Autor: Vortex Cultural

  • Crítica | Depois Daquela Montanha

    Crítica | Depois Daquela Montanha

    Ben Bass (Idris Elba) é um cirurgião cujo voo foi cancelado, na volta de um congresso. Alex Martin (Kate Winslet) é uma fotojornlista que estaria no mesmo voo, a caminho de seu casamento. Na tentativa de não perder a cerimônia, Alex convence Ben a contratarem um piloto particular, Walter (Beau Bridges), para leva-los para casa. Durante o voo, o avião cai nas montanhas geladas, deixando os dois – e um labrador – entregues à própria sorte.

    Lendo a sinopse e assistindo ao trailer, o filme até parece promissor. Pena que não corresponde às expectativas. O que, à primeira vista, parece ser um drama de sobrevivência “raiz” – a exemplo de Vivos127 Horas ou mesmo Náufrago – descamba para um pseudo-romance entre os personagens. Digo pseudo pois não há muita química entre os personagens. É sabido que pessoas em situações extremas tendem a se aproximar; e sexo pode ser uma válvula de escape para a tensão causada pelo perigo iminente. Mas o romance entre eles não soa natural, não convence, apesar das boas atuações de Winslet e Elba.

    Outra coisa que não convence é o lado McGyver de Ben e a facilidade com que ele encontra subsídios seja para cuidar do enorme ferimento na perna de Kate, seja para tratar de um ataque de leão da montanha sofrido pelo cachorro. Impressiona a abundância de material disponível dentro pequeno avião – seja cirúrgico, seja para pequeno reparos. E, sobre a perna de Kate, além de Ben ter-lhe arranjado praticamente um robo-foot para imobilizá-la, ela parece não ser um obstáculo muito grande durante a caminhada deles em busca de civilização – a menos que seja necessário. Ben pouco se machuca, apesar das circunstâncias e seu instinto de sobrevivência é digno de um guia de escalada no Everest, mas pouco condiz com sua profissão.

    A tentativa canhestra do roteiro de mostrar a convivência entre pessoas bastante diferentes a todo momento cai no clichê. Aliás, clichês não faltam nessa produção. Desde o cara caladão por conta de um trauma passado, até a jornalista que fica fazendo perguntas o tempo todo, passando pela presença do cão para “unir” os personagens. Sem contar as inúmeras obviedades no contraste entre os personagens. Ele é introvertido, ela, extrovertida. Ele é prático e racional. E ela – num raciocínio tão rasteiro quanto um chinelo havaiana – por ser mulher, é obviamente guiada pelos sentimentos.

    As condições severas do clima também não são retratadas fielmente. Dormir sob as árvores deveria significar acordarem congelados, o que não ocorre. Sem contar que, após vários dias enfrentando frio extremo e carência das alimentos, os personagens continuam com boa aparência, quase corados. E, pasmem, a barba dele mal cresce!

    Em meio a tantas falhas, o filme culmina em um terceiro ato todo melodramático e com cenas água-com-açúcar, que estragam o pouco que os atores tinham conseguido construir para os personagens. A produção toda é tão piegas, tão lugar comum, que fica difícil tecer elogios a quaisquer aspectos que não sejam os técnicos.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Paddington 2

    Crítica | Paddington 2

    Muita gente cresceu assistindo Sessão da Tarde, contudo, o espaço vespertino da Rede Globo para exibir filmes com o tempo foi perdendo o peso, mas ainda hoje é lembrado pelos seus clássicos. Inclusive, “sessão da tarde” virou quase uma categoria de filme, no Brasil, sempre associada a longas de classificação livre, de tons leves e infantis, e em grande parte com narrativas fantásticas e envolvendo animais. O programa perdeu espaço e a produção de filmes desse tipo foi diminuindo, a indústria mudou e o público infantil também, mas Paddington 2 chega mais uma vez dando frescor ao estilo e nos faz lembrar como é incrível não levar tudo a sério no cinema.

    Agora Paddington (Ben Whishaw) está devidamente instalado e feliz na família Brown, virou literalmente o amigão da vizinhança, sendo conhecido e adorado por todos os moradores da rua. Mas o aniversário de sua tia Lucy (Imelda Staunton) está chegando e ele decide encontrar um trabalho para comprar o presente perfeito para ela, até ele ser roubado pelo mágico frustrado da cidade, Phoenix Buchanan (Hugh Grant). Com um plot simples, o longa engata rapidamente e nos primeiros dez minutos de duração todos os personagens e tramas já são apresentadas e o ritmo só cresce.

    O texto também é mais ágil e divertido que o do primeiro filme, diálogos curtos conseguem definir todo o primeiro ato, desde a dinâmica na casa dos Brown até o relacionamento de Paddington com os vizinhos. Casada com a agilidade do roteiro, a montagem faz o belo serviço de injetar dinamismo nas sequências engenhosas de câmera durante todo esse início. Justo ressaltar a criatividade do diretor Paul King nessas sequências, sabendo muito bem posicionar sua câmera, desde pequenas escolhas como se manter na altura de Paddington quando necessário e sempre enchendo a tela com o corpo do pequeno urso, como também em cenas dinâmicas e marcadas por movimentos mais sofisticados. Sinal de sua visão certeira em relação ao personagem principal, esse que é pura computação gráfica.

    Se King sabe filmar Paddington, a equipe de efeitos visuais o sabem construir, a fisicalidade do urso é inacreditável. Digo de seu design, como pelugem, olhos, e focinho, mas principalmente de como seus movimentos e corpo contribuem para a história, seja narrativamente quanto pela veia do humor — é uma comédia física que funciona durante todo o tempo e torna Paddington cada vez mais carismático. Seu corpo não é humano, mas suas feições e reações exageradas e irreais o fazem rico e por isso mais relacionável.

    Paddington 2 também acerta no restante do visual, o design de produção é rebuscado, com cores saturadas em figurinos e cenários, lindamente ressaltadas pela fotografia, fazendo com que o clima bem-humorado e inocente marque presença, assim também com a trilha musical pontual e clássica. O elenco dos personagens humanos faz um bom trabalho, mas beira um caricato não muito bem-vindo em certos momentos, principalmente em um novo núcleo de personagens que surge no segundo ato, já os que repetem seus papéis nessa sequência ainda carregam bastante carisma, destaque para a sempre suave Sally Hawkins. Grant, que assume o papel de vilão depois da interessantíssima Nicole Kidman no último filme, se diverte no corpo de um mágico mau caráter e assim como Paddington, tem um ótimo humor britânico e físico.

    Essa sequência confia em seu público e vai direto ao ponto, apresenta novas façanhas de sua personagem principal, ressalta suas virtudes, expande seu universo e mais uma vez traz belas mensagens em meio a diversão. Paddington 2 reacende aquela criança dentro de nós, que amava sentar em frente a TV e se relacionar com histórias como essa, realizando isso sem forçar,pois é de uma leveza tão genuína que o sorriso no rosto é certo do início ao fim, podendo até rolar uma participação especial de lágrimas, das boas.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

  • Resenha | Quem Tem Medo do Escuro? – Sidney Sheldon

    Resenha | Quem Tem Medo do Escuro? – Sidney Sheldon

    Em Berlim, uma mulher desaparece em plena luz do dia. Em Paris, um homem pula da Torre Eiffel. Em Denver, um avião se espatifa nas montanhas. Em Nova York, um corpo é encontrado às margens do East River. A princípio, todos os episódios parecem isolados, mas em pouco tempo a polícia irá encontrar uma misteriosa conexão entre as quatro vítimas e o Kingsley International Group (KIG), uma importante empresa de pesquisa de alta tecnologia, envolvida em estratégia militar, telecomunicações e questões ambientais. Kelly Harris e Diane Stevens, jovens viúvas de duas das vítimas, começam a desconfiar de que seus maridos foram assassinados. E, após serem alvo de sucessivas tentativas de assassinato, têm certeza de que “há algo de podre no reino da Dinamarca”.

    A história é interessante, a temática abordada também. Afinal, controlar o clima é algo que a espécie humana deseja desde a “revolução” neolítica, quando caçadores/coletores deixaram a vida nômade de lado e adotaram uma vida agrícola e mais sedentária.

