Categoria: Críticas

  • Crítica | Castanha

    Crítica | Castanha

    Despertando uma narrativa que desdenha da linearidade, mas que necessita dela para ser compreendida, Castanha conta um epitáfio, exibindo a história do clã que dá nome ao filme sob a ótica de um tripé: Através da matriarca, seu neto e de um dos filhos. O espécime mais contemplado pela câmera de Davi Pretto é João Castanha, um já combalido showman que se apresenta na noite gay, mas que durante o dia faz ás vezes de filho exemplar, cuidadoso com a casa e com sua mãe.

    O viés escolhido pelo guião é de extensa depressão e decadência, independente do objeto analisado. Enquanto a já idosa Celina visita seus ex-amores, em condições mais insalubres que as suas, ainda convive com o vício de Marcelo (Gabriel Nunes) em crack, que consome o dinheiro e as forças da idosa, fazendo com que ela sinta-se eternamente cansada, o que interfere na vida e saúde de Castanha também.

    Na cena de prólogo há uma referência do que será mostrado em tela, com um homem nu, ensanguentado, que corre pelas ruas gaúchas como se fosse perseguido por um rolo compressor, prestes a ser esmagado pela modernidade e pela urbanização, contando os maus de tempos mais frios e secos como opressores da alma humana, convenientemente interrompendo a intimidade inerente as relações pessoais.

    No entanto, as escolhas do roteiro arrotam um desnecessário arremedo linguístico, exibindo clichês típicos de filmes independentes que são notórios pelo formato pouco usual, mas que no caso de Castanha, escondem uma história que seria profunda, prometendo isto, mas que não cumpre esse papel mínimo. Nem a metalinguagem de misturar cenas ensaísticas e teatrais garantem maior subsistência, tampouco garantem algo além do ordinário.

    As cenas extensas buscam mergulhar na intimidade familiar, além de passear pelos corredores das atividades noturnas do personagem título, e no entanto também não acrescentam muito, nem mesmo ao exibir a fé em que João se agarra, mostrada em poucos e escassos momentos, uma representação da pouco esperança que o protagonista tem em qualquer mudança ou evolução de quadro. A inevitável velhice que o acomete faz lembrar a mediocridade a que está inexoravelmente preso, tendo somente em sua mãe – um ser simples e moralista – o porto seguro, um dos únicos momentos em que é livre de críticas e reprimendas. Tal é a influência da senhora em seu caráter, que mesmo com a vida que leva, Castanha guarda uma personalidade realista, repleta de julgamentos e preconceitos semelhante aos de cristãos fundamentalistas, até se culpando (em partes) pela trajetória trôpega sua e de seu problemático sobrinho.

    A contemplação do ócio e da morte lenta provoca enfado em Castanha, e também no público graças aos excessos narrativos, quase sempre vazios de conteúdo. A obsolescência e compleição física do personagem o faz sentir um homem morto, que esqueceram de enterrar; um dinossauro que vaga pela Terra sem encontrar seu lugar ou caminho, exercendo seus últimos dias desmedidamente, sem saber qual identidade tomar.

  • Crítica | O Apocalipse

    Crítica | O Apocalipse

    Com base no Apocalipse de João, último livro da Bíblia Sagrada, a série Deixados Para Trás, de Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins, caracteriza-se por obras de temática religiosa abordando um futuro após o arrebatamento, evento em que os crédulos são salvos por Deus, e a Terra, sob o jugo do Diabo, passa por anos de tribulações. Atualmente, são dezesseis romances que compõem a saga, com direito a três prequels narrando momentos antes do Apocalipse.

    A trama de O Apocalipse é adaptação direta desta série. A temática cristã está presente logo nos primeiros minutos do longa-metragem, em que personagens são apresentados com um maniqueísmo didático evidenciando seus vícios. Há uma divisão implícita entre pecadores e aqueles que seguem a crença ao Senhor. Não há nenhuma intenção no roteiro de Paul Lalonde e John Patus – que tem no currículo outras obras cristãs, incluindo a versão de 2000 de Deixados Para Trás – em promover uma reflexão enquanto narra a história. A trama é voltada para o catequismo e utiliza a base bíblica como argumento ficcional.

