Crítica | Mil Vezes Boa Noite

Se toda atuação de Juliette Binoche fosse levada tão a sério como cada uma merece ser, ela seria a vencedora unânime em todas as premiações, ano após ano, filme após filme – vide Camille Claudel 1915, onde fez a grande atuação feminina de 2013. Aqui, é novamente uma lutadora sem armadura, Rebecca, que agora deve escolher, por imposição de ideais familiares, entre a família ou o campo de batalha. Sua guerra é a fotografia, sua guerra e seu bálsamo para algo extra-habitat caseiro que lá ela jamais consegue saciar – uma sede que não termina na presença das filhas, sequer na do marido, ambos dependentes de seu amor. O coração da fotógrafa depende do mundo, do mar, do fogo, dos quatro elementos, como nos é indicado desde a primeira cena: a impiedosa explosão em uma van no Oriente Médio.

O fogo da chacina coletiva, o ar entrecortado pela fumaça, a terra rebuscada ao redor e a água salgada que verte dos olhos da mãe, que lá é apenas uma fotógrafa que encontra sua paz em qualquer condição, ou situação, que demande registro por seus olhos, vulgo câmera. Nessa analogia respeitável – e quase óbvia – do cineasta com a paixão pelo Cinema, Mil Vezes Boa Noite torna respeitável esconder dilemas políticos dignos de registro por trás da serena história principal. O filme é uma árvore frondosa que, fotografada às 17 horas, faz com que conseguimos enxergar as raízes e, a partir de cada um de nós, deduzir muito ou pouco da copa e seus frutos ainda banhados ao sol. Sim, é um filme que brinca com nossa lucidez, sobre o que podemos sentir, e o que não devemos sentir vergonha de não poder. Mas o que uma águia prefere: ficar sentada em segurança num poleiro ou se arriscar nas tempestades onde nasceu para estar?

O dever chama, e o filme brinca de forma natural, e por vezes graciosa, com o livre-arbítrio da protagonista, pois tal qual a mulher homônima do clássico de Hitchcock, Rebecca busca sua identidade no que repousa além do que os olhos podem ver. Por mais irônico que isso seja, num filme em que a foto e o diegético são o eixo principal de uma narrativa de encontros e despedidas entre personagens que passam pela vida de Rebecca feito bolhas na espuma do mar – captadas para sempre mas que nunca voltam em seguida. O preço da liberdade surge e geme pedindo estrada, pedindo futuro quando ela, espécie de alterego da cineasta Agnès Varda, mostra fotos obituárias, lindas e trágicas a sua filha, tiradas pela mãe no Congo, em um dos flashbacks que o filme nos apresenta através da imagem estática, mas tremida e profunda nos closes em Binoche, extraordinária atriz, com sua ansiedade pela batalha em cada momento, em todo suspiro, em cada vacilo. É duro criar o próprio céu para voar, toda águia sabe disso.

Não há espaço, felizmente, a algum humor ou suspense involuntário no filme, posto que é bem colocado e conduzido em seu gênero dramático por excelência. Um retrato humano sem máscaras ou photoshop aos fatos e emoções transpostas com elegância e delicadeza, tampouco variações de moldura devido às visões semelhantes que todo espectador pode ter da história – mas engana-se quem chamar o filme de previsível, essa pode ser a última coisa que Mil Vezes Boa Noite é, afinal. Típico pequeno filme atemporal, de impressões além-tela, alheio a efeitos de percepções imediatas.

Nas entrelinhas, sobretudo, há, até certo ponto, até quando interessa de haver, um gostoso e indolor tom ingênuo e emocional que sugere a ideia de equilíbrio entre o que é particular e o ofício de Rebecca, como se o diretor Erik Poppe expressasse sua posição quanto à situação dela muito antes do clímax de seu melhor filme até agora. Filme maduro, de ritmo certinho e quase documental para nos informar sobre tudo da melhor e de mais simples forma possível, que não subestima seu poder, jamais, e o usa com uma sempre bem-vinda sabedoria artística à tona naquilo de sólido e consistente que habita os méritos de belos filmes como esse. Esses que nunca lotam salas de cinema populares, mas que abusam das fronteiras da arte enquanto analista da vida real.

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