    Mas nem tudo são flores. A trama não é bem desenvolvida. Em vários momentos, o leitor se vê expulso do universo da história em meio a cenas um tanto inverossímeis, além de improváveis. O uso do deus ex machina é uma constante em todo o livro. Ok, é interessante que as protagonistas não sejam policiais ou investigadoras cheias de recursos. Pessoalmente, gosto bastante de thrillers assim. Meu livros prediletos de Agatha Christie, por exemplo, são aqueles não protagonizados pelos famosos detetives – Poirot e Ms. Marple, ou mesmo Tuppence e Tommy – mas aqueles cujos personagens são pessoas comuns. E, sendo assim, pessoas comuns, é mandatório que elas tenham atitudes de pessoas comuns, algo que, em várias ocasiões, não acontece neste livro. E isso é um problema, pois dificulta a identificação com as personagens.

    Aliás, a construção das personagens também deixa a desejar. Apesar de o autor incluir pseudo flashbacks contando a histórias das personagens antes dos eventos do livro, não é o suficiente para gerar a empatia necessária a fim de fazer o leitor se importar muito com o futuro delas. Além disso, Kelly e Diane escapam tantas vezes durante a história, que quando surge outro conflito ou perigo, o leitor apenas vai lendo, aguardando a solução chegar na próxima página.

    Mas se há algo que desanima a leitura é a baixa qualidade dos diálogos. Nâo sei dizer se é problema do original ou da tradução, mas são diálogos tão pobres que até quem lê descompromissadamente com certeza se sentirá incomodado:

    “As semanas seguintes continuaram com uma série deliciosa de encontros. No fim de três semanas Henry disse:
    — Eu amo você, Lois. Quero que seja minha mulher.
    Palavras que ela pensava que nunca ouviria. Abraçou-o e disse:
    — Também amo você, Henry. Quero ser sua mulher.”

    Enfim, se a intenção é começar a ler Sidney Sheldon, este não é uma boa opção. Melhor dar preferência para O Outro Lado da Meia-Noite.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | A Natureza das Coisas – Marília Passos

    Resenha | A Natureza das Coisas – Marília Passos

    A Natureza das Coisas (Editora Labrador), da escritora Marília Passos, é um belo e envolvente romance sobre relacionamentos e a evolução íntima que por vezes ocorre durante um enlace amoroso. Com linguagem simples, direta, assertiva, a autora constrói uma história de descobertas íntimas que chacoalham os personagens, para o bem e para o mal.

    Este é um livro aparentemente frágil porque a escrita harmônica e conscienciosa da autora denotam, ao leitor, certo novelo de algodão ao redor do relacionamento entre Cássio e Luísa. Contudo, à medida que vamos conhecendo mais sobre o casal, ela atriz que vive de bicos enquanto aguarda sua grande chance nos palcos, ele fotógrafo de modelos e bem de vida, enxergamos momentos de um relacionamento conturbado e abusivo.

    Enquanto Cássio leva a vida sem qualquer preocupação aparente, como em um eterno carpe diem pulsado pela herança de sua família, Luísa tem que se esforçar para manter convicções sobre o ofício de atriz e o sentimento que tem pelo namorado. Relacionamentos não são nada fáceis, sobretudo quando os acontecimentos despertam uma nova consciência; esta a transformação de Luísa: própria e interior.

    A descoberta íntima é sorrateira, aos poucos, como se ela fosse substituindo peça-por-peça até metamorfosear-se por completo. Acompanhamos o crescimento de Luísa como uma onda; a princípio um impulso natural, posteriormente adquire ritmo, volume, e então a escrita de Marília nos conquista com a naturalidade com que admiramos Luísa trocar de pele.

    Uma narrativa sobre enlaces e mudanças onde Marília cumpre o excelente trabalho de dosar o drama com charme e curiosidade. Destaque também para um dialogismo muito bem feito entre os personagens. Não há palavras sobrando ou figuras descabidas entre as conversas, são sempre dignas, fiéis, que certamente podem resgatar, no leitor, memórias de quem passou pelo mesmo (e quem não passou?)

    Outro destaque para a cena final. O toque de simplicidade e amadurecimento tomado pela autora ao fim da narrativa transforma o livro em um dos romances que eu mais gostei de ler esse ano. Certamente uma ótima indicação ao leitor.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: A Natureza das Coisas – Marília Passos.

  • Resenha | Sejamos Todos Feministas – Chimamanda Ngozi Adichie

    Resenha | Sejamos Todos Feministas – Chimamanda Ngozi Adichie

    Lançado pela Companhia das Letras, Sejamos Todos Feministas da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie é uma adaptação do discurso feito pela autora no TEDxEuston em 2012. A ideia central do livro gira em torno de propor uma nova educação para meninos e meninas ao redor do globo. As crianças têm que ser educadas de maneira igualitária, sempre respeitando as diferenças biológicas, para que cresçam sem os estereótipos do machismo que prejudicam ambos os sexos, mas notadamente as novas mulheres, segundo a própria autora.

    A palestra transformada em livro reúne momentos da vida de Chimamanda que exemplificam os desafios de uma mulher para chegar a uma posição de destaque na sociedade. A primeira vez que a autora foi chamada de feminista  foi aos 14 anos de idade. A palavra, desconhecida naquele momento, carregava um tom negativo associado, na Nigéria e em outras partes do mundo, às mulheres infelizes que não conseguem arrumar marido. “Então decidi me definir como ‘feminista feliz’”, recorda.

    A partir dessa definição particular, a autora narra o que as mulheres podem ou não fazer sozinhas na Nigéria, tais como: não podem sair sozinhas para jantar fora, não podem entrar em boates sozinha, se entram em hotéis desacompanhadas por vezes são confundidas com prostitutas, etc. E com esses fatos, desdobra questões trabalhistas como menor salário que o homem, pouca presença em cargos de gerência (quando conseguem ser gerentes), assédio, pouca credibilidade em ambiente de trabalho.

    O grande acerto da autora é expor o que acontece na Nigéria como um retrato do que acontece em outras partes do mundo. É a técnica literária da aldeia-mundo, ou seja, do microcosmo para o macrocosmo. Diferenças salariais, assédio e poucas mulheres em cargos de liderança são atualmente pauta da mídia quando ao assunto é ascensão da mulher no mercado de trabalho. Mas o Feminismo exposto pela autora não engloba apenas tais assuntos, mas todas as vertentes que dizem respeito ao feminino. Do lar ao ambiente de trabalho, ao direito de se viver em sociedade.

    Por isso as exemplificações particulares. Certo ponto, a autora diz que os garçons são armas do patriarcado, pois eles, na Nigéria, nunca cumprimentam uma mulher, mesmo quando é elaque dá a gorjeta. Uma prática que certamente não acontece apenas lá. Chimamanda condena o machismo porque atinge ambos os sexos; de forma clara as mulheres, mas também outros homens que não se enquadram nas práticas machistas, e por isso são tratados como homossexuais ou fracos.

    Para subverter tais práticas, a autora aponta uma nova Educação para meninos e meninas. Uma instrução igualitária, humanista, em que as crianças cresçam sem o regime psicológico que delega as profissões ou atividades domésticas de acordo com o sexo. Mais do que uma palestra ou livro excelente, Sejamos Todos Feministas é um convite para que aqueles que negam os problemas de gênero compreendam e aceitem discutir uma educação igualitária para o milênio. Feminismo é humanismo, é revolução. É urgente.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: Sejamos Todos Feministas – Chimamanda Ngozi Adichie.

  • Resenha | Alho-Poró

    Resenha | Alho-Poró

    Alho-poró é um misto entre o cotidiano e o surreal.  Encontrar um quadrinho que consegue unir as duas coisas de forma tão harmoniosa é quase tão difícil quanto achar um lugar que venda o sabor de quiché preparado pelas suas
    personagens. A responsável por isso é a Bianca Pinheiro, autora de Mônica: Força, Dora e da série Bear, que cuidou não só da arte, mas também do roteiro do quadrinho lançado em 2017 via financiamento coletivo pelo Catarse, e foi publicado pelo estúdio e selo de quadrinhos La Gougoutte (formado, ao lado de Bianca, pelos autores Alexandre Lourenço, Greg Stella e Yoshi Itice).

    A arte é a primeira coisa que chama atenção, principalmente pela escolha dos traços mais grossos e das cores em tons pasteis. E a relação entre essas escolhas e o roteiro é desvendada logo no início, já que a monotonia e o tom de cotidiano estão presentes desde a primeira cena, com duas amigas procurando alho-poró num supermercado.

