Categoria: Críticas

  • Crítica | Homem-Formiga

    Crítica | Homem-Formiga

    homem-formiga

    Em uma temporada repleta de filmes de grandes franquias e personagens, como Vingadores – A Era de UltronMad Max – Estrada da Fúria e Jurassic World, o “pequeno” Homem-Formiga (do diretor Peyton Reed) veio para buscar seu lugar ao sol junto dos grandes nomes e, mais uma vez, a Marvel conseguiu.

    O grande trunfo da Marvel Studios não é ter um imenso catálogo de personagens para fazer centenas de filmes e angariar milhões de dólares de pessoas do mundo todo. O grande trunfo da empresa é ter acesso a esse imenso catálogo e não apenas escolher com atenção os seus personagens, mas dar um tratamento carinhoso na inserção deles em um universo cinematográfico que vai muito além dos olhos dos leitores de quadrinhos, mas de um público muito mais amplo.

    Assim foi feito com Guardiões da Galáxia, uma equipe não muito convencional de heróis e pouco conhecida que mostrou ter muito mais potencial que os personagens mais mainstream como o Homem de Ferro ou Thor (ainda mais levando em consideração a qualidade duvidosa de Homem de Ferro 3 e Thor: O Mundo Sombrio). Muito mais do que mostrar potencial, conseguiu ser um dos melhores filmes – talvez o melhor – da Marvel Studios.

    Dessa vez acompanhamos Scott Lang (Paul Rudd), um engenheiro elétrico que acaba de sair da cadeia após cumprir pena por ter cometido um crime contra uma grande corporação. Tendo dificuldades para achar um novo emprego e de se aproximar de sua filha, Scott resolve roubar a casa de um milionário aposentado, Hank Pym (Michael Douglas). Porém, depois que o roubo foi um fracasso, Scott descobre que tudo fazia parte de um plano do Dr. Pym para que ele se tornasse o Homem-Formiga. A intenção do Dr. Pym era que Scott, utilizando-se dos poderes de Homem-Formiga (poder se reduzir a um tamanho muito pequeno, porém tendo força de um humano normal) pudesse invadir o laboratório de Darren Cross (Corey Stoll) com intuito de evitar que uma poderosa arma caia em mãos erradas.

    A primeira coisa a se dizer é que Paul Rudd foi uma escolha certeira. O ator se mostrou muito à vontade com o papel de Scott Lang passando o mesmo sentimento para o espectador. A sensação é a de que Paul Rudd já fosse o Homem-Formiga há muito tempo e todos já estivéssemos acostumados com isso. Sentimento semelhante quando vemos Robert Downey Jr. e o associamos diretamente ao Tony Stark.

    Evangeline Lilly e Michael Douglas também se destacam, não de uma forma tão expressiva quanto Rudd, porém são marcos positivos no filme. Corey Stoll, por outro lado, não impressiona como vilão, não demonstrando muito carisma ou inovação em sua atuação.

    O filme é recheado de diversos momentos de bom humor, marca já registrada nos filmes da Marvel, mas sem forçar ao pastelão. Inclusive, o humor é frequente, principalmente quando o personagem diminui de tamanho em suas primeiras vezes e ainda está acostumando com os poderes que a roupa lhe confere. Diga-se de passagem, as cenas de ação envolvendo a diminuição e aumento de tamanho são dinâmicas e bem trabalhadas, dando uma nova dimensão ao uso do 3D no enquadramento e profundidade dos planos nas cenas de ação.

    O roteiro do filme é bastante agradável e mantém um bom ritmo. O grande trunfo aqui é o clima de “filme de roubo” empregado pela narrativa, como na versão de 2001 de Onze Homens e um Segredo, por exemplo, porém envolvendo heróis Marvel. Considerando o tom de bom humor da obra, isso ajuda em muitas cenas que envolvem o roubo propriamente dito, como a que Scott tem que invadir a base dos Vingadores, para pegar um dispositivo, e acaba enfrentando o Falcão.

    As referências ao passado, presente e futuro do universo Marvel são incontáveis durante o filme, além das duas cenas extras pós-créditos que ele apresenta. Temos referências aos Vingadores, ao seriado Agent Carter e, o que mais chama atenção, ao Homem-Aranha. Prato cheio para aqueles que gostam de procurar pelas pequenas nuances nesse gênero de filme.

    Apesar de extremamente divertido, o filme possui defeitos na condução da narrativa, que acaba se tornando bem lenta no primeiro ato, engrenando apenas posteriormente. Isso sem falar nas dificuldades de apresentação de alguns personagens, como o passado de Scott ou do próprio vilão Cross, de modo a não conferir tanta profundidade nos personagens, tornando vazias suas motivações.

    Apesar de pequenas falhas, o filme continua sendo divertido, ganhando um posto de destaque como um bom filme de super-herói. Além disso, Homem-Formiga consegue abrir um sorriso sincero em fãs de quadrinhos, no público geral e em toda pessoa que pensa nas centenas de milhares de possibilidades nesse universo tão rico que a Marvel Studios criou nos cinemas. Agora basta acreditar em mais do que há por vir. Bem-vindo ao hall dos “grandões”, Scott.

    Texto de autoria de Pedro Lobato.

  • Crítica | Cidades de Papel

    Crítica | Cidades de Papel

    Cidades de Papel - poster

    Segunda obra de John Green adaptada para as telas, Cidades de Papel consegue transpassar a barreira literária e se recodificar em uma narrativa cinematográfica com estilo e recursos cênicos próprios, modificando somente o essencial devido aos formatos diferentes e desenvolvendo uma bonita história sobre laços de amizade e a fase de transição e amadurecimento entre a adolescência e juventude.

    A obra de Green não é de difícil adaptação. Sua narrativa linear é estruturada de maneira simples com personagens adolescentes passando por uma ação específica de transformação. O estilo narrativo é eficiente ao compor tais personagens, e denota uma boa caracterização em cena para que não existam estereótipos.

    No papel central, Nat Wolff, presente também em A Culpa é Das Estrelas, corresponde com eficiência a Quentin, um jovem que nutre uma paixão platônica pela vizinha Margo Roth Spielgelman e participa de um engenhoso plano de vingança ao seu lado antes do desaparecimento da garota. Como um adolescente como outro qualquer, o jovem Quentin se apaixona pela beleza de Margo e nutre há anos um amor sem conhecer, de fato, sua amada.

    A trama transforma a fuga de Margo na trajetória de conhecimento de Quentin. Prestes a se formar no colegial e escolher uma faculdade, o universo conhecido do adolescente será transformado. Um rito de transição para uma juventude inexplorada e mudanças naturais da vida que deixa amizades e a família para trás. Ao mostrar Quentin e amigos partirem em uma viagem atravessando os Estados Unidos à procura de Margot, a narrativa enaltece a força da amizade e estabelece um fraterno road trip.

    O roteiro de Scott Neustadter e Michael H. Weber – que também versaram A Culpa – é eficiente ao modificar estruturas básicas da narrativa original, dando maior fluidez para a história tanto no aspecto temporal como na composição sensível dos personagens. Se há uma perda de densidade em comparação com os acontecimentos descritos por Green, há ganho no fluxo narrativo e no enfoque concentrado nas relações fraternais. Universalizando uma trama que, inicialmente, possui um público alvo específico. Ainda que em matéria de comparação, o estilo do autor mencionado anteriormente consegue ser ainda mais inspirador na mensagem do que esta adaptação, mantendo obra original e versão em bons parâmetros.

  • Crítica | Sete Dias Sem Fim

    Crítica | Sete Dias Sem Fim

    sete dias sem fim

    A tradição encerrada na entidade familiar comumente produz relações distantes, e o tempo se encarrega de engrossar ainda mais seus pontos diferenciais. Manter amizades já é um esforço demasiado, estreitar laços com pessoas as quais não se escolheu ter relação torna-se ainda mais difícil. É sob uma ótica de vidas cuja razão se perdeu através do desprezo humano geral que Sete Dias Sem Fim é narrado, primeiro mostrando a derrocada de Judd Altman (Jason Bateman), de dedicado marido a divorciado deprimido, para logo depois mostrar de forma agridoce o falecimento de seu pai, o que o obrigaria a sair de sua caverna pessoal para prestar condolências aos seus outros entes queridos.

    Nos momentos iniciais, apesar das gags cômicas, a sensação que predomina é a melancolia, assinalada pela trilha sonora, levada pelo piano clássico. No enterro, reencontros ocorrem, a maioria bastante atabalhoados, o primeiro deles com Wendy (Tina Fey), a irmã desbocada que cuidava do patriarca. O segundo ocorre após a chegada de Philp (Adam Driver), em seu carro de luxo, cujo som alto, tocando rap ostentativo quebra o clima de luto.

    Com poucos minutos de exibição nota-se a maioria dos problemas existentes na interação de todo o clã, o quanto cada um deles tem dificuldade em viver em comunidade e conviver consigo mesmo.  O constrangedor silêncio é finalmente quebrado pela matriarca Hillary (Jane Fonda), que clama para que a família converse entre si, especialmente para incluir as conversas disfuncionais dos presentes em seu próximo best-seller, mostrando que a exploração do grotesco vai além dos ângulos escolhidos por Shawn Levy.

