Categoria: Críticas

  • Crítica | Êxodo: Deuses e Reis

    Crítica | Êxodo: Deuses e Reis

    Êxodo - Deuses E Reis 1

    A frieza dos números proferidos antes da ação começar é quase como um alerta, um aviso aos desavisados sobre a morosidade que estava prestes a ocorrer. Passados 1300 anos antes da “era comum”, somados a 400 anos de escravidão do povo hebreu, Ridley Scott foca a parte burocrática da Bíblia para introduzir o público no épico que retrata o segundo livro das escrituras cristãs sagradas, no qual se destaca um povo devoto, apesar das adversidades que ocorrem em seu cotidiano escravagista.

    O Moisés de Christian Bale seria um resistente. Mesmo nas cenas em que é mostrado agindo a favor do país que o acolheu, percebe-se um bocado de hesitação, fruto de uma desconfiança ainda não justificada, visto que o filme começa com o protagonista já adulto. Coincidentemente, a trajetória do Libertador começa semelhante a de outro herói ao qual Bale deu vida, pois Batman e Moisés começam suas jornadas na meia-idade – ainda que em Batman Begins haja variados flashbacks da traumática infância do destemido protagonista, e o segundo já comece mostrando Moisés ornado com vestes douradas, remetendo à condição real do hebreu criado no palácio.

    Um dos pontos facilmente notáveis é a estrutura narrativa “clonada” de Gladiador, talvez o último sucesso indiscutível do diretor. A posição do herói, antes ao lado do tirano império para depois voltar-se contra ele, é a mesma, assim como a estranha coincidência entre Maximus e Moisés, ambos muito admirados por seus mentores, em detrimento da figura que sucederia o trono da instituição monárquica. Reside o primeiro dos muitos problemas de Êxodo na completa ausência de interpretação do estrelado elenco. Quase todas as performances são realizadas no piloto automático, exceção, talvez, de John Turturro, que faz um iluminado Seth – faraó do começo do filme. Sigourney Weaver, Ben Kingsley, Bale e até Joel Edgerton atuam de forma mecânica, com muitas dificuldades de demonstrar qualquer sentimento em tela, o que prejudica demais a rivalidade que deveria haver entre o futuro faraó Ramses (Edgerton) e seu primo/irmão Moisés.

    Apesar do caráter épico da obra e das cenas em CGI serem deslumbrantes, o mesmo não se pode dizer da postura do protagonista. O Libertador de Israel deveria mostrar-se um sujeito em franca evolução, um incrédulo que passa a acreditar no Deus de seus pais e que, com o tempo, retorna a confiança que tinha desde os tempos em que reinava sobre todos. Quanto à primeira parte, não há crítica alguma. Bale consegue interpretar bem o herói falido, mas não consegue ser nada parecido com o colossal personagem bíblico. Não parece a figura imponente que deveria subjugar o inimigo comum do Povo de Deus, representado por Babilônia e Roma em tempos posteriores e neste, mostrado como o Egito. A frase dita pelo príncipe egípcio de que “a verdade não é uma boa história” se encaixa perfeitamente no arquétipo do personagem, ainda que essa “verdade” seja bastante discutível.

    A primeira recusa ao chamado transforma Moisés em um homicida, em uma versão diferente da bíblica, mas fiel em essência e ideia. Esse é o catalisador da mudança que o leva a ser pastor e pai de família. No entanto, a transição é problemática, pois seu retorno à terra dos escravos como um eremita faz Moisés parecer insano, um louco que cedeu à pressão dos muitos anos no deserto, movido por vozes de Um Invisível. O estigma de louco piora ao revelar o comportamento de seu futuro discípulo, Josué, vivido por um Aaron Paul ainda mais entorpecido do que em Breaking Bad.

    Moisés logo abandona o arquétipo de resignado profeta para se tornar um guerrilheiro visionário, liderando os seus como o general que inspira a resistência aos tiranos. Os métodos que começa a usar são pouco ortodoxos, extremamente belicistas, errados aos olhos do Criador. A ideia de mostrar os hebreus insatisfeitos é bela – e válida –, mas soa forçada e inverossímil.

    Há uma tentativa de compensação das falhas de conteúdo com o realismo auto infligido às pragas egípcias. O visual é belo, mas não consegue esconder as terríveis falhas de motivação dos personagens centrais, especialmente o estupefato comportamento do líder israelita, que não tem qualquer segurança em seus mandos e desmandos.

    Nota-se uma leve elevação da qualidade dos filmes de Ridley Scott, mas que é somente notada pela extrema decepção que foram O Conselheiro do Crime, Robin Hood e Prometheus. Moisés é um libertário sem nuances, um líder irresoluto durante a fita inteira, incapaz de evoluir, distante demais do arquétipo de Libertador, como é conhecido na Bíblia Sagrada, não inspirando qualquer confiança ou avidez por mudança. Êxodo: Deuses e Reis tenta ter pompa e procura ser magnânimo, mas sofre os defeitos de concepção, injustificáveis sequer pelo fato de ser um blockbuster.

  • Crítica | Ida

    Crítica | Ida

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    Neve. Jardim. Pegadas na neve do jardim, ou no jardim de neve, nunca saberemos… Tudo mais branco que preto. Neve, mais neve, muito mais, e nela um brilho causado pelo que lá se cria e levanta, mesmo com o mundo engolido pela desolação térmica. O cosmo de Ida é assim, preto no branco e vice-versa, óbvio e silencioso, muito diferente daquilo que os snow flakes em Millennium, de David Fincher, escondem, num filme muito mais antigo, porém filmado em 2013. É orgulhosamente defasado, sem-vergonha quanto a isso por ser totalmente contemporâneo, debaixo dos panos, do hábito católico – por sua técnica tão antiga quanto qualquer monocromia de Ingmar Bergman, potencializada pela tecnologia de luz, sombra e de temas ainda relevantes hoje em dia. Um filme maquiado de velho e que engana quem não vê, sequer sente o que está além.

    Ida é um dos melhores filmes de 2014, e não é em vão. Sua excelência é um espelho sob o sol do meio-dia! O filme grita sem dizer nada, é um leque de assuntos sendo prata e pérola, e é universal tendo conventos como cenários contextuais, quase nunca ao ar livre, quase sempre tímido. Seu caráter de identificação subjetiva e abstrata explica a resistência por diálogos expositivos – o filme sente que não precisa dizer muito, já que os olhos fazem o trabalho dos ouvidos fácil, fácil. A cada close da noviça Anna (Agata Trzebuchowska, nasceu para o papel), águia em pele de pardal, a obra é despida em nosso subconsciente como um tiro na cara. A gente sabe o que vê, mas explicar é outra história. Quando Anna vai assistir, no escuro, na surdina, a um concerto de rock’n roll em uma de suas viagens pela Polônia com sua tia Wanda (Agata Kulesza), seus olhos desenham a aquarela de um primeiro amor totalmente incompreensível, temeroso ao extremo tanto quanto inocente acerca do instinto que brota debaixo do manto negro, moral e muito mais que só o espectador poderá – ou não – decifrar.

    Obra, portanto, de causas e consequências, muito bem contrabalanceadas sem quase um pio. A religião é, contudo, nem uma nem outra, e sim meio, caminho regulador começado no difícil passado familiar da noviça, e de término incerto até o final, um fim no mínimo surpreendente devido, o qual somos (des)preparados para aceitar, no desfecho.  A todos quer afetar com semi-conclusões e dínamos atirados a interpretação, à lucidez obrigatória do público, o diretor Pawel Pawlikowski, filósofo e escritor europeu, faz qualquer um esquecer-se da popular Polônia dos filmes antigos de Andrzej Wajda ao usar e abusar dos aspectos sóbrios, emocionais e misteriosos de outros mestres, como Carl Theodor Dreyer (A Palavra), Kenji Mizoguchi (Rua da Vergonha), Yasujirô Ozu (Era Uma Vez em Tóquio), Claude Chabrol (Os Primos), Jacques Rivette (lembrado nas cenas externas), ou o próprio Ingmar Bergman (Persona é influência óbvia), sendo Anna a provável versão feminina do santo Francisco, do clássico de 1950 de Roberto Rossellini, mas com uma certa angústia interna que remete ao Zé do Burro, de O Pagador de Promessas. O Cinema dorme em paz quando trata de emoções humanas.

    Anna é a Madalena que foi para o mar, na menção a Chico Buarque. Foi ao mundo, outro mundo, o de céu azul, azul original que Michelangelo reproduziu na capela. Um road-movie banhado na decisão pessoal de almas livres, ainda que, no filme, pesadas e trancafiadas por preceitos às vezes corrosivos nos direitos de ir, vir e ser. Tal resolução encontra seus desafios na história e seu tempero na roda de valores do filme, valores céticos apenas à falta de liberdade humana e de identificação de um ser diante do livre-arbítrio e que consiste em ser, por fim, um ser coletivo e individualmente emocional e plural. A noviça vai aprendendo isso na estrada, ao empinar pipa com sua vida no papel, lá em cima. Sempre temerosa, em contraste com a autoconfiança e mão leve de Pawlikowski, sempre ciente das escolhas e rumos do seu filme. Bela obra, ademais além de sua aparente algidez albina.

  • Crítica | O Protetor

    Crítica | O Protetor

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    Em 2001, o diretor Antoine FuquaDenzel Washington fizeram uma parceria que incendiou as telas de cinema. Juntamente com Ethan Hawke e o roteirista David Ayer, a dupla lançou o incensado Dia de Treinamento, excelente filme policial que rendeu o Oscar de Melhor Ator para Denzel por seu controverso personagem Alonzo Harris. Agora, em 2014, Fuqua e Washington retomam a parceira, mas com um resultado aquém do esperado

    Neste O Protetor, Denzel encarna Robert McCall, um cidadão aparentemente comum, com uma estranha mania de cronometrar seus atos mais mundanos. Conhecido por sua camaradagem com seus colegas de trabalho, McCall sofre de insônia e sempre passa suas noites em uma lanchonete próxima à sua casa. Lá, acaba criando amizade com uma prostituta adolescente vivida por Chloë Grace Moretz (em aparição fugaz). Quando a garota é surrada por seus cafetões, Robert resolve tomar a justiça com suas próprias mãos. Entretanto, seus atos acabam levando-o a uma guerra com o crime organizado, guerra essa que vai exigir que McCall desperte algumas habilidades especiais há muito adormecidas.