    Além das escolhas artísticas, os diálogos também aumentam esse sentimento, funcionando de forma extremamente natural. As mudanças repentinas de assunto e retomada de temas que já foram ditas nos aproximam das personagens e tentam ao máximo dar a impressão de que as conhecemos há bastante tempo. O número reduzido de cenários, bem como a maior parte da trama se passar no trajeto entre o supermercado e uma casa tornam essa sensação ainda maior.

    O desenvolvimento da história acompanha essa suavidade, dada desde o início, e a quebra desse padrão eleva o choque através do rompimento da expectativa, fazendo com que reviravolta do roteiro seja ainda mais impactante. As transições entre os momentos são muito bem escolhidas e há uma preocupação em tratar do essencial, sem excessos. Tudo isso faz com que a gente termine a leitura e fique com aquele gosto na boca, de algo que comeu e gostou.

    Texto de autoria de Caio Amorim.

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  • Resenha | E Não Sobrou Nenhum – Agatha Christie

    Resenha | E Não Sobrou Nenhum – Agatha Christie

    Com o título alterado para E Não Sobrou Nenhum (do original O Caso dos Dez Negrinhos), Agatha Christie tem em seu livro mais famoso publicado em 1939 o maior diferencial que tanto a marcou durante sua carreira: um grande mistério dedutivo em uma trama policial recheada de suspense.

    Oito pessoas são convidadas para passar o final de semana em uma ilha na Inglaterra ao lado dos dois criados, e, após serem acusados por crimes distintos, todos são assassinados seguindo os versos de um poema.

    A construção perfeita de suspense de Christie para sua trama policial de mistério se baseia através das sólidas estruturas: uma trama simples e funcional, personagens com fortes motivações e medo da repercussão dos seus atos, o ótimo cenário onde tudo se desenrola, e o seu grande diferencial: o poema que prevê a morte de cada um dos dez
    personagens principais do livro e os soldados de enfeite que vão sumindo a cada morte.

    Christie consegue proporcionar uma leitura rápida que envolve o leitor logo no início com uma breve descrição dos personagens e suas motivações e termina de prender o público ao mostrar o grande mistério que permeia a trama: quem arquitetou a vingança contra os dez personagens acusados de cometer crimes diversos. A partir daí, torna-se cada vez mais prazeroso ver o escalonamento do suspense trazido pelas mortes e a tensão de que um dos restantes seria o assassino.

    O romance ganha ainda mais força quando se completa a história pois revela outras camadas quando se reflete sobre a obra ou a cada releitura. A dedução de E Não Sobrou Nenhum não é o principal alicerce da história, o mistério causado pelo simbolismo do poema e das estátuas enriquece a história trazendo outras discussões para além do usual de um romance policial: a que ponto alguém vai para arquitetar uma vingança e quais significados essa vingança teria.

    E Não Sobrou Nenhum, publicado pela Globo Livros, deve agradar a todos os que gostam de um bom romance que discute outras questões que vão além de uma história policial. A edição do livro só favorece a própria história deixando o texto fluido, direto, sem a necessidade de encher informação inútil com o objetivo de tornar o livro maior do que ele é.

     

    Compre: E Não Sobrou Nenhum – Agatha Christie.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

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  • Crise na Terra X | O Mega Crossover do Canal CW

    Crise na Terra X | O Mega Crossover do Canal CW

    Eis que chegou o tão aguardado crossover do Canal CW. Vale lembrar que a reunião dos maiores heróis do canal se deu anos atrás quando Barry Allen (Grant Gustin) apareceu em Arrow investigando a morte de sua mãe, ocorrida durante a sua infância e após o término do episódio, o jovem investigador é atingido por um raio, o que deu início ao seriado do Flash. O segundo encontro dos heróis se deu no ano seguinte, quando um participou do episódio do outro e o primeiro crossover propriamente dito, colocou tanto os heróis, quanto seus coadjuvantes para enfrentarem o vilão Vandal Savage, o que serviu para introduzir outra série do canal, intitulada Legends of Tomorrow. Com a inclusão de Supergirl no catálogo, o lance ficou de fato épico, ao adaptar a saga Invasão, da DC Comics e ainda que o resultado não tenha sido satisfatório, é sempre bom ver uma equipe de heróis reunidos em tela, seja de qualquer plataforma. No final de 2017, como de costume, a mega reunião ganhou mais um capítulo com a história Crise na Terra X.

    Para quem não está familiarizado com o universo dos quadrinhos ou da televisão, nosso universo é formado por infinitas Terras, onde nós existimos de maneira igual, diferente ou exatamente o oposto do que somos. A teoria (que é existente no mundo real) já foi explicada diversas vezes em The Flash e repassada para os outros seriados, tanto que é costumeiro vermos heróis e vilões de outras Terras. E é sobre exatamente isso que Crise na Terra X se trata.

    Durante o casamento de Barry Allen e Iris West (Candice Patton), os noivos e convidados são atacados por um exército de soldados nazistas liderados por um arqueiro tão bom quanto Oliver Queen (Stephen Amell), por uma mulher tão poderosa quanto Kara Danvers (Melissa Benoist) e por um velocista tão rápido quanto Barry. Não demora muito para os heróis descobrirem que o ataque veio de membros da Terra X, uma Terra controlada pelos nazistas desde sua vitória na Segunda Guerra Mundial. E não demora para sabermos também que o arqueiro e a mulher são Oliver Queen e Kara Danvers da Terra X, aliados com Eobard Thawne, o Flash Reverso da Terra 1, aqui vivido, novamente por Tom Cavanaugh, que interpreta, também o professor Harry Wells. Um fato curioso é que Oliver Queen, além de líder dos nazistas, é casado com Kara.

    O episódio tem bons momentos, principalmente quando as versões malignas dos heróis estão em cena. O Oliver Queen nazista, por exemplo, não é uma versão tão diferente do que o Oliver Queen que conhecemos foi nas duas primeiras temporadas de Arrow, mas o destaque ficou para uma trama paralela (uma das diversas ali presentes) que envolvia o herói Firestorm, formado pela fusão do Dr. Martin Stein (Victor Garber) e Jefferson Jackson (Franza Drameh). Infelizmente, Victor Garber precisou deixar o seriado e os produtores deram um final emocionante para a dupla, o que interferiu diretamente na resolução da trama principal. Crise na Terra X também marca o retorno de Wentworth Miller, desta vez interpretando Cidadão Frio, que é a versão heroica da Terra X para o Capitão Frio, devidamente trajado como nos quadrinhos, deixando registrada a homenagem, além da estréia do herói Ray, interpretado por Russel Tovey. Apesar do excesso de personagens em tela, muitos deles ficam completamente esquecidos em cena por conta da necessidade de focar os acontecimentos nos personagens principais, mas é sempre bom acompanhar os heróis interagindo entre si, principalmente quando Onda Térmica (Dominic Purcell) está em cena.

    Enquanto Legends of Tomorrow se encontra em seu final de temporada, Supergirl, Flash e Arrow entram na reta final de suas respectivas temporadas. Qual será o tema do próximo crossover? Aguarde notícias em breve.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

    https://www.youtube.com/watch?v=HmVBRdqCOHg

  • Resenha | Almanaque 1964 – Ana Maria Bahiana

    Resenha | Almanaque 1964 – Ana Maria Bahiana

    Almanaque 1964: Fatos, histórias e curiosidades de um no que mudou tudo (e nem sempre para melhor) (Companhia das Letras), da jornalista Ana Maria Bahiana é uma obra de apuração jornalística eclipsada pela caoticidade da diagramação, uma prova que até o melhor texto ou as melhores informações podem ficar prejudicadas por falta de uma ordem funcional de leitura.

    Os almanaques têm sempre a tarefa hercúlea de resumir as notícias importantes de determinado ano ou assunto de forma coesa e instigante ao leitor. De forma isolada, as partes não se entendem; se o texto é muito bom, mas a disposição da página é prejudicial, o leitor não conseguirá eleger uma ordem de leitura e por vezes perderá o fio da meada dos acontecimentos; por outro lado, se a diagramação é boa, mas a informação é insuficiente, o leitor nadará no raso, sem conseguir entender a fundo aqueles acontecimentos. No “Almanaque 1964” da Companhia das Letras, temos o primeiro caso. A riqueza do texto escrito pela experiente Ana Maria Bahiana se perde frente à desordem de leitura (talvez uma metáfora ao caótico ano de 1964?).

