Categoria: Críticas

  • Crítica | Sem Direito a Resgate

    Crítica | Sem Direito a Resgate

    Sem Direito 1

    Sem espaços para introduções maiores – que não a ação contínua – Sem Direito a Resgate emula as características de seu título original, Life of Crime, ao exibir um panorama cômico da vida bandida na história norte-americana, indo desde as ações de meros batedores de carteira até as fraudes de grande porte, cujas somas acumulam muitos zeros à direita.

    O início em forma de prólogo mostra dois vigaristas, Louis Gara (John Hawkes) e Ordell Robbie (Yasiin Bey) aplicando pequenos golpes em pessoas que se julgam mais espertas do que são. O método que utilizam é bastante modesto, sem qualquer sofisticação ou prévia. Nas cenas subsequentes, uma esposa submissa, vivida por Jennifer Aniston, sofre as agruras de viver com um esposo turrão. Margaret Dawson não faz ideia da posição privilegiada que ocupa, já que não tem qualquer ingerência nos negócios de seu marido, Frank (Tim Robbins), que secretamente é o cabeça de um negócio de desvio de dinheiro para contas bancárias clandestinas. O destino dos dois núcleos se cruza quando Ordell pensa em raptar a dona de casa desconsolada, para tentar conseguir um resgate.

    Maior do que qualquer possibilidade de isolamento à força, típica de ações em cativeiro, é o vazio existencial em que se encontra Margaret, se sentindo sempre solitária pela atenção que jamais chega por parte de seu cônjuge. O drama da personagem é comum a de muitas mulheres da atualidade e da época retratada no filme.

    O trabalho de reconstituição de época é bastante esmerado: nota-se não só nos belos cenários e figurinos, como também nos modos e no jeito de andar de cada um dos personagens. Tudo foi milimetricamente calculado para apresentar um efeito paródico, condizente com o saudosismo mas sem quebrar a empatia do espectador com os pequenos dramas diários do roteiro, fazendo de cada uma das gags cômicas engraçadas de fato, uma vez que o destino dos personagens é importante para o seu público.

    As piadas do filme ocorrem “apesar” da narrativa linear, com pouco humor nonsense, mas ainda assim de bom gosto, especialmente por explorar a hipocrisia presente nas relações do americano médio de uma maneira comedida, destacando o egoísmo e individualidade como principais fatores para o distanciamento sentimental entre os iguais.

    Há uma série de eventos entrópicos, que brincam com questões como infidelidade conjugal, suborno, tentativas de homicídios, claro, abordadas por uma ótica humorística, sem se levar a sério. A trilha sonora aumenta ainda mais o clima de deboche ao apresentar músicas românticas nos momentos onde a frieza dos crimes deveria prevalecer.

    As reviravoltas do roteiro, típicas de uma comédia de erros, inverte alguns dos arquétipos apresentados no início do filme, maximizando a sensação de que a trama foi construída a partir de improvisos ou de uma roleta russa de eventos loucos. Em certos momentos, a obra do diretor Daniel Schechter faz lembrar os primeiros filmes de Guy Ritchie, sem a violência gráfica de Snatch – Porcos e Diamantes e Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes.

    Outra referência notória caracteriza-se pelo formato narrativo de Fargo, especialmente nos pontos onde há personagens amorais, cujo comportamento errático faz com que seja impossível torcer para cada um deles.  A volúpia pelo dinheiro fácil transforma as escolhas dos personagens, levados a uma vida marginal, subvertendo – outra vez – o estigma de sequestro trocando-se a vítima mas permanecendo o mesmo fornecedor do resgate. Exceto as extensivas repetições, Sem Direito a Resgate é uma boa comédia, mas de fácil esquecimento, não sendo mais lembrada cinco minutos após o encerramento.

     

  • Crítica | Sniper Americano

    Crítica | Sniper Americano

    Sniper Americano - poster internacional

    O chamado sonoro, anunciando a ação antes mesmo de qualquer personagem aparecer na tela, guarda as intenções de seu diretor em reprisar um tema que para ele é caro. Sem filmar dramas relacionados a conflitos armamentistas desde O Destemido Senhor da Guerra, Clint Eastwood apresenta uma nova versão da guerra ao terror – fazendo às vezes de Kathryn Bigelow – em Sniper Americano, utilizando uma figura masculina como ponto central de sua trama, diferente do que ocorreu com o recente A Hora Mais Escura.

    Chris Kyle, vivido por Bradley Cooper, representa um soldado fiel aos preceitos de sua pátria e à bandeira das forças armadas. Atrás da compleição resoluta, esconde-se uma psiquê frágil de um homem que se tornou bruto pela rígida criação conservadora e religiosa de seus pais. Desde cedo, o personagem é doutrinado a pensar que o mundo é habitado por criaturas maldosas. Na infância, os avatares desta perversidade eram prioritariamente os bullyers, às vezes alcunhados de “lobos”, revelando uma concepção baseada em um engodo que escondia o prejuízo que a superproteção do pai tinha pelo garoto.

    A personalidade de Kyle é baseada na fragilidade de espírito, que causa nele dificuldades de expressar seus sentimentos. O modo econômico com que Clint filma tais factoides talvez faça o analista desatento não perceber que o recurso não é inferido por pobreza de narrativa, mas sim por apego ao material original,  o livro Sniper Americano: O Atirador Mais Letal da História dos EUA, autobiografia que baseia a obra. A narrativa acompanha o protagonista enfatizando a simplicidade de espírito de sua personagem, emulando a frugalidade de sua alma.

    Os cortes rápidos, variando entre os dias que Chris passa nos alojamentos e as lembranças que tem com sua amada, Taya (Sienna Miller), fazem lembrar os melhores momentos de Billy Wilder. No desértico campo de batalha, ou nas estalagens verdejantes onde o treinamento ocorre, Chris recorda-se das doces memórias, daquilo que poderia motivá-lo a voltar vivo, além do patriotismo exacerbado e o medo fomentado pelo modo de governo do Partido Republicano diante das tragédias de setembro de 2001, artimanha essa que justiçaria qualquer barbarismo em terras estrangeiras, validando o revide àqueles que impingiram o mal à nação, independentemente de serem alvos fracos na visão dos machistas e xenófobos que inspiram e delegam ordem aos alistados.

    O decorrer das operações revela uma confusão visual causada pela caça aos inimigos islâmicos, visualmente agravada pelo efeito do breu da noite, e emocionalmente piorada pela discussão moral a respeito dos vitimados pelas ações dos fuzileiros. Apesar de algumas (raras) exceções, a maior parte do modus operandi militar é registrado de modo contemplativo, como se direcionado a um espectador desconfiado.

    A situação emocional se complica para Chris, que muito antes do desfecho já é considerado um herói de guerra, idolatrado por alguns veteranos, cujas vidas foram radicalmente modificadas pelo tempo em que permaneceram em combate. Ser agraciado por estes se torna um incômodo visível, ampliado pela forçada ausência em seu recentemente formado núcleo familiar. Assistir de longe ao crescimento dos filhos faz com que ele discuta internamente a validade de seu modo de vida.

    É curioso que um filão antes muitíssimo utilizado pela dupla Menahem Golan e Yoram Globus e sua Cannon Films esteja atualmente recebendo tanta atenção por parte do cinema de alto orçamento americano, quase sempre com um caráter revisionista, de forte crítica ao expansionismo imperial imposto pelos Estados Unidos nos últimos anos. Talvez a questão a ser mais discutida é o alvo desse tipo de reprimenda, já que Comando Delta, Desejo de Matar e Invasão U.S.A são filmes feitos quase que exclusivamente para transferir o ódio, antes dados aos nazistas e comunistas, para os islâmicos e árabes, filhos de Ismael, portanto “usurpadores da promessa a Abraão”. Proveitoso seria se os filmes norte-americanos refletissem sobre isto, ao menos como mea culpa.

    A filmografia de Eastwood visa discutir lados diametralmente opostos do belicismo, a exemplo de A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima. Em Sniper Americano, o diretor utiliza o símbolo da caveira do herói da Marvel, o Justiceiro (Punisher, no original), personagem cujo passado inclui um trauma na Guerra do Vietnã, com pecados morais bastante semelhantes aos de Chris, ainda que a abordagem que Cooper apresenta em seu papel possua mais nuances, mais detalhes e mais humanidade, muito bem mostrados no quarto final do filme.

    Apesar do exagerado ensejo presente no meio da fita, visando enfatizar os espectros familiares do biografado, é o minimalismo do realizador que predomina em meio à análise do material final. As cenas de ação são bem coreografadas, imitando um número de balé, ode dada ao deus da morte, uma divindade idealizada e distante do pragmatismo de quem analisa o panorama político de um ponto longínquo.

    Sniper Americano se propõe a ser um relato sobre os que se entregaram de corpo e alma a um ideal, a defesa da nação, mesmo que os motivos para tal sejam amplamente discutíveis, e ainda que tais situações espinhosas não sejam contestadas, como se esses assuntos complicados orbitassem um nível acima do pensamento rasteiro dos soldados.

    Passadas duas horas de filme, é revelado o destino do protagonista, cuja aura de conspiração envolve-o até a subida dos créditos do filme, não sem antes mostrar a bandeira norte-americana tremulando vorazmente, mais uma vez louvando a bravura dos soldados. Pesa contra o fato de o clímax ocorrer aproximadamente 30 minutos antes do filme se encerrar, fazendo com que todo o restante da película mostre o deslocamento social do soldado e um acontecimento fatídico cerceando sua vida sem qualquer possibilidade de ápice. O heroísmo do sniper até tenta ser resgatado nas cenas em que ocorrem as homenagens aos seus feitos pelas ruas dos EUA, o que por si só é muito pouco diante de toda a pompa anterior.

  • Crítica | Madame Satã

    Crítica | Madame Satã

    Madame Sata - Poster

    A introdução escolhida pelo cineasta Karim Aïnouz mostra o rosto de seu personagem biografado, em um close das feições enrubescidas, nos inchaços causados pelo impacto da pele alheia sobre o rosto, hematomas de brigas físicas que visavam cercear seu espírito livre. Acompanhada da forte imagem, há uma narração do relator do conto policial, que verborragicamente define todos os pecados de João Francisco dos Santos, o Madame Satã, assinalando especialmente o crime de andar com quem anda, de frequentar os lugares mais desqualificados do Rio de Janeiro acompanhado dos maiores e piores maltrapilhos cariocas, de categoria que alcançam níveis baixíssimos.

    Qualquer ato motivado pela crença na impunidade, ao ferir prostitutas, homossexuais e outros seres que habitavam o centro da Cidade Maravilhosa, é espantado pelos golpes capoeiristas do personagem. Lázaro Ramos dá vida à figura lendária dos anos 30, capturando, inclusive, nuances de comportamento contraditórios, como a de macho alfa, impositor, dono da força bruta, em paralelo à orientação homoafetiva, destruindo o estereótipo de fragilidade homofóbica, movido basicamente pela prática misógina do macho de julgar-se superior.