    O roteiro escrito por Richard Wenk não se aprofunda muito nos personagens. McCall, o personagem de Denzel, é retratado como um homem pacato e metódico. Logo adiante, fica claro que ele possui um transtorno obsessivo-compulsivo. Isso é interessante, mas fica uma sensação de vazio, pois não se apresenta um motivo claro para aquele comportamento e nem como ou quando aquilo se iniciou na vida do personagem. A maneira como esse distúrbio é apresentado nas cenas de ação toma uma clara inspiração em filmes de super-herói, pois o transtorno é filmado quase como um superpoder. Uma saída interessante do diretor Fuqua, mas pouco explorada. Seu passado também é pouco trabalhado, sendo apenas mencionado superficialmente quase ao final do filme. Os personagens secundários são pouco desenvolvidos, provocando uma centralização excessiva do filme na figura do seu protagonista e na prostituta vivida por Chloë Moretz, que, ainda que peça central para o ponto de ignição da trama, pouco aparece. A personagem faz um pouco de falta, mas pelo menos foge-se da figura da donzela em perigo.

    O ritmo do filme é um pouco arrastado em certos momentos, mas pelo menos o diretor Antoine Fuqua está mais contido e não tenta emular o chinês John Woo, seu colaborador em Assassinos Substitutos. Fuqua filma algumas sequências sensacionais, principalmente o primeiro embate de Denzel com os exploradores sexuais. Também se esmera ao filmar algumas sequências mais violentas, tornando-as quase poéticas. Tomem como exemplo a cena do saca-rolha e a da pistola de pregos. Porém, o ritmo um pouco arrastado e alguns exageros da trama acabam por diluir o impacto da obra. A fotografia é estilosa e se aproveita muito bem de algumas paisagens urbanas da cidade de Boston. Entretanto, uma sequência mais carregada de efeitos digitais torna-se superficial e desnecessária em meio ao desenvolvimento do filme.

    Denzel Washington, aqui, atua quase como se estivesse no piloto automático, uma vez que seu personagem não exige muito de seus talentos dramáticos. Mas, mesmo que sua interpretação esteja em modo autômato, ainda está bem acima da média dos atores da atualidade, e seu Robert McCall é um personagem carismático. Merece destaque Marton Csokas, que vive o bizarro vilão incumbido de matar McCall. O restante do elenco apenas desfila pela tela, e nem as participações de Melissa Leo e Bill Pullman acrescentam muita coisa.

    Ainda que possua muita falhas, O Protetor é uma diversão escapista que merece uma espiada. Principalmente porque fica claro que esse filme poderá representar o início de uma nova franquia cinematográfica. Vamos torcer para que o próximo seja mais caprichado que esse filme.

  • Crítica | Homens, Mulheres e Filhos

    Crítica | Homens, Mulheres e Filhos

    Homens-Mulheres-Filhos

    O acesso à internet utilizando computadores pessoais, tablets e celulares demonstra o alcance da informação nos dias de hoje. Boa parte das interações humanas é atualmente mediada pela rede – provavelmente por uma conexão sem fio – e por algum sistema eletrônico. Uma rede mundial conhecida pela população, e utilizada em demasia para busca de necessárias informações sobre como viver melhor, e pelo vício inerente a qualquer atividade humana.

    Homens, Mulheres e Filhos, sexto longa-metragem de Ivan Reitman, é adaptado do romance de Chad Kultgen, conhecido pelos romances retratando as relações – principalmente, sexuais – dos Estados Unidos. A obra traça um panorama de personagens inseridos neste moderno mundo contemporâneo onde a comunicação virtual é uma realidade paralela ao nosso cotidiano.

    A primeira cena do longa-metragem apresenta o espaço e a sonda Voyager, parte de um projeto da NASA criado em 1977 para estudar outros planetas. Em 2013, a sonda foi o primeiro objeto a sair do sistema solar. O famoso cientista Carl Sagan foi responsável pela seleção de diversas informações terrestres com o intuito de comunicar com outros seres. Estas informações são apresentadas em uma narrativa em off como base comparativa entre a vastidão do Universo e a importância da Terra, uma casca insignificante perante o infinito.

    Uma teia de personagens é apresentada diante desta era virtual. São homens, mulheres e adolescentes que mal se comunicam e utilizam o meio virtual como projeção de suas frustrações, sejam elas sexuais, como ocorre com o primeiro personagem a surgir em cena, Don Truby, um pai que acessa sites de pornografia online no computador do filho; familiares, quando Patricia Beltmeyer monitora ativamente os passos da filha, Brandy; ou utilizando-se de um meio para conquistar lucro e fama, como faz a mãe de Hannah Clint ao criar um site para a publicação de ensaios semi nus de sua filha; entre outros personagens que, em maior ou menor escala, utilizam a internet para dar vazão a seus vícios ou desvios emocionais e sexuais.

    O roteiro transforma tais elementos de maneira redutiva, fazendo cada personagem uma representação de um vício, com situações que beiram a fatalidade iminente. Relações que são alteradas pelo curso de outras vidas, demonstrando que nem pais, nem filhos têm a orientação adequada para adaptar-se a estes novos tempos. Trata-se de uma maneira extremamente dramática que enfatiza o lado negativo da relação virtual. Seria ela a base ou parte da justificativa para os duros tempos atuais.

    Sendo uma ferramenta utilizada diariamente pela grande parcela da população mundial, torna-se evidente, através de observação direta, que o mundo virtual apresenta elementos positivos e negativos. O roteiro parece calculado para ser excessivamente dramático e, dada a ênfase no lado negativo das relações e destes mundos paralelos, um tanto panfletário.

    Para fundamentar as histórias apresentadas, o bonito texto de Carl Sagan, Pálido Ponto Azul, é citado em cena e está presente no começo e no fim da trama. Um recurso para demonstrar de maneira explícita um enredo que o público já compreendeu, a saber: devemos ter consciência de como estamos lidando com as relações humanas tanto no interior familiar como no cotidiano externo.

    Em obras anteriores de Reitman, mesmo apresentando histórias contemporâneas ásperas, como a do vendedor de cigarros sem moral; da escritora de young adult que ainda vive como adolescente; do amor como uma fuga da realidade; e da gravidez na adolescência, o diretor e seus parceiros roteiristas sempre trabalharam enredos que variam tensões positivas e negativas, compondo um estilo agridoce e bem equilibrado.

    É inegável que as tramas apresentadas possuem uma base real, mas a concentração de tantos personagens exibindo seus vícios, parecendo desconhecer informações, análises, estudos e diversos elementos sobre a mudança de estruturas que a rede virtual trouxe, transforma o roteiro em um exagero calculado para provocar uma espécie de choque e de ruptura.

  • Crítica | O Abutre

    Crítica | O Abutre

    Em clima noir, longa de estreia de Dan Gilroy faz análise incisiva sobre empreendedorismo amoral e sensacionalismo barato.

    O que ocorre quando um pensamento corporativo sem limites e elementos de psicopatia convivem no mesmo corpo? Difícil imaginar… Até porque sabemos que respostas para perguntas hipotéticas costumam ser pouco precisas. No entanto, não seria de todo improvável que a solução para esse questionamento fosse sintetizada em Lou Bloom, protagonista de O Abutre, longa do roteirista Dan Gilroy, que estreia na direção.

    Análise direta e incisiva de um “espírito empreendedor” distorcido, o filme também expõe as engrenagens que movem, por meio do sensacionalismo mais rasteiro, determinado tipo de programa televisivo – bastante popular tanto nos Estados Unidos quanto por aqui. Acredite: várias situações exploradas pelo roteiro acontecem de fato – sobretudo quando a desgraça e o sangue humanos se tornam tijolos fundamentais na construção de índices de audiência. Não se trata de jornalismo verdadeiro, mas de exploração barata.

    Jake Gyllenhaal compõe um personagem tão assustador quanto verossímil. Ele personifica um empreendedorismo sem qualquer tipo de freio moral unido a uma psicopatia com delírios de grandeza. Metas devem ser estabelecidas e conquistadas – os meios para alcançá-las, seja lá quais forem, são todos aceitáveis. Sua flexibilidade de consciência é mostrada desde o início. Porém, não se trata exatamente de um vilão – classificá-lo dessa forma seria reducionista. E personagens complexos como este não devem ser minimizados ou rotulados.

    Na trama, Lou Bloom, um homem pobre, de vida solitária e dono de mentalidade ambiciosa e objetividade afiada, descobre que pode lucrar bastante ao registrar situações violentas nas madrugadas da cidade – o material é vendido para uma emissora de TV que o exibe no telejornal da manhã. Uma das diretoras do canal – Rene Russo, naquele que é, disparado, o melhor papel de sua carreira – o entende e o incentiva.

    A partir do ponto em que a cooperação e entendimento entre os dois personagens são criados, a linha que deveria balizar a ética profissional é apagada sem maiores preocupações.

    Gilroy demonstra segurança impressionante para quem senta na cadeira de diretor pela primeira vez. A direção de atores, a condução das cenas automobilísticas em alta velocidade e – principalmente – a captação das imagens noturnas de Los Angeles, num inevitável clima noir que lembra bastante alguns enquadramentos vistos em Colateral e Drive, são belas e precisas.

    Sobre esse último ponto, grande parte do mérito vai, também, para o diretor de fotografia Robert Elswit, que, em 2008, conquistou um Oscar pela concepção visual de Sangue Negro.

    O Abutre é um filme de entendimento rápido – sua trama segue uma estrutura linear e a maneira como é contada é lógica -, e o roteiro é enxuto e eficiente. Porém, convém deixar claro que esta é uma obra de digestão lenta – as reflexões que ela propõe deverão ficar por dias na mente de quem assistir a ela.

    Há abutres à solta em todos os lugares – afinal, a oferta de carniça é vasta. Este filme nos ajuda a enxergar esse cenário com lentes mais precisas.

    Texto de autoria de Carlos Brito.

  • Crítica | Meia Hora e as Manchetes que Viram Manchete

    Crítica | Meia Hora e as Manchetes que Viram Manchete

    Fazendo da piada a sua maior pauta, tentando alcançar o público popular: este é o resumo da linha editorial do jornal Meia Hora, o tabloide do grupo comunicacional O Dia. Encabeçado por Angelo Defanti, o documentário resgata as origens da publicação desde a proposta de resgatar o cunho de populacho que a antiga publicação tinha.

    Por vezes, a editora do Meia Hora foi acusada de não ter sensibilidade. O caso da briga de Dado Dolabella e Luana Piovanni foi por este viés, com uma brincadeira de trocadilho típica do jornal. Segundo Humberto Tziolas – atual editor-chefe – e Henrique Freitas, antigo editor da publicação, são “ossos do ofício, uma vez que o chamariz era valioso. O diferencial que capturava a atenção do leitor logo de cara teria de ser inédito, e não meia-boca.

