logo na primeira cena do filme.

    O maior incômodo, talvez, seja a forma apática com que o filme é dirigido e interpretado, bem como a forma com que o roteiro tenta desenlaçar seus nós. Lá pelo terceiro ato, a impressão que se tem é que o roteiro simplesmente se desencantou da história que havia começado a contar, e jogou uma série de resoluções que se dão de forma incompleta e apressada, inserindo personagens cruciais para o desenvolvimento do enredo de modo tão displicente e coadjuvante que no momento dos plot twists, que seriam essenciais para o arrebatamento que toda ficção científica se propõem, as revelações perdem a força por ser difícil de identificar quem é aquele personagem tão importante tratado de forma tão desimportante. O que se identifica é que Anon considera seu argumento tão importante que todo o resto se tornou desimportante, mas se tal postura não se sustenta nem com grandes ideias, ela desaba quando o assunto já foi tantas vezes melhor escrito e gravado há 20 anos atrás.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

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  • Crítica | Desobediência

    Crítica | Desobediência

    Sebastián Lelio chamou a atenção do mundo todo no ano de 2017 com o seu importante Uma Mulher Fantástica, o filme ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e faz história até hoje. Agora, o cineasta estreia em Hollywood com outro olhar acerca da sexualidade em Desobediência, um filme brilhantemente fiel a seu título.

    Ronit (Rachel Weisz) é fotógrafa em Nova York e precisa retornar a sua cidade natal depois da morte de seu pai, um rabino, mas Esti (Rachel McAdams) uma amiga do passado e que agora está casada com Dovid (Alessandro Nivola) desperta um romance antigo entre as duas e as regras dessa família judaica ortodoxa passam a ser enfrentadas.

    É clara a importância que o diretor dá às suas personagens, os planos geralmente fechados e silenciosos criam conexões muito íntimas com o elenco, esse que parece muito afiado com a direção de Lelio que prioriza gestos e demarcações físicas a seus diálogos, o que faz com que todos os sentimentos retidos e proibidos pelas personagens tenham protagonismo, tanto quando não aparecem e sabemos que estão lá, quanto aparecem e reconhecemos a força deles.

    O filme também se prova complexo na decisão de fazer de Desobediência não apenas um filme sobre romance proibido. Não é tão simples assim. As personagens têm um passado e ele se justifica pelo desenvolvimento de todo o enredo, principalmente dentro do contexto religioso que se passa a história. O papel de Nivola é o responsável por trazer esta nova camada, o local onde seu personagem se encontra é muito propício para narrativas já conhecidas, como um marido babaca, por exemplo, mas não, sua trajetória é muito mais proveitosa e significativa do que isso, sua relação direta e quase contrária a de Ronit com o falecido pai, bastante forte e chave para a temática do longa.

    Já Weisz e McAdams têm uma química belíssima, a crescente que leva à explosão da paixão das duas é muito delicada e crível, assim como quando o filme nos lembra o quão grandiosas são as decisões tomadas em um ambiente tão conservador, isso traz individualidade às personagens, fazendo presente a dureza de suas escolhas, tanto passadas quanto do presente. E como o filme se mostra muito mais sobre as desobediências do passado do que àquelas que ocorrem em tela. Um retrato quase subjetivo.

    Lelio fala sobre família, as que a vida nos permite escolher e as que nos são naturais; sobre as regras cotidianas e quais deveríamos quebrar; sobre religião e o quanto ela pode ser genuinamente o pilar de nossas vidas, mas quando devemos esquecê-la. E falando sobre tudo isso, o longa fala acima de tudo sobre amor, o amor de duas mulheres e o que veio e vem junto dele.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

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  • Resenha |  Magnus Chase e os Deuses de Asgard: A Espada do Verão – Rick Riordan

    Resenha | Magnus Chase e os Deuses de Asgard: A Espada do Verão – Rick Riordan

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    Desde a misteriosa morte de sua mãe, Magnus tem vivido sozinho nas ruas de Boston, sobrevivendo por sua inteligência, mantendo-se um passo à frente da polícia e dos guardas preguiçosos. Um dia, ele é encontrado por um tio que nunca conheceu — um homem que sua mãe dizia ser perigoso. Seu tio lhe conta um segredo impossível: Magnus é filho de um Deus Nórdico. Os mitos vikings são reais.

    Os Deuses de Asgard estão se preparando para a guerra. Trolls, gigantes, e monstros piores estão agitados para o dia do juízo final. Para evitar Ragnarok, Magnus deve procurar pelos Nove Mundos uma arma que foi perdida há milhares de anos.

    Soa familiar? Pois é. Primeiro volume da série Magnus Chase e os Deuses de Asgard, o livro conta a história de um garoto meio esquisito com humor afiado que, a princípio, lembra bastante Percy Jackson. Aliás, não só o personagem, assim como a narrativa remete ao ladrão de raios – que, por sua vez, faz pensar em Harry Potter. Mas convenhamos, não é nenhuma novidade uma história em que um garoto meio estranho ao ambiente em que vive, recebe a visita de um desconhecido que lhe revela um segredo sobre sua origem incomum.