    O estado mental indócil do “leão de chácara” respinga em sua personalidade, revelando um homem temperamental, incapaz de conter-se ao presenciar desrespeito e desaforos proferidos a si ou aos que estão ao seu redor. A destemperança de sua alma se alastra pelas ruas do Rio, concluindo-se em confusões em bares, botecos e casas frequentadas pelos ricos. Ecos dos maus-tratos que sofreu durante a vida inteira, a rejeição causada por sua condição acumulada de pária, amalgamando o arquétipo do preto e do gay.

    Os tempos mostrados em Madame Satã eram mais simples, onde a punição ocorria somente com os secularmente excluídos. A polícia perseguia quem não tinha dinheiro, sem haver chance de defesa de quaisquer direitos se não fosse por parte dos ditos cidadãos de classe média, enquanto todo o restante era inimigo. O argumento de Karim Aïnouz e seu grupo de roteiristas é tristemente atual, retratando o quão punitiva pode ser a audácia do oprimido, com a diferença básica da figura que desacata a autoridade dos tratantes fascistas.

    A fotografia delicada de Walter Carvalho marca um mundo colorido que teima em ter gritantes colorações, apesar da névoa cinza que teima em pairar sobre as cabeças dos personagens, a alegria que predomina mesmo diante do preconceito que habita os corações e mentes dos conservadores. A direção tenaz de Aïnouz prossegue discutindo cada argumento fajuto do comum homem homofóbico, exibindo perseguições que vão além de qualquer exibição artística, mostrando que nem sempre o entretenimento é capaz de apagar a mancha que é o pensamento pequeno de quem se julga superior unicamente ao sentir atração por seres do sexo oposto.

    Os últimos momentos retratam toda a personalidade revanchista de João Francisco, fazendo o biografado retornar à cena inicial para cair na vala comum de outros assassinos, ladrões e bandidos, unicamente por dar vazão aos sentimentos reprimidos, jamais pedidos por ele, e interrompidos por agressores que tentavam em vão assassinar sua alma de artista e de homem livre.

    Ao exibir o incidente do biografado, mesmo com a pena que João sofreria, o papel do agressor é subalterno diante da boemia que predominava no ideário e rotina do personagem. No carnaval, após o cumprimento de sua sentença, o personagem ganharia de novo as ruas para enfim ter a glória brilhante que lhe era de direito, ao som de fanfarras e tamborins. Como a figura máxima do carnaval carioca, ela exibe-se já sem medo, evoluída, triunfante em gênero e sexo, como a princesa do asfalto que era. Ao contrário do que pressupõem a introdução e epílogo, não há valorização da lei ou do Estado comum sobre a identidade do homem, e sim uma ode à libertação e livre expressão da natureza sexual humana.

  • Crítica | Attila Marcel

    Crítica | Attila Marcel

    Attila Marcel 1

    A dificuldade em se expressar, representada pela mudez do protagonista, tem efeito de comparação, de como a modernidade aos poucos tornou a comunicação algo cada vez mais raro de ocorrer de modo pleno. Attila Marcel é um filme francês que conta a história do jovem Paul (Guillaume Gouix), um rapaz que, pela orfandade, foi obrigado a crescer longe dos seus, criado pelos tios. Sua voz não é emitida devido ao trauma de ter visto seus progenitores morrerem, de modo que suas expressões são concentradas no som que as teclas de seu piano fazem.

    Os dias comuns do protagonistas são registrados com cores vivas, cuja paleta salta aos olhos, causando um estranhamento primário, ainda que a adaptação ao clima lúdico seja rápida. Notável perceber a afabilidade com que Paul é tratado por seus parentes, cada um mais excêntrico que o outro, mas todos bastante prestativos ao promissor pianista, tomando cuidado em presenteá-lo de modo único, com dotes preciosos e condizentes com a identidade de cada um deles.

    Ao olhar uma foto de seus pais, o juvenil não esconde as pálpebras avermelhadas, sinal de um possível choro, que não chega graças à sua especial condição de se conter o tempo inteiro. Seus devaneios incluem a queda de percepção e desmaios involuntários. É desacordado que o pianista tem acesso às suas memórias reprimidas, dos tempos que era ainda bebê e do pouco contato que teve com seus pais. Desde cedo, faz uma enorme cobrança de si, com expectativas de que ele se torne um musicista de muito talento.

    A mudez do personagem principal torna-se um evento ainda mais curioso pelas cenas musicais presentes nos flashbacks inconscientes que ele experimenta. O fechamento desses momentos é realizado quase sempre pelo olhar de seu pai, Attila Marcel, vivido também por Gouix.

    A pessoa que mais se aproxima de compreender plenamente o músico é sua vizinha, Madame Proust (Alle Le Ny), que tem em comum com Paul o amor pela música, executando de modo rudimentar um pequeno instrumento de corda, tendo nas ervas a sua válvula de escape e o primeiro catalisador das ilusões de Paul. Seu jeito de feiticeira da natureza a aproxima de um arquétipo rpgístico de Druida, o elfo próximo da natureza que lança mão de psicotrópicos naturais e adora os sons da fauna e as entidades das matas. No caso de Proust, a crença é em Buda. Sua casa é repleta de plantas penduradas, fator que insere o público em um ambiente semi-fantástico sempre que a câmera passa por seus cômodos.

    Logo, as viagens levadas pelas ervas revelam o motivo de todo o receio de Paul, exibindo uma triste realidade, escondida no mais profundo de sua alma, um lugar que ninguém ousa pisar ou tocar. Quando ainda era um bebê, variava entre as brincadeiras infantis, e seus programas de cunho educativo, e a violência doméstica, que o reduz, já adulto, a um estado de impotência atroz.

    Após um apelo por escrito, Paul se vê diante de um novo paradigma, a inexorável opção – quase obrigação – de viver sua vida. Mais uma vez, ele se insere no campo do inconsciente, onde fantasia um misto de luta de boxe com tango, protagonizado por seus pais, em que a mulher tenta retribuir com afeto os maus tratos e golpes físicos de seu parceiro. O resultado final não fica claro, se seria aquela a realidade ou mais um autoengano.

    Com o tempo, os surtos pioram, fazendo o rapaz ter alucinações mesmo acordado, especialmente após começar uma grande apresentação sem poder contemplar Proust na plateia. A sensação de estar sozinho mais uma vez faz com que ele relembre a verdade, de como seus pais faleceram. Após ter contato com a realidade, o tampo do piano cai sobre seus dedos, encerrando ali a sua carreira musical, enterrando os sonhos de suas tias e o principal modo de expressão do musicista, mas sem lamentos por nenhuma das partes. Resignada, a família recebe a notícia quase como uma punição por seus maus atos.

    A reviravolta envolve a sentença da impossibilidade de Paul ser um pianista. Sua reinvenção começa de dentro, logo depois de assistir a sua antiga amiga em no túmulo. Dela, ele tira forças e inspiração para se reinventar, munindo-se do mesmo instrumento que a mulher, o que o fez revolucionar seu modo de ver o mundo e de “musicar”, preparando-o emocionalmente para o papel de pai e marido, algo que refugava o filme inteiro. O ciclo se fecha, e de modo belo, muito bem pensado por Sylvain Chomet.

  • Crítica | Aliens: O Resgate

    Crítica | Aliens: O Resgate

    Em 1979, fomos apresentados a uma das mais incríveis e aterrorizantes histórias de ficção científica da história do cinema. O diretor Ridley Scott e o roteirista Dan O’Bannon criaram Alien: O 8º Passageiro, uma obra-prima de atmosfera sufocante, aterrorizante e que possui uma incrível sensação de urgência, além de possuir ótimas analogias e mensagens embutidas. Não à toa, este Aliens: O Resgate demorou bastante tempo para ser produzido.

    O filme passa-se 57 anos depois do evento do original, com a Tenente Ellen Ripley (Sigourney Weaver) sendo resgatada e trazida de volta ao planeta Terra após passar todo esse tempo em animação suspensa. Após passar por intenso escrutínio, a protagonista é completamente ignorada pelos executivos da corporação Weyland-Yutani, que alegam não existirem provas conclusivas da existência do alien. Ela é informada ainda que o asteroide LV-426 está sendo colonizado. Logo após esses eventos, uma família encontra a espaçonave que a tripulação da Nostromo encontrou no primeiro filme, e o patriarca acaba infectado. Posteriormente, a comunicação com a colônia é cortada e uma missão militar é designada para descobrir o que ocorreu no local. Ripley então se junta a eles agindo como consultora.

    Há uma clara mudança de tom em relação ao primeiro. Ainda que a obra possua uma grande carga de suspense, o diretor James Cameron focaliza muito mais a ação, mesmo que boa parte do filme se passe dentro dos corredores da estação espacial que fora montada no asteroide. O diretor, um dos grandes nomes do cinema de ação e ficção científica dos últimos tempos, constrói toda uma atmosfera de tensão, para depois emendar uma série de sequências eletrizantes, especialmente no terço final, nas cenas que a tenente parte para resgatar a pequena Newt, e no seu embate final com a alien-rainha. Ao contrário das atuais películas de ação da atualidade, em que o desenvolvimento dos personagens é tacanho e apenas um pretexto para sequências de ação serem jogadas a todo momento na tela, em Aliens há sempre um momento para as relações interpessoais dos personagens. Nada muito aprofundado, mas suficientemente crível para que todas as motivações sejam bem expostas na tela e bem compreendidas pelo espectador.

    O roteiro idealizado por James Cameron, David Giler e Walter Hill é bem amarrado e faz melhor sentido nessa edição especial. Somos apresentados a uma cena deletada que trata sobre a filha da personagem de Weaver e que morreu idosa sem reencontrar a mãe, a qual estava perdida no espaço. Essa cena nos faz ter uma compreensão e aceitação melhor do sentimento materno que a militar rapidamente desenvolve por Newt ao encontrá-la na colônia espacial. A questão maternidade também acaba sendo bem exposta no roteiro, pois após Ripley destruir todos os ovos que continham os facehuggers (aquela espécie que abraça o rosto das pessoas e as “engravida” com o xenomorfo), a alien-rainha inicia uma espécie de vingança contra Newt, pois, em grande parte da batalha final, a criatura volta suas forças para matar a criança. Fica uma impressão de que ela deseja destruir a “cria de Ripley” visto que todas as suas foram dizimadas pela tenente.

    As atuações do filme são espetaculares. Weaver retorna muito bem ao papel que a lançou ao estrelato e domina todas as atenções para si. A atriz aqui se consagra como uma das personagens femininas mais fortes da história do cinema, e a indicação da intérprete ao Oscar de melhor atriz foi totalmente justificada. Lance Henriksen, o androide Bishop, também se destaca em tela, sem cair em nenhum momento na caricatura e sem repetir nenhum trejeito de Ian Holm, intérprete do robô do primeiro filme. Michael Biehn também está bem competente em cena. O restante dos atores, apesar dos personagens serem um pouco estereotipados, não compromete a obra e acaba se saindo bem nas cenas mais tensas.