    Para o teórico Muniz Sodre, o jornal popular pode fazer troça com a notícia, pois usar uma parte engraçada para evidenciar a verdade faz parte do comunicar, ainda que isso fuja um bocado do ideal, como é o caso dos noticiários populares.

    O folhetim ficou famoso por suas notórias homenagens póstumas e obituários. O gosto, ou desgosto, pelo artifício diverge de pessoa a pessoa, e o fato disto ser polêmico faz parte do modus operandi do Meia Hora. A trajetória do O Dia variou muito: de jornal conhecido pela máxima “se espremer, sai sangue” à rival do O Globo, a gazeta praticamente se tornou o único jornalzão após a queda do Jornal do Brasil. Com a adição de O Extra, que desbancou grande parte dos órfãos leitores do O Dia, o grupo encabeçado por Gigi Carvalho resolve recontratar Eucimar de Oliveira, antigo editor-chefe do jornal e criador dos formatos de O Extra.

    Pensando em algo de baixíssimo preço e voltado para o boy, para o cozinheiro, para o garçom e para toda a classe C, nascia o Meia Hora. Apesar da máxima parecer preconceituosa, o público abraçou a publicação, com as vendas caracterizando o maior diferencial para desbancar o argumento de que o leitor é subestimado.

    A base da discussão para as capas prima por fofoca, ação policial, os quatro times grandes do Rio, prestação de serviços, como anúncios de oportunidades de emprego e, claro, fofocas de famosos; a desgraça dos famosos faz o luxo do leitor.

    Outro estratagema é o tratamento dado à morte de bandidos, em que se confunde jocoso com comemoração das mortes dos culpados pela lei. A acusação de fascismo, inclusive, é, às vezes, justificada pelos editores logo depois da edição ser publicada. O tripé “Sangue, Sexo e Futebol” garante ibope; a ética é de difícil fusão. A lógica simplista é complicada, por vezes fazendo com que o jornal assumidamente abra mão da piada. Para os editores, as capas mais importantes são as provocativas, que cobram uma postura veemente das autoridades, especialmente das polícias. Esta é a parte séria.

    A autoria da ideia por trás do Meia Hora não é assumida por parte dos comunicadores. Enquanto a ex-dona do grupo, Gigi de Carvalho diz que foi ela a responsável, Eucimar prefere deixar para os outros depoentes falarem a seu respeito. Os méritos a respeito da paternidade da matéria são valorizados pelos números das vendas do jornal.

    Segundo a teoria da comunicação, não há uma abordagem menos ou mais ética, ao menos do ponto de vista da linguagem. O que pode ocorrer é o juízo de valor vazio ou desonestamente parcial, acusação na qual a publicação não é comumente enquadrada. O modo como o tabloide se popularizou pode ser encarado de duas formas: a primeira é mais crítica, abordando a tentativa de expressar o pensamento das classes econômicas menos favorecidas de maneira fútil e sensacionalista, o que gera um pensamento preconceituoso, de fobia ao pobre. Outra alternativa é enxergar a questão como mais uma manifestação dos marginalizados, que finalmente têm um material para ler que realmente os represente, não os tratando como estranhos, tampouco ditando a eles o que pensar.  Defanti faz toda a investigação que precisa via câmera. A abordagem ainda permite ao espectador tomar partido de acordo com o próprio repertório, salientando que o coitadismo com que a maioria do público do folhetim vê é indevido, já que não é ele digno de pena ou comiseração.

  • Crítica | Mercenaries

    Crítica | Mercenaries

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    Após uma trilogia inteira ser produzida, a rebarba da ideia de Sylvester Stallone em utilizar os brucutus clássicos finalmente ganha uma versão mequetrefe. Reunindo clichês, Christopher Ray, de Mega Shark vs. Crocosaurus, capitaneia a cópia de baixo orçamento Mercenaries.  Já em seu início, a obra não nega fogo, seja nas cenas toscas de combate repletas de sangue artificial, cujo efeito especial é risível, seja na construção de seus personagens, com destaque para a vilã andrógina Ulrika, vivida por uma gigante Brigitte Nielsen, a qual transpira masculinidade, expondo tanta testosterona que faria Sly se tremer inteiro.

    Sua personagem rapta a filha do presidente americano, resgatando o medo vermelho presente na Guerra Fria. Já que o ideal seria o de relembrar os plots dos action movies despretensiosos de outrora, a solução “lógica” para combater tal mal seria reunir um grupo de mulheres liderado por uma agente especial, Mona, da veterana Cynthia Rothrock, que separa um grupo de elite, formado por moças de especialidades diversas, que tem em comum o encarceramento em uma prisão especial: Kat Moran (Kristanna Loken), a chinesa Mei Lin (Nicole Bilderback), o antigo desafeto da chefona Raven (Vivica A. Fox) e a líder tática Clay (Zoe Bell). A recompensa para a força-tarefa seria o perdão total do presidente e, claro, a libertação das mulheres, caso a missão suicida desse certo.

    As cenas de perigo são tão cretinas que, em dado momento, quando a raptada Elise (Tiffany Panhilason) tenta atacar sua sequestradora, nota-se que a faca usada por ela tem a lâmina trabalhada no plástico, algo constatado no modo que a arma enverga só de encostar na pele da inimiga. Outros momentos também são incrivelmente bem construídos, como o lançamento de uma moeda, por parte de Kat, que atinge o olho de um agressor sexual. Claramente, o feminismo é uma pauta importante dentro da trama, já que o assédio moral é combatido com unhas e dentes pelas Expendabelles.

    O modo com que a Asylum conduz os seus filmes lembra muito o chauvinismo e a forçação de barra da dupla Golan e Globus e sua produtora Cannon. A crítica ao Socialismo prossegue ao mostrar uma ex-nação soviética devastada, sem organização, saneamento básico ou sinal de civilização. Lexi (Alexis Raich) é a guia do quarteto em meio ao assombrado terreno; seu amor pelos estadunidenses é exibido em cada uma das suas propositalmente tacanhas falas, compondo um patético quadro de exacerbação do american way of life. Curiosamente, o modo patriarcal implícito no modo como a política dos EUA é levada consegue conviver harmoniosamente com todo o caricato girl power do roteiro.

    Curioso que, mesmo com a validação do poderio feminino ante o homem opressor, as moças ainda se valem de técnicas baratas de sedução, artifícios utilizados ao menor sinal de necessidade e executados para debochar dos autoritários e falocêntricos machos. No entanto, mesmo em meio a uma historinha mequetrefe, são possíveis plot twists, como a traição por parte de um dos integrantes do grupo – semelhante ao que ocorreu com o personagem de Dolph Lundgreen em Os Mercenários. O quebra-pau é intenso e muito mal dirigido, como a expectativa do filme pedia. A edição varia entre cenas de câmera lenta e disparos mostrados em velocidade normal, obviamente em cenas absurdamente mal montadas, compondo uma vergonha alheia sem limites.

    Referências a Rambo são feitas, como ao se retirar uma bala sob a pele, que é claramente composta por uma camada de tecido, mostrando que o filme não se leva a sério me momento algum. A jocosidade predomina, mas não ao ponto de dar a volta por cima, tornando o que é ruim em algo bom até meados do filme. A pouca violência só começa a ser consertada no final, podendo, assim, corrigir a desigualdade com os elementos de onde se retiraram as referências.

    As moças, munidas do senso máximo de justiça, resolvem liberar as pobres meninas, exploradas por um comércio de prostituição malvado. Kat põe armas em suas mãos unicamente para as moças serem massacradas por um dos capangas maléficos, o que é natural, já que elas não tinham qualquer preparo ou noção de como se deveria atirar.

    A perseguição mostra a vilã fugindo como alguém covarde, lançando por terra qualquer possibilidade de dignidade para sua personagem, ao contrário, claro, dos atos altruístas de Clay, que arrisca a própria vida amarrando-se a uma bomba e ameaçando sua rival de acabar com tudo, até com as (remotas) possibilidades de romance entre ela e Ulrika.

    Os momentos finais quase redimem toda a falta de ação desenfreadamente ridícula da fita com um duelo a três, em que se põem à frente Bell e Loken contra Nielsen, dando uma importância maior ao ícone vilanesco do que o visto com Jean-Claude Van Damme e Mel Gibson em Os Mercenários 2 e Os Mercenários 3, respectivamente. O modo como a vilã finalmente sucumbe consegue reunir dois dos maiores bordões dos filmes de ação, com uma queda de avião acompanhado de uma explosão, faltando apenas cair um piano em cima. Mercenaries chega muito perto de decepcionar os fãs do cinema tosco moleque, mas consegue equilibrar a galhofada com a esperança de que se torne uma franquia de sucesso.

  • Crítica | Sobrevivente

    Crítica | Sobrevivente

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    O início das filmagens se dá em um mergulho nas profundezas marinhas da gélida Islândia. Baseado em uma história real, Sobrevivente remonta o conto de um grupo de pescadores que, nos anos 80, viajou em um embarque fatal, tendo sobrevivido apenas um deles – daí seu (repetido inúmeras vezes) título brasileiro. A fita marca o retorno do prodigioso Baltasar Kormákur à direção de filmes em seu país, após uma pequena parceria com Mark Wahlberg em Contrabando e Dose Dupla.

    Sobrevivente tem muitas semelhanças narrativas com Tráfico de Orgãos, filme de Kormákur de 2010, ao mostrar um mundo distante do idealizado, em que os personagens são repletos de falhas e defeitos, com rotinas boêmias e ressacas que tentam esconder uma existência sem desafios além do ofício como barqueiros. Ao embarcar, a câmera se transforma em mais um tripulante, analisando o alto mar sob um viés tão realista quanto o modo de vida dos marujos.

    A tempestade acomete o barco, derrubando seus tripulantes na superfície líquida, mas o frio intenso vai aos poucos ceifando a vida de cada um dos personagens. O espirituoso Gulli (Ólafur Darri Ólafsson), visto antes convivendo com uma bela família, se desespera para manter-se vivo, a despeito do mar revolto e das poucas possibilidades de sair dali com vida. Para não enlouquecer, ele lembra-se dos momentos marcantes que tinha com seus entes queridos, ecos de uma vida normativa e ordinária, distante do esforço hercúleo que teria de fazer para simplesmente não morrer.

