Categoria: Críticas

  • Crítica | I am a Ghost

    Crítica | I am a Ghost

    Indo contra a corrente do cinema de terror mainstream e sem se ater a clichês imensos, I am a Ghost, do realizador H. P. Mendoza, trata a lentidão da abordagem de seu filme como principal fator de suspense, levando o público vagarosamente para o estado de completo apavoramento. A história contida na fita mostra Emily (Anna Ishida), uma moça que tem insights curtos, aparecendo em diversos cômodos de sua residência, sem uma explicação mínima do porque tudo em sua vida se repete.

    A câmera manipulada por Mendoza é intrusa, adentrando a intimidade de Emily de modo invasivo, quase como se ela não tivesse uma identidade bem formada – tal prerrogativa seria explicada mais a frente. As cenas inconclusivas remetem à influência que o diretor teve no expressionismo alemão e a razão das filmagens terem transcorrido a este modo somente são explicitadas com o decorrer do filme.

    Não demora muito para que a origem da protagonista seja contada, fazendo jus ao nome do filme. Os flashs relapsos, relembrando a vivência corpórea de Emily, escondendo o segredo macabro que a fez perecer, selado sobre as falas de um contato externo. As cenas são quase todas encerradas em si, raramente há cortes seguidos sem uma claquete em forma de penumbra, em um breu assustador. A vista panorâmica aumenta a sensação de “vigiar a rotina” da protagonista, não necessariamente voltada ao medo.

    A narração da médium invisível Silvia – com a voz de Jeannie Barroga – quebra o mistério, explicitando os segredos do roteiro e de sua fórmula, mas introduz o terror do autoconhecimento. A plateia é introduzida na história através dos olhos e das atitudes de Emily, o que claramente complica qualquer associação da moça com as ações vilanescas que lhe são atribuídas.

    A explicação para a repetição de atos que corre todo o filme é inteligentíssima, se encaixando perfeitamente à sua proposta, relacionando até os cortes, sombras e os largos espaços de percepção que ela tem entre uma atitude e outra. A expectativa para mostrar o monstro que aterroriza o fantasma é enorme, e ainda mais assustadora do que qualquer premissa precipitada poderia antever. Buscar as pistas torna-se um aprazível exercício, já que a despeito até das “narrações” que deveriam elucidar, só aumentam a aura de mistério, algumas vezes até distanciando Emily de um merecido descanso.

    A busca pela autonegação fez Emily inventar estratagemas e histórias periféricas a sua, tudo para não assumir sua condição ainda em vida, que explicaria o terrível medo que a assombrou. O transtorno que ocasionou a bifurcação da alma revela que a parte entorpecida e maléfica de Emily é um signo, que serve para relembrar que a alma do homem é inexoravelmente dúbia, encerrando em si a ordem e o caos, a bonança e a maldição. O desfecho do filme é maduro, mais adulto do que a maioria de seus primos blockbusters, mostrando que a violência sofrida por ela é um ato flagelo, impingida por si, só podendo ser evitado ou revidado pela própria, num paralelo repleto de significados e de fácil associação com os dramas humanos.

  • Crítica | Saint Laurent

    Crítica | Saint Laurent

    SaintLaurent_poster

    É possível sentir o cheiro dos bastidores de um teatro, de um camarim, da sala dos objetos de cena, do estoque de cheiros concentrados e misturados, assistindo este filme. Aqui, tudo parece ter cheiro, gosto, tamanha a fidelidade e realismo do charme de uma época tão bem reconstruída, tal cena de crime, todavia, e como dificilmente deixaria de ser, com uma grande liberdade ao estigma de ficção, para que o amor possa à arte, assim, integrar a obra e vida do estilista título; figura corrompida pela própria visão de mundo que ostentava, e que o filme usa em sua identidade visual, feito manifesto inter-contextual que se orgulha de ser, em resumo.

    Um fashion film autêntico, de cabo a rabo, aberto a quem não entende ou codifica o universo dos tecidos, produzido a algo mais do que impressionar aqueles que saem de casa com a primeira camisa à vista, mas não indo muito além que denunciar as “traças” que se escondem debaixo dos panos, sem cinismo ou crítica irônica, afinal, descer do salto não é o caminho. Um trem de carga leve em trilhos de porcelana: um milímetro pra fora e tudo se espatifa em louça branca. Saint Laurent, a cinebiografia, é Cinema frágil e que tenta achar um sentido mais profundo no próprio visual, a despeito de ser uma tentativa abaixo da capacidade de quem comanda o desfile.

    O esforço por colocar um coração no robô aponta semelhança com outras biografias recentes, cada uma com seu tema, é claro: A Dama de Ferro, Sete Dias Com Marilyn, Jobs, Getúlio, Versos de Um Crime, projetos incompletos que buscam no poder de suas atuações principais um gancho e uma âncora para o que nós podemos chamar de “inesquecível”. Pura falácia desonesta, injusta e, portanto, incompleta. É por não ser assim que A Rede Social, de David Fincher, merece ser um parâmetro bem-vindo e expandido a partir de suas qualidades.

    É inusitado notar como Saint Laurent, filme logo adotado nas palavras de André Bazin, antigo e famoso crítico de cinema, tem seus tímidos arcos de história de segundo plano gravitando ao redor da concepção ambulante que é o estilista, mais homem que artista, num desequilíbrio proposital de roteiro e narrativa, na pele de um inquieto Gaspard Ulliel, bom ator, empolgado e que esconde nos olhos a ânsia de ser tão grande quanto sua moda o denuncia ser. Tudo parece tão teatral, casinha de boneca, cinema britânico de tão certinho que o conjunto é, mas ainda assim, pulsante graças a um equipo à base de soro convencional. Dosagem excessiva de eficientes atuações, novamente dando o tom sensorial na projeção.

    É belo como um plano pode ser o clímax de um filme: o criador admirando sua criatura no topo da escada, ai se esconde a sutileza, o valor, o prestígio de um filme como esse, dedicado a galgar os próprios detalhes, feito a manga abotoada de uma camisa sob um terno na altura do pulso. E é chato, contudo, como o que poderia ser mais explícito acaba sendo uma gravata escondida; escondida à promessa de mais camadas de luz a favor do marco que o filme poderia ser, não apenas “mais um”, o que não reflete a posição de destaque de quem transformou a indústria da moda.

    E com a palavra, André Bazin, que por sua vez revolucionou a crítica de cinema: “É uma tarefa ingrata, mas também a única chance do Cinema, a de tentar agradar um público vasto. Ao passo que todas as artes evoluíram desde o Renascimento para fórmulas reservadas a uma minguada elite privilegiada, o Cinema é coisa destinada às massas do mundo inteiro. Portanto, toda pesquisa estética fundada numa restrição de seu público é, acima de tudo, um erro histórico fadado ao fracasso. Um beco sem saída“.

  • Crítica | Caçada Mortal

    Crítica | Caçada Mortal

    Caçada Mortal - Poster

    Aos 60 anos de idade, Liam Neeson vive um novo momento da carreira. Após diversas grandes interpretações em papéis dramáticos – incluindo o que lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator, em A Lista de Schindler –, transformou-se em um ator de ação em razão da sempre competente performance, do carisma e do porte de 1,93 metros.

    Desde 2005, o irlandês escolheu projetos de filmes de ação, como Busca Implacável, Desconhecido e Sem Escalas, nos quais usa o mesmo estilo de personagem com eficiência suficiente para agradar aos fãs do gênero. Nesta nova produção, a ação fica em segundo plano, dando lugar a uma narrativa policial baseada em um dos personagens criados por Lawrence Block.

    Detetive particular não licenciado, o ex-policial Mathew Scrudder é a criação mais famosa do autor, sendo estrela de 17 livros até agora e, nos cinemas, também foi interpretada por Jeff Bridges em 1986. Caçada Mortal, de Scott Frank, adapta a décima obra com a personagem, um alcoólatra em recuperação que, após uma crise de consciência, abandona a corporação. A trama roteirizada e dirigida por Scott Frank (escritor de grandes obras como Irresistível Paixão e O Nome do Jogo, e tragédias como Wolverine: Imortal) é bem adaptada no estilo narrativo de Block. A prosa seca, sem muitos floreios, mantém a eficácia de sua personagem e, no filme, este recurso é apresentado ao longo de uma trama que não exagera em reviravoltas e ganchos, como diversas investigações cinematográficas atuais.

    A primeira cena, que se passa em 1991, apresenta o passado de Scrudder, aproveitando cada segundo exibido em tela. Simples e rápido, o momento serve para que o público compreenda o passado turbulento do ex-policial. A composição do detetive não reinventa nenhum padrão, mas segue o estereótipo tradicional do homem com um passado negro vivendo um presente difícil entre a negação e certa ironia contida. Uma figura niilista que, mesmo sendo um bom moço, parece não se importar com ninguém. O detetive é contatado por um traficante de drogas para investigar os responsáveis que sequestraram e mataram sua esposa. Uma morte que se revela parte de uma série maior de assassinatos.

    O assassinato e a investigação são os fios condutores da trama. Os elementos típicos de um policial herói, centrados em Scrudder e em sua mudança pós-álcool, fazem parte da concepção do gênero. O suspense carrega boas inferências de crueldade e mantém-se bem durante a trama. Trata-se de um enredo tradicional, portanto nada mais natural que o crime em si seja apresentado de maneira que choque o público inicialmente, para aliviá-lo na resolução final em que, na medida do possível, pune criminosos.

    O bom suspense não se consagra por completo devido à presença de um personagem juvenil que descaracteriza a intenção da história. Por pouco, o jovem não cai na armadilha de ser um gancho para a inevitável cena em que ele tenta algo heroico e se torna um fardo que deve ser salvo pelo personagem central. O recurso que tenta humanizar a figura fria do detetive quase é responsável por destruir a história e o suspense desenvolvidos em cena. Há muitos policiais da ficção que trabalham com parceiros esporádicos e uma equipe informal, porém, dentro da trama, parece inverossímil que o ex-policial queira envolver um adolescente em uma trama delicada.

    A repetição de personagens semelhantes em produções próximas – o personagem de Sem Escalas também era um ex-policial alcoólatra, por exemplo – retira parte da identificação literária de Mathew Scrudder. Em compensação, Neeson demonstra, além da competência, se divertir nesta nova fase da carreira, e poderia representar a personagem em outras futuras adaptações. Afinal, aos 76 anos, Lawrence Block não para de escrever. Como um bêbado sorvendo sua bebida.

    Compre aqui: Caçada Mortal – Lawrence Block

  • Crítica | À Procura

    Crítica | À Procura

    Sob planícies geladas, destacando a alva cor que a neve produz sobre o solo, À Procura remete a um estado de tranquilidade gerado por um ambiente onde quase não se percebe a ação humana. Exceto pela habitação isolada de seus personagens, indivíduos que vivem suas vidas normalmente dentro de casas modernas, ambiente que contrasta com o extremo frio que predomina do lado externo.