    Toda a cenografia e o design de objetos foram inspirados por Syd Mead, designer de Blade Runner, e merecem ser elogiados. Mesmo que em 1986 ainda existisse uma predominância dos efeitos especiais práticos, tudo é meticulosamente construído e contribui para a imersão do espectador no ambiente muito bem explorado pelo ótimo trabalho de fotografia idealizado por Adrian Biddle. A trilha sonora composta por James Horner é eletrizante e até hoje é utilizada em trailers de outros filmes.

    Enfim, resumindo em um clichê, Aliens: O Resgate é uma montanha-russa. Uma experiência completamente diferente daquela proposta pelo seu antecessor, mas espetacular no mesmo nível. Uma obra-prima da ficção científica que merece estar sempre sendo revista e apreciada.

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  • Crítica | O Último Ato

    Crítica | O Último Ato

    Com profundos e furiosos olhos verde-escuros, um dos grandes atores americanos vivos, Al Pacino vive em baixa há quase duas décadas. Salvo três interpretações feitas em filmes televisivos, que lhe renderam indicações e prêmios, nenhuma das últimas produções envolvendo o ator foi suficiente para que pudesse se destacar como anteriormente, em personagens que se tornaram icônicas no cinema mundial. Talvez o último momento mais luminoso de sua carreira tenha sido em 1999 com O Informante, de Michael Mann.

    Representante de um estilo de interpretação extremada, chamada de overacting, o ator talvez esteja vivendo o declínio representativo devido ao envelhecimento físico. Diante das modificações físicas naturais do corpo, o semblante do ator ganhou mais vincos e, por consequência, uma imagem que sempre transmite desolação ou fúria. Além disso, papéis rasos de produções como Tudo Por Dinheiro, O Articulador, entre tantos outros filmes ruins ou desnecessários, não lhe deram o espaço para uma de suas grandes interpretações. Aos 74 anos, Pacino continua em cena, mesmo sem brilhar como antigamente.

    Adaptado do trigésimo livro de Philip Roth, O Último Ato estabelece um diálogo ativo com a carreira de Pacino, que representa Simon Axler, um consagrado ator de teatro que perde a habilidade da interpretação e, em um surto, se joga de um palco em meio a uma peça teatral. Dirigida por Barry Levinson, que trabalhou recentemente com o ator no premiado filme da HBO, Você não Conhece o Jack, a trama permanece entre o drama da personagem e o tradicional diálogo sobre a própria arte.

    Como Axler, Pacino entrega uma interpretação mais contida, ciente de que sua popular atuação explosiva seria incoerente com o declínio devastador do ator renomado. Conforme trabalha com um terapeuta sua inadequação perante a perda da capacidade interpretativa, o papel do ator se transforma em material filosófico para o longa-metragem.

    Comumente aproximamos dos atores o conceito de uma pessoa com talento e trabalhos suficientes para interpretar qualquer papel, sendo assim, transitando entre uma quantidade infinita de vidas e personagens. Trabalhando de maneira ativa com uma espécie de faz de conta, o ator também é observador atento que filtra reações diversas para espelhá-las em suas atuações. Não há um parâmetro definido que seja limítrofe entre vida real e universo interpretativo, com cada ator delimitando o quanto uma personagem influencia em seu cotidiano. Axler questiona a função do ator assumindo um distanciamento da realidade. Um observador que monitora a reação das pessoas, como se a vida fosse um conjunto de papéis cênicos. Um homem que perdeu a tessitura entre a ficção e o real.

    O talento interpretativo sempre visto como certo grau de erudição criativa também seria responsável pelo cansaço ao se inserir no cotidiano dos atores como um trabalho qualquer. A composição da arte sempre foi vista com parcelas de dedicação e suor, um amor estabelecido que, sem reciprocidade, se transforma em ato mecânico. Além das tensões internas, a indústria também promove, ou não, a continuidade do ator. Sabemos que muitos grandes atores chegam à velhice quase sem bons papéis, devido à demanda de um comércio que explora mais a juventude do que a terceira idade.

    Aos poucos, o drama sobre os limites de um ator se modifica para explorar o significado simbólico por trás da narrativa, a metáfora da humilhação da personagem central. Diante de uma história breve, originada em uma narrativa de aproximadamente cem páginas, Roth e consequentemente o roteiro adaptado acrescentam elementos demais para a discussão do crepúsculo da arte. A Humilhação, nome do romance e título original do filme, peca por excessos narrativos que vão contorcendo a vida da personagem de maneira demasiada, destruindo parte da realidade proposta por uma desvirtuação que suscita dúvida e deforma a intenção inicial.

    Em consequência da disparidade narrativa, o longa perde a potência e entrega um final comum a outras produções que fizeram da arte um objeto de reflexão e que ainda conseguiram manter a carga dramática. Uma pena para Pacino que, ao distanciar-se de uma interpretação explosiva, entrega um bom papel decadente, situação que, infelizmente, representa o estágio atual de sua carreira.

  • Crítica | O Imperador

    Crítica | O Imperador

    O Imperador 1

    Ambientada na época das Cruzadas (supostamente, ao menos) O Imperador conta a historieta de um guerreiro valente, de nome Jacob (Hayden Cristensen), que com seu cabelo moicano tenta salvar uma das crianças da aldeia, local que seu próprio grupo de soldados invadiu. Em meio ao saque, o personagem, que guarda o primeiro nome do neto de Abraão – em uma referência bíblica que salta aos olhos -, recebe os conselhos de um guerreiro mais experiente, Glenn, vivido por um Nicolas Cage com uma peruca assustadora, que discute aquela matança desenfreada, destacando qual seria o papel do deus na batalha entre humanos.

    O sangue que cobre a cabeça de Jacob faz todo o discurso edificante de Glenn ser razoável, uma vez que a culpa também paira sobre a cabeça do jovem vassalo. Porém, mesmo assim, continua procedendo como um general acéfalo, sedento por sangue, como se fosse a única fonte de sustento para o seu corpo e alma.

    O frágil roteiro logo viaja para outro continente, exibindo um império asiático cujos desígnios reais são interrompidos por uma alta traição familiar, em que o vilão Shing (Andy On) assassina seu próprio pai para impedir que o caçula Qiang (Lizin Zhao) seja empossado rei. A trama, vista em tantas outras produções, torna-se ainda mais banal quando, por uma coincidência do destino, Jacob acaba pairando sobre aquele lugar, entorpecido pelo ópio, mas ainda com senso de justiça. Após uma luta onde todo um show-off é apresentado, ele é convocado pelos sobreviventes para acompanhá-los. Prontamente, o guerreiro recusa, para fazer às vezes de Cavaleiro Solitário, unicamente para sofrer uma recaída e lembrar-se de seus deveres morais, ainda que sua motivação nada tenha a ver com os que protege.

    É curioso o modo como Nick Powell filma e conduz sua história, fazendo um uso indiscriminado da steadicam na tentativa de sofisticar seu próprio trabalho. Na maioria das cenas, o recurso exagerado pouco faz para diferenciar-se de tantos outros diretores genéricos de ação, ainda que sua perícia não seja de toda reprovável. Faltam conteúdo e relevância aos atos mostrados em tela, sobretudo a ausência de bons intérpretes, fazendo com que qualquer esforço para o Imperador não parecer uma piada seja absolutamente em vão.

    A interação entre o guerreiro caucasiano, que força a voz sempre que conversa com seus convivas, faz lembrá-lo da relação de mentor e mestre que teve com Glenn, ainda que nada do que seja mostrado em tela justifique qualquer edificação de espírito e autoglorificação enquanto figura inspiradora. Aos olhos do espectador comum, Jacob é apenas um guerreiro culpado, que se exibe como um exímio combatente, mas que ainda tem autoestima baixa, tendo no torpor da droga seu único refúgio. Nem bem é construída a figura de herói clássico, assim como o antiheroísmo é totalmente discutível pelos olhos de Lian (Yifei Liu) e do público.

    O combalido roteiro segue descendo o nível ao inserir aparições dos personagens sem qualquer justificativa. Glenn volta ao convívio de seu discípulo para indagá-lo sobre o sangue derramado no primeiro ato para então saber o motivo terrível que fez com que ele deserdasse. Após o retorno, logo começa mais uma batalha sem sentido, em que o exército inimigo faz uma emboscada aos heróis, para, enfim, ocorrer uma batalha final carregada de pieguismo.

    Apesar de ter uma reconstituição eficaz nos figurinos e cenários, O Imperador peca demasiadamente em termos de roteiro, o que faz duvidar se havia algo redigido anteriormente às gravações. A miscelânea de mortes desnecessárias produz uma mensagem tosca, destacando honra e patriotismo injustificáveis ante toda a breguice e anacronismo do texto final, em que sequer as cenas de ação fazem valer o esforço em ver a fita até o final.

  • Crítica | O Duplo

    Crítica | O Duplo

    O Duplo - nacional

    Já no início da trama, percebe-se uma mente conturbada por parte do inseguro protagonista, Simon. Em direção à sua rotina de trabalho, o homem é impedido pela estranheza que parece ter alterado seu cotidiano há pouco tempo. O caminho rumo ao seu emprego acontece em um vagão de trem, mal iluminado e insalubre, e ele prossegue, indo por uma estação subterrânea imunda e escura. Na chegada ao portão, ele é barrado, numa clara alusão à dificuldade que tem de se sentir pertencente a um lugar. A sensação que predomina é a de deslocamento da realidade.

    O aparente motivo do incômodo para Simon é a chegada de um novo funcionário, o qual lhe é grosseiro em um primeiro momento, e com mais aptidões que ele. James também é vivido por Jesse Eisenberg, e consegue representar a atuação mais moderna de seu intérprete, enquanto Simon se assemelha mais à faceta de associação comumente feita pela semelhança física com Michael Cera, emulando até a falta de dotes dramatúrgicos do ator comediante.

    A dualidade presente na interação entre Simon e James é apenas um aperitivo do universo que se desenrola ao redor das pessoas presentes na película. O universo mostrado no roteiro de Avi Korine e Richard Ayoade – que também assina a direção – guarda semelhanças visuais com muitas ficções científicas de baixo orçamento, especialmente nas referências midiáticas. As alusões textuais revelam uma realidade próxima da distopia, mostrando uma tirania movida por órgão privados, como a empresa do Coronel onde Simon trabalha. A companhia, em seus informes publicitários, deixa claro que ninguém é especial, um conceito menos autoritário que o de 1984, de George Orwell, visto que não é necessariamente proibido o contato entre humanos, já que a moral e autoestima destes não permitem qualquer relação mais íntima, graças à desmotivação geral.

    A lei não proíbe que casais se formem, mas a influência exercida pelo quarto poder – comunicação – faz com que as pessoas não se sintam aptas a tomar riscos, ao menos é essa sensação que é passada pela vivência de Simon. Quando ele resolve tentar a sorte ao sair com sua colega de trabalho, Hannah (Mia Wasikowska), a euforia tenta tomá-lo, em um dos poucos momentos em que cores vivas se permitem predominar na fotografia monocromática, mas o entusiasmo é interrompido pela inaptidão do rapaz e, claro, pelo azar enorme, que parece ser exclusividade sua, ao menos segundo a interpretação que faz dos fatos.