    Há exagero na concepção das personagens, vistas somente como pecadores e não pecadores. Os primeiros são apresentados com vícios aparentes, como um apostador mal humorado, uma viciada em drogas e um dos arquétipos mais perigosos da produção, um muçulmano que, descrente na religião cristã, se torna por consequência parte dos pecadores. Em contraponto, os não pecadores são gentis e adoráveis e são representados por um agente da lei, crianças, entre outros breves personagens que aparentam pureza e realizam bons atos em cena. O didatismo é tão desmedido que não seria surpreendente se, em certos momentos, a imagem paralisasse e a palavra PECADOR surgisse na tela em letras garrafais.

    A ação centra-se em uma viagem aérea em que o adúltero e mau pai Rayford (Nicolas Cage) é o piloto da aeronave. O personagem evita passar o aniversário com a filha para viajar a Londres e ir com a amante a um concerto de rock. Quando acontece o arrebatamento e parte da população – e dos passageiros do avião – desaparecem, deixando somente as roupas como vestígio, uma série de dúvidas a respeito do desaparecimento das pessoas entra em cena. É o espaço para imaginarem terroristas, sequestradores e forçar situações dramáticas de desespero até, entre uma e outra tese, introduzirem e aceitarem o arrebatamento.

    Se o livro do Apocalipse revela que este momento é o princípio do fim, a profecia não anula uma possível coerência que o roteiro poderia ter. Não é porque parte da população mundial encontrou o reino dos céus que o mundo automaticamente cairá em um colapso que, em poucos minutos, destruirá cidades e satélites de comunicação. A produção incorre no mesmo erro de aventuras apocalípticas em geral, que nunca dão uma margem temporal suficiente para a destruição da sociedade. Em um tempo recorde, a humanidade se torna caótica e – mais um estereótipo – surgem ladrões, assaltantes e vilões em todo lugar.

    A motivação catequizadora da história não permite a profundidade das personagens, porque em matizes não há evidência explícita de preto ou branco. Assim, as personagens permanecem daltônicas para adequarem-se aos seus papéis de pecadores ou crentes. Um simplismo que não era necessário. O Cinema nos apresentou excelentes obras épicas que tinham como centro a mensagem cristã: O Rei dos Reis, O Manto Sagrado e diversas outras produções – como Ben Hur – que produziram belíssimas metáforas sobre religião e, acima de tudo, eram histórias ou parábolas bem realizadas, indo além de uma mera pregação da palavra.

    O filme talvez ganharia menos destaque não fosse Nicolas Cage no elenco. Porém, há anos sem entregar um bom filme ou uma interpretação principal bem feita, o ator tem seu mérito desgastado, e sua credibilidade popular não ajuda a produção. Infelizmente, Cage parece perdido e não se preocupa mais em voltar a uma carreira de sucesso em filmes populares de ação ou dramáticos. Talvez o público deva esquecê-lo e aceitar que o ator nunca retornará à boa forma e que ele manterá a interpretação canhestra vista em películas de execução duvidosa. Vê-lo como personagem central de uma história com boas intenções mas moralista até a medula nos traz a suposição de que este é um de seus piores filmes dentre seus piores filmes. Porém, tratando-se de Cage, nunca é demais pressupor a má qualidade.

    Apoiado em excesso na tradição cristã, O Apocalipse se mantém como um produto de um nicho específico, a ficção cristã, sem conseguir ser uma obra cujas palavra e narrativa são realizadas de maneira conjunta. Tratando-se de boas metáforas sobre a religião cristã, melhor revisitar um épico.

  • Crítica | Boyhood: Da Infância à Juventude

    Crítica | Boyhood: Da Infância à Juventude

    Crescer é uma das poucas experiências biológicas e cognitivas que une todos os seres vivos da Terra. Para os humanos, dentro de uma sociedade tão complexa, a tarefa é ainda mais complicada frente a tantos desafios que o mundo moderno impõe às crianças, por exemplo, em que cada uma vai reagir de forma própria a todos os estímulos, positivos e negativos, que recebe. Foi dentro dessa lógica que, 12 anos atrás, o cineasta Richard Linklater decidiu realizar um ousado projeto, o de filmar uma história sobre a vida de uma criança enquanto cresce até ela se tornar um adulto, mas utilizando com isso um ator só durante esse processo.