    A trama de À Procura envolve uma forte sensação de impotência por mostrar um pai – Mathew, vivido por Ryan Reynolds, num dos raros momentos em sua filmografia em que seus talentos são exibidos de modo conveniente – que tem suas habilidades de protetor postas à prova, fracassando de modo retumbante enquanto guardião de sua família. Na primeira conversa mais longa que seu personagem protagoniza, percebe-se um claro incômodo de quem está do outro lado da linha, forçando um sentimento de amor correspondido que não condiz com a realidade, ou com a expressão de Tina (Mireille Enos). A sensação de isolamento é novamente flagrada pela câmera num momento ainda mais evidente e palpável que o anterior.

    Um caso policial seria o motivo da discórdia, o que envolve um outro núcleo de personagens ligado à investigação criminal. O mistério quanto à origem do abismo emocional entre o antigo par logo é revelado, com informações gradativamente liberadas. Ao buscar Cass (Peyton Kennedy), Mathew se descuida, e a menina é raptada, ficando anos longe de seus parentes e tornando-se adulta, agora interpretada por Alexia Fast. O peso sobre as costas do pai é esmagador, mesmo após tantos anos. O que antes foi causado por um misto de displicência e ingenuidade provoca no emocional do sujeito uma culpa atroz, graças ao impacto gerado em seu cotidiano e, claro, nos seus sentimentos.

    O desenrolar das investigações encabeçadas por Nicole (Rosario Dawson) fazem os ecos do descuido soarem ainda mais amedrontadores na psiquê de Mathew ao ser indagado se ele teria estado em algum outro ponto antes do desparecimento de Cassandra. Mesmo a rotina dos inquéritos policiais o ofendem, uma vez que sua autoestima está abalada. O auxiliar de detetive, Jeffrey (Scott Speedman) tenta aplacar a situação, cavando ainda mais fundo dentro da cabeça do confuso pai.

    A câmera de Atom Egoyan registra o cativeiro de Cassandra, exibindo o narcisista raptor, que ao mesmo tempo que vigia sua presa, tem um espelho à sua frente, o símbolo da paranoia e da eterna autoanálise, o cuidado supremo para que nenhum detalhe fuja aos seus olhos, para que nenhum eventual acontecimento frustre seus planos. A motivação de Mika (Kevin Durand) é tão misteriosa quanto seu semblante, especialmente no que tange Cassandra. A moça é o intermediário entre uma intricada rede de exploração sexual infantil, e é ela quem faz contato com as crianças, ainda em sua cela moderna, no frio lugar exibido no começo da fita.

    A sociedade da informação se mune da alta tecnologia para praticar seus pecados morais, voltando os arquétipos pensados em 1984 por George Orwell para um dos aspectos mais podres da alma humana. Seis anos passados do incidente inicial, ambos os casos caem na rede de averiguação de Jeffrey, que logo trata de falar a mãe da menina, que enxerga na participação da filha uma monstruosidade quase tão grande quanto a que aquelas pessoas fizeram a ela, claro, culpando mais uma vez seu já débil marido.

    O viés escolhido pelo roteiro peca demais em sutileza, inserindo convenientemente os policiais no mesmo contexto dos marginais que praticam a rede de mentiras e que obviamente emboscam-nos. O mesmo se pode dizer das cenas de reencontro entre os parentes, há muito separados. Apesar de reafirmar a crueldade dos vilões, quase nada se acrescenta nos momentos de embate entre os justiceiros e os bandidos, fazendo o que deveria ser um intrigado suspense tornar-se uma desnecessária batalha maniqueísta.

    O modo como a história se fecha apresenta uma estranha sensação de que finalmente os eventos voltarão ao normal, apesar do número crescente de mortes. Além disso, a resolução é bastante estranha, como se tentasse emular a capacidade de pensamento dos que arquitetaram todo o circo emocional ao redor do rapto de Cassandra. Como em Sem Evidências, Egoyan tem em mãos uma premissa muito boa, mas apresenta uma condução equivocada, que se enrola nas próprias regras dramáticas que ele engendra.

  • Crítica | Chef

    Crítica | Chef

    Chef - poster

    Depois de dirigir o espetacular Homem de Ferro e os não tão espetaculares Homem de Ferro 2 e Cowboys & Aliens, filmes de orçamentos altíssimos que foram cercados de expectativa, Jon Favreau parece que resolveu se reciclar e fazer algo mais intimista, em cujo projeto pudesse ter maior liberdade. O resultado final foi Chef, um autêntico “feel good movie”, mas que também pode ser chamado de feel hungry movie, como bem disse um amigo meu.

    Na trama do filme, Favreau interpreta Carl Casper, chef de cozinha de um badalado restaurante de Los Angeles. Casper volta e meia entra em rota de colisão com o dono do estabelecimento – interpretado por Dustin Hoffman – por querer inovar o cardápio do lugar ao invés de manter os pratos mais pedidos pelos clientes. Certo dia, um renomado crítico culinário vai ao restaurante e critica justamente a falta de imaginação do menu do lugar, o que deixa Casper furioso. O chef então, resolve rebater as críticas através do Twitter, desafia o crítico a voltar ao restaurante para preparar um cardápio especial pra ele. Porém, o dono do local acaba demitindo Casper e servindo o menu repetido. Em um acesso de fúria, Casper acaba fazendo um desabafo e desferindo uma série de desaforos pro crítico. Toda a confusão viraliza na internet, o que acaba lhe fechando as portas para trabalhar em outros restaurantes. Sem saída, ele acaba aceitando o conselho de sua ex-esposa (Sofia Vergara) para reiniciar a carreira em um caminhão de comida.

    Gostaria de dizer que esse filme não deve ser assistido de barriga vazia. Chef abre o apetite e, se bobear, há o risco de o espectador se pegar salivando em frente à TV. Jon Favreau praticamente filmou um pornô gastronômico em alguns momentos, tamanha a sua preocupação em exibir os mínimos detalhes dos ingredientes, do preparo e do resultado final de cada prato. Isso definitivamente não é uma coisa ruim, porque somente explicita o esmero do chef Carl Casper em fazer desde um café da manhã para seu filho até os pratos mais elaborados que são servidos ao longo do filme.

    Favreau também se esmera em filmar as relações humanas que ocorrem durante o filme, seja em diálogos constrangedores – como o que ele trava com o personagem de Robert Downey Jr. (em uma ponta hilária) – ou em momentos mais ternos, como os que ocorrem entre Casper e seu filho. Mais importante ainda é que mesmo os personagens um pouco mais caricatos, como o interpretado por Bobby Cannavale, não caem no ridículo em momento algum. O editor evita estereotipar os personagens. Interessante também é a visão que o diretor tem das redes sociais. Em nenhum momento Favreau as demoniza. Ao contrário do que costumam fazer em outros filmes e em outras mídias, aqui elas têm papel fundamental na trama sem que haja exagero sobre o alcance e o poder que possuem.

    Outro ponto importante é a ótima química entre Favreau, John Leguizamo e o garoto Emjay Anthony, intérprete de Percy, filho do chef. Os três atuam de forma bem natural e sem nenhum tipo de afetação, proporcionando momentos engraçados e alguns recheados de ternura. O restante do elenco estelar também se sai muito bem, com destaque para Robert Downey Jr., como dito no parágrafo anterior, a sempre competente (e linda) Scarlett Johansson, que interpreta a recepcionista do restaurante de Dustin Hoffman (também ótimo em sua pequena participação). Sofia Vergara foge do estereótipo da latina quente e espevitada de sua personagem na série Modern Family e entrega uma atuação mais contida e bem interessante.

    Entretanto, o filme peca um pouco justamente no seu desfecho. Quando poderia seguir por uma rota mais ousada, o roteiro acaba por entregar uma solução fácil, ainda que redentora e feliz. Nada que seja capaz de estragar o brilho dessa empreitada bem executada e cheia de tempero do multi-tarefas Jon Favreau.

    Compre aqui: Blu Ray | Dvd

  • Crítica | Branco Sai, Preto Fica

    Crítica | Branco Sai, Preto Fica

    Voltando seus esforços para o cenário predominante em sua vida artística, Adirley Queiroz usa a música via rádio para estabelecer um lugar comum, a base de operações de seu Branco Sai, Preto Fica. A história é narrada a partir do cadeirante e musicista Marquim do Tropa, um rapper que vive seus dias narrando suas experiências no passado, quando frequentava uma boate disco décadas atrás, antes das muitas preocupações que envolvem sua vida atual.

    A cidade da periferia do Distrito Federal, Ceilândia é um personagem por si só, remetendo a um apartheid social semelhante ao tema discutido pelo roteiro, que destaca a segregação racial, vista no título e no grito dos policiais, que invadiam o baile, respondendo de maneira desmedida a pessoas que não praticavam mal nenhum e que tampouco tinham qualquer chance de contra-ataque.

    A carreira de Adirley praticamente destaca a valorização do rap e a sua cidade, tendo em comum a fala sobre repressão e cerceamento de direitos, ocorrida de modo arbitrário. O direito de ir e vir é a maior das privações mostradas pela lente, exemplificada pelas pernas, amputadas ou inoperantes, de seus personagens centrais.

    O elenco é formado quase em sua totalidade por não atores, o que torna ainda mais curioso o fato de os personagens retratados em tela serem levemente inspirados em seus intérpretes. A colaboração do elenco com o roteiro é notória, especialmente no que tange a cessão de muitos detalhes e corruptelas de suas vidas particulares.

    A comédia predomina em alguns pontos da fita, fazendo uma descontração necessária diante da historieta tragicômica, que emula a realidade da capital do país. O viés de ficção científica, baseado no núcleo do talentoso ator Dilmar Durães faz menção a alienígenas, seres que vêm de fora da Terra para analisar o campo de batalha que se tornou o Brasil, que através de clichês tecnobabbles grafam a disparidade existente nas vidas dos marginalizados e dos que detêm os meios de produção, resvalando num panfletarismo que não incomoda.

    O escapismo presente nas histórias paralelas se confundem com o plot principal, trazendo um bocado de espírito nonsense ao caráter de Branco Sai, Preto Fica. O desfecho guarda uma revolta com o sistema, justificada pelos anos de exploração dos que têm pele negra. O estilo narrativo denota uma coragem grande, que incita no público uma curiosidade atroz, de como seria a régia de Queiroz em um pomposo e caro blockbuster, com expectativa de que tal filme tivesse uma mensagem tão densa e reflexiva quanto neste.

  • Crítica | Riocorrente

    Crítica | Riocorrente

    A cidade disforme de São Paulo é o quarto e onipresente personagem de Riocorrente. Representa um ambiente hostil acompanhando as desventuras de um triângulo amoroso na metrópole. A primeira obra ficcional de Paulo Sacramento, realizador do excelente documentário O Prisioneiro da Grade de Ferro, produz exageradas representações contemplativas em uma história que vai além do tradicional.

    Em cena, três pilares estão interligados por uma relação carnal de amor e ódio. Marcelo (Roberto Audio), colunista de um famoso jornal de grande circulação; Carlos (Lee Taylor), lutando para sobreviver de maneira honesta sem recorrer ao crime; e o elemento que conecta ambos de maneira oculta: a relação com Renata (Simone Iliescu), uma mulher que se sente confortável na relação dupla, sem preocupação monogâmica. A narrativa apresenta personagens em condições diferentes, como uma análise sociológica das disparidades encontradas na cidade. Marcelo representa o homem bem-sucedido, morador de um modesto apartamento, e Carlos, o sobrevivente diário da agressividade das ruas.