    Não que isso deprecie a obra. Principalmente porque percebe-se uma evolução na narrativa de Rick Riordan e na maneira como constrói os personagens. O protagonista é um ótimo exemplo disso. Com sarcasmo à flor da pele e comentários afiados, consegue pontuar situações complicadas com ótimas sacadas – que dão ao leitor aquele alívio necessário durante a leitura. Já no início do livro, percebe-se o tom jocoso e irônico com que a história será contada:

    “Meu nome é Magnus Chase. Tenho dezesseis anos. Esta é a história de como minha vida seguiu ladeira abaixo depois que eu morri.”
    (p.11)

    A construção do personagem de Magnus Chase é interessante. Ele tem um humor sarcástico impagável. E, mesmo nas situações mais difíceis ele faz os melhores comentários. O que acontece com ele logo no início do livro acaba sendo uma grande surpresa para, além disso, fica claro ser  completamente necessário para o desenrolar da história. É perceptível o amadurecimento de Magnus do primeiro ao último capítulo.

    Os demais personagens – principalmente os amigos de Magnus: Hearth, Sam e Blitz – também são bem estruturados. Nenhum deles é dispensável, todos desempenham um papel na narrativa, constituindo um grupo bastante coeso. Uma clássica “turminha da pesada, vivendo altas aventuras”.

    Saem Zeus, Hades, Cronos e o Olimpo. Entram em cena Loki, Thor e Asgard. Neste livro, o autor migra da mitologia greco-romana para a nórdica. Com a mesma desenvoltura, dá uma aula aos leigos no assunto, conseguindo agradar também aos que já conhecem um pouco da cultura viking. E, como sempre recheando o texto com referências pop, de Silent Bob a Taylor Swift.

    Assim como seus livros anteriores, a escrita de Riordan é fluida, exceto por uma ou outra “barriga” no texto, mas nada que estrague a leitura. A narrativa é dinâmica, mas não em excesso, o suficiente para manter o leitor engajado na trama e conectado aos personagens.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | Gabo: Memórias de uma Vida Mágica

    Resenha | Gabo: Memórias de uma Vida Mágica

    Se a obra de Gabriel García Márquez foi marcada pela magia, é porque era um reflexo da sua própria vida. E essa trajetória é narrada em Gabo: Memórias de uma Vida Mágica, quadrinho biográfico que é roteirizado por Óscar Pantoja, com os desenhos de Miguel Bustos, Tatiana Córdoba, Julián Naranjo e Felipe Camargo, publicado pela editora Veneta no Brasil.

    Realizado por artistas colombianos, o quadrinho não apenas retrata a história da vida do autor, mas pega emprestado o realismo mágico para desenvolver essa narrativa. Famoso por misturar o cotidiano e o extraordinário, o estilo ficou famoso por escritores latinos na década de 60 e 70. Os impactos disso na obra são diversos, indo da falta de uma linha cronológica fixa, mas sim organizada a partir de condições sentimentais e psicológicas do autor nos períodos narrados, até na forma com que alguns elementos aparecem em alguns quadros, como as borboletas que seguem o autor durante a história.

    A escolha de dividir a obra em quatro partes não apenas torna mais fácil lidar com o desenho de quatro artistas diferentes, mas também serve como uma espécie de divisão de momentos na vida do autor colombiano. Isso acontece principalmente pela escolha de cores para retratar cada um desses períodos: o laranja traz os momentos de maior entusiasmo e criatividade, o azul os de maior dificuldade e solidão, o vermelho mostra a sua relação com a família e com o regime cubano e o verde a esperança de alcançar os seus objetivos.

    Por ter apenas um roteirista, o ritmo do quadrinho não sofre com a mudança dos artistas. Além disso, a forma com que a sua história é contada te faz querer continuar passando cada página e saber quais os rumos a vida de Gabo tomaram até que ele finalmente conseguisse chegar no que ele consideraria a sua grande obra: Cem anos de solidão.

    A edição brasileira não poupa em qualidade gráfica. Apesar da capa mole, o papel usado faz com que as cores fiquem bem delimitadas, mas não interfiram do outro lado da folha, evitando “fantasmas” durante a leitura. Pela utilização de cores intensas, esse é um detalhe que acaba tendo sua importância.

    O quadrinho é uma ótima recomendação tanto para quem já conhece do autor quanto para quem nunca teve contato com ele. Como uma pessoa que estava no meio do caminho, sabendo do papel de Garcia Márquez para a literatura, mas que só leu um livro do autor, conhecer melhor a sua trajetória só me deixou com vontade de mergulhar um pouco mais nas suas obras. Até porque já deu pra entender que o “fantástico” no nome do estilo não descreve só o surreal, mas também a qualidade do seu trabalho.

    Compre: Gabo.

    Texto de autoria de Caio Amorim.

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  • Crítica | A Enviada do Mal

    Crítica | A Enviada do Mal

    Um suspense que passou despercebido pelo grande público e teve problemas na distribuição, The Blackcoat’s Daughter (ou February, difícil encontrar o título definitivo) acabou parando no catálogo da Netflix  e se mostra uma grata e estilosa surpresa para o gênero. A estreia do diretor Oz Perkins é carregada de originalidade e uma confiança refletida em tela, seja tecnicamente ou na imprevisível narrativa.