    Logo no sumário entendemos que os capítulos representarão os meses daquele ano. Em cada capítulo um texto sintetiza o que aconteceu naquele mês, com fotos para exemplificar destaques, e a seguir nos deparamos com uma linha do tempo em que o leitor, teoricamente, acompanharia dia a dia os acontecimentos enquanto a progressão de números também indica uma ordem de leitura. Este é o maior erro: o leitor não acompanha a ordem dos números, antes, o olhar é capturado pelos destaques que mais parecem manchetes jornalísticas.

    A falha, portanto, é que a diagramação interna é semelhante a um jornal, e todo mundo “aprende”, na leitura jornalística, a ler as manchetes grandes primeiro porque, teoricamente, são as mais importantes, e as menores são lidas no final (se der tempo). Daí fica claro um desalinho entre diagramação e leitor, pois os trechos destacados na “linha do tempo” de cada mês, apresentam formatos de letra e tamanho diferentes entre si; ou seja, quem lê perde a sequência lógica dos fatos para criar uma ordem de leitura baseada no tamanho das letras que encontra.

    Outra coisa que poderia melhorar o entendimento sobre a obra (e o ano), seria uma divisão clara e ordenada dos fatos acontecidos no Brasil dos referentes aos outros países. As informações, como estão, sobrepõem-se geograficamente e temos que pinçar o que acontece no nosso país do que ocorreu no resto do mundo, e vice versa. Novamente, falta uma continuidade que permitirá ao leitor criar uma ordem lógica dos acontecimentos; por vezes as informações parecem à deriva, soltas, sem complemento ou profundidade.

    Afora a diagramação problemática, como as páginas verdes com letras também em verde, as fontes serifadas e não-serifadas com tamanhos diferentes em cada página, as manchetes serifadas com entrelinhamento baixo (como se uma palavra estivesse rasgando a outra), a (des)ordem numérica e os acontecimentos sobre o Brasil enrolados com aquelas de outras partes do mundo, “Almanaque 1964” pode funcionar muito bem como instrumento de pesquisa inicial para os interessados sobre aquele ano obsceno.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: Almanaque 1964 – Ana Maria Bahiana.

  • Crítica | Roman J. Israel, Esq

    Crítica | Roman J. Israel, Esq

    O cinema de tribunal é um subgênero que fez muito sucesso nos anos 80 e 90, aliando personagens fortes, tramas complexas, conspirações e um senso de justiça e confiança no sistema que todo mocinho precisa ter para passar a mesma ideia para a plateia. Porém, em tempos mais complexos como hoje, onde as fundações das democracias e suas instituições são cada vez mais colocadas em xeque, talvez essa fórmula não funciona mais desse jeito.

    O novo filme do diretor/roteirista Dan Gilroy (responsável pelo excelente O Abutre) Roman J. Israel, Esq. traz Denzel Washington interpretando muito bem um cansado advogado homônimo que deu sua vida inteira para um escritório de luta pelos direitos civis junto de um colega, que falece, e agora sua firma iria ser diluída e incorporada por outra firma tradicional, representada por George Pierce (Colin Farrell), afinal, lutar pelos pobres e negros nos EUA aparentemente não dava dinheiro e a firma estava com déficit.

    Porém, o filme não traz para o debate o problema citado no primeiro parágrafo. Aliás, o seu maior problema é que ele parece muitas coisas. Parece que vai abordar a luta judicial pelos direitos civis, ou o cansaço de se dedicar uma vida a isso por parte de quem se propõe a realizar tal tarefa. As vezes parece que vai colocar em confronto as gerações que lutam por direitos civis, ou mesmo confrontar pequenas e honestas firmas contra os grandes escritórios. Ele tenta passar por tudo isso em diversas cenas sem sequência e sem sentido, mas no final tenta abordar unicamente a fragilidade humana através de uma ação do protagonista, que você também espera ter um desenvolvimento maior, mas que não acontece.

    Através de uma moralidade rasteira e um roteiro preguiçoso, acompanhamos toda a trajetória de Roman até tentar se adaptar a esse novo mundo, no que também ele ora parece aprender com seus erros, ora parece entrar em uma espiral ainda maior de ações sem sentido.

    No final, Roman J. Israel, Esq não entrega absolutamente nada ao espectador além de pequenos surtos de ideias que não são desenvolvidas, com uma tentativa de se colar tudo no final com um grande band-aid narrativo e uma música grandiosa, como se tivéssemos acabado de ver uma grande lição em algo ou alguém, mas o que sobra é um grande ponto de interrogação sobre a história, e especialmente, sobre porque Washington escolheu esse filme.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

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  • Crítica | Uma Mulher Fantástica

    Crítica | Uma Mulher Fantástica

    Uma Mulher Fantástica é o que todo filme já sonhou em ser, importante. Além de recentemente ser o primeiro filme chileno a ganhar o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o longa traz uma mulher transsexual como protagonista, tendo a atriz também transsexual Daniela Vega no papel, algo ainda raro de acontecer, mas extremamente necessário e coerente. o longa também é importante por retratar de diferentes formas as múltiplas violências consequentes de preconceitos velados ou não, um grito dolorido de resistência.

    Marina Vidal, a personagem de Vega, garçonete e também cantora de clubes noturnos, mantém um bom relacionamento amoroso com um homem mais velho, mas tem que enfrentar o sistema após a morte desse namorado. Quando o personagem de Francisco Reyes morre, Marina é impedida de passar pelo processo de luto pela família do falecido, acarretando em constrangimentos físicos, emocionais e situações que levam a personagem à humilhação.

    O longa é um estudo de personagem extremamente bem feito pelo diretor Sebastián Lelio, que prova isso ao distribuir por toda a narrativa momentos de pura intimidade de sua protagonista, com ela se deparando com seu próprio reflexo, enquanto ele enquadra o rosto da atriz diversas vezes, temos momentos fantasiosos com a personagem que são muito bem colocados e ilustram os grandes blocos do filme. Lelio respeita a personagem-título ao nunca deixar que a transsexualidade seja um truque narrativo, Marina tem tridimensionalidades e são nelas que o longa se prova especial.

    E se Lelio soube conduzir bem sua direção visual, é no roteiro que ele faz do simplório o maior agente do caos. Em um determinado momento, a ex-mulher do falecido diz que não sabe o que vê ao olhar para a Marina, mas se justifica dizendo não ser preconceituosa. O longa distribui esses preconceitos velados desde o estourado filho do falecido até um policial desconfiado, e o diretor escancara a ignorância e o ódio enraizados nos mais simples diálogos e gestos, sabendo exatamente onde posicionar sua câmera – como na forte cena em que Marina tem que ficar nua.

    Marina é sim uma mulher fantástica, mas Vega é imensurável. Com olhos fortes, a atriz segura a câmera nela como ninguém, e transparece ao espectador entender todos os conflitos de seu papel na sua pele, quando ela fala, sente-se, quando ela olha, atravessa. Uma Mulher Fantástica tem uma fotografia inspirada, uma trilha musical belíssima — ainda que óbvia, mas brilhantemente colocada —, tem momentos inchados e que se retirados não fariam diferença, mas não incomoda, o ritmo se mantém e a jornada da protagonista não se torna cansativa ou enfadonha. Os momentos lúdicos são a cereja no bolo e dá ao filme camadas mais profundas, além de renderem grandes visuais; e falando em visual, o filme tem um dos planos mais importantes nos últimos anos do cinema mundial: Marina, deitada em sua cama se vê refletida num espelho posicionado na sua genitália, vemos apenas seu rosto, mostrando o que realmente importa. E Uma Mulher Fantástica importa, importa que um filme como esse exista, importa que um filme como esse seja brilhantemente realizado como foi, importa que Daniela Vega abra essas portas, importa para a comunidade transsexual, importa para o Chile, e claro, importa para o cinema.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

  • Resenha | Bem Atrás de Você – Lisa Gardner

    Resenha | Bem Atrás de Você – Lisa Gardner

    Bem Atrás de Você da escritora Lisa Gardner, lançado pela Editora Gutenberg, é um romance policial de dois irmãos separados e novamente unidos pela violência. A autora opta por uma escrita detalhista e descritiva ao acompanhar os motivos que levam até o desfecho da trama, mas a falta de carisma dos personagens e o enredo engessado pela falta de originalidade dão a narrativa um caráter frio, insosso e não-agradável.

    A história começa com o menino Telly de apenas 9 anos matando o próprio pai (que havia matado a esposa), para proteger a sua irmã. Os irmãos são postos para a adoção e um nunca mais sabe do paradeiro do outro. A irmã é adotada por um casal de policiais aposentados e ficamos sem notícia do irmão. Em paralelo, dois assassinatos a sangue frio acontecem em um posto de gasolina e a xerife recorre aos policiais aposentados pais de Sharlah (a irmã de Telly), para ajudar na identificação do garoto que aparece na câmera de vigilância do posto. Como era de se esperar, é Telly quem aparece nas imagens.