    Acompanhando Carlos, há uma criança chamada Exu (Vinícius dos Anjos). Sua história não é revelada, mas é inferido que o garoto órfão é tutelado informalmente por Carlos. O menino transita descalço pela cidade, caracterizando o exemplo mais evidente do simbolismo da produção. Presente em poucos momentos, mas em diversos locais, Exu é como uma divindade observadora de um universo caduco. Uma criança que deveria ser inocente, mas que conheceu o lado brutal da vida.

    As cenas contemplativas apontam a cidade como uma personagem maldita. E, de maneira tímida, insere-se na trama um elemento fantástico que se amplia até o final da produção. A realidade da capital paulista abre espaço para cenas que projetam o sentimento das personagens. Marcelo, em uma madrugada vazia, permanece parado em um semáforo que nunca abre, um alerta de estagnação direcionado a si mesmo. A cabeça de Carlos entra em combustão, como se este fosse um homem raivoso vivendo um momento que não considera adequado. Representado em uma cena, há também um cartaz onde o rio Tietê aparece em chamas. Todas são personagens símbolo de uma cidade que não parece progredir. Papéis simbolísticos que se traduzem em cenas poéticas de reflexão às vezes exagerada, como aquela em que Exu encontra um Leão engaiolado. Uma metáfora de um animal selvagem preso e que parece desnecessária diante da conduta da personagem e do roteiro.

    A estética escolhida por Sacramento é um experimentalismo cênico situado entre o realismo e o fantástico, resultando em uma história lenta e metafórica, que depende de parte do público compreender as suposições que deseja em seu roteiro. Fosse uma trama mais realista, que expusesse os conflitos das personagens, talvez alcançasse um significado maior. Sendo um objeto simbólico, a obra permanece inacabada, e cada espectador deve interpretar Riocorrente para si, à procura da total compreensão narrativa.

  • Crítica | Maze Runner: Correr ou Morrer

    Crítica | Maze Runner: Correr ou Morrer

    Na última década, o cinema sofreu uma explosão de adaptações de sagas literárias contemporâneas voltadas ao público jovem. Podemos dizer que o ponto de partida se deu com a saga do bruxo Harry Potter, com sete livros protagonizados pelo personagem e suas oito bem-sucedidas adaptações. Devido a esse sucesso, pudemos ver na tela grande outros livros se transformando em grandes produções cinematográficas, como As Crônicas de Nárnia, Eu Sou o Número 4, A Hospedeira, Percy Jackson, Instrumentos Mortais, Divergente e os sucessos Crepúsculo e Jogos Vorazes.

    Ainda é difícil saber qual rumo tomará a saga The Maze Runner escrita por James Dashner, mas o primeiro filme, Maze Runner: Correr ou Morrer, dá indícios de que poderá se tornar uma franquia bem-sucedida, e esse sucesso, pelo menos em relação ao primeiro filme, que é um bom thriller voltado ao suspense, pode se dar, inclusive, por seus aspectos técnicos, haja vista que o custo da produção, estimado em 34 milhões de dólares, foi facilmente coberto, arrecadando mundialmente até o mês de novembro de 2014 mais de 300 milhões de dólares. Ademais, o filme foi rodado em menos de um mês, usando praticamente apenas três locações.

    A primeira cena já causa uma boa impressão, quando o jovem Thomas (Dylan O’Brien) acorda dentro de um elevador de carga bastante barulhento e levemente assustador. Thomas percebe que divide o espaço com alguns mantimentos e um porco. Ao chegar ao seu destino, outros jovens o retiram do elevador e o colocam dentro de uma espécie de prisão. Vale destacar que Thomas perdeu a memória e não se lembra sequer de seu nome. Minutos depois, é solto pelo líder do local, Alby (Aml Ameen), que explica, juntamente com Newt (Thomas Brodie-Sangster), que todos ali estão presos dentro de um enorme labirinto há anos e que por isso convivem de forma pacífica, cada um com suas responsabilidades. Assim, a sociedade, toda composta por adolescentes do sexo masculino, que vivem dentro do labirinto, é bem dividida entre agricultores, marceneiros, cozinheiros etc.

    Thomas percebe que, além destes prestadores de serviços, há também alguns garotos que todos os dias se enfiam dentro do labirinto buscando uma saída. Estes são os corredores. Todo dia, pela manhã, um grande portal se abre e só se fecha durante a noite, sendo que aqueles que não voltam não sobrevivem a uma única noite dentro do labirinto. Segundo Alby, criaturas conhecidas como Verdugos saem durante a noite para patrulhar a região.

    As coisas começam a mudar com a chegada de Thomas, o protagonista da trama que está desesperado para sair de lá. Os Verdugos passaram a sair durante a tarde, o que leva Gally (Will Poulter), um dos conformados a viver ali para o resto da vida, a crer que Thomas é o culpado por tudo de ruim que começou a acontecer na vila. A situação piora com a chegada de uma jovem chamada Teresa (Kaya Scodelario), a primeira mulher em toda a história da vila e que carrega um bilhete dizendo que ela será a última pessoa a ser enviada ao lugar.

    A película dirigida pelo estreante Wes Ball (bastante experiente em departamentos de arte) convence no que diz respeito às cenas de suspense, e isso com certeza é mérito do diretor e dos roteiristas Noah Oppenheim, Grant Pierce Myers e T.S. Nowlin, que souberam aplicar momentos de tensão na medida certa, sem soar forçada. E esse é o ponto chave do filme, que acaba por deixar aquele que desconhece os livros ansioso sobre o que vai acontecer após o final do terceiro ato. As cenas de ação, aliadas à correria por dentro do labirinto, também não deixam a desejar, prendendo a respiração do espectador em um momento ou outro.

    Com isso, o filme consegue se sobressair num formato que, hoje em dia, já está bastante desgastado pelas franquias Jogos Mortais, Jogos Vorazes e o filme O Segredo da Cabana. Isso foi o suficiente pra garantir, pelo menos, mais um filme: a adaptação do segundo livro intitulado Maze Runner: Prova de Fogo. A nova produção já está sendo filmada e sua estreia é prevista para o segundo semestre de 2015.

    Compre aqui: Livro | Box com a saga completa | Blu Ray | Dvd.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Mil Vezes Boa Noite

    Crítica | Mil Vezes Boa Noite

    Se toda atuação de Juliette Binoche fosse levada tão a sério como cada uma merece ser, ela seria a vencedora unânime em todas as premiações, ano após ano, filme após filme – vide Camille Claudel 1915, onde fez a grande atuação feminina de 2013. Aqui, é novamente uma lutadora sem armadura, Rebecca, que agora deve escolher, por imposição de ideais familiares, entre a família ou o campo de batalha. Sua guerra é a fotografia, sua guerra e seu bálsamo para algo extra-habitat caseiro que lá ela jamais consegue saciar – uma sede que não termina na presença das filhas, sequer na do marido, ambos dependentes de seu amor. O coração da fotógrafa depende do mundo, do mar, do fogo, dos quatro elementos, como nos é indicado desde a primeira cena: a impiedosa explosão em uma van no Oriente Médio.

    O fogo da chacina coletiva, o ar entrecortado pela fumaça, a terra rebuscada ao redor e a água salgada que verte dos olhos da mãe, que lá é apenas uma fotógrafa que encontra sua paz em qualquer condição, ou situação, que demande registro por seus olhos, vulgo câmera. Nessa analogia respeitável – e quase óbvia – do cineasta com a paixão pelo Cinema, Mil Vezes Boa Noite torna respeitável esconder dilemas políticos dignos de registro por trás da serena história principal. O filme é uma árvore frondosa que, fotografada às 17 horas, faz com que conseguimos enxergar as raízes e, a partir de cada um de nós, deduzir muito ou pouco da copa e seus frutos ainda banhados ao sol. Sim, é um filme que brinca com nossa lucidez, sobre o que podemos sentir, e o que não devemos sentir vergonha de não poder. Mas o que uma águia prefere: ficar sentada em segurança num poleiro ou se arriscar nas tempestades onde nasceu para estar?

    O dever chama, e o filme brinca de forma natural, e por vezes graciosa, com o livre-arbítrio da protagonista, pois tal qual a mulher homônima do clássico de Hitchcock, Rebecca busca sua identidade no que repousa além do que os olhos podem ver. Por mais irônico que isso seja, num filme em que a foto e o diegético são o eixo principal de uma narrativa de encontros e despedidas entre personagens que passam pela vida de Rebecca feito bolhas na espuma do mar – captadas para sempre mas que nunca voltam em seguida. O preço da liberdade surge e geme pedindo estrada, pedindo futuro quando ela, espécie de alterego da cineasta Agnès Varda, mostra fotos obituárias, lindas e trágicas a sua filha, tiradas pela mãe no Congo, em um dos flashbacks que o filme nos apresenta através da imagem estática, mas tremida e profunda nos closes em Binoche, extraordinária atriz, com sua ansiedade pela batalha em cada momento, em todo suspiro, em cada vacilo. É duro criar o próprio céu para voar, toda águia sabe disso.

    Não há espaço, felizmente, a algum humor ou suspense involuntário no filme, posto que é bem colocado e conduzido em seu gênero dramático por excelência. Um retrato humano sem máscaras ou photoshop aos fatos e emoções transpostas com elegância e delicadeza, tampouco variações de moldura devido às visões semelhantes que todo espectador pode ter da história – mas engana-se quem chamar o filme de previsível, essa pode ser a última coisa que Mil Vezes Boa Noite é, afinal. Típico pequeno filme atemporal, de impressões além-tela, alheio a efeitos de percepções imediatas.

    Nas entrelinhas, sobretudo, há, até certo ponto, até quando interessa de haver, um gostoso e indolor tom ingênuo e emocional que sugere a ideia de equilíbrio entre o que é particular e o ofício de Rebecca, como se o diretor Erik Poppe expressasse sua posição quanto à situação dela muito antes do clímax de seu melhor filme até agora. Filme maduro, de ritmo certinho e quase documental para nos informar sobre tudo da melhor e de mais simples forma possível, que não subestima seu poder, jamais, e o usa com uma sempre bem-vinda sabedoria artística à tona naquilo de sólido e consistente que habita os méritos de belos filmes como esse. Esses que nunca lotam salas de cinema populares, mas que abusam das fronteiras da arte enquanto analista da vida real.

  • Crítica | Uma Longa Viagem (2011)

    Crítica | Uma Longa Viagem (2011)

    O grito de liberdade se confunde com as fotos de família, saudosos retratos de tempos bem mais simples que aqueles em ebulição em meio aos anos 60. Foi a preocupação do clã que levou os responsáveis pelo jovem (de nome incógnito no começo da fita) a enviar o caçula para uma viagem a Londres, com a intenção de livrar o rapaz de se infiltrar nos grupos revolucionários, já que a sua irmã, Lúcia Murat, estava presa. A mulher encarcerada cresceria, se tornaria cineasta e faria do assunto de sua especialidade – a Ditadura Militar no Brasil – o pano de fundo para contar sua história.