    Boyhood trata a vida de Mason (Ellar Coltrane), uma criança introspectiva que vive com sua Mãe (Patricia Arquette) e sua irmã Samantha (Lorelei Linklater), enquanto tem contatos esporádicos com o Pai (Ethan Hawke). Sua jornada pelo final da infância, adolescência e início da juventude nos será mostrada, assim como a de sua família e todas as situações que dali resultarão.

    Se o maior mérito desse novo e já cultuado filme de Linklater reside no conceito inovador por trás da filmagem, o mesmo não se pode dizer da história e dos personagens nela retratados. Ao focar Mason, a história tem problemas sérios de ritmo em razão de não conseguir imprimir na narrativa nenhum evento catalisador de mudanças na personalidade dele ou da família, ou mesmo o efeito disso em suas vidas. Apesar de passarem por várias dificuldades, como o convívio com novas famílias e padrastos com problemas de uso de álcool, nada parece afetar suas vidas de forma significativa.

    Mason é retratado com uma apatia irritante. A todo o instante, parece espectador do mundo para, de repente, já na juventude, saltar ao posto de filósofo do mundo contemporâneo. Por vários momentos, seus diálogos não representam nada. Há uma ocasião clara em que ele, adolescente, chega de uma festa e assume que fumou maconha e bebeu álcool com uma série de “sim” para a sua mãe, a qual aceita prontamente todas as respostas, e nada acontece. O mesmo quando ele está com uma turma de amigos discutindo mulheres, festas e bebidas como adolescentes comuns. Nenhuma pista estabelecida possui recompensa.

    Se Mason não garante emoção alguma, o mesmo não se pode dizer de sua família, em especial sua mãe, em bela interpretação de Arquette. Saindo da posição de mãe solteira com subemprego, a batalhadora que estuda e melhora de vida, suas más escolhas na vida pessoal contrastam com a ascensão na vida profissional, que garante uma melhoria de vida para ela e seus filhos (algo que o filme não explora em nada, como se o contexto social da família e do país não importassem). Com uma duração tão longa, de aproximadamente 2h45 minutos, tempo há de sobra para se desenvolver qualquer coisa que saísse da linha reta de emoções representada por Mason. Mas nada disso é feito, infelizmente.

    O pai de Mason, uma figura interessante, também é mal aproveitado. Apesar dos erros cometidos em sua vida, tenta dar o máximo de si ao educar os filhos, falando desde sobre o incômodo tema das relações sexuais na adolescência até conselhos sobre relacionamentos que não deram certo. Mas os diálogos não ajudam a tirar os personagens e suas relações do lugar comum e dos clichês do gênero.

    O que sobra em Boyhood são três horas de eventuais boas passagens e boas sequências de câmera, mas que não dizem a que veio. O hype em cima de sua produção parece explicar seu sucesso atual, e as relações ali representadas falam com os fãs de filmes indie e intimistas, os quais disfarçam a pobreza de seu discurso com momentos que simulam profundidade, mas que, na verdade, não representam nada. Caso houvesse ali uma escolha por um drama familiar clássico, mesmo que se às vezes derrapasse e fosse levado para o melodrama, ao menos teria sido uma escolha e haveria descarga de sentimentos com os quais poderíamos lidar. A obra infelizmente não é nem isso. São aproximadamente três horas de quase nada, mas muito bem disfarçadas.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Quase Dois Irmãos

    Crítica | Quase Dois Irmãos

    Tencionando revisitar um assunto que lhe é muito caro, Lúcia Murat usa seu Quase Dois Irmãos para contar uma história de colisão de universos que seriam normalmente muito distintos, mas que, em tempos atípicos como eram os anos 70 no Brasil, teriam mais capacidade de se conectar, além de causar uma interseção entre um e outro. Os dois distantes lugares são ligados pelo mesmo pecado, a marginalidade, enquanto um tem no crime o papel de ação, o outro tem no reclame político a sua infração.