    A partir daí, Telly é caçado pelo FBI como um assassino perigoso e os pais adotivos de Sharlah são reticentes em contar a ela o paradeiro do irmão. A trama engessa, os personagens rodeiam entre si e mesmo os diálogos longos são enfadonhos por não adicionarem nada ao enredo. Certo ponto, e isso acontece em outras partes do livro, não há pistas sobre o paradeiro do jovem e no parágrafo seguinte os investigadores pensam no que poderia ser benéfico para eles, e é isso mesmo que acontece. Que coincidência!

    A solução do enredo, portanto, não é feita com as peças que já existem nas páginas do livro, mas com informações que saltam de fora para dentro, sem que a gente tivesse conhecimento antes. Soluções criadas naquele mesmo momento para acelerar a trama. É o tipo de resolução conhecida como Deus ex machina, um crime (o trocadilho foi intencional), quando se trata de narrativas policiais. Além dessa falha, os personagens são previsíveis, com algumas frases feitas tiradas de séries policiais televisivas, e pouco dão vigor à história.

    Na capa é dito que Lisa Gardner é uma das melhores autoras de suspense do momento (talvez por isso seja bestseller), mas não nesse livro. Aqui não há suspense. Há episódios resolvidos apenas porque o tempo é curto e as coisas devem caminhar a um desfecho. Fora isso, não há construção narrativa que nos prenda à atmosfera apresentada. A impressão que fica é que estamos assistindo mais uma daquelas dezenas de séries policiais que repetem a si mesmas só pelo fato de as pessoas gostarem de séries policiais.  Para esse livro, contudo, é melhor mudar de canal.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: Bem Atrás de Você – Lisa Gardner.

  • Resenha | O Poderoso Chefão – Mario Puzo (1)

    Resenha | O Poderoso Chefão – Mario Puzo (1)

    Primeiro livro encomendado à Mario Puzo no final da década de 1960, em que o autor recebeu um valor adiantado para realizar uma obra sobre a máfia. Filho de imigrantes italianos, com o primeiro livro lançado em 1950, já com 30 anos, essa temática desde cedo ambientou seus romances. O Poderoso Chefão gerou dois filmes dirigidos por Francis Ford Coppola, em que o primeiro trata da história de Don Corleone já como capo di tutti capi, e da ascensão de Michael Corleone como novo Don. E a segunda produção apresenta a evolução de Vito com um extra sobre Michael. Puzo ajudou a escrever os dois roteiros, e também lançou sequências para a obra inicial: O Último Padrinho, O Siciliano e Omertá (sobre sequencias vale dar uma lida em nosso artigo).

    Sobre o livro, Puzo não peca, na verdade. A questão é a cultura estadunidense que age nos escritores. Poucos escritores, talvez os que tiveram maior influência de outras culturas, como Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald (existe uma enormidade de outros, apenas dois exemplos para entendimento), conseguem se desprender da literatura hambúrguer, ou seja, aquele livro que é bem escrito, tem uma história legal, mas carece de certa profundidade. São boas literaturas, com enredos interessantíssimos criados por eles, talvez o ponto diferencial pra literatura do restante do mundo. Contudo, falta um pouco mais daquela funcionalidade da arte que é a crítica social e, também importante, a densidade. Ressalto tudo isso em função dessa história não fugir à regra. Temos críticas sociais nas obras? Existem, contudo são, de certa forma, defasadas (não confundir com questões de posição ideológica), se debate a validade do poder instituído (Estado) , do funcionamento da Cosa Nostra, de questões éticas de honra. E a fala da densidade, de originalidade para a arte da escrita em si, transparece no livro.

    Algumas questões sobre o enredo, o personagem Michael se vê obrigado à assumir as questões da família, mesmo tentando de todas as formas se adaptar ao mundo americano em que vive, até mesmo se alistando para lutar na segunda guerra. Contudo a família fala mais alto que o estado ou as leis, é uma questão, novamente, de honra e compromisso familiar.

    Entrando na questão da honra vale destacar o conjunto de leis da Omertá. Podemos comparar essa lei antiga aos costumes do inicio do século XX no nordeste brasileiro (lei da vingança) assim como o Kanun albanês, praticado ainda hoje. Esse conjunto e regras oralizadas, que todos conhecem e transferem de geração em geração não se conciliam com a prática e o entendimento do estado moderno, baseado nos filósofos franceses como Jean-Jacques Rousseau e Voltaire. A tentativa de universalizar os direitos humanos e a democracia tenta penetrar nessas sociedades regidas por regras bem diferentes, e nem todas aceitam passivamente essa adaptação. A Cosa Nostra é um exemplo prático, hierárquica, patronal, machista e violento, regido pela Omertá. Mesmo inserida em um ambiente institucionalizado, com leis e valores diferentes, a máfia consegue se esgueirar e criar mecanismos para manter a sua própria lei paralelamente.

    Talvez uma das poucas originalidades na apresentação da história seja a quebra do tempo linear. O livro inicia com o casamento da filha de Vito e transcorre até seu atentado, divide o livro uma pequena história do crescimento de Vito na América, a história de Michael na Sicília, de forma um pouco deslocada do tempo, em seguida, o retorno e ascensão do novo Don. Não que seja uma grande novidade, mas é um artificio que produz uma quebra na narrativa, tornando-a mais instigante.

    Não se pode dizer que não seja um bom livro, a leitura desliza, por assim dizer, pelas páginas, e a história instiga bastante a continuidade, mas se está na vibe de uma literatura mais complexa, desafiadora, não é o livro para o momento.

    Compre: O Poderoso Chefão – Mario Puzo.

    Texto de autoria de Róbison Santos.

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  • Resenha | Endgame: O Chamado – James Frey e Nils Johnson-Shelton

    Resenha | Endgame: O Chamado – James Frey e Nils Johnson-Shelton

    Primeiro livro de uma trilogia, publicado em outubro de 2014 pela HarperCollins — publicado no Brasil pela editora Intrínseca — e parte de um projeto mais amplo que inclui games, mídias sociais e novelas. O livro contém vários enigmas e, no lançamento, os autores anunciaram que aquele que os completasse primeiro ganharia um baú, localizado em Las Vegas, contendo US$ 500 mil em ouro. O único requisito para participar é ter conta no Google e concordar com as regras de privacidade.

    O livro é uma mistura de Battle Royale (ou Jogos Vorazes, para a molecada mais jovem) e Jogador Número 1. De Battle Royale pegou a ideia – atualmente super disseminada – de jovens se enfrentando até restar apenas um. De Player n.1, a busca pelas três chaves, que são encontradas resolvendo-se enigmas dos mais variados tipos. A história se passa em um mundo alternativo, onde 12 civilizações antigas estão à espera do “Endgame”, cada uma delas preparando um guerreiro com menos de 20 anos, que irá fazer parte do jogo. Quando o jogo começa, esses jovens devem encontrar três chaves. O vencedor garantirá a sobrevivência de seus descendentes.

    Contudo, diferente dos livros referenciados, tanto a escrita quanto a narrativa deixam a desejar. Um dos muitos conselhos dados a escritores é evitar períodos muito longos, certo? Os autores levaram essa dica ao pé da letra demais. As frases, em boa parte do texto, são excessivamente curtas, quase telegráficas. Muitas páginas parecem ser uma sucessão de haikais – infelizmente pouco criativos. E o ritmo impresso por essas frases “taquicárdicas” deixa a leitura cansativa e, por vezes, aborrecida. Para piorar, mesmo quando o leitor consegue ficar absorvido na narrativa, há erros de revisão que prejudicam a fluidez da leitura e o removem da imersão no universo da história.

    Há partes que fariam um bom preparador de texto querer cortar os pulsos:

    “Marcus está sem camisa e com um short de ginástica preto e largo. As 24 costelas ficam aparentes sob a pele bronzeada. Seus braços são fortes e definidos. A respiração, tranquila. O abdome é chapado, o cabelo é preto, rente, e os olhos são verdes. Uma gota de suor escorre pela ponta de seu nariz. Istambul inteira está fervenda essa noite, e com Marcus não é diferente.”
    (p.11)

    Sem considerar a descrição estilo aluno de 1º grau, o parágrafo deixa a desejar. Ou o rapaz é forte ou é possível ver-lhe as costelas. E, mesmo se ele fosse raquítico, por razões anatômicas seria impossível ver as 24. E este á apenas um dos exemplos de trechos que fazem qualquer leitor mais atento parar e ficar pensando que “há algo errado que não está certo”. Mais um fator para tirá-lo da imersão.