    O jovem, vivido por Caio Blat, relembra em suas cartas o motivo de estar nesse exílio, conduzido de modo eufemístico, em que os diplomas que conseguiria em solo britânico de nada valeriam para si, nem mesmo na condução de uma nova profissão. Os depoimentos do “próprio” revelam suas amizades na Inglaterra, russos infiltrados naquela sociedade capitalista e que foram deportados para “jogar futebol com os gatos”. Ele prossegue fazendo uso contínuo de drogas, já que em solo brasileiro não tinha acesso a elas.

    A exposição da intimidade dos irmãos é corajosa e muito sensível. O irmão narra suas vivências em Cannes, no festival da Palma de Oro, que serve de pano de fundo para Murat contar sua experiência libertadora com o cinema e como sua carreira a ajudou a superar seus traumas. É somente neste momento que a narradora e realizadora pronuncia o nome de seu irmão que vivia em outra paisagem: Heitor.

    O documentário dá lugar ao drama em diversos momentos da exibição, convivendo na mesma tela as duas abordagens de modo amalgamado. Entre a busca de novas bad trips e de mais dinheiro para investir em haxixe, são feitas viagens para lugares ermos nos quais se louva especialmente o subdesenvolvimento do Afeganistão e Paquistão, onde a não chegada da civilização moderna contrasta com a realidade da Inglaterra e do Brasil. A estadia dos meninos era quase todo na rua, onde dormiam com homens santos, cercados de animais silvestres, pavões, macacos e outros animais silvestres, claro, tudo regado aos entorpecentes que eles tanto buscavam e que deixaram sequelas, fruto daquela porralouquice.

    A figura de Heitor é assustadoramente carismática e aclamada, já que sua vida foi talhada pelas vivências transgressoras e das desventuras além oceano Atlântico, ao redor de um globo explorado de modo dionisíaco, metade Gonzo metade Kerouac, sem qualquer compromisso com a normalidade ou com o método apolíneo de viver.

    As distâncias longitudinais e o torpor que Heitor tinha com seu amado haxixe não o livraram de ter notícias dos seus familiares e entes queridos. Por quase não ter uma estalagem fixa, complicava-se a situação de conseguir receber as correspondências de seus pais e irmãos. As cartas que recebia dos seus queridos demonstram o quão importante é aquele meio de comunicação, tanto para a vida comum de Heitor quanto para a narrativa da fita, uma vez que é através delas que se contam e se narram as múltiplas tramas poéticas da história.

    A volúpia por estar entorpecido começou pelo ócio, pela vontade de ocupar seu tempo e pela ausência de trabalho, mas talvez seja explicado, na vida de Heitor, pela saudade que tinha dos seus. Certamente, havia em seu comportamento uma vontade de transgredir, o que faz teorizar que o viés revolucionário estivesse impresso no DNA daquela geração familiar. No entanto, a internação tornou-se inevitável.

    A magreza de Caio Blat nos últimos momentos em tela emula a fragilidade corporal de Heitor naqueles tempos. Em 1978, ele seria capturado na Índia, na embaixada brasileira, fora de controle. Heitor teve a sorte de quem iria até lá (sua mãe) para buscá-lo, ao contrário dos muitos outros que cercavam a embaixada norte-americana à espera de certa compaixão da civilização ocidental não tão pobre ou paupérrima como a que ele estava.

    O cuidado da diretora em não subestimar a sociedade indiana – ou qualquer outra das que foram mostradas em tela – é atroz, já que a injustiça com tais povos denegriria seu emocionado relato e a história de seus parentes. Uma Longa Viagem é mais uma mostra da total maturidade de Lúcia Murat enquanto cineasta e contadora de histórias e que reporta múltiplas realidades.

  • Crítica | A Rede Social

    Crítica | A Rede Social

    A Rede Social 3

    Maior fenômeno da internet dos últimos anos, o Facebook sempre esteve envolto em controvérsias desde sua criação pelo estudante de Harvard Mark Zuckerberg em 2003. Atualmente, devido à dinâmica e velocidade da informação, entender a complexidade das relações que fazem algo tão grande existir, assim como as mudanças que tais eventos causam na sociedade, nunca é fácil. O Facebook caracteriza-se por essas mudanças. Alterou, junto com outras empresas, a dinâmica do empresariado jovem americano, além de ter mudado para sempre o comportamento e as formas de relacionamento de toda uma geração. É dentro do contexto de criação do Facebook que foi publicado, em 2009, o livro Bilionários por Acaso, escrito por Bem Mezrich, contando uma versão sobre o surgimento da rede social e as brigas judiciais pelos seus direitos criativos. O livro teve a consulta de Eduardo Saverin, o que impactará o resultado final do filme. Em 2010, o conhecido roteirista Aaron Sorkin e o diretor David Fincher adaptam o livro para o cinema, dando origem ao filme A Rede Social.

    O filme começa contando a história do jovem e complicado estudante Mark Zuckerberg (Jesse Eisenberg) em Harvard, com um diálogo – típico das produções de Aaron Sorkin, rápido e difícil de acompanhar – com sua namorada Erica Albright (Rooney Mara). Após ser insensível e condescendente de uma forma quase brutal com ela, o namoro termina, e, com raiva, Mark retorna a seu dormitório e resolve criar, com a ajuda dos colegas de quarto Eduardo Saverin (Andrew Garfield) e Dustin Moskowitz (Joseph Mazzello), um site com um catálogo de fotos de garotas, também estudantes de Harvard, em que as pessoas poderiam entrar e dar notas a elas. Tudo isso era feito enquanto Mark escrevia a respeito em seu blog, detalhando o processo de hackeamento dos bancos de dados das páginas das fraternidades em busca das fotos. A quantidade de acessos derruba a rede de Harvard e trará consequências para o estudante.

    Após enfrentar os problemas, Mark tem contato com os irmãos gêmeos Tyler e Cameron Winklevoss (Armie Hammer), este que dá a ele a ideia de criar uma rede exclusiva para alunos de Harvard. Após aceitar a proposta, Mark desaparece por semanas até o seu site thefacebook.com estar no ar, o que enfurece os irmãos. Os acessos ao site se expandem exponencialmente em várias universidades americanas, até chamar a atenção do jovem e excêntrico empreendedor Sean Parker (Justin Timberlake), criador do polêmico Napster alguns anos antes. Parker fornece a Mark uma visão nova e diferente sobre a modernidade dos negócios e das possibilidades a respeito do Facebook, causando tantos problemas entre ele e Saverin que acabarão indo para a Justiça.

    A estrutura do filme alterna momentos do passado dos jovens e momentos nos quais estão se enfrentando nos tribunais americanos a respeito dos direitos de criação do Facebook. Em um primeiro momento, essa alternância causa uma certa confusão e estranheza no espectador, mas após alguns minutos a estrutura é reconhecida e tudo fica mais claro, favorecendo o desenvolvimento da história.

    Apesar de os diálogos de Aaron Sorkin por vezes se atrapalharem na história por conta de sua rapidez e da quantidade de termos, piadas e referências, é interessante ver sua proposta de, em momento algum, rebaixar esses diálogos para um público geralmente tão acostumado a receber tudo mastigado das produções cinematográficas. O exercício de tentar acompanhar os diálogos e compreendê-los em sua totalidade é desafiador e instigante.

    A direção de David Fincher, com sua capacidade técnica recorrente, fornece uma recriação daquele momento único na história de maneira pujante. Utilizando o frio e a escuridão do inverno de Massachusetts, o (auto?) isolamento social de Mark é sempre reforçado em sua postura corporal e posicionamento da câmera. As cores escuras, azuladas e em tons pastéis também compõem o cenário rico e ao mesmo tempo frio e distante da juventude atual, onde todos estão sempre juntos, conectados, mas afastados.

    Toda essa composição das cenas é novamente auxiliada pela fantástica trilha sonora da já conhecida dupla Trent Reznor e Atticus Ross. Os músicos, que já trabalharam com Fincher em outros projetos, atingem seu nível máximo de qualidade ao inserir em cada momento os elementos certos, ajudando a compor o tom das sequências e das atuações, ajustando-os em um encaixe perfeito com a narrativa. Ela funciona tão bem que vale a pena ouvi-la separadamente.

    Jesse Eisenberg consegue compor um Mark Zuckerberg que vai além da semelhança física. Traço marcante de suas atuações, a fala rápida e a postura de “nerd” ajudam o espectador a acreditar. a todo o instante, que aquele é o criador do Facebook. Sua falta de empatia e emoção ao lidar com amigos e pessoas que eram tão queridas vão transformando-o, pouco a pouco, em um vilão semitrágico, pois sua postura moral e seus valores estão todos inseridos nas regras de utilização da rede social: ao mesmo tempo que fotos e vídeos de violência, e páginas que propagam discursos de ódio contra minorias são permitidos, fotos expondo minimamente o corpo feminino são logo retiradas do ar, assim como conteúdos políticos que possam se opor ao establishment. Todas essas características de sua personalidade estão claras na composição de seu personagem, assim como sua arrogância e falta de conhecimento e prática em lidar com a diversidade de pensamento e de pessoas.

    Portanto, o maior mérito de A Rede Social não é a discussão judicial sobre quem teve a ideia de criar o Facebook, ou mesmo que fim levou tudo isso. Esse tema é usado como pano de fundo para se discutirem as relações humanas em épocas em que a humanidade, e seu contato real, parece ter cada vez menos valor frente a um mundo dominado pelo mercado dos valores simbólicos, no qual é mais importante parecer do que ser. É mais importante mostrar o que está se fazendo do que realmente aproveitar o momento, alterando até mesmo todo o significado da experiência humana.

    Dentro deste contexto, acompanhar a degeneração do relacionamento de Mark com todos os que o cercam é sintomático, pois vemos que alguém sem muitas noções de relacionamento com outras pessoas foi capaz de criar uma rede que une milhões de pessoas ao redor do mundo, de várias línguas e culturas. A prova definitiva de que o relacionamento virtual é um simulacro nem sempre confiável a respeito de nossa humanidade. A análise do comportamento humano é interessante, e a visão de Fincher e Sorkin sobre esse caso tão emblemático da humanidade nos auxilia não só a compreendermos um pouco mais a época e as pessoas que nela vivem, mas também ajuda a nos entendermos. Talvez um pouco mais do que gostaríamos.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 1

    Crítica | Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 1

    A já estabelecida franquia de Hollywood (e com uma legião de fãs) Jogos Vorazes retorna em 2014 aos cinemas do mundo com a primeira parte da adaptação do terceiro livro da série, usando uma tática atualmente cada vez mais comum da indústria, que é a de aproveitar-se de filões lucrativos por mais tempo em detrimento dos elementos criativos da história.

    Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 1 mantém os protagonistas de Jogos Vorazes e Jogos Vorazes: Em Chamas e dá continuidade a suas histórias. Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence) luta consigo mesma para conseguir superar os problemas emocionais decorrentes de tamanha pressão pelas escolhas da personagem, e também incumbidas a ela após ter sido salva pelos rebeldes. O amigo de seu distrito natal, Gale Hawthorne (Liam Hemsworth), volta a ter participação ativa ao se juntar à rebelião do Distrito 13. Peeta Mellark (Josh Hutcherson) está nas mãos da Capital. Plutarch Heavensbee (Philip Seymour Hoffman) e Haymitch Abernathy (Woody Harrelson), junto com Effie Trinket (Elizabeth Banks), agora abandonaram completamente a vida na Capital e se dedicam exclusivamente à rebelião do Distrito 13, comandada pela Presidente Alma Coin (Julianne Moore).