    O filme tem três protagonistas, acompanhamos Kat (Kiernan Shipka) e Rose (Lucy Boynton) enquanto elas esperam seus pais irem buscá-las no colégio para as férias de inverno, e a jovem Joan (Emma Roberts) pegando carona com um casal na estrada focada em objetivos misteriosos. As histórias das três personagens se enroscam entre si enquanto uma figura demoníaca passa a influenciar uma delas.

    Mesmo que o longa se divida em três “capítulos” nomeados com os nomes das personagens, a interpretação de Shipka na pele de Kat chama a atenção em todos eles, ela tem o artifício mais proveitoso para este tipo de trabalho, a fisicalidade. Até nos momentos mais mínimos a presença dela é marcante, seja na movimentação de seus olhos, ou como posiciona sua cabeça em relação a outra personagem, até o seu tom de voz carrega nuances, ela injeta força quando deve parecer fraca e acaba se tornando um dos maiores atrativos de todo o filme. As outras duas companheiras de elenco não ficam muito atrás, Boynton transparece consciência das convenções que seu papel poderia trazer e trabalha bem dentro dessas limitações, já Roberts continua com os maneirismos típicos de suas interpretações, mas ainda assim se encaixa bem com eles dentro desse espectro misterioso da sua personagem, diria até que caiu bem como uma luva.

    Além do bom trabalho com teu elenco, o cineasta também demonstra um bom domínio de composição, são incontáveis os planos perfeitamente compostos, a maioria deles com um presente jogo de luz e sombra. Uma luz confortável e inocente está presente quase sempre e dela nasce a atmosfera de horror criada por Osgood, essa que bebe de belas fontes, seja de O Exorcista ou de Suspiria. É também clara a intenção do diretor em ir a passos curtos na história e parece bem positiva, mas a rapidez súbita que a narrativa ganha perto do fim do segundo ato contrasta com o resto e certamente não foi uma boa escolha, pois acaba banalizando os pontos de virada de duas protagonistas.

    Transbordando estilo e segurando bem as rédeas de um horror contido, Perkins estreia como promessa para o gênero que anda tão bem tratado nos últimos anos e traz no elenco nomes bastante promissores e que já começam a dar as caras em novas produções. The Blackcoat’s Daughter tem um bom mistério e nos faz reimaginar as melhores histórias sobre o demônio e suas escolhas.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

  • Resenha | Vestido de Noiva – Nelson Rodrigues

    Resenha | Vestido de Noiva – Nelson Rodrigues

    A edição da Nova Fronteira para o Vestido de Noiva, do incomparável Nelson Rodrigues, é das melhores possíveis. Texto da primeira montagem do espetáculo, em 1943, conta com roteiro de leitura e notas do professor, jornalista e crítico Flávio Aguiar. Na edição também encontramos uma reprodução do programa de estreia, em 28 de dezembro de 1943, com um glossário de termos teatrais e dois textos que ampliam a visão sobre a importância da peça e do teatro de Nelson Rodrigues.

    Vestido de Noiva, dirigido pelo polonês Zbigniew Ziembinski (refugiado da Segunda Guerra Mundial no Brasil em 1943), representa o início do teatro moderno no país. A história de Nelson Rodrigues é uma tragédia com toques de terror psicológico que, como parte da obra do autor, expõe as feridas ocultas da sociedade burguesa tupiniquim.

    A trama é contada em três atos e em três planos diferentes: o da realidade, o da memória e o da alucinação. A peça tem seis personagens principais: as irmãs Alaíde e Lúcia, Pedro (o marido de Alaíde), Madame Clessi (uma antiga prostituta de luxo), e dona Lígia e Gastão, pais de Alaíde e Lúcia. O leitmotiv da história é o casamento de Alaíde e Pedro. O marido tivera um namoro anterior com Lúcia, a irmã da esposa, mas acabou se casando com Alaíde, o que criou um mal estar entre as duas. Após o casamento, o cínico e ambicioso Pedro volta a desejar Lúcia, e a dupla pretende matar Alaíde.

    Armados os personagens, o brilho da peça reside nos diálogos e nas insinuações que delineiam a trama. Do ponto de vista escrito, Nelson Rodrigues ascende as fogueiras da intimidade familiar, insinua, moraliza e provoca a pequena burguesia carioca que o fez fama. Na interpretação, em adicional, a rubrica do diretor (apontamentos que orientam o comportamento do ator), aponta que Ziembinski buscava um comportamento intenso, quase histriônico, dos personagens.

    Vestido de Noiva, encenada como um estopim, aflora da paixão à culpa, da ganância à revolta, da tristeza à paixão, mas, sobretudo, chacoalha, questiona de forma íntima as escolhas que trazem o arrependimento. Curioso é que não há uma espécie de perdão para Nelson; todos os personagens parecem impedidos de tentar uma segunda oportunidade porque preferem justificar seus atos cruéis a admitir seus erros. Todas as escolhas são castigadas.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: Vestido de Noiva – Nelson Rodrigues.