    Após ficar à deriva por um tempo praticamente incalculável, Gulli chega a uma enseada, chocando-se contra as rochas de um modo perigoso, quase fatal. A fim de não perecer, o protagonista se submete a condições insalubres, lançando mão de qualquer coisa para poder se alimentar, passando, inclusive, por eventos em que a realidade é questionada, entre a improbabilidade do que lhe ocorria e a ilusão de ter finalmente se salvado, ao encontrar a civilização que buscava desde os tempos em que seu transporte naufragou. O período curto entre os eventos gera uma sensação de eternidade para si.

    Ao retornar ao seu lar, o sobrevivente é submetido a uma bateria de exames na tentativa de explicar o motivo de ter escapado da tragédia, a despeito principalmente de sua forma física rotunda. Aparentemente, sua gordura o impediu de morrer, isolando suas sinapses do efeito destruidor do congelamento, podendo, assim, fazer toda a movimentação necessária para que conseguisse sobreviver.

    Após recuperação física, Gulli tem de enfrentar o monstro do cotidiano, a começar pelo velório, sem a presença dos corpos dos antigos companheiros, que têm no mar o seu túmulo. A dor acachapante o comprime para baixo, deixando-o inerte, incapaz de chorar. Sua expressão triste é cortada por olhos arrochados, cujas bolsas embaixo das pálpebras revelam que alguém queria chorar e desabafar, mas não tinha condições nem mesmo para isso.

    Após não obter qualquer explicação plausível para a própria sobrevivência e não a dos demais, Gulli se lança em mais uma aventura marítima, superando seus temores para enfim fazer prosseguir sua vida. Após o subir dos créditos, é mostrado em uma pequena tela o depoimento do sobrevivente real, cuja sorte por ter permanecido vivo é destacada no emocionante depoimento de um sujeito que, ante o milagre que viveu, não faz nada além de perceber o quão ínfima é sua existência, possivelmente em respeito aos que perderam entes queridos na fatídica viagem. A direção de Baltasar Kormákur expõe uma abordagem bela de uma história não menos emocionante, sem apelar para cafonices ou mensagens edificantes, deixando o público tirar do filme as sensações que lhe convém sentir.

  • Crítica | Se7en: Os Sete Crimes Capitais

    Crítica | Se7en: Os Sete Crimes Capitais

    Por vezes, o cinema é acometido por coincidências relativas a lançamentos de filmes sobre temas parecidos na mesma época. Nos anos 90, vimos uma sequência de filmes de investigação criminal sobre serial killers que foram sucesso de público, desde produções excelentes como O Silêncio dos Inocentes, até genéricos como Beijos que Matam e O Colecionador de Ossos. Em 1995, o então novato diretor David Fincher também se arrisca nessa empreitada com o filme Se7en – Os Sete Crimes Capitais, tendo Andrew Kevin Walker como roteirista.

    O filme se inicia apresentando primeiramente a cidade, que não é nomeada, mas que é representada como um local extremamente urbanizado e decadente, onde a chuva não dava trégua e caía intensamente, contribuindo para dar um peso dramático extra ao ambiente. Com uma atmosfera noir, a cidade possui construções degradadas, becos velhos e sujos, lixo no chão e um submundo onde a lei não costuma entrar, lembrando muito as diversas composições de Gotham no cinema, em especial as de Tim Burton.

    Os personagens principais são os detetives da polícia local, William Somerset (Morgan Freeman) e David Mills (em limitada, porém honesta e emotiva interpretação de Brad Pitt), sendo que este último acaba de se mudar para a cidade por causa da vaga de detetive, mostrando uma ambição fora do comum. Ávido por participar, sua personalidade contrasta com a paciência e calma de Somerset, que, por conhecer a fundo a escuridão da cidade e seus habitantes, não consegue mais se empolgar com nada.

    Ao serem chamados para atender uma morte incomum (um obeso que morreu de tanto comer), ambos logo chegam à conclusão de homicídio ao analisar a cena, onde o homem morto estava preso, o que é confirmado pela autópsia. Após outro corpo, de um importante advogado da cidade, ser encontrado com a inscrição “AVAREZA”, levando-os a encontrar a palavra “GULA” no corpo do caso anterior, fica claro a Somerset que mais assassinatos parecidos virão, e que, por isso, quer abandonar o caso, já que está próximo de se aposentar, enquanto Mills quer assumir o caso de todo jeito.

    Fincher escolhe contrastar a escuridão e violência do mundo, mostrados através de seus assassinatos, com a vida particular de Mills, na qual sua esposa Tracy (Gwyneth Paltrow) luta para se adaptar a uma cidade hostil e a um apartamento perto da linha de trem que treme cada vez que surge uma locomotiva. Tracy é responsável, inclusive, por unir Somerset a Mills, convidando este para jantar em sua casa. A partir dali, a relação entre os dois passa a ser mais harmoniosa. A câmera de Fincher, aqui, já consegue mostrar algumas das características que irão marcar seu estilo, como a composição das cores em tons pastéis e a escuridão sempre rodeando cada cena, como se estivesse o tempo toda pronta para engolir os protagonistas. Além da preferência por temas obscuros que envolvem a humanidade, que irá ser debatida em toda a sua filmografia subsequente.

    Quando os detetives resolvem suas questões pessoais, a investigação assume o foco ao tomarem destaque as passagens citadas pelo assassino em seus crimes, fazendo com que os policiais busquem os livros da biblioteca pública e quem os emprestou. Assim, chegam, de forma um pouco fácil demais, ao apartamento do assassino, que foge espetacularmente, mas não sem antes de ferir seriamente Mills, que, possesso, passa a cometer erros de julgamento que irão ter seu impacto mais tarde no desenrolar da história.

    Se7en consegue compor uma investigação criminal clássica, mas não se resume unicamente a isso, pois a obra também traz à tona a discussão de que não basta somente encontrar e prender o assassino, mas sim tentar entender o que está por trás de tamanha perversidade e como evitar que mais iguais a ele surjam. Nesse ponto, o filme dialoga com um espírito cansado e desgostoso em relação à modernidade  algo que os irmãos Coen expõem em Onde os Fracos Não Têm Vez –, um sentimento ao qual qualquer pessoa atualmente consegue se relacionar.

    Dentro desta lógica, o que menos importa é justamente o resultado da investigação, tanto que o assassino (interpretado por Kevin Spacey) se entrega após ter realizado suas ações, e a explicação por trás das razões de seus crimes soa terrivelmente familiar para nós, já que a indiferença e o egoísmo das pessoas do cotidiano isolam todos em seus mundos, e somente algo chocante pode tirá-los da realidade. A atração magnética de sua personalidade lembra o icônico Hannibal Lecter, e a nossa mórbida curiosidade em saber o que move tais mentes em direção a atos tão horrendos nos faz desejar que as explanações do assassino não parem.

    As constantes citações ao “Inferno” de Dante e a outros clássicos da literatura que flertam com a escuridão da alma humana deixam clara a mensagem que Se7en e seu assassino querem passar, a da eterna danação da espécie humana ao lidar com nossos demônios. A cena final, impactante, ecoa até hoje nas mentes dos fãs de cinema como uma das mais marcantes de todos os tempos, afirmação que possui tanto verdade quanto exagero.

    Portanto, Se7en é melhor apreciado se relativamente afastado do clássico gênero policial e encarado como uma jornada por dentro da própria humanidade, e apesar de não se aprofundar muito nos temas que se propõe, por si só já garante um destaque frente às produções semelhantes do período.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Diana

    Crítica | Diana

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    O fingido e delicado sorriso de Diana, cercada de paparazzi, membros da imprensa e de súditos, é o símbolo da hipócrita atitude que predominava em seu cotidiano. A princesa, vivida por Naomi Watts, mostrava-se incômoda, cansada das inconveniências do cargo que exercia, da completa falta de privacidade, além das claras rugas que saltavam em seu rosto, fatores que agravavam seu estado de espírito, aproximando-se cada vez mais da depressão.

    O improviso e o acaso fazem uma contraposição na regulação extrema da vida da princesa recém-divorciada com a aparição do doutor Hasnat Khan (Naveen Andrews), única pessoa capaz de fazer a realeza sorrir em meio a tempos de crise e de perseguição irritante dos fotógrafos, algo tão inconveniente para a moça quanto para o público, que sente o enfado de ver o argumento deste aspecto particular da vida da Princesa de Gales repetido tantas vezes em tela. A solução, pensada pelo novo affair da soberana, é esconder a sua identidade utilizando uma peruca, que obviamente não cobre todo o semblante da alteza, mas que causa nela uma estranha sensação de segurança e anonimato.

    A popularidade e carisma de Diana fazem dela um personagem trágico, uma figura amada por seu povo mas com possibilidades mínimas de ascender ao trono. Os discursos que ela faz à imprensa passam pela bajulação ao povo britânico, assim como pela posição de assumir um papel de vitimada, de alguém injustiçada unicamente por viver segundo os próprios instintos, fugindo da preconizada figura canonizada e perfeita de uma rainha para aproximar-se da plebe, do homem e da mulher comum.

    O motivo preponderante para que o romance ocorresse foi o modo como Hasnat tratou a mulher, sem reservas respeitosas a sua condição real, interagindo com ela de modo normal. O texto de Stephen Jeffreys destaca pontos de extrema obviedade, constrangendo quem assiste à obra em razão do didatismo exercido no drama particular.

    Watts é exibida na indiscreta câmera de Oliver Hirschbiegel como um ser de fragilidade extrema, vulnerável como a realidade de sua biografada. Em alguns momentos, a abordagem lembra demais o método utilizado por Michelle Williams em Sete Dias com Marilyn, obra na qual a faceta não oficial de uma diva também é mostrada, sem medo de se exporem defeitos e imperfeições dos objetos de análise dos realizadores. Hirschbiegel já tinha feito algo parecido com A Queda, ainda que Hitler seja uma figura muito mais fácil de criticar do que a britânica.

    Os afazeres da Lady variam entre eventos beneficentes, a luta por um maior combate à disparidade social, à fome e a proliferação de doenças na África, e, claro, a condução de seu romance que se tornou público, revelando o péssimo humor e recepção de Hasnat. Curioso como um elenco estrelado e formado por pessoas talentosas não consegue garantir tantas nuances quanto as personas exigem, culpa mais uma vez do preguiçoso roteiro, que se atrela a demasiadas soluções fáceis. A preocupação com o aspecto visual da película assinala ainda mais as muitas incongruências do texto, fazendo com que a fita pareça-se com um teatro mal executado em determinados momentos. Só faltavam placas indicando “uma tragédia se aproxima”, e por pouco nelas também estaria a inscrição “e com fotógrafos”.