    A história de Murat e Paulo Lins é contada em três períodos crônicos distintos, mas sempre focados em Miguel, um respeitável político branco e de aparência aristocrata (vivido no último momento por Werner Schunemann), e no poderoso traficante Jorginho (Antônio Pompêo). Os dois se conheciam desde a infância, mas, com o tempo, foram separados por seus destinos. O reencontro entre ambos ocorre nos anos 70, na prisão onde Miguel (Caco Ciocler) é confinado por suas ações enquanto militante político, a exemplo de todos os outros brancos encarcerados. Jorge (Flavio Bauraqui) é mais um dos muitos negros presos graças às violações comuns da lei.

    O paralelo utilizado no roteiro para unir os dois personagens tão distintos é a ode ao samba herdada dos pais, que tinham uma estreita relação no anos de 1950. No entanto, são poucas as semelhanças, especialmente quando se analisa o senador que Miguel se tornou e o destino final de Jorginho. A filha do parlamentar se envolve em alguns problemas na Justiça, sendo resgatada por seu pai. Os motivos destes problemas são mostrados aos poucos.

    Incrível como o suspense e a ansiedade permeiam os dois principais núcleos temporais da trama. As perseguições políticas próprias e a guerra de sucessão são assuntos em comum entre os dois momentos, seja no cárcere ou no tráfico dentro do morro. A mensagem que o argumento quer passar é que, apesar do tempo ter passado, mesmo com algumas mudanças e vitórias parciais, a desigualdade prossegue e as separações econômica e de raça ainda se mantêm presentes. O muro montado de modo instantâneo na prisão não separa somente os dois lados díspares entre os dois coletivos, mas também entre os dois irmãos.

    O discurso de Juliana (Maria Flor) acaba por se parecer demais com a fala do traficante, que acusa o importante cidadão de ser um exclusivista, preconceituoso e reacionário, o exato contrário dos valores que ele defendia no passado. Ao mesmo tempo em que o roteiro retorna no tempo, mostrando os ideais do revolucionário e preso sendo postos à frente até mesmo de seu próprio bem-estar, a bronca conservadora que ele dá em sua herdeira, por esta se envolver com um tratante narcótico e negro, é contrastante, ainda que o seu julgamento não seja de todo errado.

    O anúncio de Dona Helena (Marieta Severo), mãe de Miguel, afirmando que, aos poucos, os presos políticos estavam se tornando iguais aos militares, vai se tornando real. Lucia Murat consegue realizar um filme saudosista, que toca na questão da repressão da ditadura militar, e ainda capta os clichês de um favela movie, atualizando os temas de marginalidade e luta contra o sistema, mas sem ignorar os óbvios exageros de todas as partes dos ditos bandidos, pondo todos em nível de relevância e em pé de igualdade.

    A tônica emocional dita o samba em partido alto, no último ato, trágica e irônica, com um destino agridoce para os dois personagens ligados pelos laços de quase sangue, em uma relação quase familiar, e que, como em toda a fita, quase dá certo para os dois lados. O tom poético assinala a efemeridade da política, das relações e principalmente da vida, sem fechar todas as pontas que abre, não por desatenção do roteiro, mas por concentrar os personagens na perturbação dos sentidos e na dor envolvida por todos na intrincada trama.

  • Crítica | Gomorra

    Crítica | Gomorra

    Sem qualquer pudor. A violência real, imediata, crua, com assassinatos em lugares cotidianos e cometidos por um elenco sem atores profissionais. Emula realidade com a mesma crueza do livro de Roberto Saviano. No filme de Matteo Garrone, os criminosos são pessoas comuns, sem o glamour dos romances de Puzo, vestem-se como maltrapilhos, habitam casas ordinárias e amam o cinema, referenciando a todo momento Tony Montana, um dos papéis marginais mais conhecidos de Al Pacino, a despeito até de seu Michael Corleone. A identificação com o cubano é mais fácil, dadas as condições paupérrimas dos napolitanos.