    O livro é narrado em terceira pessoa, mas os autores não conseguem se decidir entre um narrador onisciente objetivo e um narrador múltiplo. Há momentos em que apenas registra os eventos; em outros, sabe dos sentimentos dos personagens. Mas não há um padrão, é algo totalmente aleatório. Não sei como foi o processo de escrita de Frey e Johnson-Shelton, mas tem-se a impressão que cada um optou por uma forma e não houve preocupação em tornar essas alternância mais “orgânica” – para usar uma palavra da modinha.

    A história pouco se desenvolve ao longo das 500 e poucas páginas do livro. O final do livro se aproxima e o leitor pensa “Ah, agora vai começar a desenrolar!”. Ledo engano. Sempre mais do mesmo. A sequência de conflitos que atrapalham o avanço dos personagens é bastante previsível. Lógico, toda trama se baseia numa sucessão de conflito-resolução. Mas, neste caso, o ritmo é constante. Não há um clímax que deixe o leitor na ponta da poltrona ou um plot twist que o surpreenda a ponto de xingar os autores.

    Curiosa em alguns trechos, fatigante em outros, a leitura avança aos trancos e barrancos até um desfecho pouco surpreendente. A premissa de ser multimídia é muito interessante. Principalmente a ideia de complementar o livro com links e pistas para a resolução do enigma. Mas calcar-se nisso, acreditando que basta implementar um conceito diferenciado, não garante a qualidade do livro.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | Penadinho: Vida

    Resenha | Penadinho: Vida

    A iniciativa Graphic MSP idealizada pelo editor Sidney Gusman tem como proposta a releitura dos personagens de Maurício de Sousa, cada artista teria uma certa liberdade para tratar de determinados personagens, garantindo novos olhares e possibilidades de abordagem dos mesmos.

    Nesta linha que foi lançado Penadinho – Vida, de Cristina Eiko e Paulo Crumbim. Os autores, que além de quadrinistas também trabalham com animação, se destacaram, principalmente, com o projeto Quadrinhos A2, no qual chegaram a ganhar um prêmio HQ Mix de “melhor publicação independente de autor”.

    A obra retrata um dilema vivido pelo personagem principal Penadinho, que recebe a notícia que o seu amor Alminha irá reencarnar e, portanto, o romance vivido pelos dois chegará ao fim. Essa trama básica demonstra uma interessante alteração do princípio de “até que a morte os separe” para “até que a vida os separe”. Mas, passado essa questão bacana, há outras questões a serem observadas no quadrinho.

    Em primeiro lugar se trata de uma trama bastante simples, uma aventura da Turma do Penadinho como outra qualquer. Para ficarmos em uma comparação dentro do mesmo projeto MSP, os irmãos Vitor e Lu Cafaggi ao produzirem Turma da Mônica – Laços também narram uma aventura simples da Turma da Mônica, porém, o fazem com personagens carismáticos em uma história emotiva e com um certo tom nostálgico, o que não pode ser dito sobre Penadinho.

    A leitura deixa sempre a sensação de que falta algo, é tudo muito normal, ordinário. E, contribuindo com essa sensação, se destaca a personagem Alminha, que é fundamental para a trama, mas em momento algum consegue transparecer qualquer carisma, o que me levou a pensar em um dado momento se o Penadinho não merecia alguém melhor para passar a eternidade.

    Mas, se a trama deixa um pouco a desejar, o mesmo não pode ser dito da arte, que é sensacional. As cores utilizadas e o próprio design de personagens é incrível, realmente digno de elogios, mostrando toda a capacidade e competência dos autores no aspecto arte sequencial. Percebe se uma fluidez no traço que agrada durante toda a leitura. Outro ponto interessante são as referências utilizadas pelos autores ao longo da narrativa, desde clássicos do cinema de terror, como também outras obras do Mauricio.

    Bem, não se trata dos melhores lançamentos da minha Graphic MSP, mas também não se enquadra entre os piores. Muitas das vezes geramos muita expectativa em relação a um determinado produto e quando essa sensação não é correspondida acaba por gerar uma certa frustração. Enfim, devido aos autores esperava um pouco mais desse trabalho, o que de modo algum signifique dizer que não se deve ler o quadrinho, apenas que não vá com muita sede ao pote.

    Compre: Penadinho – Vida.

    Texto de autoria de Douglas Biagio Puglia.

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  • Resenha | Paris é uma Festa – Ernest Hemingway

    Resenha | Paris é uma Festa – Ernest Hemingway

    Paris É uma Festa, livro póstumo (lançado em 1964, três anos após o suicídio do escritor) de Ernest Hemingway onde retrata sua vida na década de 1920 na capital francesa. O título original, A Moveable Feast — Uma Festa Móvel, em uma tradução literal — remete à afirmação do próprio autor em correspondência com um amigo, falando de seu período na “Cidade Luz” europeia. Sobre a situação da cidade durante o período entre as duas Grandes Guerras Mundiais, Hemingway deixa claro sua importância como um imã dos mais influentes artistas do momento, a maioria se conhecia e se encontrava regularmente nos cafés (que na verdade eram mais voltados a servir cervejas e vinhos), sendo pintores, escritores, jornalistas, escultores, uma gama de pessoas dos principais locais do mundo se reunia ali. Ressalta o autor, também, que a maioria possuíam falta de dinheiro, sendo que o próprio Hemingway narra sua fase em Paris sempre em dificuldades financeiras, concluindo o livro com as palavras “pobre e feliz”, resumindo o momento que passou.

    Ainda sobre o livro, que tivera pelo menos duas versões, uso a versão organizada e revisada pela sua viúva, Mary Hemingway, que mantém quase a integralidade do manuscrito organizado e revisado pelo autor antes de sua morte. Uma nova versão, realizada pelo seu neto com Pauline Pfeiffer, foi lançada em 2009, com a organização original dos capítulos (reorganizada por Mary por uma questão cronológica), um prefácio do autor e algumas omissões de trechos depreciativos à sua avó.

    Dentre as relevâncias interessantes se poderia se destacar, inicialmente, sua amizade com Gertrude Stein, poetisa e romancista estadunidense que adotou a capital francesa como morada. Em sua casa reuniam-se diversas das personalidades citadas, além do próprio autor, temos ainda personalidades como Ezra Pound, James JoycePablo Picasso, entre outros. O relevante durante estre trecho do relato realizado pelo autor é a evidência da homossexualidade da Sra. Stein, contudo, segundo ela, por se tratar de uma relação entre duas mulheres se trata de um amor real e verdadeiro, mas caso esse ocorresse entre dois homens seria depravação (Hemingway, como homem de sua época, concorda com Gertrude). É interessante observar essa visão de ambos nesse relato, pois ainda que seja, inicialmente, revolucionário, rapidamente se torna reacionário e preconceituoso, mas claro, estamos falando da década de 20, o que torna o julgo da normalidade do relacionamento de Gertrude e Alice (sua companheira) algo muito progressista, mas quando se estende à homossexualidade masculina não há qualquer avanço nesse sentido, nem mesmo entre as homossexuais como a Sra. Stein.

    Outro ponto interessante é a relação entre o autor e Scott Fitzgerald. Antes de Fitzgerald lançar seu O Grande Gatsby, acabou conhecendo Hemingway em um tumultuado café, onde travaram uma conversa amistosa — apesar de grandes ressalvas sobre a figura de Fitzgerald — e discutiam contos e até problemas pessoais, tendo um dos temas recorrentes Zelda, esposa de Scott, a qual chegou a ser internada em um manicômio em 1930. Fitzgerald comumente é retratado pelo autor como um sujeito fraco para o álcool, que após um ou dois tragos já está cambaleando, além disso é retratado como um sujeito hipocondríaco, que frequentemente acredita estar doente e está às portas da morte. Somando esses problemas emocionais e sua esposa extremamente ciumenta e controladora, que além de tudo ainda o arrasta para noitadas intermináveis, se demonstrando um verdadeiro um empecilho para seu ofício de escritor, vindo a atrasar suas publicações e criatividade.