    É curioso como o único que se permite ter uma visão diferenciada do processo industrial e da modernidade seja exatamente o personagem cujo fracasso é mais evidente, como se o mau agouro lhe conferisse poderes. Logo, as contrapartes vão se unindo em favor de um bem maior, que é a abordagem ao belo sexo. O convívio entre ambos faz os fatos se tornarem ainda mais estranhos do que já vinham sendo.

    O modo como Ayoade conduz seu filme apresenta diferentes módulos de interpretação, tornando um “não mistério” a possibilidade de ser o par de iguais a mesma pessoa, porém não em uma curiosa opção, mas sim uma questão evidente. O enigma fica por conta da óbvia busca pela identidade, usando o roubo e a falsidade ideológica como sinais de uma possível insanidade, que por sua vez poderia ser fruto do constante escravagismo sentimental causado ao homem através dos constantes abusos da sociedade vigente.

    Eisenberg interpreta as duas faces do ser masculino, apresentando nuances e maneirismos distantes o suficiente para gerar no espectador a dúvida a respeito de suas reais intenções, que ganham ainda mais ambiguidade graças à nebulosa direção acompanhada de uma trilha sonora pontual. Tais elementos conseguem resgatar a essência de um suspense noir, fazendo com que as bizarrices inerentes ao espírito não sejam tão intragáveis aos olhares do público menos afeito à estética dos weird movies.

  • Crítica | O Amor é Estranho

    Crítica | O Amor é Estranho

    O Amor é Estranho - Love is Strange - Poster Internacional

    Dois anos após a beleza poética de Deixe a Luz Acesa, o americano Ira Sachs retorna às telas versando, mais uma vez, sobre o amor. O roteiro escrito em parceria com Mauricio Zacharias aborda a história de um casal que, após 39 anos vivendo junto, decide se casar oficialmente.

    Ben e George, interpretados pelos sempre excelentes Alfred Molina e John Lithgow, são homens maduros que possuem a rotina, coerência e estabilidade de um casal que há muito se conhece. Vivem naquele momento em que podem falar a respeito de tudo com o outro e se conhecerem intimamente, sem necessidade de julgamentos, nem mesmo para reclamações cotidianas.

    Ao efetuar o matrimônio, a profissão de George sofre um abalo. Músico de uma escola católica, ele é convidado a se retirar de suas atividades por não mais seguir o código cristão estabelecido pelo local. Mesmo que sua relação nunca tenha sido um segredo para pais, filhos e professores, cientes sobre seu parceiro, a personagem reconhece a impossibilidade de ir contra uma sagrada instituição que ainda condena tais relações.

    A estrutura de vida do casal é modificada. O casamento, que deveria ser a consagração máxima deste equilíbrio, produz, inconsequentemente, uma separação física. O casal se vê obrigado a vender o apartamento em que mora e, até conseguir um bom local para viver sob novas condições financeiras, se hospeda em casas de parentes. George permanece na casa de um casal de policiais, moradores do mesmo antigo prédio; enquanto Ben vive na casa de um sobrinho, ao lado de esposa e filho.

    A distância do casal demonstra as dificuldades que qualquer relação, mesmo que longa e duradoura, pode passar. As personagens estão fora de seu ambiente natural, em um momento sensível após o casamento, e sentem-se desconfortáveis por viver uma rotina que não a delas. Um local com festas quase diárias, no caso de George; um quarto dividido com o afilhado, sem um local para dedicar-se à sua arte, caso de Ben. Dia a dia, os dois tentam superar a distância obrigatória.

    O roteiro de Sachs/Zacharias aprofunda-se nas personagens sem deslocá-las das rotinas que as cercam, demonstrando nestes locais como situa-se o universo íntimo de cada família. Tanto o casal quanto a esposa do sobrinho de Ben trabalham com a arte. Um ambiente carregado de dedicação criativa que, normalmente, necessita de um espaço próprio para desenvolver-se. Passando boa parte do tempo em casa, Ben não encontra um local adequado para inspirá-lo, algo que também impede Kate (Marisa Tomei), esposa do sobrinho, dar prosseguimento ao seu novo romance. De maneira suave, o longa também faz essa breve reverência ao labor artístico.

    A trama apresenta a história sem focá-la em um drama específico. Os conflitos são vistos com naturalidade e se destacam também em um dos diálogos de George, em uma carta dedicada à sua escola: “A vida tem seus obstáculos, mas aprendi cedo que é melhor enfrentá-los com honestidade”. Um recurso rápido e explícito de apresentar a intenção por trás da história. Uma ciência de que os problemas na vida são naturais, e de que espetáculos dramáticos a respeito devem ser evitados para serem resolvidos da melhor maneira possível.

    Sachs trabalha também com qualidade a composição das imagens. Se no filme anterior prevaleciam ambientes escuros apoiando a indecisão da personagem central, neste as cores são sempre claras e os ambientes iluminados, como se representassem pelas imagens a maturidade estável e o brilho do amor do casal.

    (Para uma análise mais completa da obra, a partir deste momento revelações do filme serão apresentadas. Sendo assim, pare imediatamente se não quiser saber sobre o desfecho da produção).

    O estilo escolhido para representar a morte de um dos pares é bonito, metafórico e simples. Impressiona pelo impacto posterior ao descobrirmos a morte por intermédio de seu sobrinho em um diálogo. Na referida cena, o casal se despede em frente à escadaria do metrô, ainda vivendo em casas separadas. A personagem que sairá de cena é quem desce as escadas rumo ao subsolo para o transporte. Bonita metáfora de travessia acompanhada por um longo fade out que parece anunciar o final do filme. Mas esta cena encontra um par com o momento final, do sobrinho caminhando de skate ao lado de uma garota. Durante a trama, o garoto revelou ao tio Ben uma paixão por uma garota desconhecida. Assim, não só inferimos que a personagem encontrou-a novamente como o passeio é apresentado de maneira hábil, com a câmera posicionada às costas deste novo casal e contra a luz do sol. Uma metáfora oposta à anterior, explicitando a sensação de paz e iluminação do garoto ao ter este encontro.

    Litgow e Molina, que sempre se destacam pelas boas interpretações, apresentam um bonito casal maduro que transparece a cumplicidade mútua e um amor raro de muito anos. O Amor é Estranho é um drama bem equilibrado que não transforma a idade ou união em uma carga desnecessária de sentimentos, produzindo a naturalidade e a capacidade de lidar com as adversidades da vida de maneira orgânica, com apurada narrativa poética.

  • Crítica | Pássaro Branco na Nevasca

    Crítica | Pássaro Branco na Nevasca

    Passaro Branco na Nevasca - Poster

    O laço umbilical compartilhado entre uma mãe e seu filho possui efeito duradouro. A mãe se torna uma representação máxima de carinho e proteção, permanecendo nesta posição mesmo em fases da vida em que a criança não precisa de um grau ativo de resguardo.

    Pássaro Branco na Nevasca adapta o romance de Laura Kasischke, narrado pela adolescente Kat Connors (Shailene Woodley). O desaparecimento de sua mãe é utilizado como mola dramática. Uma circunstância que modifica a vida da personagem central. A história dá continuidade à vida após o desaparecimento da mãe e ilumina o passado.

    Como assistimos à trama pelos olhos e pela narrativa da garota, é perceptível uma carga emocional equilibrada entre ódio e remorso. Kat acredita que a mãe abandonou a família. De fato, há indícios que apontam para esta afirmação, ainda que a genitora tenha saído sem malas e deixado o carro na garagem. Ao falar a respeito da matriarca, notamos um desprezo sobre a relação da mulher com o pai, uma pessoa que sempre submeteu-se a ela. Eve Connors (Eva Green) é apresentada como uma mãe incrível somente quando se dedica ao cuidado da casa. É vista como uma mulher egoísta, que desejava ter uma filha como se quisesse um animal de estimação. As cenas que recordam a infância da garota corroboram esta afirmação.

    Após o registro de desaparecimento da polícia, a menina segue o cotidiano normal e se despede da cidade natal indo para uma faculdade. A cada verão, retorna para sua casa e, após anos do desaparecimento, recebe informações a respeito do suposto paradeiro de sua parente.

    Mesmo um tanto frívola, a representação da adolescente é coerente. Trata-se de uma garota que ainda busca sua identidade e um senso de justiça que somente a maturidade permite. Diante das modificações que um jovem sofre nesse período, é natural que, além do sentimento negativo pela perda da mãe, a garota sinta que foi agredida. Por este motivo, sente-se tão raivosa com o desaparecimento repentino. Os anos que separam o desaparecimento e a necessidade de saber o que aconteceu de fato são pequenos passos maduros que anulam parte da raiva para transparecer a saudade pela mãe. A verdade vem à tona, desejada ou não.

    (O parágrafo a seguir contém o desfecho da história. Não siga adiante se não quiser saber).

    Durante a trama, acompanhamos a visão da garota diante dos acontecimentos. A princípio, resignada por não saber ao certo o que sentir com o desaparecimento da mãe, em seguida mais emotiva com a passagem dos anos. Sendo assim, ainda que este elemento tenha sido alvo de certas críticas, parece natural a recepção de Kat ao descobrir que o pai foi, de fato, o assassino da mãe. O enfoque da história não é o caso do assassinato como um processo investigativo, mas sim como este desaparecimento, sendo por morte ou fuga, refletiu no interior da menina. Por isso, não há alteração da estrutura narrativa na solução do paradeiro materno.

    O drama termina mostrando como se sucedeu a morte da esposa. O pai era homossexual, ou ao menos estava tendo um caso homoafetivo, e poderia ser esta a explicação para a relação familiar ruim: a ausência de desejo que, por este motivo, gerava repúdio. Neste momento, ao descobrir o marido na cama com outro homem, Eve Connors ri como se soubesse que mais cedo ou mais tarde esta cena viria a acontecer. Envergonhado pelo desprezo e a falta de respeito da esposa, o companheiro a enforca em um impulso passional diante do riso frenético da mulher.

    A cena final, que revela os acontecimentos reais, tem intenção de chocar o público. Parece uma saída fácil para intensificar a obra, porém, mesmo sendo um apelo óbvio, produz a reflexão suficiente da delicadeza familiar, neste caso vista pelo olhos de uma filha que perdeu a mãe graças à violência paterna. Uma dissolução familiar completa.

  • Crítica | Todo Mundo Em Pânico 5

    Crítica | Todo Mundo Em Pânico 5

      Td Mundo em Panico 5

    Após David Zucker passar o bastão da direção para Malcolm D. Lee – que teve momentos de alguma lucidez em sua filmografia –, a franquia Todo Mundo em Pânico chegou ao seu quinto volume, rivalizando em fórmula e conteúdo com a produção de Marlon Wayans Inatividade Paranormal, coincidindo, inclusive, com os objetos parodiados, utilizando a filmagem em primeira pessoa típica de Atividade Paranormal para começar sua fita. Em uma amálgama referencial a Two and a Half Men, a obra usa seu antigo protagonista Charlie Sheen para ter uma noite louca com Lindsay Lohan, num preâmbulo que esconde a real trama de Todo Mundo Em Pânico 5.