    Mesmo com o caráter de improviso, a face da Camorra mostrada em tela tem a sua hierarquia, que tem de ser respeitada, mesmo pelos adeptos que habitam a ralé. A linha narrativa funciona como uma colcha de retalhos, com períodos em formatos de pseudo-esquetes que são coladas pela violência visceral da fita. Os dramas mostrados servem para compor um quadro depressivo, do quanto sofre a população com as ações do Sistema, que se sente dono de todo lugar onde pisam.

    Desde cedo as crianças e jovens são doutrinados na feitura de assassinatos e crimes. Os becos escuros não são imundos somente em seus concretos e tintas gastas, mas também em seus espíritos, sujos como as almas daqueles que amedrontam e extorquem os ordinários. As marcas de balas que ficaram nos coletes são marcas de guerra, fruto da síndrome da iniciação.

    Os tiros na região pantanosa, sem roupas, despidos quase como quando vieram ao mundo revela uma inserção de corpo e alma dentro do ideário do Sistema – nome dado pelos camorristas ao seus clãs e modo de governo. Os meninos quase sem pelos ou sinais de vida adulta já voltam suas forças para um destino preponderante e errático, cuja vida certamente será bem curta dada a alta taxa de mortalidade comum a essa parcela da população.

    Afora o elenco amador, há dois papéis preponderantes, que impõe respeito a fita mesmo com seus papéis secundários. O tecelão Pasquale, vivido por Salvatore Cantalupo mostra o deslumbramento que um civil tem em receber toda a atenção dada pelos mafiosos, além é claro das benéces do trabalho de alta rentabilidade, mas é pródigo em mostrar também o quão efêmera pode ser esta subida e como a queda é devastadora. Toni Servillo vive Franco, um executivo, um chefe comorrista bastante diferente do arquetipo honrdo do anti-herói Don Corleone de Brando. A tal honra mostrada no filme do Coppolla não é tão presente nesta versão moderna, sinal dos tempos, sinal de verossimilhança.

    A fórmula que mistura ficção de documentário, hoje absolutamente laureada e comum, não era tão corriqueira pelos idos de 2008. A realidade impressa, com os resquícios de western spaghetti, vista nos rostos suados dos personagens, emula também o cotidiano sincero das ruas napolitanas, onde a tragédia habita e vive lado a lado comm todos os fatos corriqueiros, habitando as mesmas terras do proletário e fazendo valer seu domínio sobre os que eles exploram.

    O resultado esmagador no destino de Pasquale é amedrontador, com a redução de sua auto-estima a zero, a despeito até do seu talento rarissimo. As humilhações que o conterrâneo sofre são muitas, variadas, onde o Sistema demonstra sem qualquer misericórdia quem manda, quem dá as cartas, quem rege os destinos e quem é o dono da vida, desde a dos camorristas até a alheia. Não há muita menção ao governo ou ao Estado, visto que o poder deste é mínimo perto do que faz valer a organização. Gomorra mostra uma realidade tão ímpar e digna de combate que se assemelha as piores imaginações sonhadas por romancistas, contistas e contadores de histórias, como um forte golpe na face da sociedade, que entre outras tantas hipocrisias, permite a livre ação dos homens denunciados por Roberto Saviano.

  • Crítica | Made In China

    Crítica | Made In China

    Distante demais dos tempos clássicos de Sete Gatinhos, Regina Casé está muito mais próxima neste Made in China ao programa em que é âncora na rede de televisão mais popular do país, por se pautar no ideário das periferias e ter em seus diálogos o mesmo vernáculo popular de Esquenta.

    No filme de Estevão Civiatta, Casé vive a vendedora devota a São Jorge – que dá nome a loja que ela gerencia – Francis, uma mulher esperta, trabalhadora e de bem com a vida, mesmo com as agruras que a crise econômica causa aos seus negócios. Como é típico das produções da Globo Filmes, este explora estereótipos da periferia, além de brincar com as diferenças regionais entre os brasileiros, que trabalham no comércio popular e os chineses, que conseguem vender produtos semelhantes com preços muito menores.