    O filme se inicia logo após os eventos finais do anterior, quando Katniss é resgatada da arena dos Jogos, onde estava pela segunda vez. Após atirar a flecha em claro desafio contra a Capital, várias insurreições em diversos Distritos começam a surgir, sendo severamente reprimidos pelo presidente Snow (Donald Sutherland). A rebelião quer usar Katniss como símbolo para aumentar a adesão de pessoas ao exército rebelde e fortalecer a luta enquanto ela ainda existe. Enquanto isso, a Capital luta para apagar os focos de revoltas e manter seu poder intocado.

    A dinâmica entre os distritos e a Capital então sofre uma alteração significativa, pois não são meramente espectadores passando a ter algum grau de protagonismo em suas vidas, seja para decidir aderir à luta ou ignorá-la. Porém, o que falta dentro dessa dinâmica é justamente caracterizar melhor quem são estes distritos e as pessoas que os compõem e por que elas haveriam de largar suas vidas para aderir a uma rebelião, ou mesmo como essa rebelião se configurou em cada distrito e com cada líder local. Já que houve a opção pela divisão em dois filmes, havia espaço para problematizar ao menos um pouco desta história. Ao focar somente os protagonistas, a “revolução” parece não ter corpo o suficiente, sendo movida apenas por meio de escritórios.

    As referências a eventos ocorridos na história da humanidade, em especial às revoluções de esquerda, são também muito claras. Desde trabalhadores braçais pobres com roupas sujas andando em fila e forçados a trabalhar, mas que se revoltam contra o “sistema”, até os dirigentes revolucionários frios e calculistas, que fazem tudo pelo bem do povo sem consultá-lo. O uso dessas imagens torna a compreensão do espectador clara de que se trata de uma luta do bem contra o mal, dos explorados contra exploradores, uma reprodução essencialmente fiel do conceito de “luta de classes” de Karl Marx, mas, assim como os filmes anteriores, sem a profundidade mínima para entender de onde vêm aquela revolta e os recursos humanos e materiais para mantê-la contra uma Capital tão poderosa.

    É clara também a referência aos pobres daqueles distritos, onde alguns são mostrados parecendo-se com escravos negros do sul dos EUA, enquanto outros, em um hospital visitado por Katniss, assemelham-se a pessoas inseridas em contextos de países da África enfrentando crises humanitárias. É literalmente jogado na cara do espectador médio o imaginário clássico da pobreza, sem muita problematização.

    Um dos eventos chave do filme, a explosão de uma usina hidrelétrica que abastece a Capital, sofre justamente essa falta de embasamento. Como os rebeldes chegaram ali? Uma usina estaria tão insegura? Como conseguiram os explosivos? Quem os montou? Quem treinou esses trabalhadores pobres e super explorados em táticas de guerrilha? Não sabemos. E fica por isso mesmo.

    Porém, o principal defeito do filme é o excesso de espaço que a fragilidade emocional de Katniss toma em tela. A cada momento, nos deparamos com algum evento em que ela muda de ideia sobre participar da revolução, e essa repetição se torna cansativa. Essa constante alternância entre a personagem forte, líder de uma revolução, e uma jovem confusa teria seu propósito caso fosse direcionada a algo específico, e não acontecendo a cada hora.

    Com tantos problemas, Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 1 talvez não conseguiria empolgar, porém acerta em muitos pontos. Ele consegue lidar bem com as cenas de ação e as transições entre as histórias, que em momento algum ficam confusas. A tensão das cenas finais é bem construída, assim como as surpresas de roteiro ali encaixadas. A constante utilização dos meios de comunicação como propaganda em um contexto de guerra é muito bem explorada, no sentido de mostrar como as ideias das pessoas podem ser manipuladas de acordo com o conjunto correto de sons e imagens, levando-as a acreditar em A ou B.

    A semelhança com os reality shows dos primeiros filmes dessa vez é afastada, dando lugar a um estilo utilizado em coberturas jornalísticas de frontes de guerra, que se iniciaram no Vietnã, mas que se tornaram, hoje em dia, muito comuns. Assim, cotidianamente o mundo “desenvolvido”, enquanto está jantando e vendo televisão, assiste a pessoas se matando nos locais mais remotos do planeta, sem o menor problema.

    O principal defeito do filme reside justamente na escolha de dividi-lo em duas partes, em que ao mesmo tempo que se esticam cenas desnecessárias, encerram-se, no final do filme, situações de forma abrupta, contando com a promessa de que espectador vá ver a última parte daqui a um ano. Nos resta esperar que o desfecho da história seja um pouco mais honesto consigo mesmo em relação às expectativas criadas, mas – principalmente – com o espectador.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | O Quarto do Pânico

    Crítica | O Quarto do Pânico

    O início da década de 2000 não foi muito generoso com alguns dos maiores cineastas da modernidade. Os irmãos Coen patinavam com produções como O Amor Custa Caro e Matadores de Velhinhas; Terrence Malick trazia o bom, mas cansativo, O Novo Mundo; Martin Scorsese sofria com duras críticas ao filmes Gangues de Nova York e O Aviador, dentre outros exemplos. Nesse contexto, David Fincher não conseguiu escapar da curva com seu quinto filme como diretor: O Quarto do Pânico.

    O filme abre-se de maneira bem interessante, com tomadas externas de pontos específicos de Nova York, enquanto os seus componentes, como os prédios e seus vidros espelhados, se misturam, refletem e interagem com as letras dos créditos, causando um belo efeito visual. Após termos contato com toda a amplitude da cidade, o foco se volta aos personagens principais, Meg Altman (Jodie Foster) e Sarah Altman (Kristen Stewart), que visitam uma bela e enorme casa, incomum em Manhattan.

    Por estar se divorciando do rico marido, Meg procura uma nova casa para ela e sua filha, e dinheiro não é problema. Porém, a casa pertencia a um investidor paranoico que construiu em seu lar uma verdadeira fortaleza para resistir a tudo, especialmente invasores, transformando seu quarto em um “quarto do pânico” revestido de aço, concreto e com linha telefônica separada, sistema interno de TV, além de um estoque de água e outros itens de sobrevivência. Ao adentrar o quarto fechado, Meg se vê sofrendo os sintomas da claustrofobia, que estranhamente irá passar conforme o filme avança. Mas, mesmo assim, fecha o negócio e se muda para a casa.

    Na noite da mudança, três homens invadem a casa para roubar o cofre que se encontra justamente dentro do quarto secreto. Títulos ao portador que valiam milhões. Os invasores Burnham (Forest Whitaker), Raoul (Dwight Yoakam) e Junior (Jared Leto) não sabiam que teriam moradores na casa porque Junior se confunde com as datas: por meio de uma desculpa muito preguiçosa do filme de tornar tudo um simples “acaso”, Junior acha que 14 dias são três semanas, acreditando que só seriam contados os dias úteis. Raoul, o desconhecido que Junior traz sem avisá-lo do assalto, já se mostra desde o início portador de uma estranha e violenta personalidade, que assusta o pacato Burnham, funcionário de uma empresa em que trabalha instalando equipamentos de segurança, como os do quarto da casa.

    Os três decidem realizar o trabalho mesmo assim, mas ao descobrir que existem invasores no domicílio, Meg e Sarah se escondem no quarto do pânico, e aí que começam os problemas para ambos os grupos. A tensão é bem estabelecida e mantida durante o segundo ato, pois se dentro do quarto mãe e filha estão seguras, não houve tempo de ligarem todos os equipamentos de segurança, como o telefone, além de Sarah ser diabética e não ter levado sua injeção de insulina.

    Enquanto Junior e Raoul tentam de forma brutal achar um jeito de entrar no quarto, Bunham tenta tirar de lá as duas moradoras de várias formas, uma engenhosidade dos personagens, especialmente de Meg, que soa um pouco estranha, como se qualquer cidadão normal pudesse tê-la, ainda mais sob tamanho stress.

    A relação entre os próprios bandidos começa a mudar quando suas divergências sobre os métodos de como lidar com a situação começam a ir por caminhos muito diferentes. Bunham não quer machucar ninguém, e Raoul não se importa com isso, tanto que Junior é morto por este, agravando a tensão entre ambos.

    Após Meg conseguir fazer um contato mínimo com seu ex-marido, este aparece e é usado como refém pelos bandidos, o que força Meg a sair novamente do quarto. Porém, Sarah lá permanece e Meg consegue jogar para ela o estojo com a insulina.

    Bunham abre o cofre e pega os papéis, que eram muito mais valiosos do que pensavam. Mas Raoul, fazendo o claro clichê papel do bandido mau, tenta matar Meg, e Bunham acaba salvando-a, fazendo o papel do bandido bom, e é preso por isso. As sequências finais, com imenso potencial, acabam se perdendo em meio a tantas reviravoltas que abusam de clichês.

    Esse emaranhado de acontecimentos no terceiro ato são um exemplo claro do principal problema do filme. Apesar de ficarmos tensos ao acompanhar o desenrolar da trama, ela não tem uma base para se sustentar e não consegue cativar profundamente o espectador, já que trabalha sempre em cima de superficialidades. O filme se torna esquecível a partir do momento que acaba

    O Quarto do Pânico tem vários elementos que funcionam bem. A casa escura, grande e solitária, totalmente vigiada, ajuda a contar a história através de suas câmeras. Porém, o que acaba prejudicando a obra é justamente o fato da trama não ter muitos atrativos além do quarto e como várias coincidências são necessárias para se estabelecerem as tensões que a fazem andar. Dentro daquele universo, fica difícil saber se haveria algo mais a ser feito, mas o fato é que a produção falha em pisar fora do lugar comum das obras do gênero, tornando sua experiência quase que descartável após assisti-la, algo que deixa muito a desejar frente a uma filmografia tão grande e importante quanto a de Fincher. Felizmente, os outros filmes compensam.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Boa Sorte

    Crítica | Boa Sorte

    Utilizando o cenário de um manicômio, que simboliza o quão errático anda o mundo, Boa  Sorte, da diretora publicitária Carolina Jabor, conta a história de um jovem chamado João (João Pedro Zappa), cujo vício em remédios tarja preta unido a refrigerantes de laranja o faz ter um desempenho completamente aquém do esperado para um juvenil. Sua expectativa é encurtada, e sua existência parece não ter muito sentido, até que é levado a uma casa de repouso, onde conhece pessoas que compartilham de misérias parecidas com as suas.

    O que deveria ser uma casa de reabilitação para vencer a depressão, ansiedade e o transtorno de stress pós-traumático acaba tornando-se um lugar de descobertas, onde ele encontra pares que fariam seu tempo render mais, além de conseguir dar uma boa razão para sua existência. A principal responsável por isto seria Judite, interpretada por uma inspirada Deborah Secco, uma mulher lindíssima, soropositiva, com os dias contados, que tem em comum com ele o vício em remédios para ansiedade, além de outros tantos pecados de dependência, cuja culpa inexiste graças a sua condição especial.