    Logo as garras são expostas numa intensa briga por um dos patrimônios do pai, e no qual Paul (Corey Stoll) tem sua única fonte de renda, enquanto Philip quer fazer parte das decisões financeiras, mesmo sem ter qualquer jeito para isto. Após o embate físico, os familiares são obrigados a conversar sobre as memórias do falecido, numa tentativa de unir quem não quer ficar perto, quem não quer ter unidade. Lá, as mentiras e indiscrições ficam mais evidentes, como feridas que pedem para serem estancadas.

    Os bate-bocas e intrigas evoluem e tornam-se cada vez mais verborrágicos, exibindo uma violência reprimida por anos e que somente piorou com o acúmulo de hostilidade e guardadas em virtude do afastamento entre os entes. O roteiro se encarrega de mostrar que, apesar do claro incômodo presente na intimidade entre eles, ainda há espaço para a solidariedade e companheirismo, especialmente nos momentos de crise, quando a miséria da alma de Judd consegue se aprofundar ainda mais.

    Apesar de cada um dos personagens viver o seu pequeno inferno pessoal, o modo como a película conduz é leve, numa alegoria a um estilo de vida em que pouco se preocupa com as questões de resolução difícil e as as trata de modo amistoso, uma vez que são inevitáveis no padecimento de existir.

    Quanto mais os filhos tentam se afastar da casa matriarcal, mais e mais segredos são trazidos à luz, com fatos assustadores para a mente dos herdeiros. Encarar a realidade e a complexidade de ter de conviver com o luto e seguir em frente não são tarefas fáceis para nenhum dos personagens. O otimista “ensinamento” presente no roteiro é de que os esqueletos guardados dentro do armário podem até fazer a vida parecer pesada, mas não devem impedir o prosseguimento da existência, tampouco permitir que a tristeza tome conta do espírito, de assalto. A moral presente em Sete Dias Sem Fim mira o alto, fugindo da obviedade, tratando de modo leve as questões pesadas da vida.

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  • Crítica | Woody Allen: Um Documentário

    Crítica | Woody Allen: Um Documentário

    A evolução de um artista se mede pelo catálogo conjurado ao longo de tantos anos. De lá pra cá, uma lista que atesta o gênio de um comediante não pode ser menos que homérica, ou mais digna de ser debatida, filme por filme, num documentário feito sob medida a fãs, estudantes e curiosos sobre a vida (e obra) de Woody Allen, o criador dos monólogos, diálogos e de toda a comédia mais textual que visual de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (seu melhor filme), Memórias e Meia-Noite em Paris. Uma mente a serviço de um gênero que dedicou sua vida a aprimorar, muito além do estilo de comedia americana, das lições de Buster Keaton, Charles Chaplin e os lendários irmãos Marx, a trindade que ainda tanto espira Allen em sua máquina de escrever, de onde saíram seus mais de 50 roteiros, sem exceção ou afetações tecnológicas. Ao costurar a vida de um artista, o jornalista Robert B. Weide, fã do humorista, não escapa do humor leve e afiado de seu ídolo no ritmo de seu filme, e tampouco esquece que ninguém é perfeito.

    A tarefa de mistificar Woody Allen e ser justo, ao mesmo tempo, com os altos e baixos da carreira de quem faz praticamente um filme por ano, há quase oito décadas, nunca seria fácil. Reunindo velhos amigos como Diane Keaton e Mia Farrow, as duas musas do judeu inseguro e inquieto, tal qual Penélope Cruz e Scarlett Johansson, um pouco de sangue novo, entrevistas inspiradas pretendem mais revelar que comentar, expondo a arte mais nobre dos documentários a favor da reflexão: levar o fato ao público e deixá-lo ruminar, sem condicionar o rebanho a uma única opinião. E igual nossa relação de amor e ódio com os loucos e normais personagens criados pelo artista, aos poucos vamos descobrindo segredos e resgatando fatos, interessantes o bastante para merecer o registro, de uma vida tão polêmica quanto produtiva, ainda que parcial aos talentos e desejos de Woody. O próprio Martin Scorsese, colega desde os anos 70 (Taxi Driver e Noivo Neurótico, Noiva Nervosa são clássicos da mesma época), admite que poucos têm tanto a dizer quanto a mente por trás de A Rosa Púrpura do Cairo, Zelig e A Era do Rádio.

    Das mãos de onde saíram tantas reinvenções de um gênero que não se limita mais, também pela contribuição inteligente do cineasta, a provocar apenas aquela risada fácil, Woody Allen: Um Documentário nos remete a lições extraídas dos filmes, dos livros e da carreira que postula e converge numa vida curiosa, voltada à análise das emoções humanas, das traições entre casais, dos laços familiares, das fugas ao passado, do desejo pelas mulheres, das paranoias de viver em sociedade, universos inevitáveis nas histórias do autor. Elevar ao hall das lendas esses aspectos é tarefa de fã, o que certamente torna mais doce o desafio, ainda que incompleto, de emoldurar carreiras tão prolíficas numa obra que vai do jazz à psicologia, sendo divertido e deliciosamente previsível, como pede o figurino. Imagine um documentário sobre Scorsese (o que já está na hora de acontecer): o culto a diversidade cultural e a violência qualificada seriam omitidas? Resposta óbvia.

    Seria loucura afirmar que o documentário de Robert Weide não tem lugar entre os livros sobre o artista, em especial o hilário e amplamente pessoal Conversas com Woody Allen, da editora Cosac Naify, livro-chave para conhecer mais a fundo o que move e mantém na ativa a ostra octogenária que, com suas pérolas, nunca subestimou a inteligência do público. Um documentário quase à altura das fases do ídolo, se não a falta de precisão entre a arte da pessoa, e a pessoa da arte. Se o homem vale mais que o mito, ou vice-versa, o filme não se dá o direito de concluir essa questão, à margem de nosso juízo a partir dessa pendência, dessa falta de postura e coerência. Destaque, mesmo, ao equilíbrio entre o que é lendário na carreira de Allen e o simplório, tal seu platônico amor por sua eterna parceira: uma clarineta.

  • Crítica | Mr. Untouchable

    Crítica | Mr. Untouchable

    Mr Untouchable 1

    O documentarista especialista em cultura afro-americana Marc Levin se mune de sua experiência anterior em Slam, Gang War: Bangin’ in Little Rock e Uma História de Amor ao Brooklyn, além é claro de sua obsessão por histórias do gueto estadunidense. Sua análise é focada em Leroy “Hypnosis” Nicky Barnes, uma poderosa figura no Harlem, responsável principal pelo tráfico e consequente mania e comércio de heroína entre os usuários de Nova York. Chamado de O Poderoso Chefão Negro, Barnes era considerado Intocável, como foi chamado um dia Al Capone.

    O modo de operar de Hypnosis era mais selvagem do que os de seus colegas de conglomerados anteriores do crime. Os métodos mais violentos garantiam a si uma aura de ser imperdoável. Sua colocação enquanto chefe do crime o distanciava de seus semelhantes, dando ainda mais ambiguidade a alcunha de intocável. Através de um número encenado, Barnes é mostrado falando direto a câmera, citando possíveis dúvidas morais do contraventor, especialmente no que tange ser ele ou não um instrumento dos homens brancos que fortificaria a idéia de que os negros eram menos evoluídos e inferiores.

    A violência das ruas é muito bem flagrada, mostrando fortes cenas de corpos dilacerados, cadáveres que habitam com um vermelho predominante os cinzas das ruas nova-iorquinas, efeitos de uma guerra por poder, que normalmente vitima os cidadãos de cor americanos. A ostentação de poderio financeiro e de influência de Barnes aproxima-se de uma afronta considerando a quantidade de pessoas que tombam ao seu redor, membros da mesma classe social e racial dele, e que mesmo perdendo muitos em suas fileiras, ainda é capaz de idolatrá-lo.

    O fato de ser capa de revistas, normalmente palco para as peripécias dos cidadãos brancos, o elevava a um patamar de fama não antes visto, pondo em um hall de fama que continha tantos outros negros ilustres, fazendo dele uma figura tão conhecida quanto heróis e ativistas da causa racial. A prisão dele, em virtude dos exageros de sua gestão, deram a ele uma aura de mártir, ainda que completamente imerecido.

    Marc Levin se esforça grandemente para não vitimar o analisado, até por este jamais ter se visto deste modo. Os crimes de Hypnosis não são ignorados ou aplacados, tampouco seus defeitos. A trilha sonora, repleta de soul, rap e jazz proporciona uma imersão no black world onde Barnes se inseria, mas não o glamouriza, tampouco o isenta de seus crescentes atos de vinganças, fazendo dele algo entre o anti-herói americano e o típico herói falido, protagonista de uma tragicomédia que tem no não riso seu maior trunfo com o público.