    A balela que predomina na realização de Diana busca resgatar a falsidade dos dias de Lady Di, especialmente nos namoros fake que protagonizava, para desviar a atenção dos seus reais sentimentos. O excesso destes eventos constitui mais um momento de cansaço extremo. Como era de se esperar, a despedida da princesa é sentimental, carregada de romantismo e idealização por parte do povo inglês. Apesar de não ter um cunho chapa-branca, o filme erra demais, exagerando na longa duração e na repetição de plots, e é inferior, e muito, às adaptações recentes de histórias que envolvem grandes personalidades, como J. Edgar, A Dama de Ferro, Lincoln e outros, fazendo de uma figura pública um objeto de um simples amor que não pôde ser plenamente concebido, caindo em uma armadilha desnecessariamente piegas.

  • Crítica | Uma Longa Viagem (2013)

    Crítica | Uma Longa Viagem (2013)

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    A Segunda Guerra Mundial é um dos temas mais férteis para produções cinematográficas, ainda que atualmente se lancem poucos filmes sobre o assunto em comparação com décadas passadas. Porém, há sempre espaço para mais uma narrativa sobre este momento histórico, seja como um panorama universal do período, seja através de histórias pessoais de homens que viveram sob domínio da guerra e guardam lembranças de traumas, batalhas e sentimentos.

    Uma Longa Viagem baseia-se na história real do soldado Eric Lomax (Jeremy Irvine/Colin Firth), um oficial britânico preso no fronte em Singapura e enviado a um campo de prisioneiros para trabalhar à força na construção de uma ferrovia. Hábil em eletrônica, constrói um rádio amador para ouvir notícias sobre a guerra e, ao ser descoberto, é detido e se transforma em alvo de tortura e maus tratos.

    A história começa nos dias atuais. No centro de veteranos, Lomax é um senhor conhecido pela fascinação por trens. Conhece itinerários, maquinários, e em uma destas viagens conhece Patti (Nicole Kidman), a mulher que será sua futura esposa. Após o casamento, a relação com a esposa permanece distante, em parte por seu incômodo em revelar a história de seu passado, motivo que lhe deixa apreensivo e com pesadelos diários. A trama entrecorta o presente com sua jornada de guerra.

    O soldado foi utilizado como um exemplo pelos inimigos para se manter a ordem local. Torturado diariamente, privado de alimentação e de um local adequado de sono, o jovem, e suas dores físicas e psicológicas, é acompanhado pelo público, atento em compreender o motivo da fragilidade do personagem quando adulto. Incapaz de superar este trauma, Lomax vê a estabilidade familiar e a convivência com a esposa se tornarem insustentáveis. Tentando evitar uma separação, o veterano realiza uma viagem de volta ao local onde foi preso para encontrar seus torturadores e obter alguma resposta que possa amenizar sua dor.

    A batalha de Lomax é a luta contra o passado e a incompreensão diante de fatos brutais vividos no período de guerra. Sua viagem é frutífera, e o ex-soldado encontra um homem que estava presente nas sessões de tortura, o intérprete de guerra Nagase Takashi. Defronte a seu antigo inimigo no confronto, o homem percebe que o outro também carrega fantasmas e traumas de batalha.

    A guerra vista de uma maneira abstrata e com afastamento histórico retira a percepção de que homens lutaram uns contra os outros e saíram flagelados destas lutas, muitas vezes questionando-se quanto à verdadeira intenção de uma batalha entre nações. A obra demonstra a inutilidade da guerra e faz uma ode ao perdão. Um reconhecimento difícil e catártico entre homens que, um dia, viveram em lados opostos. As cenas do encontro destes ex-soldados são bonitas e emotivas pela coragem em compreender o outro lado e absolvê-lo de erros passados.

    Colin Firth sustenta com qualidade a personagem, principalmente nos momentos emotivos. Nicole Kidman, por outro lado, parece demonstrar intenção de resgatar seu prestígio como atriz, mas sua personagem é fraca e funciona mais como um motivador para a mudança do marido do que como alguém importante na história. O romance dentro da vida de Lomax foi a justificativa maior para que ele, finalmente, compreenda as torturas que sofreu durante a guerra.

    Como a maioria das histórias, principalmente em tempos sombrios como o da Segunda Guerra, a trama apresenta elementos interessantes, demonstrando as facetas cruéis de conflitos bélicos e os traumas carregados durante boa parte da vida. Mas dentro de tantas narrativas retratando este período, a história parece uma repetição, e o drama sensível salva-se mais pela competência dos atores do que por um bom roteiro.

  • Crítica | Dois Dias, Uma Noite

    Crítica | Dois Dias, Uma Noite

    Situado em uma cidade da Bélgica, que emula um lugar qualquer, dadas as características universais de sua locação, Dois Dias, Uma Noite, dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, opta por analisar o viés da depressão, usando uma figura humana e deveras falha para expor o quão séria é a situação de quem convive com a doença, além de expor de modo cru o quão acachapante pode ser a rotina de quem sofre deste mal.

    Sandra, interpretada belamente por Marion Cotillard, é uma mulher comum, cujo salário ajuda a equilibrar as contas de sua casa; seu marido, o sempre presente Manu (Fabrizio Rongione) possui um trabalho cuja remuneração é baixa, frutos da crise econômica que acometeu o continente europeu. Diante do drama já instaurado, pelo diagnóstico de depressão, Sandra vê no chamado à aventura uma oportunidade para se afundar ainda mais em seu inferno mental, já que sua demissão do serviço que presta é quase certa, mudada em última hora pela possibilidade de seus colegas a salvarem, caso abram mão do bônus de mil euros a que cada um tem direito.

    O chamado da aventura ocorre a despeito dos muitos remédios controlados que Sandra ingere, sem qualquer discriminação ou bom senso, recriminado o ato somente por seu preocupado cônjuge, que, com medo, não insiste muito em criticá-la. Convencida por uma das poucas pessoas que votaram a seu favor, Sandra passa a caminhar pela cidade em busca de seus companheiros e fazê-los mudar de ideia, para não só salvar seu salário, como também sua conturbada estabilidade mental. A busca da personagem não é só por visitar cada um dos operários ou para convencê-los a aderir a sua causa, mas também vai de encontro à fuga para entrada no estado de desespero.

    Após três recusas, Sandra prossegue consumindo a droga dos tempos de doença, símbolos de uma ansiedade mal tratada junto à negligência de um vício. Os sinais da problemática são notados em seu rosto, os olhos fundos fazem até da bela Marion Cotillard uma figura digna de pena e comiseração, distante demais do usual arquétipo de musa que ocupa fora das telas.

    O preço da cura de Sandra teria que ser pela miséria de muitos. A Escolha de Sofia seria obviamente um desmando do patronado, mas a câmera convém explorar o lado de baixo da pirâmide, com dilemas da base. Os motivos de tais condições parecem não só financeiros, mas também ligados à reabilitação da personagem. A balança ora pesa para a crise financeira, ora para a doença de Sandra, exibindo um triste quadro em que os números sobrepujam as necessidades e a saúde humana.

    Após quase alcançar a meta, é feita uma proposta a Sandra, que prontamente recusa em virtude da queda de um dos seus colegas. Sua escolha é tomada pela ética, moralmente certa. Se este último ato fosse um objeto isolado, possivelmente a escolha dela teria sido encarada como um ato piegas ou cafona, mas dada toda a angustiante trajetória que fez, é natural que a opção tenha sido esta, o que condiz com todo o discurso que ela fez no decorrer de seu intenso drama, dando uma sobrevida e alento a sua lamuriosa existência. A compleição da moça muda completamente, como se o fechamento do ciclo colaborasse para a vitória sobre sua condição, a prova de que conseguiria lutar contra as adversidades que se sobrepõem a ela, aceitando a condição de que eventualmente sofrer faz parte da experiência de viver.

  • Crítica | Debi & Lóide 2

    Crítica | Debi & Lóide 2

    Debi e Loide 1

    Quase 20 anos depois da estreia do primeiro filme, após uma pouco inspirada prequência, Jeff Daniels retorna ao papel pelo qual ficara marcado ao lado de Jim Carrey, cuja carreira bastante deficitária exigia um sucesso comercial urgentemente. Sob a rédea da dupla de diretores que também comandou o filme de 94, a obra inicia-se mostrando a melancolia que está a vida de Harry/Debi (Daniels) cuidando de seu catatônico amigo, traumatizado após a rejeição de Mary Swanson – obviamente não aventada no episódio anterior. Lloyd/Lóide (Carrey) finalmente acorda, saindo do estado débil para mostrar que era apenas uma piada que durou duas décadas.

    Assim como com seus intérpretes, os tempos contemporâneos não são gloriosos. Harry está com um grave problema de saúde, com os rins danificados, e morrerá caso não consiga um órgão novo. Após uma visita aos pais adotivos de Debi, a dupla descobre que o loiro possui uma filha com Fraida Felcher, citada no filme original. Já idosa, a personagem vivida por Kathlen Turner diz que a menina foi levada para a adoção, e que não tem contato com ela desde então.

    O chamado à aventura realiza-se e eles finalmente põem o pé na estrada, repetindo e refilmando inúmeras situações cômicas, como a paixão de Lóide por uma mulher inalcançável – no caso, Penny Pinchlow (Rachel Melvin), a herdeira de Felcher –, e também os percalços na estrada e as fantasias em forma de sonho que acometem os dois protagonistas. É curioso notar que nestas imaginações há dois factoides distintos: o primeiro normalmente exclui um amigo do sonho do outro, como se as vidas deles só pudessem ser perfeitas caso a interdependência se findasse, a despeito da longa parceria; o outro mostra ambos agindo em prol da honra alheia – esse, da parte de Lóide.

    O esqueleto do roteiro contém semelhanças com Debi & Lóide – Dois Idiotas em Apuros, tanto nas lutas imaginárias fantásticas quanto as com um núcleo de bandidos, que buscam satisfazer sua ganância financeira a partir da exploração de alguém rico. Uma dupla de vigaristas acompanha o doutor Pinchelow (Steve Tom), tentando roubar seu patrimônio, constituído de recursos conquistados por sua carreira promissora de cientista. O casal formado por Adele (Laurie Holden) e Travis (Laurie Holden) decide então vigiar a dupla de estúpidos numa viagem até uma conferência a fim de entregar uma descoberta valiosa a Penny mas, atrapalhada, esqueceu a encomenda em casa.