    Aos poucos a dupla se reúne, encontrando um no outro o ideal para uma parceria, construindo uma estreita relação de interdependência, pautada inicialmente no sexo, evoluindo aos poucos, até que a intimidade deixa de ser puramente carnal e torna-se sentimental. Toda a construção do sentimento é feita de modo muito natural, tão bem urdido que até as inconveniências típicas de seus distúrbios parecem ajuda-los a ficar cada vez mais próximos.

    A aflição da alma é o principal fator que os une. A invisibilidade, indiferença e irrelevância que sofriam por parte dos que os cercavam fazem dos dois solitários de mundos distantes em uma junção de caráter irretocável, até na disparidade da compleição física de ambos.

    O rosto cadavérico de Judite contrasta com o belo e curvilíneo corpo, como se morte e sensualidade convivessem sobre o mesmo invólucro, como sinais evidentes da insanidade que habita sua mente e que se reflete em seu exterior, acrescentando uma camada a mais de fascínio à sua bela intérprete.

    O sanatório vira o lar da afeição, evoluindo até do quadro puramente amoroso para resultar em estima, onde os incompreendidos podem viver suas vidas em moderada paz, tecendo planos para sua existência fora daquelas paredes que os encerram, ao menos para o rapaz que não está em fase terminal. A relação de Judite e João chega a um estágio onde a sujeira e vergonha pensada por um bem maior predomina, rompendo com a dependência que ocorria, quebrando os laços de semelhança entre o modo como um homem e seu animal de estimação se tratam. A servidão incondicional é demolida pela mulher, que não quer assistir o seu improvável príncipe encantado sucumbir ao esperar por um futuro que não virá. Ela o libera, para que viva sua vida, algo miserável, claro, especialmente se comparado ao que sentia quando estava com ela, mas algo comum e ordinário, semelhante ao que Judite sempre sonhou para si, mas que jamais conseguiu alcançar sozinho. Tal subtexto faz de Boa Sorte algo um pouco mais inteligente do que as contumazes histórias de amor do cinema comercial.

  • Crítica | Zodíaco

    Crítica | Zodíaco

    Zodiaco - poster

    Assassinos seriais na história dos EUA existem aos montes. Cada um mais complexo do que o outro. O século XX, por ter sido o século da massificação (inclusive da mídia), trouxe para a população a espetacularização de eventos que antes eram confinados a círculos restritos. Se antes uma série de assassinatos em uma comunidade rural (como retratado no excelente A Fita Branca) ficava restrita a ela, no país da classe média e da informação, a produção de notícias e a reprodução de assassinos, que tinham vontade de aparecer e passar uma mensagem, também cresceram exponencialmente. Junto a esses casos, cresceram também os filmes do gênero, que tentavam reconstruir o passo a passo da investigação policial no percalço do assassino, às vezes tentando compreender o que havia por trás de pessoas tão perturbadas a ponto de cometerem tais atos.

    Dentro desse contexto, um dos casos mais curiosos foi do assassino que se auto intitulou “Zodíaco” e que cometeu seus crimes nos EUA entre as décadas de 60 e 70. O que torna seu caso tão emblemático é, além do assassino usar códigos publicados em jornais para chamar a atenção e ver se alguém conseguiria capturá-lo através deles, o fato de ele nunca ter sido pego. Dentro desse frenesi de teorias a respeito de quem fora esse assassino e as razões por trás de seus atos, David Fincher adaptou o livro de Robert Graysmith, cartunista, jornalista e escritor que investigou a fundo o caso e que no filme é interpretado por Jake Gyllenhaal. Também no  San Francisco Chronicle trabalhou com Graysmith o jornalista Paul Avery (Robert Downey Jr.). No comando da investigação policial estavam os policiais locais David Toschi (Mark Ruffalo) e William Armstrong (Anthony Edwards), que são chamados após um assassinato de um taxista, mas cujas evidências apontam para algo mais complexo do que parece.

    Com aproximadamente três horas de duração, Zodíaco consegue entreter o espectador, que é preso nessa cadeia de acontecimentos e descobertas que vão se desdobrando, ao mesmo tempo que contradições aparecem, criando-se dúvidas enquanto surgem certezas. A história possui três atos distintos, onde os dois primeiros focalizam a evolução de Zodíaco como assassino e instigando as autoridades a investigá-lo, à medida que a dupla de policiais Toschi e Armstrong segue em sua busca, lidando com toda a dificuldade do sistema legal para isso. O terceiro ato volta-se para a jornada pessoal de Graysmith e sua obsessão em descobrir a identidade do assassino, o que terá um alto custo em sua vida pessoal.

    Robert Graysmith é um tímido e introvertido cartunista do San Francisco Chronicle e que adora quebra-cabeças. Quando as primeiras cartas de Zodíaco são recebidas pelos principais jornais da Califórnia, ele tenta compreender as pistas e o fenômeno por trás do assassino, mas é tratado com desdém por seus colegas. A novidade e complexidade do caso são tantas que os órgãos policiais, a imprensa e grande parte da sociedade não conseguem compreender o que está acontecendo, o que irá contribuir para o assassino permanecer solto por todo este tempo. A falta de diálogo entre as divisões, a intensa burocracia e a guerra de egos são fatores determinantes dentro da investigação e acabam por todo o instante a atrapalhá-la.

    Após, atrair a curiosidade de Avery, Graysmith começa a investigar, em companhia dele, algumas das pistas deixadas pelo assassino, tentando encontrar um padrão e, assim, tornar mais fácil sua identificação. Porém, nada se encaixa. Suas vítimas mudam, assim como a hora, o dia e o tipo dos assassinatos cometidos, para o desespero do metódico desenhista. Tamanha dificuldade acabará por levar Avery à exaustão mental, e, após ser ameaçado de morte por Zodíaco, o personagem acaba por se retrair completamente da sociedade, tornando-se jornalista de publicações pequenas.

    Passam-se anos e a dupla de policiais, Toschi e Armstrong, também toma rumos diferentes. Enquanto Toschi permanece obcecado com o caso e sofrendo pressões internas, Armstrong decide deixar tudo de lado e pede transferência para executar trabalhos internos, para a decepção do parceiro. Passada quase uma década após o aparecimento de Zodíaco, Toschi e Graysmith se unem extraoficialmente para tentar aparar arestas e dar um fechamento à investigação de forma definitiva, causando a quase completa exaustão mental de ambos, especialmente de Graysmith.

    Apesar de o final do filme não se resolver por completo, ao deixar o espectador com a mesma sensação que o público tivera ao acompanhar o caso (já que ele nunca foi resolvido), toda a trajetória de investigação é feita de forma meticulosa, característica marcante do cinema de Fincher. A reconstituição material da época, desde os carros, as posições dos corpos, os penteados e roupas das vítimas, as notícias de jornal e TV, além de todo o frenesi causado por Zodíaco na época, contribuem para dar ao filme uma aura quase documental, a ponto de fazer com que o espectador se sinta na pele de Graysmith, querendo saber cada vez mais sobre Zodíaco. Após ver o filme, uma busca no Google pela história do assassino e dos personagens se torna irresistível. Também se torna quase que necessário assistir à obra mais de uma vez, pois, a cada revisão, conseguimos perceber uma nova camada dentro daquele mundo e da investigação. Sentimo-nos mais próximos de saber a verdade, lado a lado dos personagens e suas teorias.

    Mais do que um filme sobre um serial-killer, Zodíaco mexe fundo no imaginário coletivo de uma humanidade que havia acabado de entrar em uma sociedade de consumo e informação de massa. A avalanche de assassinos seriais que os EUA enfrentariam nesse período não é mera coincidência, pois todos nós somos atraídos pelo que há de mais sombrio na nossa natureza. O comportamento coletivo em cima desse fenômeno raramente é racional; a mídia o usou largamente e ainda o usa para lucrar em cima de acontecimentos como esses. A sociedade dos EUA, com sua obsessão por armas, violência e a retidão moral, consegue produzir fenômenos únicos que suscitam diversas análises e entendimentos. O serial-killer se torna, então, um desses fenômenos dentro da cultura pop. Filmes como Zodíaco, ao invés de sensacionalizar o evento, nos ajudam a compreendê-lo de maneira sóbria e séria. Em uma época de tamanha passionalidade, tais obras são sempre bem-vindas.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Setenta

    Crítica | Setenta

    Emilia Silveira é a responsável pela curadoria das entrevistas que permeiam o filme Setenta. O início, com a câmera junto ao carro pelas estradas da praiana cidade carioca, tenta remeter à simplicidade da vida cotidiana, ainda que os dias nos anos 1970 não fossem “normais”. A perseguição aos homens era um massacre, próximo de um comportamento padrão daqueles que faziam política e que impediam qualquer outro que não fosse conveniente fazê-lo pensar.

    O roteiro de Sandra Moreyra retrata o modus operandi dos 70 presos políticos que seriam exilados no Chile em troca da vida do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. Os que estavam encarcerados eram encarados como guerrilheiros, apesar da maioria dos manifestantes sequer saber atirar, isso se estes estivessem armados.

    Alguns dos presos políticos também são mostrados no documentário lançado na época, e filmado no Chile, Brasil: Um Relato de Tortura. A maioria dos quase idosos militantes tem de segurar as lágrimas ao escavar os momentos emocionais pelos quais passou. O compartilhar dos ideais prossegue na vida da maioria deles, mas a dor da lembrança inevitavelmente faz relembrá-la. Famílias eram separadas, humilhações impingidas tanto fisicamente, pela tortura, como também por meio do emocional dos manifestantes e dos seus companheiros. A distância entre os encarcerados e suas famílias é escrutinada no documentário, assim como é detalhado o cerco aos subversivos.

    O nível de pessoalidade é grande não só pelos testemunhos, mas pela movimentação da câmera que mostra os exilados na intimidade de seus lares, no lugar e país onde muitos achavam que não voltariam a pisar. A correria dos que planejavam as ações ofensivas visava contra-atacar todo o desrespeito que sofriam os que se opunham ao regime. Apesar da multiplicidade de ideais dos que estavam ao lado oposto dos poderosos, a truculência com que eram tratados era o ponto em comum.

    O argumento básico da luta dos entrevistados era pela liberdade. O esforço da maioria era realizado para atingir este ideal, dedicando-se cem por cento de suas vidas à briga pela livre expressão de pensamento, por vezes até deixando, pela falta de tempo, de cuidar dos familiares e daqueles que os cercavam, especialmente em tempos em que a clandestinidade era algo comum ao cotidiano dos militantes.

    A baixa bilheteria do filme, quando em cartaz, é um mistério, pois, apesar de tratar de um assunto antigo, tem em seu caráter uma estética moderna, aprofundando o tema que documentários já haviam iniciado, mostrando os ecos de um tempo opressor, elemento que evidencia o quanto o país deixou de evoluir e se deseducou graças a isso. Setenta vale ser visto especialmente pelo resgate de histórias que convenientemente são esquecidas, quando deveriam ser frequentemente marteladas na mente dos brasileiros para que os erros pretéritos não mais nos assombrem.

    Facebook –Página e Grupo | TwitterInstagram.