    Paris É uma Festa é um interessante exercício narrativo do cotidiano de um escritor na década de 1920, além de contar com algumas curiosidades e segredos no modo de trabalho do autor. O livro conta ainda com uma relato interessante do que era Paris antes de ser invadida e ocupada pela Alemanha Nazista pouco tempo depois. Por fim, é interessante vislumbrarmos as diversas personalidades da época, em sua maioria artistas, relatadas por um autor mordaz como Hemingway.

    Compre: Paris É uma Festa – Ernest Hemingway.

    Texto de autoria de Róbison Santos.

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  • Crítica | A Maldição da Casa Winchester

    Crítica | A Maldição da Casa Winchester

    Em San Jose, na Califórnia, está localizada uma casa considerada mal-assombrada e que com o passar dos anos se tornou atração turística em função dos mistérios que preenchem seus cômodos. A residência foi propriedade de Sarah Winchester, esposa do empresário da indústria de armamentos, William Wirt Winchester. E é baseado na história dessa curiosa construção, que o filme A Maldição da Casa Winchester, dos irmãos Michael e Peter Spierig, se concentra.

    É sempre difícil encontrar algo do gênero terror que mantenha a qualidade de sua construção do enredo, mas se o objetivo de quem procura por filmes assim é sentir alguns sustinhos na sala escura do cinema, a satisfação é garantida facilmente. Para criar o clima propício não é necessário inserir criaturas horripilantes, mas elaborar situações de tensão por meio dos clichês que nos assustam desde a infância.

    Esse filme consegue fazer isso a partir do momento em que o psiquiatra Eric Price (Jason Clarke) entra na residência para elaborar um relatório sobre o estado de saúde da viúva Winchester (Helen Mirren), a fim de declarar se ela está apta a continuar administrando a mais importante empresa fabricante de armas dos EUA. Eric é bem recebido por empregados da mansão, com muitos cômodos de madeira – o que já traz aquela sensação de desconfiança que só uma casa antiga consegue provocar, por meio de estalos muito bem explicados pelo estudo científico da dilatação térmica dos materiais, mas que a irracionalidade insiste em apontar para outras causas.

    Antes de chegar à casa, as cenas são cheias de fotografias de paisagens lindas, mostrando como era a vida entre o final do século XIX e início do século XX. Eric sai de sua vida entediante –embora regada ao uso de uma droga alucinógena e o convívio rotineiro com prostitutas para obter o prazer necessário que o faça esquecer de seu passado – para assumir a missão que lhe garantirá o pagamento atrasado de sua hipoteca.

    Todos os elementos clichês do gênero então se apresentam: uma senhora grisalha e misteriosa fala aquilo que ninguém acredita no princípio, mas que aos poucos se torna verossímil; uma criança passa a se comportar de maneira estranha, com olhos que mudam de cor e feição que varia entre o angelical e o diabólico; a mãe dessa criança é a mulher jovial que precisa ser salva por um homem corajoso; e o homem corajoso, que tem a coragem e inteligência para solucionar os mistérios.

    Trata-se de uma obra composta por tudo que já estamos cansados de ver, com um enredo cheio de falhas, mas com diversão garantida para quem ainda reage às armadilhas dos filmes ruins de terror.

    Texto de autoria de André Luiz Cavanha.

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  • Crítica | Projeto Flórida

    Crítica | Projeto Flórida

    Enquanto as premiações mais tradicionais transbordam das mesmas histórias e da mesma fórmula higienizada, Projeto Flórida é a prova de que Sean Baker – diretor do incrível Tangerine –  é dono de um dos olhares mais preciosos para a Hollywood de hoje, trazendo sensibilidade, força e humanidade, o cineasta representa a quebra de convenções tão enraizadas no cinema americano.

    No segundo longa do diretor, agora com uma produção maior, mas ainda modesta, acompanhamos Moonee (Brooklynn Prince), que mora com sua jovem mãe em um hotel nos arredores do Disney World, o lugar é humilde, esquecido e é nele que acompanhamos o cotidiano da menina, seja ajudando a mãe a vender perfumes ou brincando com seus amigos. Aos 6 anos, Moonee é conhecida por todos por criar problemas intermináveis para o gerente do hotel e moradores locais.

    Contando a história pelo ponto de vista das crianças, Baker encontra o viés perfeito para todos os temas que aborda. Em frente aos olhos de suas pequenas personagens ele explora violência, pobreza, e tantas outras questões sociais, sem perder a sensibilidade em tamanha verossimilhança que injeta. O longa-metragem poderia ser sobre aquilo que carregamos de nossos pais, dos adultos, sobre o que vemos e reproduzimos, mas o diretor não se limita a isso quando por meio da tridimensionalidade de todas as personagens ele demonstra os dois lados de uma mesma moeda.

    Com um texto de naturalidade ímpar, o diretor constrói realidade, tem consciência quase palpável das pessoas que retrata e consegue extrair presença de todo o elenco. A atriz que interpreta a mãe de Moonee, Bria Vinaite, foi descoberta no Instagram pelo cineasta e entrega um trabalho fenomenal, demonstrando as equivalências de sua personagem e deixando-a fora do comumente mastigado por aí, como fica claro em sua maneira de se expressar, explosiva, mas são nos olhos que ela vai revelando suas camadas. Já Willem Dafoe, provavelmente o único veterano no longa, consegue se desprender de suas feições caricatas e nas mãos de Baker se mistura no elenco, encarnando talvez o personagem mais humano do filme, pois ao mesmo tempo que acompanhamos suas obrigações como gerente do hotel, percebemos também sua empatia e carinho pelos moradores do local, uma atuação delicada e devidamente lembrada no Oscar desse ano.

    Mas o maior triunfo do filme está em seu elenco infantil, nas cenas em que as crianças interagem é que fica claro o trabalho minucioso de Baker, os diálogos parecem improvisados de tão naturais e verdadeiros, sem qualquer economia no texto, o diretor rege seu elenco mirim com respeito e coerência. A escolha de posicionar a câmera na altura das crianças é um reflexo disso. Porém, a protagonista do longa e intérprete de Moonee, Prince, merece uma atenção maior, o que a garota faz está além, e percebe-se isso quando a atuação dela é tão fascinante ao ponto de ser além do comum até para uma atriz experiente. A garota é expressiva e carrega seu próprio carisma, seus gestos são tão infantis quanto calculados, suas reações são genuinamente críveis e sua atuação como um todo faz o filme como seu, se tornando a melhor performance feminina de 2017 e sua esnobação na temporada não é nada mais do que pura injustiça.

    Mesmo sendo um longa de grandes performances e temáticas, Projeto Flórida não deixa de ser visualmente significativo, o uso de cores vivas e câmera na mão dão a identidade – e também o contraste – que o filme precisa, ainda mais contando a história de crianças pobres à margem da Disneylândia. Baker, então, entrega um trabalho ainda mais completo que seu projeto de estreia e faz dele o mais significativo do ano, tendo sucesso através de um olhar sensível sobre suas personagens e com o equilíbrio certo de delicadeza e impacto, com um estilo visual único ele traz o frescor de um novo cinema independente americano, um cinema humanizado.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

  • Resenha | Histórias Rápidas Para Dias Acelerados – Samir de Oliveira Ramos

    Resenha | Histórias Rápidas Para Dias Acelerados – Samir de Oliveira Ramos

    Histórias Rápidas Para Dias Acelerados (Oito e Meio), do escritor Samir de Oliveira Ramos, costura momentos trágicos, belos, violentos e felizes com uma escrita suave e sincera. É um livro aventureiro, pois se por um lado somos levados a explorar outros cantos da América Latina, também nos embrenhamos no nordeste, na gênese do nosso país, através do cangaço, dívidas de sangue e o encantamento de uma festa de interior.

    Apenas quinze contos, em diagramação agradável, compõem o livro de estreia do escritor nascido em Fortaleza. Uma coisa notável em todas as histórias é o diálogo não-formal, cotidiano, com uma atenção especial do autor pelo vocabulário das pessoas comuns. Nota-se que Samir tem um ouvido apurado para construir seus dialogismos, pois em nenhum momento as falas de seus personagens tocam o inverossímil. Ao contrário, os diálogos sinceros presentes nos contos, sem exageros de formalidade, mas com marcas de identidade, fornecem uma importante característica de imersão que intensifica o poder das suas narrativas ficcionais.

    Por não duvidamos da individualidade de seus personagens, conseguimos nos concentrar em outros elementos essenciais: ambientação, drama e resolução do conflito. Os dois primeiros princípios mencionados são regidos com parcimônia e sobriedade; as narrativas de Samir são apresentadas despretensiosas, novamente uma marca da naturalidade do autor, e evoluem de forma ordeira, parcimoniosa, mas não decifrável, até o final nos conquistar.