    A gravação exibida ao final, com a voz de Nicky Barnes declarando sua culpa, não tentando em momento nenhum se desculpar pela delação, é toda contemplada por uma mensagem de tentativa de redenção, igualando a sua trajetória a dos injustos, ignorando completamente os que sempre estiveram com ele. De certa forma, exibe uma faceta egoísta, mesmo que em seu discurso haja um apelo para que a juventude não cometa os mesmos erros que ele. Ainda assim, Levin não o trata como um crápula ou como um bandido simplesmente, destacando toda a intimidade, degradação e meios tons de sua biografia.

  • Crítica | Brava Gente Brasileira

    Crítica | Brava Gente Brasileira

    Brava Gente 1

    Distribuído no ano 2000, às vésperas de um novo milênio, a realizadora Lúcia Murat entrega um drama, que retrata a relação conflituosa entre os índios nativos brasileiros e os portugueses colonizadores, nos idos do século XVIII. O começo mostra uma tribo quase toda formada por mulheres, que falam em um idioma indistinguível para os europeus, os quais erroneamente associavam as falas a balbucios sem sentido, uma falha de compreensão que se repetiria na relação com os habitantes que eram julgados como selvagens.

    O retrato pintado ao redor do índio é de um guerreiro poderoso, semelhante ao visto na literatura de José de Alencar, especialmente em O Guarani, que retratava o nativo como uma espécie de cópia dos heróis dos romances europeus de cavalaria. No entanto, a visão idealizada do povo nativo é logo quebrada com as intensas batalhas entre os asseclas do governador e os membros da tribo, com cenas que resumem bem a prática nefasta dos poderosos, explicitando crimes como estupro e assassinato a sangue frio, por meio de armas de fogo, normalmente sobre figuras que sequer possuíam armas brancas.

    A interação sexual se dá por meio de seções sem mútuo consentimento, banalizando questões básicas sentimentais e morais. O roteiro desenvolve-se livre de medos, e não faz qualquer cerimônia em problematizar o modus operandi dos exploradores portugueses e tecer críticas ferrenhas aos brasileiros nascidos já sobre a influência branco-europeia, que não veem qualquer semelhança com os índios, ao contrário, defendem os desejos dos mesmos poderosos que os escravizam de modo nada velado a troco de poucos privilégios dentro das províncias.

    A questão do apartheid é fortificada pelo personagem que não consegue esconder visualmente o fato de ser mestiço. O jagunço Capitão Pedro é racista e tem orgulho disso. A barba proeminente de seu intérprete, Floriano Peixoto, busca esconder uma pele mais escurecida, mas a mentira não se sustenta ao se verificarem os cabelos encaracolados, normalmente cobertos por bonés e chapéus. Há inclusive o cuidado de mostrar o Capitão agindo de modo terno, com um rapaz branco que ele resgata, mostrando que a capacidade do capitão se humanizar só é evocada quando está em companhia de seus iguais, um artifício bastante comum em meio aos que segregam.

    No entanto, a compreensão e comportamento dócil somente são mantidos enquanto o rapaz age de modo submisso, diante de qualquer mostra de rebeldia ou discordância, a truculência retornar, como eco típico da barbárie que é capaz de fazer decepar as mãos dos “inimigos” indefesos.

    O contraponto ao comportamento de Pedro, dentro da aldeia branca, é visto na interação do lusitano Diogo Castro e Albuquerque (Diogo Infante) com a capturada Ánote (Luciana Rigueira). Mesmo os relacionamentos entre as raças, vistos no início como uniões sentimentais e amorosas, logo revelam sua real identidade de exploração sexual, vinculada quase necessariamente a dogmas religiosos, que, por sua vez, remetem à catequização imposta pelos colonos no Brasil e em toda a América Latina. O roteiro de Murat não tem pudor em mostrar a hipocrisia latente no ethos dos preconceituosos homens brancos, que tinham no discurso um acintoso ódio aos Guaicuru, mas que na intimidade, lançavam sua força para cometer abusos contra as moças da tribo.

    O revide, mostrado em detalhes no final, serve de alento aos Kadiwéu, os únicos sobreviventes após o tratado de paz e que atualmente habitam uma reserva no Mato Grosso do Sul dedicada à memória dos muitos que sofreram nas mãos dos portugueses. O movimento é uma ode à luta para subsistência da tribo, que até hoje sofre reprimendas e arduamente briga para manter sua cultura própria, pontuada de modo bastante interessante em Brava Gente Brasileira.

  • Crítica | Casa Grande

    Crítica | Casa Grande

    O Brasil de 2015 deixou de ser criança e virou um adolescente cheio de malícia, desses que pulam o muro à noite para ir dormir no quarto da empregada. O Brasil é um país de muros, muralhas, fortalezas. Logo de cara, no primeiro plano de Casa Grande, um sobrado enorme com piscina e vários andares salta à vista. É lá, não nas senzalas, mas na mansão mal-assombrada pela classe-média alta, onde o cineasta Fellipe Barbosa pinta, com perspicácia rara no cinema brasileiro, o retrato crônico, e não apenas atual, mas histórico das classes de um país continental, atingindo a realidade em cheio. Perto desse retrato, de cenas magníficas como quando o playboy acorda pra vida e rompe a bolha que vivia (ou no debate extra-familiar sobre cotas raciais nas faculdades), o pastel de vento O Som ao Redor vira rascunho em guardanapo molhado.

    Domingo é sagrado, é dia de ir à igreja, pagar conta com o divino, sempre pagando as contas, nem a senzala ou a Casa Grande esquecem. Por quê? Porque sim, porque sempre foi assim, e fim. É dia de pagar conta com nós mesmos, a senzala não perde tempo, a gente acorda cedo, uns pra tomar suco na beira da piscina – e a maioria pra assistir a Missa do Galo na TV com programação de Casa Grande, pra gente se perguntar com outro “Por quê?”, o porquê das nossas mesas não serem tão fartas quanto na Casa Grande. Dilema que os domingos e outros carnavais tentam resolver, mas fica pra amanhã também. É levado a sério na senzala não levar o domingo tão a sério.

    Já o sábado é um ensaio, mas também ouvi o passarinho verde, que nada tem a ver com os domínios do homem pobre ou rico, preto ou branco, nem macho nem viado, que sábado já está virando dia útil, tem que trabalhar também! Só domingo mesmo, a gente só pode ser a gente no domingo, e olhe lá, de novo. Já sobre trabalhar só meio expediente antes da segunda, antes do jogo de futebol, isso a Casa Grande vem estudando a possibilidade, muita calma nessa hora. Palavra grande, “possibilidade”, tal qual o olho da Casa Grande que vê tudo e esquece de ver o que muitas vezes acontece lá dentro. Observando quem pensa ser livre, do alto do sobrado gigante cheio de alarmes contra favelados… é um tantão de chão, só vendo, só entrando. É enorme, de fato, mas sorte a nossa saber o caminho da senzala, até os nossos pés já sabem de cor. A gente aprende o caminho, aprende que essa responsabilidade menor por não viver no topo da pirâmide deixa a vida mais bela, menos pesada.

    E pra quem duvidava, a Casa Grande não é só flores nem domingo, não senhor. Afinal, quem vive em bolha tem medo de alfinete, até de ponta de lápis. Barbosa, prudente e com um elenco impecável, coloca os donos do microscópio social sob as lentes de outro para estampar na arte o que é surrealmente real. Também aprendemos desde cedo que, se tem revolta nos interesses da senzala, é porque tem algo de podre no reino dos patrões, e se não tem é porque o charme da burguesia disfarça com perfume caro da Boticário, não, espera, o Boticário apoia os gays, e a Casa Grande não curte muito o diferenciado, vide os favelados de hoje, os escravos há 500 anos, enfim… É melhor perfume francês. É por isso que a obra-prima de Barbosa nega perfumaria: para mostrar o Brasil de 2015 e comparar com o de 1500, no seco, sem lubrificante ou aroma de lavanda. Imperdível.

  • Crítica | Uma Nova Amiga

    Crítica | Uma Nova Amiga

    Uma Nova Amiga 1

    O diretor François Ozon usa a sua experiência em contar dramas graves para, já na primeira cena de seu novo filme, Uma Nova Amiga, referenciar duas instituições tradicionais: o matrimônio e o sepultamento religioso. Usando os mesmos avatares de beleza adolescente e da depressão vistas em seu último filme Jovem e Bela (ainda que o espírito e caráter deste sejam absolutamente diversos), o roteiro adaptado do romance de Ruth Rendell utiliza a trajetória rumo à vida adulta como palco para a miscelânea de sentimentos contraditórios inerentes à existência feminina, brincando com os sonhos quanto ao enlace matrimonial e, claro, com os laços eternos que uma amizade pode ter.

    O resumo de toda a trajetória de Claire (Anaïs Demoustier) e Laura (Isild Le Besco) é feito de modo curto, direto e carregado de sentimentos, desde o começo do companheirismo nos tempos de escola até o nascimento do bebê de Laura. O falecimento precoce da recém mãe faz Claire mergulhar em uma profunda depressão, se apegando a qualquer ilusão visual que se assemelhasse meramente à lembrança de sua antiga amiga, que deixou filho e marido David (Romain Duris) órfãos de amor e atenção.