    As filhas de Charlie somem, e quando finalmente encontram-se as meninas, a guarda delas recai sobre Dan (Simon Rex) e Jody (Ashley Tisdale), que basicamente repetem as mil piadas físicas envolvendo brigas entre adultos e crianças, além de uma série de maus tratos e descuidos com os infantes.

    As referências a filmes de terror, como Mama, Invocação do Mal e O Último Exorcismo, além de Planeta dos Macacos: A Origem e o drama emocional de Cisne Negro, prosseguem, exibindo os dramas de Jody, com piadas repetitivas que comparam ballet com pole dance. O freak show envolvendo fantasmas e demônios continuam assombrando a existência do casal, sem qualquer condição de fazer o  seu espectador rir, piorando, e muito, o nível dos primeiros quatro filmes.

    A fita mistura elementos de A Morte do Demônio, A Origem e outros, ainda buscando uma identidade, não conseguindo arranjar uma linha narrativa minimamente aceitável, visto que todos os elementos que se somam ao drama de Jody são completamente dispersos de qualquer coesão ou estrutura dramatúrgica. Poucos dos momentos de humor conseguem ultrapassar a barreira simples da comédia, sequer divertindo o público acostumado com humorísticos rasgados.

    A saída de Zucker da direção, para este somente escrever e produzir o filme, exibiu um decréscimo considerável da qualidade, não tendo sequer o que funcionou nos outros Todo Mundo em Pânico. A completa ausência de predicados positivos faz os fãs mais ávidos por esse subgênero cinematográfico se perguntarem se o formato possui alguma chance de voltar a funcionar enquanto entretenimento, pois mesmo ao espectador pouco exigente este Todo Mundo em Pânico 5 não consegue agradar. Além disso, a obra contém em si a mais caça-níquel das continuações e não produz quase nada semelhante aos personagens criados por Buddy Johnson, Phil Beauman, Jason Friedberger, Aaron Seltzer. Shawn Marlon Wayans.

    A sensação de total perda de tempo invade o pensamento de quem assiste à fita até o final, piorando a perspectiva ao imaginar que poderão haver outros números como este. O alívio quase ocorre aos 74 minutos quando os créditos finais sobem, porém unicamente para serem interrompidos por pequenas cenas com as personas famosas que toparam participar da bomba.

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  • Crítica | Alien: O 8º Passageiro

    Crítica | Alien: O 8º Passageiro

    Pensado a partir da anárquica cabeça de Dan O’Bannon, junto a Ronald Shusett, o filme do novato Ridley Scott exibe um futuro sujo, com o espaço atuando como campo ideal para caminhoneiros maltrapilhos ganharem suas vidas. O veículo Nostromo leva 20 milhões de toneladas de minério, e seus tripulantes são pessoas absolutamente descartáveis, parte integrante de uma sociedade que mal olhava seus convivas, especialmente os das camadas mais populares, como os sete tripulantes.

    A versão de 115 minutos começa com a câmera sobrevoando a parte baixa da nave, como uma versão torpe de Guerra nas Estrelas, cujas tomadas são parecidas, mas com espírito diferenciado. A série de homenagens prossegue com os tripulantes levantando da hibernação, semelhante ao que é visto em Planeta dos Macacos de 1968. A arquitetura da Nostromo lembra o design das naves de 2001 – Uma Odisseia no Espaço, assim como os painéis de controle têm a mesma tecnologia retrô.

    A nave é danificada e obriga os viajantes a ficar mais tempo na locação. Na estranha superfície, encontram um “recipiente” estranho. Dentro da nave, os exploradores veem uma criatura grande, alta, fossilizada, com os ossos para fora, num prenúncio do mal que acometeria a equipe de sete passageiros. A viscosidade das ovas, concebidas pelo artista plástico suíço (e louco) H. R. Giger, lembra elementos sexuais, como quase tudo envolvendo a “criatura”, associando a figura nefasta, anunciadora da morte, ao pecado moral do coito, resgatando mais um dos elementos comuns nos filmes de terror.

    Ridley Scott resgata a prerrogativa que Roman Polanski utilizou em Bebê de Rosemary, unicamente para pervertê-la em outros aspectos, apresentando a junção entre criaturas completamente diferentes, entre o homem e seu predador, com quase todas as consequências vistas no suspense em que o filho do Anticristo nascia. Entre as duas obras, há o foco na catástrofe e na inexorabilidade da existência do mal, além das enormes chances de que este vença com uma carga um pouco mais positiva do que a do filme de 1979.

    Uma das cenas adicionais mostra Ripley encontrando a base da criatura, com Dallas agonizando, envolto em uma substância gosmenta, à espera de que uma das ovas se choque, antecipando o que seria mostrado na continuação de James Cameron, o que desagradou a vontade do diretor. Esta cena extra simboliza a transição entre a figura sexualizada da mulher para um guerreiro em preparação, como um cavaleiro andante rumo ao combate contra um dragão bravo, ainda que não tenha certeza do êxito de sua empreitada. A mudança de gênero é feita de modo genuíno e orgânico. Porém, o terror não acaba nem ao subirem os créditos, nem mesmo com o tranquilo sono de hibernação da heroína de ação.

    A pontualidade da trilha de Jerry Goldsmith lembra o esmero utilizado em Nosferatu, com a mesma sinfonia de horror do clássico de F. W. Murnau, acrescida de um suspense atroz, proveniente das partes do filme que não possuem música. O silêncio é muito bem utilizado, fortalecendo a sensação de claustrofobia e extrema solidão tanto de Ripley quanto dos outros caçados.

    O último diário de bordo anuncia que Ripley foi a única que sobreviveu, emulando a característica dramática dos clássicos teatrais shakesperianos. A obra, após uma odisseia emocional, entrega um desfecho trágico, cuja sensação de alívio é dada somente a um dos personagens retratados, quando muito. Constatando a produção do filme e comparando-a às suas obras atuais, percebe-se que algo do talento de Ridley Scott foi sepultado também, tendo reprisado momentos tão bons somente em Blade Runner – O Caçador de Androides. Seus ângulos de câmera favorecem a avidez pela sobrevivência, que não atenua ou abranda qualquer sensação ruim para o seu público. Os closes em Weaver, após esta perceber não estar sozinha no módulo de escape, são um resumo de toda a ópera do medo que o diretor resolveu imprimir em sua fita, sucesso este fruto da bestialidade do roteiro unida às figuras grotescas de Giger. O impacto é maximizado em termos de espanto pela câmera inquieta do realizador, sua especialidade em redigir momentos em que o senso de urgência é o mote da história.

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  • Crítica | Tangerines

    Crítica | Tangerines

    A dicotomia presente nas relações de um país em guerra ajuda a fomentar a temática do filme de Zaza Urushadze. Tangerines – ou, no título original, Mandariinid – conta uma história passada no começo dos anos noventa, quando a Abcsaia buscava se desvencilhar do poderio exposto pela Estônia. Após uma quantidade substancial de conflitos, os habitantes da pequena aldeia se retiram de suas terras, procurando refúgio do conflito, buscando um esconderijo longe do lugar que um dia foi deles.

    A primeira figura humana focada é a de Ivo, vivido por Lembit Ufsak, um senhor de idade avançada que ainda vive naquele lugar a despeito dos conselhos das autoridades militares e até de sua própria vontade. Logo, o motivo que ainda o faz permanecer lá é revelado, após a busca por seu camarada Margus, interpretado por Elmo Nuganen. Na fazenda de Margus, há uma proeminente plantação de tangerinas, motivo do sustento da dupla, que garante a ambos uma extensão na estadia, ainda que a intenção de ambos a respeito da estada seja bastante diferente: Ivo quer permanecer, e seu amigo não vê a hora de evadir o local.

    A bifurcação ideológica mostrada entre o idoso e o agricultor resume duas posturas estereotipadas em relação à resistência à guerra como um todo, sem fazer um julgamento de valor exacerbado, não resignado – ao menos no início –, de quem está certo e quem não está. Os dois lados são postos em polos opostos, um mais contestador, preso às tradições locais, que busca a permanência como meio de existência e sustento; e outro muito contrário ao belicismo, acreditando que a preservação da vida, mesmo em outras instâncias, é mais importante do que demarcar território, não enxergando na localidade a definição de sua identidade, ao menos não de modo tão categórico.

    Os dias dos dois personagem se resumem a cuidar dos feridos em batalhas, realizando um trabalho filantrópico em um conflito que não é deles, nas casas remanescentes de ambos os lados, improvisando uma zona neutra em seu próprio lar. Os solitários habitantes da aldeia prosseguem unidos, apesar das óticas distintas e do crescente descontentamento de Ivo em assistir a uma tentativa de trégua em que algo tão trivial como as frutas cítricas é o principal trunfo pela paz.

    Um dos residentes da casa de Ivo é Ahmed (Giorgi Nakashidze), um mercenário checheno que busca fazer o maior número de vítimas entre os georgianos. O posicionamento de cuidado ao outro ferido, Miao (Misha Meskhi), que veio do lado da Estônia, obviamente o incomoda, mas a dívida de honra que tem com seus hospedeiros o impede de seguir seu rastro de sangue, tornando o seu inimigo em um alvo proibido e inalcançável. O lar dos homens pacíficos evolui da posição de zona neutra para um campo semelhante ao mostrado no desenho do globo na época da Guerra Fria, com direito a gracejos e deboches de ambos os lados, mas sem qualquer ação agressiva “factual”, o que garante alguns bons momentos de suspense moderado, motivado pela pacificação forçada.

    A tensão é construída sem maneirismos típicos do cinema comercial, com pouco uso de ângulos fechados e uma trilha sonora de ritmos típicos, sem o esforço emocional voltado ao lugar comum, o de massificar o suspense com acordes dissonantes. Tangerines é um drama antibélico que faz uma crítica ao viver da guerra a partir da experiência dos que mais sofrem tais ações, com um forte argumento de desaprovação, semelhante ao visto em Glória Feita de Sangue, de Stanley Kubrick. A obra também tem uma revisão da temática da covardia, mostrando a estafa da comunidade ante os sucessivos conflitos, que pouco ou nada resolvem a questão territorial.

    Em pouco menos de 90 minutos, o filme de Urushadze consegue mostrar toda a crueldade da luta armada e a ilógica situação de conflito. A paz seria facilmente alcançada se os lados que teimam em se digladiar pudessem conviver um breve tempo, sem a necessidade de pelear um contra o outro.

    Após mais uma das muitas mostras do quão estúpida e incoerente é a guerra, Ivo decide mudar sua postura, prestando respeito aos que se foram, relembrando as baixas que são tratadas pelos guerreadores como efeitos colaterais e que, aos olhos dos vitimados, são pessoas, entes queridos, seres tão dignos da preservação da vida quanto qualquer poderoso engravatado que não reflete sequer uma vez antes de comandar um ataque massivo e agressivo. O filme excessivamente trata do embate militar para valorizar o estado pacífico, sem esquecer-se do fator emocional e humano, tão ignorado na pós-modernidade e nos tempos de guerra.