    As rugas e sobrepeso dos astros argumentam contra o filme, especialmente por repetirem-se demasiadamente as fórmulas que deram certo antes. Ao ser resgatado e engasgar no primeiro solavanco, o velho carro/cachorro é o símbolo visual mais claro desse inconveniente, uma piada auto imposta de modo bastante humilde, não se levando a sério. Apesar da limitação física, Carrey ainda consegue fazer as piadas corporais ao estilo de Jerry Lewis, no entanto ainda existe espaço para o humor escatológico, mas com doses moderadas, já que se trata de um produto para toda a família e que visa atrair o americano médio.

    Obviamente, grande parte da graça de Debi & Lóide 2 vem da nostalgia dos fãs de Carrey e Daniels, crianças e adolescentes que cresceram com os protagonistas sentindo saudade do humor pueril, descompromissado e baseado no velho besteirol que faz muito sucesso com as plateias estadunidense e brasileira.

    Após uma briga, Debi e Lóide rompem sua unidade, indo cada um para o seu lado. Nas posições distintas que assumem, cada um à sua maneira tenta alcançar Penny. Apesar de não aparentarem, ambos sentem demais a falta um do outro, não conseguindo se sentirem plenos sem o amigo ao lado. E a iminente morte de Harry faz com que Lóide perceba que a vida é curta demais para ficar longe de quem se ama.

  • Crítica | Que Bom Te Ver Viva

    Crítica | Que Bom Te Ver Viva

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    Com uma inicial trilha de piano, prevendo a tristeza e o azedume nos fatos terríveis que seriam mostrados em tela,  Lúcia Murat utiliza-se de sua experiência pessoal para contar, através de suas personagens, o porquê e como aquelas mulheres sobreviveram aos desmandos dos governantes militares após a instituição do Ato Institucional nº 5 e a prática da livre tortura contra quem se opunha ao tal regime.

    A personagem anônima vivida por Irene Ravache recebe inúmeros telefonemas, graças a uma entrevista, retirada de outra publicação, sobre tortura sexual. Ela nega que tenha dado qualquer depoimento e diz que o jornalista em questão sequer perguntou a ela sobre esta exposição. A dramaturgia da hoje veterana atriz serve para inserir o público no mundo denunciativo, aos casos deflagrados que revelam o corpo feminino como um objeto de tortura.

    O artifício da quebra da quarta parede exerce a função de tomar a atenção pública daqueles que costumam consumir as telenovelas, e alertá-los para a flagrante realidade dos anos de chumbo, que, apesar do tempo decorrido, ainda ecoam de modo cruel nas almas daquelas moças violentadas pelo DOI-CODI e por seus semelhantes. A narradora, e única personagem representada, tem a função de pôr o dedo na ferida, uma vez que, no início, a maior parte das entrevistadas está demasiadamente emocionada, e a maioria chega a chorar ao relembrar o que a acometeu.

    Ravache beira a tragicomédia em alguns momentos, quando, por exemplo, surge a lembrança de que seu parceiro sexual deixará de “trepar” com ela por este descobrir, pela imprensa, que ela é uma mártir, fazendo-se perguntar se mártires têm necessidades humanas básicas, assim como os torturadores, demonstrando ao espectador que a “inconveniente história” das moças precisava ser lembrada e passada à posteridade, já que a conveniência está ao lado dos que trouxeram o mal à existência daquelas damas. O equilíbrio entre esquecer e conviver com as lembranças que não podem ser esquecidas, para que não sejam repetidas, e para que atrocidades como a dos torturadores serem chamados por suas profissões liberais, ao contrário dos torturados, intitulados apenas como terroristas, sequer contemplava qualquer mudança de comportamento, utilizando-se do prefixo “ex” antes de tais adjetivações. A mídia era deveras conivente nos idos dos anos 80.

    Os depoimentos dos maridos das torturadas também são interessantes por mostrarem como é a observação daquelas que tiveram marcados seus corpos, almas e mentes por parte de terceiros, porém íntimos das vítimas. O descontrole de algumas delas perante questões que relembram aqueles traumas invariavelmente as fazia bloquearem sua psiquê. Para muitas que tinham problemas como a epilepsia, era complicadíssimo dar vazão aos ataques, mesmo que fossem completamente incontroláveis na maior parte das vezes.

    Por parte das moças, alguns sentimentos “errados” sobrepunham-se ao prazer de viver mesmo após o término das torturas, como, por exemplo, a banalização daqueles que as cercavam, dado o tratamento aos presos anos depois, e a culpa por estarem vivas e tantos outros, parentes, companheiros e afins que não tiveram a mesma sorte que elas, ou mortos ou desaparecidos. O desaparecimento é também uma grande arma dos ditadores, já que pressiona sentimental e psicologicamente aqueles que esperam as notícias de entes queridos, cujo luto não pôde ser sentido, tampouco estava viva a esperança de encontrarem os desaparecidos.

    O esquecimento é a omissão daqueles que a consideram conveniente. A gravidade é ampliada quando “esqueceram” de lembrar a essas moças que elas não podem mais sentir dor, ou rememorar todas as catástrofes que aconteceram naqueles ralos metros cúbicos, imundos, repletos de baratas, lagartixas e aranhas, animais que até aquele momento continuavam assustando e causando fobia nas mulheres.

    A tecla tocada de modo mais agressivo – e necessário – é a da sexualização, da necessidade da mulher em transar, em se saciar, mesmo que sua vida pretérita fosse incomum. A vida das mulheres precisava ser comum novamente, ou o mais próximo disso possível. O prazer faz parte das necessidades básicas humanas; as dores e as marcas nos seus corpos não eram fáceis de serem arrancados, mas negar uma faceta tão presente em suas vidas seria declarar derrota, dar razão àqueles que praticaram o mal em seus corpos e em seus espíritos, e este revés não é algo que nem as mulheres, nem as companheiras e nem as ativistas políticas gostariam, afinal a luta delas e de Murat não foi em vão. Elas não fizeram parte deste acordo de silêncio e certas estão com esta atitude.  Esquecer seria trair a luta e, principalmente, seria trair a si mesma, a memória dos muitos amigos e amigas e a memória delas. A tortura fez e faz parte das vidas. O comentário final é arredio, denunciativo e inconformista, mas, ainda assim, delicado e feminino, tanto na figura de Irene Ravache como no roteiro de Lúcia Murat.

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  • Crítica | Amores Imaginários

    Crítica | Amores Imaginários

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    O cinema do século XXI é um travesti com um leve complexo de inferioridade. Também é, pode-se dizer, formado por um quadrado ou triângulo de referências básicas e latentes, de vértices com nomes, ou melhor, sobrenomes: Federico Fellini, Stanley Kubrick, Jean-Luc Godard, e por aí vai. Uma trinca, no caso, que os tempos modernos homenageiam e derivam muitas de suas glórias através das intervenções desse trio responsável, sobretudo, de muito da estrutura na qual essa arte se apoia, para o bem e para o mal. E do ponto de vista francês da miscelânea atual, cada vez menos, mas ainda bem vanguardista, a passagem do tempo parece ser mais explícita na carne, e não é pra menos. Se vem de lá a película mais antiga, faz sentido as rugas serem mais fundas na terra mãe de Georges Méliès. Que responsabilidade pensa ter essa juventude; os bisnetos de Jean Renoir querendo fazer história.

    Xavier Dolan, após Eu Matei a Minha Mãe e o tropeção merecido de Tom na Fazenda, conheceu aqui o próprio valor, ainda não imprescindível, e confia nele como só! Tenta amassar uvas para transformá-las em vinhos de qualidade, e os sabores de sua safra inicial de nada (quase não) ofendem os paladares mais exigentes, muito menos os nutridos e sedentos por novos padrões de comportamento, e coragem a tanto, é claro. Feito um Pedro Almodóvar que fala uma língua mais globalizada e bissexual, com a bandeira protetora e bem-vinda de uma nova geração de intenções e mentalidades diversificadas, calcadas na liberdade de criação e longe de ditaduras, imposições monogâmicas ou marcas severas na testa, as cores de Amores Imaginários ilustram a alma de Oscar Wilde em tempos mais libertários que o século XIX (e por vezes de libertinagem como contraste bizarro, à gosto do freguês). De qual outra maneira, senão ambígua e irrevogável, a sugestão de um trio amoroso seria acolhida em uma versão fetichista da França dos dias de hoje, refém dos experimentalismos cheios de vida de Fellini, dos matizes do design de Kubrick, e da poética revolucionária de Godard que tanto estão presentes no DNA atual, nas veias de um cinema que começa na telona e termina no YouTube?

    Tudo batido no liquidificador das belas artes, com cuidado para elas continuarem belas, numa narrativa não linear regida pela emoção, instinto de cineasta ou seja lá o que brota da psique de quem brinca de Deus, tudo ainda meio tresloucado, imaturo no exercício, é verdade, de um jovem diretor que se perde no engatinhar das manobras entre o que a linguagem tem a oferecer, e o que a mesma tende a distorcer, ou ainda, a mistificar.

    A ética artística de Amores Imaginários, o juízo do filme, grava com ferro a identidade do longa, filmado à flor da pele com uma cinefilia pingando pela vontade de se fazer cinema a sério. Contudo, a mesma ética de Dolan tem um longo caminho a trilhar nos cumes onde pode vir a adotar préstimos, mas essa espécie de comédia romântica trágica prova que o caminho é esse, e prova isso talvez cedo, na melhor das hipóteses, por mais que sua trilha-sonora de balada eletrônica nos forneça um leve “déficit de atenção” quanto a profundidade da iniciativa de principiante. Fantásticas melodias, pontuando elementos perdidos nas várias intenções, essas carentes de uma sintonia maior que ficou na vontade, entre saltos altos, nicotina e confissões de amores não correspondidos. Um filme adolescente para o mesmo público, banhado numa imaturidade convidativa, no que acaba por ser satisfatório, por enquanto na carreira de Dolan, no prazer inenarrável de uma história contada por alguém que tem fé em ser, e que quase consegue expressar ser nesse estágio prematuro que um dia sentirá saudades, um menino prodígio.

  • Crítica | O Ciúme

    Crítica | O Ciúme

    Um homem vive sua vida com a mente no passado, relembrando como eram os momentos áureos de sua carreira artística, em detrimento das poucas ofertas de trabalho que lhe apareceram. Louis (Louis Garrel) tem a confusão como modus operandi, em sua rotina empregatícia e amorosa. Em paralelo à sua derrocada na arte, há uma separação dele de sua atual esposa, a mãe de sua pequena filha, para assumir uma nova relação, livre das amarras da monogamia.