    Em uma visita ao viúvo, Claire tem uma surpresa que, à primeira vista é assustadora, já que o pai da pequena Lucy estava trajado de modo incomum, com as vestes da falecida mãe. Aos poucos, a historieta se desenrola, mostrando de modo bem didático o assumir de um novo ego, e as dificuldades recorrentes dessa “nova” postura, que revelam a preocupação com o bebê, que sente falta da figura materna, bem como abre a discussão sobre a identidade de gênero de alguém que nega a verdade a si mesmo, preocupado entre outros fatores com a opinião dos que o cercam, cujo avatar é a postura de Claire, que evolui aos poucos rumo à aceitação do novo paradigma.

    O choque do conservadorismo está presente nos olhares julgadores que a protagonista antiga lança sobre a “nova”, servindo de diálogo profundo com a plateia, não excluindo os que prioritariamente são contra alguns segmentos de orientação sexual diferente da imbecil pecha de “heteronormatividade”, mas que em outro momento podem aprender a dialogar fora do senso comum misógino e homofóbico.

    O desejo de revelar-se envolve a persona masculina que quer ser outra, e com o tempo ela toma coragem para enfim se lançar ao mundo externo. Cada passo de cima do salto alto é mais aventuresco que o anterior, revelando o tesão pela descoberta em cada detalhe. O envolvimento de David e Claire tem seus laços estreitados, maravilhosamente filmado por Ozon, que faz questão de mostrar a distinção de ambos nos enquadramentos, seja em cenas reais, com viagens de carro, onde ambos estão separados pelos assentos, bem como em sonhos filmados, onde dividem a mesma cama, compartilhando também alguns escondidos desejos.

    A brincadeira emocional que ocorre com as identidades de David e Virginia mexe evidentemente com a pulsão e ideário sexual de Claire, que passa a ter delírios em relação a possíveis enlaces amorosos, seja consigo ou com os que a cercam. Os suspiros de Demoustier definem bem a dúvida que ela sente em dar ou não vazão ao carnal, às vontades ocultas.

    Após recusas e insensibilidades, trocadas mutuamente de certa forma, as almas desoladas finalmente têm um encerramento emocional e sentimental, condizente com a típica feminilidade de ambas, cedendo finalmente à real identidade de ambas mulheres, tornando vivos os aspectos que antes estavam ligados à mortandade, revivendo novos romances, novos destinos. Sem preocupação de amarrar o desfecho de modo conservador ou palatável para as plateias anacrônicas. A direção e  texto de François Ozon mais uma vez destacam a atualidade, apresentando um drama complexo, denso e repleto de sentimentos inexoráveis à existência humana, inevitáveis como os naturais desejos carnais, sexuais e, claro, os de serem aceitos.

  • Crítica | A Nação Que Não Esperou Por Deus

    Crítica | A Nação Que Não Esperou Por Deus

    A Nação Que Não Esperou por Deus 1

    Retornando ao cenário de Brava Gente Brasileira, a diretora Lúcia Murat, acompanhada de Rodrigo Hinchsen, registra a rotina dos membros da tribo Kadiwéus, começando por uma fala sobre a intervenção do Divino na criação dos homens e na distinção de poder ocorrida entre os brancos europeus e as tribos indígenas brasileiras, que insistem em viver suas vidas ao modo de sua própria cultura, amalgamada com alguns costumes e ditames modernos. A Nação Que Não Esperou por Deus esmiúça os rastros do sincretismo religioso que predominou no Brasil colonial e que ainda hoje encontra resquícios na população.

    Lúcia narra alguns pedaços da fita, relembrando as experiências da feitoria do filme de 2000, comparando suas sensações com as descritas por Levi Strauss ao também encontrar os Kadiwéus, por ver que a obra superou quaisquer expectativas prévias suas, emocionando-a ao ponto de faze-la voltar ao lugar que antes usou como base para seu longa ficcional, fato não tão comum em meio a sua filmografia.

    O mote de A Nação Que Não Esperou por Deus é a discussão sobre a posse das terras, onde habitam os descendentes dos antigos Kadiwéus. O espaço no Mato Grosso do Sul foi cedido há muito tempo ao povo, e as terras sofrem atualmente questões complicadas de litígios, graças a fazendeiros que tentam legalmente ganhar os direitos de residência no local, via disputas judiciais desiguais, uma vez que eles têm um poderia financeiro bem maior o dos nativos.

    O escopo utilizado na investigação fílmica inclui momentos de amenidade também, não só flagrando momentos difíceis das tribos, até para emular a realidade e rotina dos descendentes dos nativos. É curioso notar como é a relação entre os atores que fizeram parte do elenco de apoio de Brava Gente Brasileira, analisando como é a vida privada destes.

    As câmeras registram um acordo feito entre as lideranças das tribos e os pecuaristas, que buscam um armistício, que num primeiro momento é respeitado, mas com o tempo, passa a ser desrespeitado, em alguns momentos agindo até com desfaçatez, sem esconder os rastros de ilegalidade, manuseando arrendamentos e apropriações por parte dos agentes da pecuária sem qualquer receio de ter a justiça contra si, uma vez que seriam eles bem mais ligados aos barões da lei, mesmo que as lideranças indígenas fosse bastante versadas na cultura e direito brasileiros.

    O viés escolhido por Murat em A Nação Que Não Esperou por Deus é o de não concluir os temas, e apesar de obviamente pender para a defesa dos Kadiwéus, não há uma demonização dos homens brancos, tampouco há qualquer resquício de maniqueísmo tolo ao tratar das condições de vida dos remanescentes da antiga cultura, que até por não se vitimizarem, não são dignos de qualquer coitadismo. A cena que encerra o documentário e mostra os créditos é prodigiosa em remontar a modernização pelo qual sofreu aquele povo, sem deixar seus costumes de lado, mantendo viva e acesa identidade cultural dos mesmos.

  • Crítica | Ex-Machina: Instinto Artificial

    Crítica | Ex-Machina: Instinto Artificial

    Ex Machina - Poster

    “Life perpetuates itself through diversity and this includes the ability to sacrifice itself when necessary. Cells repeat the process of degeneration and regeneration until one day they die, obliterating an entire set of memory and information. Only genes remain. Why continually repeat this cycle? Simply to survive by avoiding the weaknesses of an unchanging system.” (Puppet Master)

    O diálogo acima referenciado ocorre quando Puppet Master, ao encontro de Major Kusanagi, nos faz refletir sobre o conceito de vida e, principalmente, o que é estar vivo. Essa é uma das grandes questões levantadas em Ghost in the Shell (1996) – filme a que pertence o diálogo acima referenciado -, Blade Runner (1982) e em diversos outros trabalhos cinematográficos e literários de ficção científica ao longo da história. Mais uma vez, é hora de revisitar tão importante e histórico questionamento, mas dessa vez essa questão nos é posta em Ex Machina (2015), filme dirigido por Alex Garland (roteirista de filmes como Dredd e Extermínio).

    O cenário para a história se passa em um futuro próximo. O jovem programador Caleb Smith (Domhnall Gleeson) é selecionado para participar de uma visita de uma semana à casa do CEO da empresa que trabalha, Nathan Bateman (Oscar Isaac), uma das maiores empresas de tecnologia do mundo. Vivendo em uma casa isolada nas montanhas, Nathan convida Caleb a participar de um experimento diferente: Caleb teria que aplicar um teste de Turing em uma androide desenvolvida por Nathan, Ava (Alicia Vikander) com intuito de determinar se a inteligência artificial de Ava pode ser comparada (ou se é melhor) à de um humano.

    Nathan é um gênio alcoólatra e recluso. Caleb é um jovem inteligente e ingênuo. Ava é uma androide. Basicamente esses três personagens sustentam sozinhos todo o filme em um ambiente claustrofóbico, onde o silêncio dos personagens reverbera em seus pensamentos. Quem mais sofre com isso é Caleb, pois quanto mais se aproxima de Ava, mais ele começa a duvidar sobre si mesmo e o mundo à sua volta. Afinal, o que é estar vivo?

    A atuação de Alicia Vikander é visceral à medida que confere profundidade em sua personagem androide.Vikander é sutil e cria uma linha tênue para Nathan, Caleb e todos os espectadores ao refletir sobre a condição de Ava. Ao mesmo tempo que ela claramente não é humana, sua representação do medo, sonhos e esperanças são precisos e praticamente naturais. Nathan e Caleb são brilhantes e carismáticos, com personalidades profundas e interessantes, mas ainda assim não tão profundos quanto Ava, que nos faz ficar inquietos e ansiosos com suas nuances de personalidade.

    Ex Machina não pode ser considerado um thriller de ficção científica mainstream. Muito pelo contrário, é um filme reflexivo e provocante do começo ao final. A mistura de liveaction e CGI, a trilha sonora inquietante e a fotografia impecável fazem com que seja um filme importante na ficção científica contemporânea.

    Sua conclusão acompanha perfeitamente o compasso de toda a obra. Toda a informação que acumulamos em uma vida é apenas uma gota em um oceano de informação, de modo que, talvez, uma criatura que consiga coletar mais informação e guardar por mais tempo possa ser considerada mais do que humana? Ainda nos inquietamos com esses questionamentos e continuaremos a nos inquietar se dependermos de ficções científicas tão excelentes como Ex Machina.