  • Crítica | Dívida de Honra

    Crítica | Dívida de Honra

    Divida de Honra 1

    O revisionismo é um artifício comum no cenário cinematográfico, uma vez que os temas tendem a se esgotar dentro dos formatos e categorias de gênero. Dívida de Honra é acima de tudo uma reinvenção, tanto da carreira de seu diretor Tommy Lee Jones, com poucas realizações, apesar de ser um veterano com quase 50 anos de sétima arte, quanto na escolha e construção do ethos de seus protagonistas.

    Marie Bee Cuddy (Hilary Swank) é uma mulher resignada, cuja existência é pautada essencialmente emsua origem do Nebraska, fazendo dela uma pária em meio a um conservador e recrudescente Texas, que se torna ainda mais conservador e assustador para uma mulher sem marido. A pequena comunidade, composta por menos de uma dezena de chefes de família, se preocupa com sua subsistência, ante a escassez de bens básicos, inclusive alimentos, que rareavam graças à intensa seca, agravada pela permanência de três damas com problemas que as impedem de viver plenamente. Cuddy se oferece para uma jornada em busca de mantimentos em outras paragens, já que os poucos homens que restam na aldeia recusam o chamado aventuresco.

    Jones é o autêntico filho de sua terra: seu cinema quase sempre abarca o estado em que nasceu, como foi com Três Enterros e Os Bons e Velhos Companheiros, e com o remake ainda em pré-produção The Cowboys. Ainda assim, Dívida de Honra promete reavivar a chama de Era Uma Vez no Oeste – com uma Claudia Cardinale que se vale mais da força bruta do que de seu corpo voluptuoso –, além de apresentar um forte código ético, capaz de produzir mudanças em seres decadentes, como é o caso de George Briggs, um maltrapilho condenado à morte e à própria sorte, quase enforcado em árvores de galhos secos, no meio do nada.

    O personagem de Tommy Lee Jones é um anti-herói, mesclado ao arquétipo de herói falido. Sua honra é tão baixa que a submissão a um desígnio com poucas chances de dar certo não é sequer discutida. A repaginação de persona chega a ter uma comicidade, com a reversão da figura de homem forte, pondo toda a sua história como ator em pauta. Logo, Cuddy enxerga na fuga das três mulheres a melhor possibilidade para elas e para a aldeia, decidindo então cruzar o país entre os gemidos de suas comadres e o crescente temor de tornar-se semelhante a elas.

    A jornada segue invertendo as figuras de temor, substituindo a figura de fragilidade e inimizade dos índios nativos americanos, transformando-os em figuras ameaçadoras, diante da carência de chumbo, para revidar possíveis ataques. Mas o fôlego do filme se perde após a primeira hora de exibição, apesar do bom começo. A metade final reforça a carência e destempero da personagem principal, que em hora alguma se prova forte ou minimamente interessante, o que obviamente dificulta qualquer sentimento empático, facilitando a mudança de foco que ocorre na parte final da película.

    O forçado enlace entre a dupla de personagens centrais ocorre de modo tão engessado e robótico quanto a interação lasciva entre eles. A despeito da bela fotografia, direção de arte e de algumas boas cenas, especialmente as que retratam a desforra do homem forçadamente desonrado, quase não há momentos em que o espectador sinta-se compelido a importar-se com a história, mesmo contando as reviravoltas do roteiro que, em suma, revelam a necessidade de Jones de tornar-se protagonista da história que conta.

    O agridoce epílogo repete a vã tentativa de salvar Dívida de Honra da banalidade, mostrando o personagem sem passado, cuja única certeza é o fato de ter cometido um crime, tentando festejar e achar algum alento à sua miserável existência, que só teve algum momento de honradez ao final de sua jornada. O esforço não salvaguarda nada, nem faz a qualidade da fita subir. A dificuldade de Tommy Lee Jones em imprimir um ritmo interessante ao seu filme agrava o conceito em relação a sua direção, fazendo com que se pareça inapto no ofício, já que nem o interesse por parte dos fãs de western ele parece ter conquistado.

  • Crítica | Dólares de Areia

    Crítica | Dólares de Areia

    Dolares de Areia 1

    O nome acima dos créditos, de Geraldine Chaplin – a prolífica atriz, filha do mito cinematográfico Charlie Chaplin –, talvez engane a plateia sobre qual será o foco da produção dominicana Dólares de Areia. Acostumada a realizar filmes com o cinema de origem hispânica (Um Amor de Película, O Orfanato), ela interpreta uma figura que comumente habita a região praiana de Terrenas, utilizando o arquétipo da idosa turista que se vale de suas qualidades monetárias avançadas para viver como um membro da nobreza, em meio às condições paupérrimas da população em geral.

    A carência de Anne (Geraldine) é o campo perfeito para a atuação da protagonista feminina Noeli (Yanet Mojica), uma jovem moça de feições sensuais que se vale de sua malícia para seduzir a rica idosa, tomando para si o máximo de dinheiro e luxos possíveis, uma vez que o dinheiro “investido nela” certamente não faria falta, dada a pequena fortuna da longeva senhora.

    Terrenas guarda em si o arquétipo local de paraíso, lar da sensação de férias eternas, como uma colônia onde turistas gringos usufruem das benesses locais sem preocupações maiores, unicamente travadas pela – ainda assim pequena – possibilidade de contaminação com doenças venéreas. Não é exatamente este o caso de Annie, que se vê engodada e explorada, invertendo o paradigma de que o homem civilizado se aproveita da ingenuidade do bom selvagem, uma vez que é o casal formado por Noeli e o personagem de Ricardo Ariel Toribio que a assaltam de modo discreto.

    A verossimilhança do conto é fundamentada por sua base de análise. Adaptada de Les Dollars des Sables, do escritor francês Jean-Noël Pancrazi, a fita de Israel Cárdenas e Laura Amelia Guzmán guarda muitas semelhanças com a realidade, especialmente na aviltante situação de Noeli, uma das muitas meninas que dedicam sua vida à prostituição. O roteiro não trata a personagem como coitada, ao contrário, assinala o oportunismo emocional que ela pratica, exibindo através de sua sexualidade extrema uma malandragem poucas vezes vista em espécimes de sua idade. A beleza, contrastada entre os corpos nus das duas intérpretes, mostra uma realidade dicotômica, pondo de um lado a jovialidade da moça e as incômodas rugas e magreza extrema da sexagenária.

    Curioso é notar que grande parte das cenas de sexo foi suavizada antes do filme entrar em circuito, especialmente pela condição conservadora do público de países como Argentina e México, em exibições testes. O texto de Guzman e Cárdenas se vale do estado depressivo inerente ao final da vida, como a perspectiva da velhice como motivo de lamúria. No entanto, apesar da proposta ser bastante simples, em uma narrativa linear, para o grande público há a antiga questão da relação entre duas mulheres, que afasta mentes mais retrógradas das salas de cinema.

    Apesar de tocar em questões controversas, destacar uma fotografia que valoriza as belezas naturais de Terrenas e as belas curvas da estrela em ascensão Yanet Mojica, qualquer crítica ao estilo de vida, seja dos nativos ou dos turistas, somente arranha a superfície. Não que essa pareça ser a prioridade do roteiro. O aspecto de eterna contemplação ressalta o tédio, a frivolidade e demais condições típicas do cotidiano, que até são válidas, mas que são presentes em histórias muito menos inspiradas do que no escrito original de Pancrazi. A base da história é frágil, pouco sólida, quase justificando a associação da fita à tolice de construir e fundamentar residência na areia.

  • Crítica | James Brown

    Crítica | James Brown

    James Brown 1

    O começo da cinebiografia dirigida por Tate Taylor deveria emular o suingue e sensualidade de seu objeto de análise, com um Chadwick Boseman caminhando pelo backstage rumo a mais uma apresentação, onde o poder de sua música e a sua persona seriam mais uma vez testados e aprovados pelo público. Todos os fatos mostrados após a apresentação têm em comum as aparições meteóricas do Pai do Funk pelo interior de seu país e no Vietnã, motivando as plateias formadas por soldados ávidos por qualquer possibilidade de alento e de lembranças de casa.

    Boseman mergulha tão fundo em seu personagem que em alguns momentos soa caricato, já que o próprio James Brown gostava de apresentar-se como um personagem, como o arquétipo do negro que não teme em se pôr em pé de igualdade com os brancos. Tal característica é bem mostrada na revolta causada no cantor ao tomar ciência de que aquela não seria a última atração em uma noite de shows, nos idos dos anos sessenta.

    O método narrativo do roteiro de Jez Butterworth e John-Henry Butterworth, destacando os momentos distintos da vida e carreira de Brown, imita o modo dionisíaco e desregrado dos dias do cantor, cuja temporalidade se confunde com sua conturbada personalidade. Há um cuidado excessivo do roteiro em não parecer mais uma versão branca de um filme sobre negros, como foi acusado no lançamento do filme anterior de Taylor, Caminhos Cruzados. Demonstrar tal viés através de uma fala categórica no filme faz lembrar a obviedade das biografias assinadas por Ron Howard, dono do estúdio que produziu a obra.

    As origens, com a confusa família que abandonou James e o seu passado cristão pentecostal, são mostradas como a principal influência para a música que Brown criaria anos depois, repleta de metais e movimentos pélvicos. Acima de tudo, assinala-se a predileção de James em falar diretamente ao público negro, mesmo que em muitos momentos ele tenha que se dobrar aos desejos dos brancos, seja dos empresário e donos de gravadora, seja das plateias, servindo de brinquedo. É curioso notar como a edição de cenas funciona quase sempre com uma passagem em que mostra sua revolta com os “poderosos”, os quais impunham um estereótipo racial para depois mostrar um pouco do passado de sofrimento.

    O olhar de Boseman para a câmera emula a qualidade do cantor, portando-se de frente à multidão. Seu objetivo era entreter as plateias, especialmente as pessoas que sempre tiveram dificuldade em consumir qualquer produto cultural que tivesse amarras com as suas origens. Há outros reclames, ligados ao feminismo e à discriminação sexual, algumas vezes apresentados de modo natural, mas a maioria esmagadora das ações é bastante panfletária, o que deixa o centro da discussão mais pobre, apesar da grande importância do discurso.

    Ao mostrar os pecados de Brown, há uma complacência da câmera, que esconde o personagem antes das agressões que desfere em sua esposa, violência causada pelo machismo comum aos homens de sua época. A mensagem de integração acaba rivalizando com a figura de astro pop dividindo os holofotes da ribalta, em uma tentativa de exibir uma faceta mais política do ícone musical, sob um viés poucas vezes explorado pela mídia à época em razão da forte censura a qualquer manifestação do cidadão americano de pele escura.