  • Crítica | Se Eu Ficar

    Crítica | Se Eu Ficar

    Nos últimos anos, leitores jovens encontraram uma trilha direta para a literatura graças à popularidade de obras como Harry Potter e derivados, lançados em anos seguintes, além de outras vertentes recentes de dramas urbanos e juvenis, como a obra de John Green, considerado o mais novo tesouro contemporâneo. O sucesso de Gayle Forman vem parcialmente ligado a estas narrativas e ao sucesso do young adult como gênero. O adolescente, como personagem narrador dialogando com um público primariamente desta faixa etária, tem demonstrado rentabilidade como um novo caminho a ser desvendado por editoras e, mais importante do que o sucesso financeiro, tem produzido novos leitores.

    Quarta obra da autora e primeira lançada no país pela Novo Século, Se Eu Ficar transforma uma tragédia em momento metafísico de reflexão. Mia Hall é uma adolescente tradicional vivendo os mesmos anseios que seus colegas. Sente-se deslocada da sociedade e do seio familiar por considerar-se careta em relação aos pais, vindos de um passado badalado e roqueiro, e está indecisa entre permanecer na cidade devido a um amor ou seguir o sonho de maestra musical com uma bolsa na renomada Julliard. A vida entra em suspensão após um acidente quase fatal com sua família.

    A história transita entre o presente pós acidente com a garota em estado comatoso e lembranças recentes do passado. Mia vive uma experiência extra-corpo e acompanha as reações de familiares, amigos e do ex-namorado, ante a possibilidade de sua morte. O acidente se transforma em ponto metafórico de análise. Um momento figurativo em que a personagem, a partir das recordações e das reações de pessoas ao seu redor, decidirá entre a vida ou a morte. Chloë Grace Moretz faz um bom papel principal e, pela primeira vez em anos, foge de uma personagem excêntrica, como tem marcado sua carreira até então (Hitgirl, em Kick Ass e Kick Ass 2, a vampira de Deixe-me Entrar e Carrie – A Estranha).

    Voltado ao público juvenil, este extravagante recurso espiritual é um extremo para focalizar a lição básica sobre amadurecimento e as primeiras escolhas definitivas na vida de um ser humano. Se considerarmos que o young adult, como qualquer outro gênero de nichos específicos, repete naturalmente recursos narrativos, o elemento espiritual é um breve respiro inédito para a história. A reflexão é positiva e visa intensificar para o público alvo a percepção de uma mudança de comportamento, a transição ainda imatura, mas definitiva, que são a adolescência e o amadurecimento.

    Porém, a obra se aproxima mais de um romance adolescente do que uma história sobre o crescimento natural. Dentro desta percepção, temos personagens comportando-se como adolescentes típicos que tratam conflitos com um senso de tragédia exagerado, ainda incapazes de reconhecer caminhos e alternativas viáveis quando as intempéries da vida surgem no caminho. Este excesso de imaturidade – ou excesso dramático – pode não ser eficiente para o público geral em razão do didatismo exagerado desta história de amor.

    Compre aqui: Se Eu Ficar – Gayle Forman | Versão Digital

  • Crítica | Mega Shark vs. Mecha Shark

    Crítica | Mega Shark vs. Mecha Shark

    Mega Shark vs. Mecha Shark não guarda momentos para reflexão ou para contemplação bestificada dos fenômenos naturais, pois, aos três minutos de exibição, já demonstra a que veio, momento em que se mostra o derretimento de um iceberg imenso, o que destrói o Megalodon, peixe ruim que é levado pela costa do Cairo. No começo, há até uma citação a Charles Bukowski, claro, sumariamente ignorada pelos signos visuais que remetem ao Hawaii, mesmo que a embarcação – majoritariamente estadunidense – esteja na “África branca”, atacada pelo animal pré-histórico, que consegue lançar um pedaço da máquina de metal percorrer toda a extensão do país para decapitar a Esfinge de Gizé.

    No entanto, dessa vez a humanidade não está de bobeira, pois foi construída uma máquina de contra-ataque chamada Nero, um submarino em formato de tubarão e pilotado pela bela loira – dona de um belo par de mamas – Rosie Gray (Elisabeth Rohm). Num primeiro embate, a embarcação tem à sua frente uma enguia gigante que tenta esmagá-la, mas que esbarra na perícia da bela capitã e de seu imediato, o negro afetado Jack Turner (Christopher Judge ), que visita as instalações das altas rodas militares, com fileiras cheias de membros de alta patente e que guardam com afinco o segredo máximo das forças armadas: Mecha Shark, a definitiva arma contra a praga do Mega Tubarão.

    Dessa vez, a população mundial é focada e não mais ignorada pelo “massa véio” das outras fitas. Membros das embarcações que pereceram são entrevistados pelos jornalistas e lá registram toda a sua fúria com as figuras de autoridade que ignoraram a necessidade de manterem-se a salvo de um tubarão com crise de gigantismo, pois certamente isso é algo muito prioritário. Visando uma melhor análise do inimigo, até Emma MacNeil (Debbie Gibson), a primeira heroína da franquia, é reativada, ainda que sua maquiagem seja mais barata, deixando de esconder as rugas que os anos provocaram-lhe – considerando sua idade, 44 anos, tudo isto é absolutamente perdoável.

    No entanto, o fracasso acomete Rosie e seu amigos, pois, ao permanecer colado em Megalodon, Nero é danificada. O medo de perder o monstro de vista faz com que os superiores temam em esperar o concerto da máquina, mas os engenheiros, em tempo recorde, reparam o transporte. Depois de uma brava batalha, Rosie cai e quase morre nas profundezas marinhas, mas a inteligência artificial de Nero ajuda a loira a sobreviver, mesmo ela carregando lembranças más da morte de sua filha e de sua crise de alcoolismo.

    Por força das circunstâncias e para fazer do mundo um lugar melhor para se viver, Nero é posto para comandar Mecha Shark, cuja inteligência artificial comanda um robô ainda maior e mais poderoso. É como se, em tempos de crise, a Skynet se aliasse aos humanos para destruir um mal maior, pondo todo e qualquer Complexo de Frankenstein por terra, já que a maldade da natureza é muito maior que qualquer guerra entre criador e criatura. Esta premissa inteligentíssima é levada a sério e, claro, distorcida no decorrer da trama.

    Para aumentar o escopo de que a união faz a força, Rosie encontra Emma, num embate de gerações entre loiras protagonistas, que, juntas, buscam entender o modus operandi do tubarão do mal. Incrível como, após uma pane, o especialista Doutor Turner tenta resolver o problema do Mecha Shark batendo mais forte em seu teclado, como se estivesse espancando o PC.

    Após o ataque, o protocolo da máquina – que está em terra, onde milagrosamente funciona lá – vai para o vinagre. A única coisa capaz de pará-la é uma inocente criança, que toca o seu coração de lata por alguns instantes. Mas isso dura pouco, pois o robô devastador passeia livremente pelas ruas de Sydney, destruindo tudo o que vive, respira, que tenha asfalto ou concreto. Os bombeiros tentam aplacar a destruição, mas tudo parece em vão.

    Depois de uma enorme discussão filosófica, a genial Gemma dá a ideia de tentar embater os dois tubarões, uma vez que machos tendem a se temer mutuamente. O plano maravilhoso consiste em atrair Mecha para a água, onde automaticamente Mega o encontraria, para, enfim, ter a sua disputa justa. Baseando-se nisso, Rosie se embrenha em uma aventura de isca humana no interior da máquina malvada – em última análise, ela se entrega para sacrifício, como no paralelo bíblico de Isaque e Abraão, em que Deus pediu a vida do único filho de seu servo, pedido o qual seria atendido pelo temente homem de fé.

    No final, há de tudo, desde negros pilotando motocross – não que haja um motivo plausível para isso (até porque motivação não é o forte do roteiro) – chamando a atenção do robozão até um almirante louco, que aponta um revólver para um animal capaz de sobreviver até mesmo a um míssil nuclear. Mas um estratagema é desenvolvido por eles, instalando uma bomba no robô e destruindo (supostamente) o Mecha e o Megalodon, mas resgatando o pendrive que conteria Nero, seu amigo digital. Em uma análise mais profunda, a peça pode ser comparada a uma aliança, que reafirmaria o compromisso de Jack e Rosie ante o sagrado matrimônio e ante a natureza maravilhosa que produziu tanto, até esta aventura megalômana. O escopo de diversão é o mais presente de todos os filmes da série, tanto pela desfaçatez do roteiro quanto por todas as caracterizações toscas.

  • Crítica | Anjos Selvagens

    Crítica | Anjos Selvagens

    O início pacato, em meio a um jardim que encerra infantes em seu interior, e é deixado de lado por um garotinho, de aproximadamente três anos, que corta a calçada com seu velocípede, para dar de cara com o Heavenly Blues (Peter Fonda), que em sua Harley Davidson, representa um mundo mais errático, dionisíaco, selvagem e bandido. Sua postura, apesar de não ter nada aos olhos atuais que se assemelhasse a algo reprovável, transborda autossuficiência e a não necessidade de humildade ou submissão, algo que para os idos de 1966 não era bem visto pela sociedade conservadora.

    O couro sobre a camisa preta unido à cruz de cores escuras, remetendo ao nazismo, são os signos visuais que diferenciam os tais motoqueiros de tantos outros movimentos contraculturais, até por estar num viés completamente invertido do pensamento unificador dos hippies, dos panteras negras e de seus semelhantes. A rebeldia se imprime através do ideal emprestado dos arianos, que carrega alguns dos seus preconceitos, mas que obviamente são muito mais velados que o violento modus operandi do real moto-clube.

    As paragens onde os motoqueiros se instalam são ambientes abertos, cujo solo é arenoso e a vegetação é de savana, o palco perfeito para o uso indiscriminado do sexo, tanto como fonte de prazer e saciamento dos impulsos mais básicos, bem como desta liberdade como grito de revolta, para uma sociedade que insiste em não olhar para a sua juventude, ou o faz com absoluto desprezo. Até a alcunha de “Angels” é um eufemismo, remetendo aos pecados morais desses como a resposta justa ao exacerbado pensamento reacionário.

    A rebeldia dos mostrados em tela é praticamente só pautada no instinto e no impulso, sem refletir em momento algum nas possíveis consequências das suas atitudes. O grupo é formado majoritariamente por jovens, com seus cabelos ao vento, alguns até tentam sustentar uma barba para disfarçar um pouco da tenra idade. Seu comportamento seria um prato cheio para os defensores dos bons costumes, que tencionam causas como a diminuição da maioridade penal.

    Talvez o momento que produza maior possibilidade de reflexão, nos primeiros terços da fita, é o drama do personagem de Bruce Dern, Joe ‘Loser’ Kearns, que morre em pleno exercício dos movimentos do clube, pecado este que cobra uma alta dívida. No encerramento de seu cadáver, em meio ao velório, Heveanly assume seu lugar de mentor do grupo, e trava uma pequena discussão com o pregador daquele rito. O entrave ideológico não é profundo, obviamente, pois contém apenas clichês de ambos os lados, com o religioso reafirmando a tradição de família e propriedade, enquanto Blues destaca o quanto ele foi impedido por pares idênticos àquele que estava no púlpito de viver factualmente, uma vez que todos os seus direitos eram cerceados. Após isso, a arruaça toma conta do recinto, e os motociclistas quebram cada banco da igreja, num simbólico sepultamento da moral pregada pela doutrina religiosa fervorosa.