    Texto de autoria de Pedro Lobato.

  • Crítica | God Help The Girl

    Crítica | God Help The Girl

    God-Help-the-Girl

    Baseado num álbum produzido, escrito e composto por Stuart Murdoch (Belle e Sebastian) em junho de 2009, God Help the Girl é um daqueles musicais que trazem um escopo sonoro próprio, detalhe que ajuda significativamente em criar uma identidade para a produção. O filme não tem o esmero na coreografia que os clássicos de Hollywood têm, nem é adaptação de peça da Broadway, mas encontra seu caminho engatinhando entre elementos que compõem essas dois aspectos. O Carisma e o visual de Emily Browing nas performances dão o clima IndiePop da produção.

    Produzido via crowdfunding no Kickstarter e lançado em 2014, o filme inicia com uma conversa entre duas pessoas sobre música. Você não sabe exatamente do que se trata, até que o escuro desaparece e percebemos que é um rádio tocando, daí sim esse musical abre com uma bela música interpretada pela belíssima Eve (Emily Browing) que parece estar fugindo de algum lugar à surdina. Ela encontra James (Olly Alexander), um músico amador que dá abrigo para a garota que passa mal durante um show em Glasgow. Mais tarde esses dois se juntam a Cassie (Hannah Murray), para quem James dá aulas de música e formam uma banda, ou algo que você pode relacionar com uma banda.

    As primeiras músicas dizem mais sobre o progresso da história do que os diálogos expositores entre os personagens. Podemos sentir que até certo ponto cada uma delas é maior que a outra, como se estivéssemos ouvindo uma única corda e acrescentando as outras progressivamente. Elas falam unicamente de Eve, que a todo o momento é o centro da história. Existe uma fragilidade na personagem que vemos em maior ênfase em uma das cenas, porém a escalação de Browing para o papel deixa essa característica muito mais acentuada nos olhares, gestos e na maneira que algumas vezes ela é sempre filmada acentuando a sua altura, que é visivelmente menor em relação a qualquer outro ator no filme. Ela em si é tão fantástica que não parece existir. Convida-se a vida de James e Cassie como um catalizador de um desejo comum entre eles; fazer música. E é nessa tomada que vemos como as faixas e a forma como as cenas musicais são dirigidas passam a crescer, tudo ali é surreal mesmo com o pé no chão. Os instrumentos á mais aparecem do nada e os cortes ficam mais livres para dar espaço para coreografias simples e divertidas entre eles.

    A história proposta pela produção é muito simples, brinca com alguns clichês românticos entre as cenas, além de envolvê-la em algo juvenil pela ausência de figuras de autoridade ou paternas para guiar os protagonistas. Eles mesmos fazem seu caminho e tomam decisões. Como um dos personagens mesmo diz o filme parece “ser algo bem pretensioso, mas um bom pretensioso”. Existe uma discussão ao final sobre o que é fazer algo simplesmente por diversão e o que acontece quando uma das pessoas acaba levando tudo a sério demais. Em parte ela sustenta o filme todo levando em consideração que o próprio Murdoch provavelmente não irá dirigir mais nada depois disso, fazendo God Help The Girl parecer um sonho especial:  doce, agradável, e que deixa sua trilha ecoar nos ouvidos.

    Texto de autoria de Halan Everson.

  • Crítica | Insurgente

    Crítica | Insurgente

    Divergente - Insurgente- poster

    Segunda parte da trilogia escrita por Veronica Roth, a sequência de Divergente, lançado há apenas um ano, chega aos cinemas revelando a urgência de produções-pipoca com bilheteria garantida, mesmo que uma trama sem fôlego seja um ponto crítico.

    Como resumo dos fatos anteriores, um vídeo institucional em que a líder, Jeanine Matthews (Katie Winslet), apresenta ao povo, pontua os preceitos básicos desta série distópica na qual a sociedade é divida em facções de acordo com os dominantes psicológicos de cada um: altruísmo (abnegação), amizade (generosidade), audácia (coragem), franqueza (sinceridade) e inteligência (erudição). Entre eles, há quem não se encaixe em nenhuma destas categorias: são os Divergentes, considerados párias por não se adequarem às divisões da sociedade, e por isso são retirados do sistema.

    A trajetória de Tris segue em Insurgente com maior pressão psicológica pelos fatos sucedidos anteriormente. A personagem compreende que representa uma exceção dentro de seu universo, mas não sabe como agir de fato para modificá-lo. Difícil não equipar esta heroína com a personagem central de Jogos Vorazes, Katniss Everdeen. Afinal, narrativas contemporâneas focadas em futuros distópicos com jovens como grandes salvadores têm sido uma tendência literária e, por consequência, cinematográfica. Katniss e Tris possuem personalidades distintas, mas a composição de Tris é feita de maneira menos intensa do que a da outra franquia, resultando em uma empatia proporcional ao carisma e urgência que a atriz Shailene Woodley trabalha em seu papel.

    Tris não soa como uma ameaça urgente ao sistema de governo como Katniss, bem como seu povo parece satisfeito com o sistema de facções. Sendo assim, uma eventual mudança parece seguir mais a vontade interior da garota e do grupo de Divergentes do que um aclame geral da população. Reconhecendo que a personagem central tem pouco carisma, Roth e, consequentemente, os roteiristas Brian Duffield, Akiva Goldsman e Mark Bomback desenvolvem uma intriga sobre um artefato antigo que traria uma mensagem dos fundadores. Porém, para abri-lo é necessário a presença de um divergente. É natural que a única pessoa capaz de abrir o dispositivo seja Tris. O elemento de predestinação é mais um argumento que prova a falta de força desta história que precisa de um incentivo extra para criar conflitos entre os supostos bandidos e mocinhos.

    Mesmo este conflito com uma possível mensagem reveladora é estranho, pois a princípio a garota deseja destruir o artefato e depois desvendá-lo, mesmo que para isso quase perca a vida. Além do argumento frágil, as cenas de ação são bem simples, sem nenhum bom aproveitamento do recurso da terceira dimensão, além dos óbvios e já intoleráveis ângulos de cena que explicitam a imersão com objetos indo de encontro a tela. Mesmo com uma boa verba para produção, nenhuma cena de ação se destaca, e a bonita e potencialmente interessante cena do pôster nem mesmo está presente, sendo uma provável boa cena cortada da produção.

    De qualquer maneira, a última parte está em fase de adaptação para os cinemas e, seguindo a tendência atual, será dividida em duas partes, exibidas uma a cada ano. Difícil saber se haverá tanta história necessária para a produção de mais dois filmes, visto que nesta segunda parte há um vazio que enfraquece ainda mais a trajetória da personagem principal e seu grupo divergente.

  • Crítica | Uma Longa Jornada

    Crítica | Uma Longa Jornada

    cartaz

    Um cowboy com flores nas mãos (filho de Clint Eastwood, dos faroestes brutos de Sérgio Leone). Mesmo no filme, todos debocham da suavidade de uma postura tão masculina devido a quebra de expectativa pelo buquê que carrega. Qual o destino do objeto, ninguém se pergunta ao longo da caminhada que, logo no início de Uma Longa Jornada resume o espírito do filme. E muito, tomando cuidado para ser tão fiel a obra quanto ao público, acostumado aos romances aguados e transgressores de um escritor mais adorado e famoso no cinema que John Green, de A Culpa é das Estrelas. Visões assexuadas, estilo Disney anos 50, e livres de quaisquer responsabilidade com a realidade que filmes como Superbad ou Juno possam carregar – ou não. Livros, filmes ou peças como Cinquenta Tons de Cinza, o suspense O Nevoeiro, ou esse, traduzido a partir do livro de Nicholas Sparks, é tudo uma questão de escolher o público e como defender esse público mostrando só o que já leram antes, esperando uma história que evoca a princesa e o príncipe em cada um.

    Todo o “mais” injetado para o livro fazer sentido no Cinema é audácia, é coragem de artista. Mas surpreendente, mesmo, é sentir quando o óbvio e o previsível conseguem ajudar ao invés de atrapalhar uma história semelhante a Romeu e Julieta, ainda que autossuficiente e bem realizada. Sparks é o tipo de escritor que gosta (ou apela a) narrativa epistolar, ou seja, uma trama costurada por cartas, de relato em relato. Aqui não é diferente, remetendo ao passado e a possibilidades do tempo presente, com reviravoltas e camadas sensíveis que não desviam nosso foco do casal principal (tipo o de Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, duas pelúcias). Só que o filme perde a chance de discutir e apenas sugere, pincelando de leve, leve até demais, os valores de um relacionamento ontem e hoje, sem reflexão a partir disso – o que tampouco me parece seguro afirmar que o livro provoque, aliás. Revisões podem valer a pena!