    É principalmente no desfecho, esse que deve ser uma importantíssima preocupação a qualquer contista, que Samir consegue a validação e existência de suas histórias, pois o autor atinge o idealizado Punch de Julio Cortázar. O leitor é surpreendido positivamente por uma resolução de conflito coesa com o que já fora escrito e, ao mesmo tempo, criativa e não-óbvia. Ao fim da leitura dos contos sentimos aquela satisfação de quem comeu a cereja e lembrou de todo o saboroso recheio que havia antes no bolo. Contos construídos de forma firme e exitosa. Leitura bem recomendada.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: Histórias Rápidas Para Dias Acelerados — Samir de Oliveira Ramos.

  • Crítica | Todo o Dinheiro do Mundo

    Crítica | Todo o Dinheiro do Mundo

    Mais do que qualquer polêmica a respeito da vida de Jean Paul Getty, Ridley Scott se viu no olho de um furacão completamente inesperado: as graves denúncias de assédio sexual e comportamento inadequados envolvendo figurões de Hollywood como Harvey Weinstein e o ator Kevin Spacey, que iria viver o excêntrico bilionário, tendo inclusive suas cenas já filmadas. O diretor e a equipe correram contra o tempo e gastaram enormes quantias de dinheiro para refilmar as cenas com o ator, substituindo pelo excelente e veterano Christopher Plummer (o que depois abriu espaço para outra polêmica, onde Mark Wahlberg havia recebido U$ 1,5 milhões para refazer interpretando o funcionário faz tudo de Getty, Fletcher Chase, enquanto sua colega Michelle Williams, sem saber disso, recebeu apenas US$ 80 por dia apenas para cobrir despesas).

    Correndo contra o tempo e com a data do filme já estabelecida, Scott precisava demonstrar em uma situação ainda mais difícil que ainda é um grande cineasta, pois vem de uma sucessão de filmes com mais fracassos do que sucessos. Dentro deste contexto, Todo o Dinheiro do Mundo se situa bem no meio de ambos. Se não é algo inovador e cheio de energia como Alien: O Oitavo Passageiro, tampouco é um fracasso retumbante como Êxodo: Deuses e Reis, Prometeus ou Alien: Covenant.

    O longa conta a história do sequestro do neto de Getty (Plummer), bilionário do ramo do petróleo e conhecido por sua fama de sovina e também pela exímia arte de escapar do imposto de renda das mais variadas formas, usando inclusive o hábito de comprar várias e raras peças de arte para realizar tal feito. Seu neto, John Paul Getty III (Charlie Plummer) andava tranquilamente pelas ruas da Itália quando é jogado em uma Kombi e vai parar em um cativeiro de sequestradores italianos rústicos do interior do país, sem saberem muito o que estava fazendo. A distância familiar entre o filho do magnata, John Paul Getty II (Andrew Buchan) e seu pai era enorme, causando em si várias sequelas psicológicas. Ambos se aproximam, mediados por sua esposa Abigail Harris (Michelle Williams) apenas por uma imensa necessidade financeira.

    O filme não se importa em momento algum em vilanizar Getty como o velho rico sovina e excêntrico (onde o filme ganha e muito com a participação de Plummer), assim como os outros personagens também são praticamente unidimensionais e seguem um fluxo muito previsível de acontecimentos e decisões, característica comum nas produções recentes de Scott. Getty se recusa a pagar o pedido inicial dos sequestradores, de U$ 17 milhões, o que deixa os bandidos nervosos, enquanto as atrapalhadas investigações de Chase e da polícia italiana apontam para uma brincadeira do próprio Getty Jr. em conluio com as brigadas vermelhas, o que também se mostra falso.

    Logo entramos em uma longa e cansativa jornada pelo crime organizado da Itália, que vende o jovem herdeiro na tentativa de angariar mais dinheiro, em um jogo de gato e rato que não levanta muitas emoções e não faz o espectador imaginar nada além do que está vendo na tela, mesmo a produção do longa sendo visualmente impecável, com a fotografia, cenários e figurinos muito mais convincentes que a história em si.

    Ao tratar de um caso já conhecido de crime envolvendo celebridades, Scott poderia ter adotado outras fórmulas menos óbvias, mas ao que parece, sua criatividade realmente está em crise, e cada vez menos podemos esperar algo inovador do cineasta, pois o que sobra após assistir ao filme é justamente continuar pensando mais sobre a polêmica da troca de atores e a diferença de pagamento entre eles do que a história que acabamos de ver.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

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  • Resenha | Armas, Germes e Aço – Jared Diamond

    Resenha | Armas, Germes e Aço – Jared Diamond

    Biólogo, Fisiólogo, Biogeógrafo são alguns dos campos de formação de Jared Diamond. Contudo seus livros de não ficção abrangem uma gama cientifica de inúmeras áreas, como arqueologia, história e linguística. Justamente essa amplitude de conhecimentos permitiu que fosse possível condensar 15 mil anos de história humana nas 400 páginas de Armas, Germes e Aço.

    Claro, não se pode incorrer no erro, e o próprio autor ressalta esse fato, de criar uma obra completa, máxima, sobre o tema. Contudo é possível ter um vislumbre e, porque não, uma síntese da estrutura das sociedades humanas e sua evolução pela geografia da terra nesse tempo evolutivo. Não é um baque revolucionário onde dormimos homo erectus e acordamos homo sapiens, essa taxação passa a não servir na perspectiva de que estamos sempre em transformação, já que o termo evolução não é sinônimo direto de melhora, sendo que nessa visão o termo mais correto seria adaptação, portanto, o ambiente nos força a adaptar, no caso, por meio de transformação. O incrível do discurso do autor é que há uma manutenção nessa lógica a partir dos homens primitivos que passam eles a mudar o ambiente, mas sempre sofrendo a pressão do mesmo.

    Dentre os objetivos principais de Diamond nesse livro, que ganhou o prêmio Pulitzer de não-ficção em 1998, é demonstrar que as influências geográficas é que definiram quais regiões do planeta permitiriam que sua população habitante tivesse condições de subjugar as demais durante o tempo. Negando qualquer relação biológica pra esse fato, largando mão de qualquer tipo de determinismo, o autor usa a geografia e toda a influência vinda desse fato para atestar que as escolhas que aparentam ser uma decisão consciente de um grande homem, de um grupo, tribo ou civilização de uma região, na verdade não passam de uma construção feita por pessoas ou civilizações anteriores e, em muitos casos, influenciadas apenas pela necessidade ou pelo ambiente que dispunham acesso. Interessantes conclusões que essa pesquisa realizada no livro nos traz, ampliam, mesmo para alguém da área, o campo de conhecimento, pois oferece novas relações entre os acontecimentos além de abranger inúmeras áreas do conhecimento para fornecer uma análise relativamente complexa e bem estruturada da nossa história como espécie.

    A explicação baseada na geomorfologia mostra, por exemplo, porque o eixo Leste-Oeste da eurásia proporcionou importantes trocas e descobertas pelo homem primitivo ao contrário do eixo Norte-Sul americano, que tornou problemático a difusão da domesticação de animais e plantas entre as sociedades nativas, bem como os desertos, montanhas e mares que provocaram o isolamento de diversas proto-civilizaão promissoras sob a visão tecnológica. Além disso, dificuldades de nível biológico, como a mosca tsé-tsé que impedia o sul e centro da África de possuir animais domésticos importantes, como cavalos e/ou a ausência de plantas selvagens de fácil domesticação ou com um valor nutricional muito baixo. Essas são algumas das respostas levantadas pelo autor, que acerta, baseado em dados de diferentes origens, inclusive heranças linguísticas e seus desdobramentos, que as civilização que “deram certo” são em partes vinculadas ao ponto de partida geográfico e não á herança genética, ou seja, o determinismo biológico ou alguma espécie de eugenia.

    Uma obra acessível, atraente tanto para estudantes e/ou conhecedores da área afim como para leigos que gostariam de estruturar melhor seu entendimento sobre a caminhada de nossos antepassados até aqui, pois mesmo com um bom conhecimento as relações realizadas por Diamond são bem originais, além de unir diversos segmentos de estudo para formular sua tese, tornando-a, mesmo que sintética, é bem abrangente.

    Compre: Armas, Germes e Aço – Jared Diamond.

    Texto de autoria de Róbison Santos.

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