    A barbárie impingida por Blues, por vezes, passa dos limites, incluindo algumas (no plural mesmo) cenas onda a sugestão do estupro fica clara, em algumas até consumada, não havendo qualquer reprimenda por parte dos líderes do bando, ou sinal de arrependimento ou redenção. O protagonismo do filme de Roger Corman é exibido por personagens transgressores, mas que não o fazem por estarem preocupados com o social ou algo que o valha. Suas ações são exclusivas, egoístas, só podendo pensar o bem quando este inclui algum membro do moto-clube, algumas vezes, nem isto.

    O avatar da vilania paira por cima do comportamento de Blues, que pratica atos mais fascistas que os próprios Hells Angels originais, chegando ao final até com uma postura mais resignada, no sentido de ter seus últimos momentos em tela semelhantes ao de seu irmão desfalecido – no único momento onde se pode ser capturado um ato altruístico, e talvez até remorso. O roteiro de Charles B. Griffith, apesar de possuir um viés muito contestatório, não toma partido para o escrúpulo do americano médio, a despeito até de algumas atuações caricatas, até de Peter Fonda em alguns pontos. Mas ainda assim, Anjos Selvagens se destaca muito do moto exploitation comum aos anos sessenta e setenta.

  • Crítica | 12 de Junho de 93: O Dia da Paixão Palmeirense

    Crítica | 12 de Junho de 93: O Dia da Paixão Palmeirense

    O filme de Jaime Queiroz e Mauro Beting resgata as tristes memórias dos torcedores palestrinos, que amargaram uma seca de quase dezessete anos sem títulos, quebrada finalmente em 1993 através de uma geração de jogadores fenomenais. O gol de Evair liberou um grito há muito enterrado na garganta: a vontade de gritar “campeão” que teimava em não sair da boca de nenhum dos alviverdes paulistas.

    Os depoimentos de torcedores ilustres revelam a ânsia dos fanáticos pela Sociedade Esportiva Palmeiras, que teve após a geração de Ademir da Guia um período de entressafra. O desmonte ocorrido após o ano de 1975 foi o prenúncio da tragédia, com as transferências internacionais de Leivinha e Luís Pereira, com poucos remanescentes, tendo Ademir e Jorge Mendonça como os principais nomes. Uma lesão faria Da Guia não ser mais o mesmo. Mal fisicamente, ele não conseguiria repetir os momentos de sucesso, sendo o Paulista de 1976 o último dos títulos por muito tempo.

    Declarações do próprio Beting e de outros jornalistas, como Roberto Avallone, Paulo Vinícius Coelho (PVC) e de outras pessoas ilustres, como Paulo Nobre (atual presidente do clube), e membros das comissões técnicas, além de antigos jogadores, afirmam e reafirmam todo o sofrimento que fora aquela seca. Dentre os momentos mais melancólicos estavam a disputa contra o Corinthians, na semi-final do Paulistão de 83, o dito jogo mais roubado da história, e, claro, a final de 1986, completando uma década de jejum vencido pelo XV de Novembro de Jaú.

    Pelos idos de 1991, a história começaria a ser mudada. Evair seria contratado, com o medo de ser este um jogador bichado. O atacante foi afastado por deficiência técnica, mais retornaria um tempo depois. Em 1993, viria a parceria com a Parmalat, considerada pelas narrações como a maior das parecerias esportivas da história brasileira, sob a tutela de José Carlos Brunoro. Com a contratação de grandes jogadores, como Mazinho, Edilson, Roberto Carlos, Antonio Carlos Zago, Edmundo Zinho, o elenco passaria a enriquecer-se, tendo na chegada de Vanderlei Luxemburgo um divisor de águas, já que o promissor e moderno técnico deixou reinar a democracia pelos quatro cantos do Parque Antártica.

    A história trataria de mostrar que a parceria com a Parmalat não seria um mar de rosas, mas o viés do filme era muito mais de memória afetiva que de discussão econômica, ou algo que o valesse. O caráter era de absoluta festa, até aplacarem nos torcedores dos tempos atuais as sensações de vergonha ocorridas pelo revés atual, do rebaixamento à série B, duplamente repetido.

    O choro de Edmundo ao ouvir a torcida gritando “Au, au, au, Edmundo é Animal!” faz relembrar os tempos áureos do auge de sua carreira e a forma com que foi abraçado por uma torcida de um estado e cidade que o adotou como se fosse um conterrâneo. O amor do atacante seria provado em outros momentos de sua carreira, até renasceria no Palestra, após os anos 2000.

    A provocação de Viola, no primeiro jogo da decisão de 1993 ecoava pela lembrança dos torcedores, jogadores e comissão técnica. A angústia causada por aquele simples gesto de imitação de um porco, após o gol, marcou a alma do palmeirense: Era como mexer com a família, como ofender de modo pessoal e íntimo. A decisão de Luxemburgo e Brunoro foi de isolar o grupo em Atibaia, para isolar o grupo dos dezesseis anos de fila, tentando eximi-los de qualquer culpa ou pressão externa.

    O revide começaria com uma união muito estreita, encabeçada pelo treinador – segundo o próprio craque do time, Edmundo – passando confiança aos seus legionários, inserindo uma pilha enorme neles, elevando seu nível de concentração como se estivessem indo à guerra, sendo o estádio o grande campo de batalha, e, como leões famintos, entrariam no gramado. Evair diria que, de um jeito ou de outro, eles sairiam do Morumbi carregados.

    O modo como Evair e Brunoro descrevem a finalíssima é muito emocionado: percebe-se um embargo na voz, mesmo passadas duas décadas do ocorrido. O gol de Zinho foi uma catarse, como se a zona entre o possível e o impossível fosse transposta. A emoção era tamanha que os arquibaldos mal acreditavam.

    A expulsão do corintiano Henrique pioraria a situação e aumentaria as especulações em torno do “esquema Parmalat”, que seria para a manipulação do resultado, supostamente pela compra do árbitro José Aparecido, muito por conta do placar elástico que somente evidenciava a diferença da qualidade dos dois elencos.

    Os versos do batedor de pênalti pareciam ser corridos a partir de 1976 para somente converterem-se em gol em 1993. Emocionado, Evair retira o peso das costas, de si e de toda a massa verde. O grande símbolo daquela época, saindo da mediocridade para finalmente ser reconhecido como um dos melhores centroavantes da história do futebol nacional. A sensação era a de que nenhum título superaria aquela festa, com a maldição encerrada contra o seu principal rival.

    As últimas cenas mostram a reunião em 2011 do time campeão, encerrada com uma partida que tencionava repetir os momentos emocionantes daquele jogo, com um saudosismo que tomou cada um dos integrantes daquele mágico time, que mudou o astral e o destino de 16 milhões de pessoas. A verve de toda a torcida e dos apaixonados pelo Palmeiras é registrado de modo emotivo e comovente.

  • Crítica | Um Toque de Pecado

    Crítica | Um Toque de Pecado

    Profecia: Um Toque de Pecado é o que o cinema brasileiro (mais óbvio que o grego) e o grego (mais cínico que o brasileiro) já querem ser, e serão, num futuro harmônico ainda inatingível. Violento, questionador, equilibrado, realista, surreal, crítico e irônico. O vencedor do prêmio de Melhor Roteiro em Cannes 2013 é o relato antagônico da consciência humana do século XXI, dividida, fragmentada, globalizada, cansada e atormentada, senão, por si mesma, pelo mundo complexo que criamos e que, é claro, não sabemos como mediar. Daí a mediação de Jia Zhang, cineasta chinês que dirige o filme com a precisão de desenhar uma tatuagem na espinha dorsal de um rei, cheio de simbologias e expoentes de uma única imagem, conectados por um caráter de identificação universal, manchados ora de vermelho-sangue, ora de matizes neutras, como só o nosso mundo pode criar, acima das barbáries de qualquer outro ficcional. É o cinema europeu de Luis Buñuel, antes comportado e certinho, agora em nível irreversível de causas e consequências. Bem-vindo ao mundo real deste grande filme, onde a ficção só existe se for ainda mais inacreditável.

    De dinastias honoráveis engolidas por um capitalismo predatório, a China atual inspira o desencanto, o ateísmo diante de tudo e de todos em relação a um sistema que não consegue mais se sustentar no lombo de seus cidadãos constantemente desesperados, e quem mora lá sente isso na pele, no cotidiano implacável de um país fechado e sedento por oposições, cheio de radicalismo. Entre os limites do necessário e da referência, da coincidência existencial de outro grande filme asiático – Cães Errantes –,  Pecado sustenta-se na corda-bamba deste radicalismo sociopolítico, sob uma máscara apenas social, mas que esconde, máscara debaixo de máscara, a urgência e o grito público de cidadãos à beira do precipício – uma das quatro histórias deixa isso mais do que claro.

    Lembra-se de Onde os Fracos Não Têm Vez? Aqui nem o mais forte, nem mesmo o malandro. Então, quem? O que se deve ser para sobreviver num mundo onde tomates na estrada valem mais do que a vida de qualquer um, quando se há mais fome que vida por aí? Pecado extrai o que há de imparcial no certo e errado, ao invés de quaisquer indenizações acerca de bem e mal. Deve ser feito o que deve ser feito; ‘‘go big, or go home”, já diz o ditado americano. É ideia de Walter Salles com roteiro de Iñarritu filmado por Tarantino, mas com um peso e uma relevância ainda não conquistados por nenhum dos três ocidentais, a bem da verdade.

    Longos planos-sequência, extremamente convidativos à hipnose. Um bom widescreen muito mais bonito, enquanto profundamente significativo, do que os quadros recentes do exagerado O Grande Mestre; situações inspiradas que Zhang Jia constrói e desconstrói com mão leve e muitas vezes de forma documental; um fôlego linear e a autoconfiança à toda prova do cineasta. Tudo isso quase chega a justificar, quando sob a sintonia do produto final, a ambição sob a qual o filme se apresenta de forma tão contemporânea. Quase, pois se retrai e analisa mais do que explode em suas ações, na maior parte do tempo, guardando o melhor de suas histórias para o clímax de cada uma, que, se não compensa a espera pelo impacto de um Cinema prestes a explodir a qualquer segundo, nos satisfaz com resoluções sem conclusões, de campo aberto a interpretações de cunho o mais variado possível.

    A narrativa em blocos eleva as histórias, unidas ou em unidade, ao atestado oblíquo de representações fiéis à realidade dos fatos, mas livres enquanto Cinema. O melhor exemplo é o terceiro conto, sobre a dificuldade em se preservarem a feminilidade e integridade pessoal em meio a conflitos de interesses, filmados aqui na luz e na sombra dos tormentos sociais dos excluídos, nas metrópoles imprevisíveis, onde o medo e a violência são a lei. Quando uma cobra cruza o caminho de Xiao Yu (a espetacular e pouco conhecida Zhao Tao, esposa de Zhang e melhor atuação e personagem do filme), não temos dúvida de que, para ela, algo pior está por vir.

    Um Toque de Pecado é isso (e será muito mais ao longo dos anos, ao longo de outras críticas): o grito de alguém que vê demais e pode fazer de menos. Retrato nacional e universal ao mesmo tempo, extra-diegético e tridimensional em tudo que expõe e calcula, com cuidado e muita ambição e vaidade; pecados homéricos de um cineasta orgulhoso por sua habilidade natural.