    David O. Russell é um bobo. O cineasta quer ser Martin Scorsese esquecendo de ser ele mesmo, todo mundo sabe, só que em O Lado Bom da Vida, também oriundo dos livros e alfarrábios, registra timidamente o que Uma Longa Jornada tenta, e quase consegue: A dificuldade de expressar os sentimentos num mundo muito ocupado pra assuntos sentimentais. Se no filme de 2012 isso se dá devido ao esforço de vencer uma competição de dança, e a intensidade da vida dos personagens, aqui é o desafio de convencer que uma relação inocente, em tempos líquidos e instáveis, de acordo com Zygmunt Bauman e outros pensadores, pode dar certo. Será? Que o filme se orgulha de ser inofensivo é evidente, e é justamente nisso, nos sorrisos iluminados pela fogueira na floresta num primeiro encontro, que a história tenta provar que vale a pena amar. Lindo, né? Que garota iria pra uma floresta a noite num primeiro encontro? É o caráter do nosso cowboy que explica o porquê. Mais lindo ainda, não? (Suspiros, por favor)

    E nada de trilha-sonora para pintar o quadro; aqui, a música é só a moldura – complemento. No fim, o filme só e orgulhosamente nos quer passar a sensação do primeiro beijo, aquele que a gente não esquece depois de mil lábios contra os nossos. Como se não bastasse, durante esse frescor, quer contar uma história da forma mais digna possível sem ofender quem já possui uma inteligência e sagacidade emocional mais refinada (Se 2 horas são necessárias pra isso, já é outra história). Uma Longa Jornada não para saber se o casal vai acabar junto, mas o que vai ocorrer antes de acabarem juntos, o que impede que nosso interesse pela história seja linear e não sofra digressões.

    Um caminho extenso para quando só nos bastava sentar na praia e imaginar um futuro lenitivo aos males do mundo, para também nos orgulharmos de fotografar o que nos conduz ao bem-estar e descrever os momentos no diário, ou postá-los no Instagram, ostentando em ambos os casos nossa capacidade de amar e sermos amados. Um dos filmes Beatles de 2015, de graça inesperada.

  • Crítica | Meu Passado Me Condena: O Filme

    Crítica | Meu Passado Me Condena: O Filme

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    Começando pelo processo civil de casamento, entre as personagens Fábio e Miá, executados por Fábio Porchat e Miá Mello, Meu Passado Me Condena: O Filme emula as mesmíssimas características de outros filmes de derivados da programação da Multishow, como Cilada de Bruno Mazzeo, ao usar os nomes dos interpretes nas personagens e claro, se valendo também da mesma miscelânea de piadas  forçadas e reprisadas, provenientes da versão televisiva.

    A direção de Julia Rezende se vê diferenciada da abordagem televisiva, no tocante a fotografia e direção de arte, levemente superiores a maioria dos filmes da Globo Filmes. Ao contrário do descompromissado seriado, o background do casal é mostrado em intimidade, com revelações até sobre as profissões de ambos. O roteiro de Porchat, Tati Bernardi e Leonardo Muniz é levemente mais inspirado do que os produtos anteriores, se passando antes do visto na programação do canal, ainda que haja claras contradições entre um e outro, inclusive com reciclagem dos personagens de Suzana (Inez Viana) e Wilson (Marcelo Valle), que deixam de lado a funcionalidade na pensão da serra para exercer seus papéis no cruzeiro, que obviamente inclui uma amizade cheia de alto e baixos entre os quatro caracteres.

    O script recorre a piadas sobre trocas repetitivas de roupas, da parte da esposa e claro, a exploração do passado da mulher, repleto de surpresas por conta do total desconhecimento do casal recém enlaçado, com a presença do pomposo ex-namorado de Miá, Beto Assunção(Alejandro Claveaux), que concentra na sua atual mulher, Laura (Juliana Didone) um oásis de desejo e luxúria, que relembra o passado de Fábio também.

    Mesmo com os esforços de Rezende, toda a trama e abordagem faz lembrar os filmes de Roberto Santucci e demais outros diretores genéricos do estúdio. O romance bobo ao menos tem em sua base uma química que já se provou mais do que eficaz, e que sobrevive mesmo com as tiradas repetitivas e com os clichês de comédias de erros, exibindo uma interação que não abraça somente a docilidade típica dos romances engraçadinhos estadunidenses.

    Meu Passado Me Condena: O Filme é uma viagem a intimidade de um casal comum, sem nada de absolutamente novo, mas que consegue não reunir todos os terríveis defeitos dos últimos filmes humorísticos malfadados de Fábio Porchat, ainda que o final reúna mais uma quantidade grande de sequências bregas e soluções fáceis, artifícios típicos de filmes feitos a toque de caixa, para suprir a demanda de um público fútil e idiotizado.

  • Crítica | Acordes do Coração

    Crítica | Acordes do Coração

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    Kandinsky disse que o Artista que não exerce sua arte é um escravo preguiçoso. Repetir mecanicamente algo até esquecer que já está fazendo há horas é a vida de qualquer pessoa dedicada a seja lá o que for É essa dedicação que vemos desde a escolha do pequeno Paul Boray (John Garfield) ao violino ao invés de um taco de baseball nos primeiros minutos de Humoresque (Acordes do Coração, no Brasil). A peça de Antonín Dvořák dá título ao filme, dirigido por Jean Negulesco, e é o primeiro nome que me vem à lembrança quando penso em um romance clássico de Hollywood. Não só Joan Crawford e John Garfield estão em performances memoráveis, mas as marcantes passagens musicais conduzidas pela orquestra nem sequer são percebidas como um recurso individual: ela é uma personagem viva e forte que dá o tom e vida às relações humanas desse filme, percorrendo trechos de Tristão e Isolda de Wagner, CarmenTchaikovsky, entre outras obras interpretadas por Isaac Stern e conduzidas e compostas por Franz Waxman.

    Trata-se de uma história muito simples; o violinista Paul Boray, com o desejo de ajudar sua família, conhece a rica patrona das artes Helen Wright (Crawford), que lhe apresenta as pessoas certas e consegue a oportunidade que Paul precisava para provar ser um grande violinista. No meio de tantas coisas boas, o músico acaba se apaixonando pela forte personalidade e beleza de Helen, que é casada.

    Com diálogos afiados de ironia e cinismo, é difícil perceber que suas duas horas de duração passam como um sopro. O diretor pouco deixa a câmera passear entre as cenas ou se estender em longas tomadas em silêncio. Na verdade, Humoresque se atenta em estar dinâmico a todo momento fazendo uso de fade ins e fade outs para manter as passagens de tempo presentes na história, mas não lhes tirando o foco da mesma. Ele igualmente realça o dinamismo das cenas com certo preciosismo nas escolhas dos diálogos e gestos que cada um dos personagens mostram em suas interpretações.

    O trabalho de Oscar Levant como Sid, o pianista falastrão que possui as melhores sacadas do filme, e de todo o elenco de apoio só acrescenta na qualidade dos diálogos e na imersão que o filme produz. Paul Cavanagh, o marido de Helen, aparece em apenas três diálogos, e você compreende perfeitamente a condição de pessoa já amadurecida e sem rumo que ele transparece. O filme é todo fotografado desde seu início com certa sobriedade, que me lembra do cinema noir, principalmente pelos diálogos. Mas é na escuridão da maioria dos cenários que é possível absorver esse tipo de atmosfera, principalmente nas cenas em bares.

    Mas apesar de tudo isso, a tragédia é o maior tema desse romance impossível. Na verdade trata-se de um triângulo amoroso entre um homem, seu violino e uma mulher… e o violino vence. Artistas acabam dedicando suas vidas a fazer algo muito maior que o próprio viver, pelo simples desejo de fazer. Isso torna todas as coisas horrivelmente simples, com causa e efeito. E Joan Crawford é eternamente marcada como o mais doce sonho intocável que se esvai aos poucos, deixando suas pegadas na história do cinema com essa melodia em preto e branco.

    É certamente atemporal.

    Texto de autoria de Halan Everson.

  • Crítica | Phoenix

    Crítica | Phoenix

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    Nina Hoss dá vida à bela Nelly Lenz, cujas feições singelas foram “modificadas” quando encarcerada no campo de concentração nazista na Segunda Guerra Mundial. As ataduras que cobrem seu rosto escondem cicatrizes que fizeram de si um monstro sob a superfície da pele, com curativos que escondem suas dores, tanto no ego quanto na carne. Em Phoenix, filme de Christian Petzold, a melancolia é valorizada como um sentimento nobre, fruto do torpor das vítimas do Holocausto.

    A retirada dos curativos revela uma mulher desconfigurada, com medo e receio de encarar de frente o mundo, não encontrando sequer a própria identidade ao se olhar no espelho. O sentimento tem a função de resumir os malefícios que o descaso dos arianos causou no povo judeu, quando o deboche e a redução, tanto da população quanto da religião em si, eram aspectos absolutamente subalternos diante do genocídio e da limpeza étnica promovidos. Os acontecimentos que não traziam a morte não deixavam de ser tão assustadores quanto os que puseram fim em tantas vidas, ao contrário, fortaleciam a sensação de que os sobreviventes eram na realidade mortos viventes.