    Os últimos 40 minutos são dedicados a explorar a luta de Brown contra seus demônios, figuras de seu passado, tanto os que colaboraram para seu sucesso quanto aqueles que abandonaram o cantor. O mergulho à mente do homem por trás do mito é um bocado atabalhoado, exibido de modo emocional e igualmente desequilibrado. O final acaba resumindo a maioria do filme, que carece de um ritmo minimamente condizente com as qualificadas fotografias e caracterizações da época. O formato, picotado entre as épocas de sucesso do astro, garante uma sensação semelhante a de uma montanha-russa sentimental, mas o formato ainda não estava amadurecido o suficiente.

    Apesar de ter alguns bons momentos com os personagens periféricos, especialmente com Nelsan Ellis como Bobby Byrd e Viola Davis interpretando a mãe do artista, falta um maior aprofundamento nos coadjuvantes para focar na boa atuação de Boseman, que segue enfraquecida graças à falta de estofo do cenário em volta do biografado. James Brown é um filme que contém momentos muito interessantes e inspirados, mas que conta com um formato problemático, deixando-o com um aspecto morno, nem quente e nem frio, cuja digestão normalmente é problemática tanto para o espectador mais incauto quanto ao anticonservador.

  • Crítica | Corações de Ferro

    Crítica | Corações de Ferro

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    Produzir épicos de guerra sempre foi uma especialidade de Hollywood. O gênero possui uma grande quantidade de filmes, tanto os mais clássicos que tentam retratar o lado heroico daqueles soldados que enfrentaram os campos de batalha, quanto os mais recentes, que enfocam os horrores aos quais esses seres humanos foram expostos e também os que estes cometeram.

    A cada nova tentativa de produzir um épico sobre a Segunda Guerra Mundial, tema tão batido, a indústria tenta trazer ao menos uma nova visão sobre algum detalhe, seja de uma história particular ou de um evento específico do conflito, afinal, poucos temas da história são tão conhecidos quanto este, e o risco de cair na vala comum é enorme.

    A produção dirigida por David Ayer, Corações de Ferro opta por seguir este caminho e traz para as telonas como era a vida da divisão de tanques nos campos de batalha. O filme conta a história de Don ‘Wardaddy’ Collier (Brad Pitt), um sargento que comanda um tanque americano M4 Sherman com o restante de sua tropa, Boyd ‘Bible’ Swan (Shia LaBeouf), Trini ‘Gordo’ Garcia (Michael Peña), Grady ‘Coon-Ass’ Travis (Jon Bernthal) e o novato Norman Ellison (Logan Lerman).

    O filme consegue produzir uma imersão dentro da batalha de forma eficiente, e em diversos momentos conseguimos captar como era a vida dentro de um tanque de guerra, em uma época em que tudo era rústico e feito manualmente, a habilidade humana era essencial para a vitória e, portanto, cada erro, fatal. A agressividade e intensidade da batalha são reais. A edição de som, com o metal a toda hora rangendo e gritando em razão dos movimentos e dos projéteis que os atingiam, garante uma excelente experiência de batalha sob um ângulo totalmente novo.

    Porém, quando se afasta disso, a obra enfraquece de forma considerável, pois cai nos diversos clichês de filme de guerra. O novato, por exemplo, mal tratado pelos veteranos por não ser capaz de realizar as duras tarefas que a guerra exige, ao mesmo tempo aprende em alguns minutos a lidar com as perdas que o conflito impõe. Também são mal desenvolvidos e mal explorados os aspectos psicológicos dos outros integrantes do tanque, e aqui o filme assemelha-se cada vez mais ao cultuado O Resgate do Soldado Ryan.

    O personagem religioso que justifica suas ações para Deus; o personagem fisicamente imponente que usa esse fato para se aproveitar do novato que tinha a função de escritório mas que foi destacado para o campo de batalha; além do comandante que, ao mesmo tempo que é rígido com seus subordinados, dá a eles a autonomia necessária às vezes para liberar a pressão que o conflito acumula a fim de não perder seu comando. Tudo isso se torna ainda mais claro na batalha final, quando os integrantes do tanque, isolados do restante do exército, se veem na obrigação de enfrentar um contingente inimigo muito maior, e quando as chances de sobrevivência são escassas. Além, claro, da tonalidade cinza-escura e suja que o filme de Steven Spielberg também trouxe para o cinema de guerra.

    Dessa forma, David Ayer não consegue dar ao seu longa a profundidade necessária a um épico de guerra ao qual nos faça conectar, com personagens que façam envolver-nos a ponto de entender quem são e por que agem daquele jeito, ou mesmo nos importar com as perdas infligidas à equipe. As resoluções e discursos são rasteiros e ao final o que sobram são as excelentes cenas de batalha. E a vontade de rever O Resgate do Soldado Ryan.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | O Jogo da Imitação

    Crítica | O Jogo da Imitação

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    Morten Tyldum tenta fazer jus à biografia de um homem notável e peça fundamental para a computação, evolução tecnológica humana responsável pela quebra de paradigmas em vários campos. O Jogo da Imitação emula a invenção da máquina moderna, analisando delicadamente a trajetória do criptoanalista, matemático e pai da ciência computacional Alan Turing.

    Num primeiro momento, mostra-se um memorando de 1951, com um Turing – vivido por seu debochado intérprete, Benedict Cumberbatch – já resignado. A esta altura, o cientista já havia ajudado muito o seu país, realizando préstimos durante o confronto aos nazistas. Logo, o roteiro leva o protagonista para o crivo dos mandatários do exército britânico, com dificuldades em destravar um código dos inimigos, tendo no obstáculo em decifrar o Enigma um enorme problema. A persona problemática de Turing faz dele uma pessoa supostamente pouco indicada para o ofício, mas a pressa de frear a quantidade exorbitante de baixas de guerra faz o cientista e seu superior Stewart Menzies (Mark Strong) se alinharem com o mesmo propósito.

    Logo, a misantropia latente do pensador se manifesta, desagradando a cada um dos outros membros do laboratório para o qual trabalha. A equipe que estava em pé de igualdade com o cientista logo sofreu com um duplo infortúnio, sendo ambos incômodos, o cientista ao grupo e vice-versa. Alan vê na criação de sua máquina o único modo de lidar com as mensagens criptografadas, enquanto os outros tentam, em vão, distinguir o que é pronunciado em alemão. Após idas e vindas, os membros do grupo finalmente se unem em torno de um bem maior e da cooperação em completude, formando, então, a Equipe Ultra.

    Apesar de haver um problema no ritmo do filme, que algumas vezes recorre a uma monotonia latente, são os diálogos o principal aspecto positivo do roteiro de Graham Moore. O retrato da genialidade do biografado é muito bem feito, em alguns momentos muito mais inspirado que seu primo estilístico, também concorrente à premiação da Academia, A Teoria de Tudo. O Jogo da Imitação também ganha melhores ares por não ser tão preocupado em apresentar uma história chapa branca, protegendo bem menos os personagens que orbitam o herói da jornada, certamente pela distância muito maior de tempo entre a história que Tyldum narra e a atualidade.

    Mesmo contando com um elenco recheado de nomes conhecidos, nenhuma das atuações serve de comparação com a personalidade representada por Cumberbatch. Keira Knightley exibe uma performance apaixonada com sua Joan Clarke, mas nem de longe tão inspirada quanto no recente Mesmo Se Nada Der Certo. O mesmo pode ser dito de Mathew Goode, que faz o cientista Hugh Alexander, ainda que seja bastante plausível a sua face apagada, já que é uma bela escada para o trabalho do protagonista.

    O maior inconveniente da fita são os resgates ao passado, com cenas da infância de Turing, tendo de conviver com a genialidade que batia à porta e a dificuldade que tinha de ter relações com outros garotos. Tais partes da obra pouco servem ao enredo, sobrecarregando-o na maioria das vezes, visto que toda a mensagem de ódio de si do personagem principal é revelada na sua fase adulta. O molde e o costume de contar todos os meandros da vida do protagonista biografado são uma muleta desnecessária para tão rica apresentação.

    A corda bamba emocional a qual o herói se submete, convivendo com a sua cada vez mais indisfarçável condição sexual, atormenta-o por interferir diretamente em sua identidade pessoal, além de atrapalhar qualquer possibilidade de crescimento dentro dos desígnios militares. O flagrante da homoafetividade do protagonista não é feito de modo sensacionalista, pelo contrário, é usado como uma boa artimanha do roteiro para assinalar a paranoia que era parte da função dos matemáticos durante a Grande Guerra, e também o quanto sua personalidade é absolutamente solitária, fechada em si, não tanto por ódio ao outro, mas sim pela impossibilidade de se relacionar de modo minimamente saudável, dada a falta de sociabilidade tão entranhada em sua vida.

    A proximidade do gênio da computação com Winston Churchill, ainda que não seja mostrada em tela, é utilizada como modo de discutir a necessidade da guerra, porém de um modo nada óbvio. Apesar de não tratar os agressores de Turing como objetos de vilania, O Jogo da Imitação usa os aspectos da vida do matemático para ressaltar seus dotes científicos e a tristeza e miséria existencial, muito bem fundamentadas em Alan Turing: The Enigma, de Andrew Hodges. Apesar da grande quantidade de problemas na obra, o que fica na mente do público é a belíssima contribuição de Cumberbatch ao mito, assim como a generosa direção de Tyldum, que permite ao artista desenvolver seu papel sem limites, sobrepujando o formato do filme.

  • Crítica | Um Santo Vizinho

    Crítica | Um Santo Vizinho

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    Politicamente incorreto, Um Santo Vizinho, do diretor Theodore Melfi, conta a biografia de Vincent de Van Nuys, um veterano de guerra que, habitando um bairro suburbano, vive uma rotina distante da de um comum homem sexagenário. Sua condição financeira precária ajuda a formar a imagem de completa decadência, de espírito, corpo e alma, motivo que justificaria a completa ausência de educação, sensibilidade ou mísero esforço em ser uma pessoa aceitável em comunidade.

    Bill Murray consegue imprimir em seu personagem uma antipatia quase automática. Seu modo de tratar as pessoas é odioso, mas compreensivo, possivelmente fruto de um desprezo constante a sua condição de ex-combatente ignorado pelo governo, a quem serviu. Suas relações não passam da frivolidade. A ausência de seres humanos que o cercam não por obrigação – destacando-se a prostituta Charisse (Naomi Watts) que o satisfaz – o faz ser rude com qualquer ser que o orbita, incluindo sua nova vizinha Maggie (Melissa McCarthy), a qual acaba conhecendo a pior parte do carisma do ancião, após um acidente de mudança.

    Maggie é mãe de Oliver (Jaeden Lieberher), uma criança de infância conturbada, fruto do divórcio de seus pais e da responsabilidade de habitar uma escola nova, em uma cidade nova, sem nenhum conhecimento prévio ou habilidade maior de socialização. Após esquecer as chaves de casa, o menino acaba inconvenientemente invadindo a privacidade do homem velho, que o recebe a contragosto em sua casa, fazendo as vezes de uma nada apropriada babá.