    A direção de Phillipe Garrel destaca o modo ensaísta de contar sua história, preconizada por um estilo narrativo modesto, sem qualquer medo de não apresentar pretensão. A fotografia em preto e branco torna óbvias as referências ao expressionismo, especialmente nas cenas solo, onde a mulher chora sozinha as mágoas da relação que inexiste e com os modos diferentes de suportar a dor da perda.

    Quando Louis é enquadrado ao lado das mulheres que são (ou que foram) seus pares, há um incômodo latente em sua expressão, relembrando o quão inadequado ele está com seus sentimentos, apesar dele ter sido o causador da mudança. O filme é predominantemente silencioso, com uma trilha presente quase sempre nos momentos de tensão e perseguição – esta remete à angústia e ao sentimento de perda.

    O choro e o medo fazem lembrar que mesmo que o desejo predomine sobre o amor, ainda há muito o que se perder quando uma relação é findada. O paradigma da posse sentimental é duramente escrutinado, sem qualquer necessidade de encontrar-se uma solução aceitável ou de moral positivista.

    O triangulo amoroso, de situações estranhas, faz lembrar o quão inexoravelmente complicadas são as relações e quão intrínseco pode ser o modo de vivê-las. O guião expõe de modo cru como o homem age, sem perspectiva de redenção ou vacilo de bom mocismo, mesmo com toda a trama envolvendo uma infante, que vive a absorver o comportamento errático dos que deveriam cuidar de si.

    A busca do protagonista por múltiplas parceiras revela o vazio existencial pelo qual passa, com a promiscuidade simbolizando a sua vontade de voltar no tempo, retornar a uma época sem maiores responsabilidades, de livre sexualidade. O clichê amoroso é exibido de um modo que foge da pieguice habitual do cinemão americano, deixando a reflexão por conta do público, sem indução de mensagem.

    A demanda pela identidade é a tônica em comum a quase todos os confusos caracteres mostrados em tela. As personas vão na direção de seus erráticos corações, como atores em uma peça de teatro grego, que por não terem as suas máscaras, não conseguem exercer plenamente seus papéis. A metalinguagem teatral do guião faz exacerbar a sensação tragicômica, elevando a realidade para um estado de limbo, onde a existência é bem difusa, cujas reações não se resolvem por si só.

    A conclusão do caso exibe a necessidade da posse, tolamente ignorada durante a exibição do drama. A moral do filme não é uma ode a monogamia, mas expõe uma mente constipada, cujo caráter de confusão forma um indivíduo emocionalmente inacabado, que não consegue se resolver sozinho, como a maioria dos humanos carentes.

  • Crítica | O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos

    Crítica | O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos

    A “beleza” da Cidade do Lago em chamas é a síntese do que funcionou na “nova” trilogia de Peter Jackson, cujos aspectos visuais superam, e muito, o conteúdo da adaptação. A Batalha dos Cinco Exércitos encerra, enfim, a enfadonha trajetória da prequência de Senhor do Anéis, começando pelo que deveria ter sido o encerramento: a morte do Dragão pelas mãos de Bard (Luke Evans), o herói resignado. Ainda neste início, a primeira das (muitas) cenas lamentáveis ocorre mostrando os cidadãos tentando se redimir pela honra do guerreiro, que combateu uma única vez e que é o único lúcido o suficiente para saber que não merece louros.

    A trama se divide em núcleos, como em uma novela. Da parte da Montanha, Thorin (Richard Armitage) se mostra entorpecido pelo ouro e pela Joia Real, a Pedra de Arken. O presságio da guerra inicia-se, mas a multiplicidade de  núcleos, que funcionou perfeitamente nos outros filmes, não repete seu êxito, sendo esta parte a menos interessante no início, especialmente pela proximidade da luta dos que protagonizam a alta classe dos personagens da outra trilogia.

    Apesar do ótimo começo, a batalha para salvar Gandalf (Ian McKellen) termina mal. Até o exagero de poder da parte de Galadriel (Cate Blanchett) e a boa luta de Elrond (Hugo Weaving) e Saruman (Christopher Lee) contra os fantasmas não têm qualquer conteúdo redentório se comparados ao desdobramento da aparição de Sauron, um acinte que já se mostrou errado em A Desolação de Smaug e que se repete desnecessariamente neste.

    O núcleo dos anões torna-se novamente interessante quando os elfos chegam, postados para a guerra. Como no livro, Thorin tem seus motivos justos para não querer dialogar com ninguém, mas sua postura voltada a um comportamento egoísta e maquiavélico empobrece o personagem, e especialmente a sua causa. O torpor do ouro causa uma febre no personagem, uma doença maligna mal apresentada e que facilmente convence os outros 12 anões a seguirem por tal caminho.

    O filme começa a mudar de caráter a partir da apresentação dos exércitos, em bravatas ditas pelo núcleo dos anões de Dain (Billy Connolly) e pelos elfos de Thranduil (Lee Pace), tão  logo esquecidas quando o ódio em comum pelos orcs de Azog se manifesta. Os efeitos especiais são postos à prova, não decepcionando quem os espera. A batalha é sanguinária, com mais figuras lutando entre si do que em um jogo de MMO RPG, fazendo com que os fanboys fiquem liberados a ter orgasmos múltiplos.

    O confronto ganha um caráter ainda mais épico ao finalmente apelar para o guerreiro mais esperado de toda a fita entrar em ação. Após uma reflexão do rei anão, Thorin finalmente vai à luta. Sua armada cavalga em cima de seus bodes montanheses, em busca do antigo rival.  Apesar de serem poucos, o apoio moral dado após a entrada do Rei e de seus próximos ao combate é incomensurável, e até empolgante.

    A postura que Legolas (Orlando Bloom) assume é vergonhosa. O romance não concebido de Tauriel (Evangeline Lily) e Kili (Aidan Turner) joga toda a parceria do arqueiro com Gimli em um tremendo mar de irrelevância. A comicidade excede seus limites na demonstração da velocidade de Legolas, tal como no combate mais esperado da minissaga, que se deu entre o rei anão e o Orc, que feriu seus antepassados.

    Mesmo com tantos defeitos, o embate é bastante épico. O engrossamento do caráter importante de batalhas, fodacidades pensadas por Jackson, finalmente logrou algum êxito, não o suficiente para justificar toda a embromação anterior, nem a banalização dos três maiores sucessos de sua carreira, que certamente não possuem qualquer semelhança com esta obra, graças à presunção, cafonice e ganância de seu feitor, é claro.

    A longa espera pelo velório do rei ao menos encerra a visita do cinema a Terra Média, levando-se em conta que, por enquanto, nem O Silmarillion, nem outras obras tolkienianas estão licenciadas para os estúdios. Aos fãs ardorosos, a despedida pode ser dolorosa, e o é, desde que se decidiu esticar aos montes uma história de 300 páginas, cujas lágrimas não são plenamente justificáveis; nem mesmo ante o aviso do Mago a Bilbo Bolseiro (Martin Freeman), com ciência da guerra que está prestes a ocorrer, diante de um futuro sequencial que já tem seu espaço nos anais do cinema. A porta da casa de Baggins se abrindo, para receber, enfim, seu morador, retorna, Lá e de volta outra vez.

  • Crítica | Ouija: O Jogo dos Espíritos

    Crítica | Ouija: O Jogo dos Espíritos

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    MALDITO COMPROMISSO ASSUMIDO! MALDITO! Começo assim essa crítica porque assumi o compromisso com o Vortex Cultural de ver e fazer a crítica dessa enorme tranqueira chamada Ouija: O Jogo dos Espíritos. Já nesse pequeno parágrafo introdutório, adianto a vocês que desperdicei uma hora e vinte minutos da minha vida, e aconselho a todos que fujam desse filme. E mais: se algum amiguinho disser que esse filme é bom, desfaçam a amizade com ele. Ele não é um amigo de verdade.

    Produzido pela Platinum Dunes, a empresa que cometeu Horror em Amityville, e pela Blumhouse Productions – especialista em filmes de terror de baixo orçamento, como a franquia Atividade Paranormal – o filme baseia-se no jogo de tabuleiro da Hasbro (empresa que detém os direitos dos Transformers e do jogo Batalha Naval), que é inspirado no objeto de necromancia utilizado para abrir um canal de comunicação com o além, para apresentar a história de uma garota que, inconformada com o estranho suicídio de sua melhor amiga, resolve usar a tábua Ouija para se comunicar com a defunta a fim de melhor esclarecer as circunstâncias de sua morte. Não satisfeita em fazer isso, a toupeira ainda coloca sua irmã e mais três amigos nessa roubada. Logicamente que a parada não dá certo e a patota arruma uma confusão gigante para as suas cabeças.

    A trama do filme não sustentaria um episódio de seriado, mas o diretor Stiles White tenta o tempo todo criar uma atmosfera de tensão e expectativa. Porém, tudo acaba indo por terra, pois o filme fica com um ritmo arrastado, irritante, somente se apoiando em portas que se abrem sozinhas, barulhos estranhos em locais diversos da casa, aparições da expressão “Oi, amiga”, e quando as entidades aparecem, elas não assustam ninguém. Basicamente, um amontoado de clichês mal utilizados. Só faltou a famosa cena do gato que assusta a protagonista. Para piorar, existe uma “reviravolta” completamente previsível. Fora que a fotografia do filme é um breu só e de uma indigência que chega a dar pena.

    O elenco também não ajuda: repleto de rostinhos bonitos e desconhecidos, porém qualquer refugo da Malhação é capaz de desempenhar um trabalho mais competente do que o apresentado nessa draga. Diria que apenas a protagonista Olivia Cooke, de Bates Motel, salva-se por pouco. A atriz defende com dignidade seu papel, com seus lindos e arregalados olhos castanhos arregalados transmitindo as emoções de sua personagem (basicamente um cagaço federal). A participação da veterana Lin Shaye (você a conhece de uma cacetada de filmes de comédia) é muito constrangedora. Remete aos vários papéis cômicos que ela fez.

    Resumo da ópera: fiquem longe disso aqui. Não assusta, não provoca tensão, muito menos medo. Qualquer episódio ruim de Supernatural consegue ser mais divertido que essa porcaria. Eu só de volta queria meus 80 minutos desperdiçados vendo isso aqui.