    A readaptação de Lenz à vida normal é feita de modo bem vagaroso, assim como seu retorno ao convívio com os que lhe eram caros no passado. O reencontro da moça com seu antigo marido, Johannes ‘Johnny” (Ronald Zehrfeld), é feito de um modo bastante emocional, agravado quando ele não a reconhece graças aos ferimentos no rosto de sua cônjuge. Aos poucos, ambos retomam uma relação, mas de modo bastante diferente do que ela esperava, reconstruindo todo o desconcertante casamento apesar de todo o teatro arquitetado pelo par masculino.

    A discussão presente no roteiro de Petzold aborda o horror e barbárie dos nazistas, mas em momento algum dá valor ou voz aos opressores, pelo contrário: a jornada de edificação é exclusiva dos personagens que tiveram seus direitos e liberdades cerceados. A evolução de caráter e de carisma visa reconstruir uma vida digna, como uma reforma faz em reerguer uma casa. O espectro de restabelecimento sentimental e moral é visto pelos que estão em volta como algo negativo, fazendo um eco incrivelmente atual com a dificuldade que minorias secularmente segregadas têm de fazer valer seus direitos, excluídas às vezes até por seus semelhantes.

    Johannes e Lenz “sofrem” uma tentativa de reconciliação, acompanhados de alguns poucos  chegados, que presentes estão para assistir ao reenlace dos dois, mas que pragmaticamente nada têm a ver com os dramas vividos tanto pelo casal quanto pelas partes em separado. São apenas espectadores que se munem de uma hipocrisia atroz, a qual em suma revela a fraqueza de sua índole. O canto de Lenz libera a aflição de sua alma, e incrivelmente só encontra reverberação no rosto do “marido”, com um enfoque especial da câmera em cada expressão facial deste, embasbacado por ter percebido a verdade tão tardiamente.

    O resultado final de Phoenix é um retrato sensível da parte de um realizador alemão, que assume para si a culpa pelos atentados aos inocentes nos anos 1930 e 1940, tomando o pecado nacional como se fosse exclusivamente seu. Algo semelhante ao sacrifício na crucificação de Jesus Cristo, perdoando os descendentes da antiga Alemanha nazista. O tom poético do filme presenteia a plateia, mas faz ainda mais sentido àqueles que, ou sofreram as agruras do Holocausto, ou guardam em seu sangue a marca da barbárie imposta aos povos de origem semita.

  • Crítica | Minions

    Crítica | Minions

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    Meu Malvado Favorito foi uma grande surpresa de público, e provavelmente nem os mais otimistas acionistas da Illumination Entertaiment — produtora que, além da franquia composta pelos Minions e o malvado Gru (Steve Carrel), possui apenas filmes de público médio-baixo em seu currículo — imaginariam. Fora o sucesso de público, que alcançou seu ápice com Meu Malvado Favorito 2 e seus retumbantes US$ 970 milhões alcançados mundialmente, e com a memeficação dos Minions, realizar uma prequel que explica como Gru encontrou seus capangas favoritos era questão de tempo.

    Apesar das animações de gosto duvidoso, o uso dos bichinho sem vocabulário é um acerto comercial de alto valor por parte do estúdio, pois trata-se de uma eficiente forma de comunicar-se com seu principal público: crianças pequenas. É obviamente um produto muito diferente de sua concorrente atual Divertida Mente, filme da Pixar com ambições muito mais elegantes e ousadas, e por isso mais restrita em público. Se a animação da Pixar foi capaz de fazer crianças chorarem com o desaparecimento de um querido personagem, Minions sequer arranha emoções muito profundas, ou mesmo uma profunda alegria.

    A aventura sobre a busca de um vilão mestre ao qual possam servir culmina no embate dos pequenos contra a vilã Scarlet (Sandra Bullock na versão original, e Adriana Esteves na dublagem nacional) e seu marido Herbert (John Hamm na original, e Vladimir Brichta na versão nacional), e busca desde o início incendiar-se feito rastilho, usando o característico déficit de atenção dos Minions para garantir que a cada período específico de tempo o cenário mude para um próximo e com ação ainda mais estridente. Esta estratégia é comum em animações que tentam seguir o ritmo de desatenção das crianças e falar a linguagem de seus espectadores, hoje acostumados com emojis e memes, seguindo para uma comunicação mais próxima do grunhido.

    Longe de lembrar a qualidade do humor físico de Looney Tunes e seus pares, a característica periódica dos acontecimentos pode afetar a a simpatia dos mais atentos, já que garante a certeza e previsibilidade de quase tudo o que se passa em tela, enquanto as piadas de duplo sentido, que têm os adultos como alvo, soam apenas enfadonhas e deslocadas.

    Assim, o ritmo não é frenético como se espera, e em comparação com a excelente trilha sonora — que passa por The Police e se concentra em The Beatles para ornar com o cenário —, falta harmonia entre as diversas notas que o filme gostaria de alcançar.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | Samba

    Crítica | Samba

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    O segundo filme da parceria entre Omar Sy e os diretores Eric ToledanoOlivier Nakache, do drama Intocáveis, e que foi exibido durante o festival de Toronto de 2014, não poderia ter saído em melhor sincronia com a discussão de seu pano de fundo: imigração. Recentemente, autoridades europeias foram questionadas em relação ao tratamento dado a imigrantes, principalmente aos refugiados de guerra, sendo essas indagações envoltas em polêmicas que beiram o higienismo cultural por parte de autoridades.

    Dentre os países com histórico de lutas étnicas, a França se destaca por ser lar de diversos grupos africanos, em especial os argelinos, por depender destes grupos para execução de trabalhos de menor reconhecimento e, na medida dessa dependência, desprezar essas pessoas. País onde imigrantes são renegados a guetos, sem possibilidade de constituir cidadania, e sofrendo preconceitos diversos com índices de desemprego de jovens na faixa dos 40%, a terra do Iluminismo e lugar que outrora gritou “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” lança um olhar blasé sobre os conflitos que ocorrem nestes bairros argelinos — com uma última grande onda de revoltas ocorrida em 2007. Ainda hoje, movimentos da direita conservadora francesa, liderada pelo ex-presidente Nicolas Sarkozy, argumentam sobre a necessidade de regulação no livre trânsito pela União Europeia, e atribuem à imigração seus déficits e crises financeiras, atitudes as quais instigam a revolta daqueles que, apesar de franceses, carregam em sua ascendência o estigma do preconceito.

    O filme inicia-se com a câmera passeando em plano sequência pelas áreas de um bonito salão de festas, depois o restaurante, a cozinha, o lavatório, e mostrando como as oportunidades aos imigrantes cresce em proporção direta ao nível de afastamento do público. Nesta cena, somos apresentados ao lavador de pratos Samba (Omar Sy). Como a dança, um imigrante senegalês que se encontra já há 10 anos na França, e nestes 10 anos pôde ver suas oportunidades de crescimento sendo retiradas uma a uma. Pessoas invisíveis vão se criando, de modo a tornarem-se irrelevantes. Quando em situação ilegal, devem evitar trens e locais de grande circulação de pessoas para fugir de prováveis batidas policiais. Seus traços étnicos são vistos com maus olhos, inclusive entre seus pares, e o conselho básico é tentar renegar suas origens até perder-se em uma caricatura europeia.

    Neste contexto, devido um problema de documentação, Samba é detido e aguarda julgamento sobre sua situação no país, tendo como único auxílio a ajuda de voluntárias de uma ONG de atendimentos a imigrantes, entre elas Alice (Charlotte Gainsbourg, de Ninfomaníaca) em seu primeiro dia de atuação. Para ela, o conselho dado é não se envolver, porém a atração imediata entre Alice e Samba origina o romance que dá o tom a mudanças de perspectiva dos personagens. A relação entre o casal protagonista é delicada, pois Alice atua sob licença de seu antigo emprego, no qual sofreu uma espécie de burn out em uma crise nervosa, e desta forma tornou-se incapaz de sentir. Já Samba desde sempre percebeu que o envolvimento implica em perdas, com amigos e romances perdendo-se entre deportações e prisões.

    O romance é construído sutilmente, de modo a torná-lo consequência da quebra de expectativa que a vida provê a esses dois personagens, e de modo a considerar uma interdependência emocional entre ambos. Esta dependência é construída por meio de um carinho desajeitado, o que se espera de pessoas que em situações habituais de vida nunca se encontrariam. Charlotte é uma escolha excelente para o papel, pois é capaz de apresentar uma cotidiana meiguice a sua personagem, exaltada principalmente pela atenção que a câmera dá ao seu olhar. É possível perceber sua quebra interna a partir dos gestos, hoje desajustados, e da indicação de uma pressão interna insustentável em seu semblante de decepção diante de qualquer interação. Evoluindo ao longo da projeção, Alice torna-se uma pessoa leve e capaz de rir do mundo e de si mesma, em especial quando em contato com Samba, que em sua honestidade e simplicidade reluta em compreender os rumos desse romance.