    O roteiro de Melfi explora a multiplicidade de comportamentos, revelando universos completamente distintos de uma família um tanto carente e de um homem que não se importa com ninguém além de própria rabugice. Apesar da premissa repetida, é o carisma – ou a completa falta do sentimento – que faz com que as personagens sejam abraçáveis pelo público. Personas antissociais e com dificuldade de interação tornam-se cada vez mais comuns ao gosto geral, visto que os ditos inapropriados ao convívio diário saíram de suas cavernas, exigindo ser representados em tela, não mais somente por anti-heróis mal encarados, mas também por cidadãos ordinários.

    Apesar de se afeiçoar ao menino, claro, de modo lento, os problemas de Vincent não somem automaticamente: ele continua em sua jornada rumo ao suicídio gradativo, qualidade negativa que se assemelha ao drama de Maggie em tentar manter a guarda de seu filho, mesmo com seus crescentes problemas financeiros. Na prática, os dois personagens adultos têm a mesma característica, que é a carência de espírito, manifestada em Maggie como o medo de perder seu motivo de viver, tendo no comportamento odioso a parte de Vincent. O menino, peça inocente na equação, também guarda enormes problemas de aceitação, semelhança que cada vez mais une o incompreendido trio.

    A ternura da fita é presente em avatares estranhos. Enquanto a relação entre um velho misantrópico e um menino inocente é carregada de brandura e doçura, o papel da igreja e religião é discutido além da crença comum no Divino, com o cuidado do texto em não vilanizar a instituição enquanto a critica.

    Ao contrário do que a trajetória do herói normalmente revela, a evolução do quadro em Um Santo Vizinho não tem nada de edificadora, especialmente em relação ao julgamento da custódia de Oliver. Ao descobrir os lugares onde Vinny levava o garoto, ela o confronta, em uma cena que visualmente distingue ambas rotinas, com a câmera posicionada em plano aberto, onde seu meio divide as propriedades dos vizinhos, exibindo uma cerca de arame que separa o quintal árido do sexagenário e o verde lar da enfermeira cuidadosa. Dois lugares distintos, cuja interseção humana – Oliver – une-os de maneira inexorável.

    A falida moralidade é fortemente reprovada, assim como a individualidade exacerbada dos que não têm qualquer crença maior, como é o caso de Vincent. A paralisia na fala, que o personagem sofre na metade final do filme, ajuda a retratar o quão retrógrado é seu modo de vida e o quanto isso faz mal a todos à sua volta, especialmente a ele próprio, num modo de existir absolutamente triste.

    A beatificação do personagem título ocorre a despeito de todas as trapaças que ele cometeu ao longo de sua existência, numa mostra de que a redenção pode chegar mesmo após longos anos de completo desdém geral. Oliver se esforça para produzir um belo discurso que glorifica os feitos do passado e do presente de Vincent, destacando suas qualidades, indo na contramão do que a opinião pública diria. A possibilidade de queda por motivo de depressão é concluída com maestria pelo pequeno rapaz, que, mesmo em sua ingenuidade infantil, consegue enxergar além das óbvias aparências. O modo leve com que a fita é levada contradiz a postura de seu protagonista, mas condiz com cada aspecto sensível do texto dramático, exibindo um final surpreendente para a jornada do rabugento vizinho, que segue sua existência sem ser complacente com o conservadorismo ou com o politicamente correto, mas conseguindo, ao seu modo, se aproximar da felicidade.

  • Crítica | Jimmy’s Hall

    Crítica | Jimmy’s Hall

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    A atmosfera dos anos trinta é saudada logo na introdução da nova produção de Ken Loach, com uma trilha sonora apoiada no jazz, em que o som dos metais faz a dança da crise parecer assustadora. Os fotogramas, unicolores, mostram a população em meio a uma filmagem azulada, passando por árduos percalços, símbolo de um capitalismo decadente, pré-Segunda Guerra Mundial.

    Neste mundo, habita o irlandês James Gralton – Barry Ward – que, após uma década inteira longe de seu país depois de deportado, pode retornar à terra que tanto amava, apesar da malfadada tentativa de desvencilhar sua pátria do Império Britânico. As condições simples da casa de seus antepassados revelam muito o modo de viver em que Gralton se insere: sua origem operária é mostrada em cada detalhe pensado pela competente direção artística de Stephen Daly. Caso não houvesse por parte do público qualquer conhecimento sobre a figura de Gralton, muitos dos elementos que compõem sua ideologia socialista seriam evidenciados pelos elementos visuais de cunho humilde que orbitam ao seu redor.

    A simples presença de Jimmy no lugarejo incomoda os poderosos. Um representante do clero vai confrontá-lo, sem qualquer sinal prévio de hostilidade, unicamente por este habitar a mesma terra que os “justos homens conservadores”. A paranoia e o medo vermelho já eram presentes no discurso e ação dos britânicos soberanos, mesmo que qualquer resistência por parte dos irlandeses fosse semelhante à execução de cócegas em um ser agigantado, como era a extensão do poder dos servos da rainha. Mesmo diante da disparidade de poderio armamentista, Gralton não sossega seu espírito, ainda que a maturidade tenha feito dele um homem que não se inseriria em confrontos gratuitos.

    De volta ao lugar que chamava de lar, James reabriu o salão de dança que abandonou em 1921, fazendo do lazer típico do lugar uma reunião entre amigos eruditos e pessoas cujo pensamento não se restringe ao que os mandatários ordenam. O simples ato de dançar torna-se algo diabólico aos olhos dos descontentes religiosos, como se os passos ensaiados naquele local fossem dar margem para o pensamento anti-cristão. A sociedade é coagida a perseguir aqueles que lá frequentam, enquanto os pais preocupados punem fisicamente os filhos que lá habitam.

    O senso de oportunidade do socialista apita, fazendo de seu discurso sobre justiça algo inflamado, justificado em cada crítica pelas ações arbitrárias dos que detêm o poder e, consequentemente, os meios de produção. A simplicidade das coreografias no hall de Jimmy serve como uma forte alegoria para o discurso marxista (semelhante ao que George Orwell fez em Revolução dos Bichos), fazendo valer os preceitos do Manifesto Comunista por meio de metáforas que saltam aos olhos de quem já leu Marx e Engels.

    A comoção que James proporciona ao povo é também aplicado a alguns de seus adversários, que não conseguem ver em sua conduta qualquer motivo para desaprovação. O jovem padre Seamus (Andrew Scott) não consegue conter sua fúria ao tentar demover seus colegas dos desejos de cercear a vida do camponês. A perseguição que sofre faz de Galbror um mártir, obrigado a ter de deixar seu país mais uma vez, ainda que suas ações nem tenham sido tão contestatórias. Sua vida seguiria até os anos quarenta, em Nova York, sem poder retornar à sua terra natal, mas ainda munido da coragem de um sujeito que dedicou sua vida a um ideal e a não desistência.

  • Crítica | O Último Concerto

    Crítica | O Último Concerto

    O Ultimo Concerto - poster nacional

    Composto por um incrível elenco talentoso, com Christopher Walken, Philip Seymour Hoffman, Catherene Keener e Mark Ivanir, O Último Concerto, primeiro filme dirigido por Yaron Zilberman, apresenta um quarteto de cordas de longa carreira musical para discorrer sobre a arte, o cotidiano e as relações pessoais corroídas pelo tempo.

    A figura dos quatro músicos do quarteto The Fugue (A Fuga) é um extremo do roteiro para intensificar a discussão destas relações. Qualquer grupo duradouro, seja ele artístico ou qualquer união diária focada em uma missão específica, reconhece que, em algum momento, fissuras começam a surgir. Aos poucos, a possibilidade de união completa de um determinado número de pessoas perde a neutralidade e tensões se tornam flutuantes.

    O agravante que desencadeia a desarmonia surge ao acaso, em um acorde dissonante que o violoncelista Peter Mitchell (Christopher Walken) produz, não conseguindo a perfeição exigida de sua habilidade. O músico descobre que está desenvolvendo o estágio inicial da doença de Parkinson e pede ao grupo um curto período para tentar se reabilitar ou deixar o grupo nesta temporada.

    A discussão envolvendo um novo integrante no quarteto desperta as tensões submersas escondidas pelo amor a música. Após tantos anos de trabalho em conjunto, o grupo reconhece que qualquer mudança necessita de um novo começo. A troca de um violoncelista produzirá outras texturas sonoras.

    Um quarteto de cordas é um dos grupos de câmara mais conhecidos da música clássica. É um grupo mínimo que concentra em seus integrantes a capacidade de grandiosas interpretações. Normalmente, é formado por uma viola, um violoncelo e dois violinos, o primeiro produzindo a linha melódica, e o segundo acrescentando interpretações mais graves ou outras variações. Além de cada integrante representar uma base para a harmonia sonora, os músicos desempenham um papel dentro do quarteto. Peter Mitchell, o mais velho da equipe, foi o professor de música convidado a participar do conjunto idealizado por Daniel Lerner (Mark Ivanir), o primeiro violino. Por ter promovido a seleção de participantes, Lerner se sente uma parte maior do quarteto. A viola e o segundo violino são executados por um casal, Julliete Gelbart (Catherene Keener) e Robert Gelbart (Philip Seymour Hoffman), vivendo uma tensão interna a respeito do talento do marido e o desejo de se tornar, um a um, alternadamente, o primeiro violino. A corrupção do grupo, outrora uma entidade unificada, produz reações diversas em cada um de seus integrantes.

    Christopher Walken compõe o músico de idade avançada que tem consciência de que o corpo físico começa a ser um desafio à paixão pela música. Trata-se de um entardecer de sua grande carreira de músico. Uma fragilidade que o aproxima da falecida esposa, reconhecendo que, em breve, se juntará a ela novamente.

    A briga interna do casal de músicos surge com a insegurança do marido, que se sente deslocado e desacreditado do desejo da esposa em não modificar a harmonia musical, não o apoiando como o primeiro violinista. A rejeição musical afasta-o da construção familiar, e Robert encontra conforto em um caso com uma dançarina que o considera brilhante. Uma vaidade do processo artístico representada por este homem.

    A dupla de músicos possui uma filha adolescente (Imogen Poots), que segue os passos dos pais, mas se incomoda com a profissão. Com a família vivendo da arte em viagens itinerantes, entre turnês e eventos de divulgação, a filha foi deixada em segundo plano. Provavelmente, dedica-se a música como uma maneira de chamar atenção dos progenitores, fato que se concretiza na relação com Daniel, o primeiro violino do quarteto, fechando o círculo de degradação da equipe consagrada.

    A fragilidade destes acontecimentos demonstra que não são necessárias mudanças bruscas para que o sistema de relações se modifique. Basta um acorde fora do tom repetidas vezes para ocorrer uma explosão de sentimentos, que destroem a neutralidade, a harmonia, o amor.

    A obra apresenta a inevitabilidade do fim. Devido à presença de quatro personagens centrais, observamos a maneira de cada um lidar com as dissonâncias relacionadas ao que consideram inaceitável dentro destas relações. A música funciona como um objeto-símbolo, a paixão maior que une os personagens, lhes proporcionando anos de sucesso, infelizmente incapaz de mantê-los unidos quando as notas parecem mais amargas do que antes. Uma bonita ode ao trabalho do artista e uma destruição do mito de perfeição que costuma circundá-lo.