  • Crítica | A 100 Passos de Um Sonho

    Crítica | A 100 Passos de Um Sonho

    A culinária como metáfora ao cinema. E não só ao Cinema, mas a qualquer arte: Passou do ponto e o caldo engrossa pra nunca mais voltar atrás. É puro tempero, pura experimentação a partir de um paladar refinado, mesmo a favor de quem não sabe distinguir o bom do ruim, um queijo assim, um queijo assado; um quadro sagrado de um quadro estragado. Não há remendos ou curativos, isso é arte médica. Seja na panela ou numa câmera, a metalinguagem entre duas ou mais formas de expressão se faz valer na formação de um manifesto emocional ou cultural, na compatibilidade entre visões de mundo que se chocam e viram uma só. Lindo, tudo na teoria é lindo, mas em A 100 Passos de Um Sonho a culinária é mero subtexto e coerência extravisual de duas culturas (indiana e britânica), usando uma combinação de ingredientes como contraponto realmente fraco a pré-conceitos sociais, ou seja: uma mera desculpa para fazer o filme parecer comida fina, quando é só arroz e feijão requentado.

    A história do filme. Uma história de superação. Após perder a matriarca num incêndio doméstico, uma família liderada pelo pai e pelos sonhos deste e do filho mais velho se mudam de continente, em busca do sucesso e acolhimento europeu, além das espetaculares cores do oeste regional que se refletem na matéria-prima do que a família sabe fazer: cozinhar. Acabam atraindo a atenção da Madame Mallory (Helen Mirren), que como numa fábula de Pavel Bazhov não tenta lhes passar para trás e garantir a soberania de seu restaurante tradicional (como diz o slogan do pôster), mas quase os acolhe, com amor e admiração conquistados pouco a pouco pela própria família Kadam, numa excessiva duração do filme. Nada mais convencional, essa versão de Ratatouille no mundo real. Só não vale perguntar quem seriam os ratos se a visão do filme não fosse fabulesca…

    O Cinema como metáfora à culinária. Como captar com a íris de uma câmera o frescor (e o vigor, o brio) do ambiente e mixar, com a força visual de um bólido errante na tela, a infinita abundância de cores dos sítios franceses e âmbitos urbanos de Paris, ao que é mostrado no prato, em todo seu colorido que vem destes lugares? A fotografia do filme, resumindo, é espetacular. Uma cena, em especial, quando um dos casais nessa história dividida entre realização pessoal e sucesso comercial, caminham juntos pelos prados cintilantes durante a aurora crepuscular, é absolutamente exemplar a beleza que surge em nossos olhos, e debulha em prol de qualquer conceito sensorial a favor da imagem, degustada pelos nossos olhos. Quanto aos ouvidos, a trilha-sonora cumpre seu papel primordial e nada destacável a quem não se impressiona fácil, aqui, regida pelo famoso A. R. Rahman, o maestro da boa trilha de Quem Quem Ser Um Milionário?, que sabe a hora certa para pincelar no prato seus timbres extra-diegéticos, em certos momentos-chave do filme. Ainda assim, o choque musical entre ocidente e oriente em As Aventuras de Pi e Viagem a Darjeeling, principalmente o segundo, é apenas ‘‘mais completo”, para não usar de superlativos.

    Mas aonde está a alma do filme?, é a pergunta. A 100 Passos de Um Sonho é motivacional como deseja ser, ou só um filme para assistir antes de dormir e ter bons sonhos? Os matizes da culinária apresentada, e sem uma introdução adequada ao espectador que gostaria de conhecer mais do que rola nos comes e bebes da Índia, fazem relevo ou oposição ao brilho dessa história de esperança e sonho em família? A resposta é não, eles não fazem, e o filme nem chega perto de fazer, pura e simplesmente por não tentar não se ater ao lugar comum dos ‘‘filmes-estômago”. Um subgênero que já nasceu saturado esse, das iguarias e petiscos, que encontra na sua essência a razão para se colocar no Cinema, pois assistir a um filme é afinal saborear uma iguaria com os cinco sentidos, mas entendê-lo é comer de olhos vendados.

  • Crítica | Tom na Fazenda

    Crítica | Tom na Fazenda

    Quando Xavier Dolan brinca bem de Pedro Almodóvar, Michelangelo Antonioni, Rainer Werner Fassbinder e faz ciranda-cirandinha com Pier Paolo Pasolini, todo mundo ama – e não é pra menos. As boas sacadas de imagem, o carisma, o desejo pelo mundo da moda e da música, a trilha-sonora cosmopolita e extrovertida que faz seus filmes terem uma identidade chave em meio a produção do cinema francês, tudo isso marcou até então o início do garoto prodígio, que agora volta para solo nativo, o Canadá. E, de uma hora pra outra, com um filme por ano, como Woody Allen, Dolan resolve parar de brincar e deixa o playground, se achando um cineasta maduro, sério, e todas as pretensões que o leitor/espectador possa achar mais conveniente. O criador de Amores Imaginários, o melhor da primeira fase dele, decidiu que, após três filmes, já estava na hora de ter fases, e resolveu imitar Lars Von Trier numa mistura de Anticristo com Brokeback Mountain, sendo que aqui um dos cowboys já morreu antes da história começar, anunciando a tragédia que Tom na Fazenda não assume a vergonha de ser – de existir, numa carreira até agora tão bacana e, por enquanto, promissora.

    O cara gosta de atuar, mas sem uma Monia Chokri ao lado fica difícil de convencer a dor existencial de quem perdeu o amor para a morte. O filme é totalmente assexuado, muito cérebro e pouco tesão; coração: zero. Totalmente abstracionista em conceitos e aplicações de éticas artísticas e consciências artísticas que Lawrence Anyways, de 2012 – ‘‘filme-fetiche” dos mais ocos, toscos e superficiais, que recebeu nota mínima na Escola LGBT Almodóvar de Cinema –, já dava indícios óbvios de que o processo de saturação da personalidade já havia começado, concluindo-se em Tom com cenas de dar vergonha alheia (o cara não sabe filmar a beleza de um nascer do sol) e de nos fazer duvidar da sorte de principiante que Dolan pode ter tido nos seus dois bons filmes de estreia, merecidamente ovacionados como propostas ousadas de recriação de formas, já empregadas desde sempre.

    Adaptado de uma peça de Michel Marc Bouchard, o drama é tratado de forma tão fechada e controlada, claustrofóbica, ofegante, que a emoção da história, os nervos à flor da pele a ponto de explodirem, se exala não pelo tratamento das personagens – o que não existe aqui, sendo que cada figura é fruto de estereótipos de um cinema velho, que nada condiz com a expectativa do talento ‘‘original” de Dolan –, mas sim pelo desejo que esse arremedo de história –e o pior, tratado como um arremedo – acabe o mais rápido possível, ou que alguma banda de pop-rock comece a tocar um sonzinho legal pra melhorar as coisas, pelo amor de Deus.

    O diretor (mais tarde a gente vê se é cineasta mesmo, pouquinho mais de arroz e feijão), já confiante que é o Quentin Tarantino da vez, se arrisca mais longe, muito mais alto, com Alfred Hitchcock (é aqui que a gente ri), e se não cai para a morte tipo Kim Novak para a decepção de quem o acompanhava com toda a expectativa do mundo, é atacado pelo o que vem de cima, quando já se considerava intocável. Tom na Fazenda é cinema de armário, limitado, enquanto, ilusoriamente, se enxerga arrasando na parada gay. Que “menos é mais”, todo mundo sabe. Mas que ‘‘mais” pode ser ‘‘menos’’, esperamos todos que Dolan tenha aprendido. Até porque Von Trier não é exemplo pra ninguém.

  • Crítica | Hell Ride

    Crítica | Hell Ride

    Silencioso em seu início, Hell Ride é movido pela ilusão de uma musa que inebria o imaginário de Pistoleiro, personagem de Larry Bishop, ator que também dirige o filme. Logo no começo, ela é cortada, já que assim que abre a boca, termina com qualquer possibilidade de santidade na abordagem da fita. Em menos de quatro minutos de exibição, os signos visuais já demonstram a rotina do seu herói, ligada  – e muito –  a sexualidade e violência extremas.

    O arquétipo gráfico provindo dos filmes noventistas de Robert Rodriguez e Quentin Tarantino (produtor do filme) é notado de cara, ao mostrar um deserto repleto de sangue, chumbo, cadáveres e referências à figura diabólica, além de uma ode à pornografia em geral. A tentativa de emular os momentos de Um Drink no Inferno é válida, no entanto, o excesso de flashbacks e a linha temporal pouco afeita à normalidade são maneirismos que irritam o público logo no início, a despeito até da estética de “sexo, drogas e rock’n roll“.

    Ultrapassada essa excessiva transição temporal desmedida, é contada uma trajetória de vingança que remete a um infante que assiste à morte de uma índia cherokee inocente, resultado de uma inimizade entre duas gangues de motoqueiros que cobram um alto preço pela morte. Os dois lados opostos são os Victors, liderados na contemporaneidade pelo Pistoleiro, e os 666 Wings, afiliados a Billy Wings (Vinnie Jones), que com sua metralhadora/besta, impinge aço àqueles que se opõem a sua vontade e ao seu regime.

    A volúpia por repetir alguns dos elementos de ebriedade vistos em Sem Destino soa risível. Bishop filma momentos em que são manejadas drogas pesadas, causando na lente uma diminuição de velocidade, como se o mundo tentasse adequar-se à tontura causada pelo uso excessivo de entorpecentes. O artifício funcionou para os anos sessenta, mas em 2008 soa como um pastiche, como um conto caricatural sobre os elementos típicos do estilo de vida sob duas rodas.

    O elenco de coadjuvantes é estrelado pelas figuras carismáticas de Michael Madsen, David Carradine e Dennis Hopper, que tentam esconder a falta de capacidades dramáticas dos protagonistas, especialmente de Eric Balfour, que vive o novato Comanche dos Victors. Toda a curta duração do filme se encaminha para o embate entre Pistoleiro e Billy Wings. Uma vez alcançado, o entrave mostra-se truncado, mas com uma boa dose de violência extrema, qualidade que demora demasiadamente a ser explorada, mas que ainda assim é insuficiente para as expectativas ligadas a um filme B, como esse.

    Todo o sangue e depravação que vêm dos quase noventa minutos de duração do filme de Larry Bishop escondem uma mensagem de fraternidade e honra, que, no entanto, não é super explorada, uma vez que o roteiro se rende até aos clichês mais básicos como a tão repetida questão do amor imortal, tendo a justiça como o norte e objetivo a ser seguido. Em paralelo aos comentários sociais e anárquicos dos filmes que o inspiraram, Hell Ride não diz quase nada, serve apenas uma distração munida de elementos comuns aos produtos de mountain bike.