    Com uma edição ágil, excelente elenco e bons toques de humor, a imigração e a solidão da vida são tratados de maneira leve, sem perder de vista a seriedade de seus temas centrais, usando o casal protagonista para traduzir a confusa e profunda relação entre seus representantes sociais. O Brasil encontra-se também representado, mesmo que de maneira indireta, no papel de Wilson (Tahar Rahim). Sedutor e alegre, torna-se amigo de Samba na busca por um emprego digno, incorporando o estereótipo do bom brasileiro em seu trato com as pessoas. É interessante este depoimento espontâneo sobre a nacionalidade brasileira na França, considerada como um lubrificante social em uma atmosfera tão segregadora. O país é também homenageado ao bom som de Palco de Gilberto Gil, e pela bem pontuada Take it Easy, My Brother Charles, de Jorge Ben.

    É inevitável pensar como a criação de fronteiras, estas linhas imaginárias visíveis apenas em papel, torna acidentes geográficos tão maiores do que relações humanas, e conduz pessoas a condições determinísticas de subclasse mantendo-se pela esperança. Esperança, cantada por Jorge na visão que o primeiro homem pisando na lua se sentiu com direitos, princípios e dignidade. Exatamente como deveria ser.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | Neruda: Fugitivo

    Crítica | Neruda: Fugitivo

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    Manuel Basoalto dá luz à cinebiografia do ativista Pablo Neruda, indo desde a Estocolmo, onde o escritor recebeu o Nobel de Literatura, passando pelos passos do chileno nos andes latino-americanos. Neruda: Fugitivo começa trôpego, com uma narração que resume os ideais e atitudes do personagem-título, mas que também emburrecem o roteiro, igualando-o a uma fotografia do filme, que por sua vez se assemelha a produtos da televisão.

    Os fotogramas seguem o sensacionalismo tipicamente folhetinesco, especialmente em relação à tomada de poder de Gonzalez Videla. Sempre que José Secall (intérprete do protagonista) toma a palavra, uma cafona trilha edificante toma a fita para fortificar a ideia de paladino e justiceiro. O que deveria ser um sóbrio discurso do político acaba por se tornar uma risível abordagem parcial, que serve mais para deboche, por parte dos que secularmente seriam opositores de Neruda, do que como glorificação, a qual é toscamente almejada por Basoalto.

    As personagens são maniqueístas e passam longe de ter duplicidade, bidimensionalidade ou com nuances em suas falas. O detalhamento da caçada que Neruda sofre, depois de ter seus direitos como senador suspensos, é consagrado por uma obviedade não condizente com a complexidade da história original. O maior equívoco do argumento final é tratar os escritos de Neruda sob um viés de autoajuda, de simples edificação através de palavras e conceitos fáceis. Mesmo a melancolia do autor é mal apontada, pasteurizada para alcançar um público que naturalmente seria pouco afeito ao seu pensamento.

    O complexo e complicado cenário geopolítico da Guerra Fria é reduzido a uma luta do bem contra o mal. A utilização desta tônica revela um anacronismo por parte dos realizadores, e significa quase uma troca de lado, dada a complexidade tanto da obra quando da luta do personagem principal, em nada afeito a divagações moralistas e simplistas.

    As melhores cenas, as mais sensíveis e tocantes, são as que não se utilizam de sons, remetendo à infância e à juventude de Pablo. Tempos mais simples, mais fáceis de registrar visualmente, e que, por isso, não irritam tanto quanto os momentos que abordam a política. Possivelmente, ao público que não conhece a obra de Pablo Neruda, o filme fará uma espécie de desserviço, já que transforma toda a jornada do poeta em uma trajetória enfadonha e modorrenta, sem direito sequer a momentos leves de excitação.

  • Crítica | Renascida do Inferno

    Crítica | Renascida do Inferno

    Renascida do Inferno - Poster

    Raras são as produções de terror que não somente fazem uso dos clichês naturais de um repertório como são capazes de potencializar seu fracasso em uma mistura de argumentos diferentes entre si mal vendidos pelo material de divulgação.

    Em Renascida do Inferno, o roteiro de Luke Dawson (Imagens do Além) e Jeremy Slater (Quarteto Fantástico – 2015) parece unir dois argumentos distintos em uma mesma narrativa. A divulgação promocional vendeu a produção como um terror de possessão, a qual uma entidade, após a morte acidental da pesquisadora Zoe  (Olivia Wilde, atriz de maior calibre da produção) e uma fórmula experimental que a traz de volta a vida, de alguma maneira, modifica sua personalidade. Na realidade, porém, a história justifica as transformações do soro por uma reconstrução cerebral que ampliaria a percepção do paciente e, com isso, lhe daria poderes sobrenaturais como telecinésia e outras capacidades limitadas ao humano comum.

    O Lázaro do título original, refere-se ao personagem bíblico ressuscitado por Jesus Cristo. Além da personagem central católica e de um pesadelo recorrente com um incêndio devido a um trauma da infância, não há nenhuma outra inferência que permitira o inferno no título brasileiro, se não a demonstração de como a produção foi vendida equivocadamente para distribuição mundial.

    O cruzamento de signos sem significado tentam explorar vertentes distintas do terror sem nenhuma eficiência. Não há nenhuma possessão na trama, mas muitas cenas são compostas a semelhança de outras possessões vistas no cinema: olhos que se tornam enegrecidos, modulações de voz, contorções comporais. Efeitos que não produzem sentido direto com o que a própria narrativa postulou anteriormente. Como se ao unificar dois conceitos dispares o elemento amedrontador seria exponencialmente ampliado. Porém, falha em dobro.

    Mais assustador que a história em si é observarmos como um argumento mal delineado conseguiu se tornar um lançamento cinematográfico. Mesmo que o terror seja a manipulação direta de uma emoção primitiva, a execução destes sustos devem ser apoiadas em uma trama, mesmo que mínima. Não só a qualidade das produções contemporâneas dá margem para reflexão sobre o mercado atual como a qualidade de seus roteiristas, afinal, como Slater foi convocado para colaborar no roteiro do novo Quarteto Fantástico se parece desconhecer propriedade básicas e fundamentais para o desenvolvido de uma história? Nem mesmo a duração de 1h23 faz esta experiência mais agradável.

  • Crítica | Meu Verão na Provença

    Crítica | Meu Verão na Provença

    pôster

    Nada é feito apenas de boas intenções. Ao término de Meu Verão na Provença, nada ainda se torna claro, também. Uma família nos é apresentada como desculpa a um embate de gerações que não acontece pra valer, onde, nesse conflito, surgem emoções e reflexos de um passado familiar resultado de outros conflitos de outrora, tampouco apresentados, mas miseravelmente debatidos entre os personagens, figuras mais ralas que uma colher. Por já ter visto esse mesmo filme cem vezes, e creio que o leitor também, inclusive, no meu ponto de vista, Era Uma Vez em Tóquio de Ozu continua como a melhor versão desses dramas hereditários, posto que torna dispensável qualquer outra tentativa que não venha a nutrir algo de novo, numa mesa onde avô e netos, pai e mãe, irmão e irmã, venham a esquentar os nervos à flor da pele sobre “erros do passado”. Filmes que não carregam uma nova proposta a uma ideia já tão reciclada, se ao menos pudessem sair do roteiro que os origina para serem esquecidos, como certamente será a obra em questão, já bastaria.

    Mas sacanagem é definição inegável por chamar o pobre Jean Reno, ator de primeira linha, veterano consagrado, para (salvar) dividir o mico e fazer as pessoas lembrarem do filme por estar no seu currículo. Afinal, por qual outra razão seria? Traduzir emoções através da trilha sonora, com músicas de Cat Power e Bob Dylan, e não pela missão de buscar envolver o público com a história, não apenas é subestimar o potencial da mesma, mas é a mensagem de  pleonasmo de um diretor tão 100% inútil quanto seu filme é 100% emocional e deficiente de um Kiarostami para torná-lo uma experiência inesquecível, termo que todo filme, sétima-arte, merece impôr: Inesquecível, que aqui encontra seu oposto. Um feel-good movie pra causar náuseas nos parentes do sofá, exceto naquela tia que chorou com Benjamin Button e debulhou o amazonas com Toy Story 3. Essa já encomendou o blu-ray! Tem gosto pra tudo.

    Uma terceira fonte de incômodo acerca de Provença, embrião de Cinema que repousa graça e poesia de bar na atuação de Reno (e na fotografia ampla, estilo Malick, cheia de panorâmicas a céu aberto), irrompe feito um soco de como a leveza emocional de uma história de redenção familiar, basicamente afirmando, não procura jamais cativar por buscar uma profundidade na trama, e sim por sua aparência, como se fosse o bastante ter duas camadas de interpretação aparente. Então tá, né? Enquanto isso, Uma História Real, o filme mais doce de David Lynch (acreditem, o mestre do bizarro sabe ser suave), parece ser antídoto a um filme que orgulhosamente extrai sua essência e alma apenas do visual, sendo tal preferência sempre desmistificada a cada vez que olhamos o relógio para a sessão terminar, se apoia nas músicas que embalam suas cenas (A caminhada do avô e neto sob o sol, num campo francês de oliveiras vale a projeção), e ainda por cima, mancha a carreira de Reno. A balança da crítica pende ao lado negro da opinião, quando revolta e faz pensar que, não, um filme não sobrevive só a base de uma boa intenção.