    O cenário escolhido para a história é o SAARA, Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega, o ambiente ideal e propício para as aventuras de Francis, que percorre toda a extensão do local por uma simples freguesa, mostrando como a escassez de clientes a desespera e também representando todo o seu esmero profissional, na correria desenfreada que ela protagoniza.

    As diferenças sociais, culturais e linguísticas são sustentadas por um elenco estrelado, que conta com atores globais veteranos e alguns membros carismáticos, cujas participações quase não valem nota. As repetições absurdas cansam o espectador, causando uma sensação de reprise eterna, piorada pelas legendas ininteligíveis, em chinês, para reafirmar que ali convivem dois mundos muito distantes, tão díspares quanto a real diferença desleal de preços.

    Apesar das boas intenções do guião, que é politicamente correto ao extremo, as falas da Francis conseguem exalar um preconceito inconsciente, a despeito até da fala final de que a miscigenação é a chave do sucesso do Brasil. A todo momento, a vendedora reza aos céus por  sua nacionalidade e para não ser um ponto fora da curva – talvez uma referência ao conformismo –, com dizeres como  “Deus me livre de ser estrangeiro“, numa alusão a uma xenofobia disfarçada, aventando até a ligação dos varejistas asiáticos com o crime organizado na China.

    Até uma tentativa de sofisticar o tema, com ângulos de filmagem incomuns, onde Civiatta registra Casé por trás de luzes piscando, parecidas com os pisca-piscas de natal que viram sua obsessão em todo o filme, que remetem a confusão de sua alma, tanto no ofício quanto no amor. Se valendo de uma brasilidade que só se apresenta em tempos como o Carnaval, Made In China é uma história de conquista e redenção, sem alma ou conteúdo, utilizando o arquétipo físico das brasileiras como avatar do valor e da perfeição.

  • Crítica | Chico & Rita

    Crítica | Chico & Rita

    A animação é o gênero, máscara ou forma mais propensos à desigualdade por conta de quem faz Cinema ou assiste a ele; daí a importância, sendo bem direto, de Chico & Rita ou de outras e quaisquer outras animações adultas, ou apenas não-infantis, de qualidade similar. Similar na busca pelo inesperado, num vulgo ‘‘desenho animado”, ou também na procura em ter traços diferentes da maioria das animações, presas à ponte entre os estúdios Pixar/Ghibli, os quais ainda comandam o jogo de influências, ambos rodeados de outras pequenas produtoras tão boas quanto as maiores, mesmo antes de Toy Story abrir o mar vermelho das perspectivas popularmente despertadas por Disney e Companhia; mas, sobretudo, idênticas no destaque medido principalmente pela quebra de barreiras do que se deve, ou não, inquirir de uma versão gráfica, mais colorida e interessante do nosso lado de cá.

    A obra de 2010, além de proporcionar um prazer delicioso de ouvir uma esplêndida trilha sonora caribenha, é balsâmica no toque da imagem, aliás, sendo que todo o visto remete ao frescor tropical, ao verão, o trópico em questão, começando pelo característico vestido amarelo de Rita, uma cantora livre, leve e solta ao céu, sempre límpido e ciano, sobre as ruas de Havana cobertas por cabos e gatos de eletricidade – fenômeno urbano pela qual a cidade é muito conhecida. Logo no início da história, nota-se a demanda por um pingo de contexto político na narrativa, e o clima de revolução ainda está no ar, no rádio de jovens adeptos à revolução, quando Chico, de pianista a engraxate, passa irrelevante pela rua e rememora em flashbacks seus casos e descasos com Rita, um amor para toda a vida.

    Uma animação sem medo de ser feliz, uma analogia intervisual sobre o próprio caráter de seus personagens, divertidos, alegres, com nada a perder senão a alegria de estarem todos juntos, em relances de amor, ódio, sexo e dinheiro, numa cidade que abriga tudo isso e mais um pouco; reflexos realistas de um tempo efervescente, uma explosão cultural que o filme nos apresenta quase que naturalmente, sendo intrínsecas àquele cenário as mudanças sociais na cidade, e, novamente, as cores de cada plano ou cena. Um deleite, de fato. Os traços, finos, nítidos ou abstratos, sem brilho e chapados, à base de muita sombra, dão o tom certo à brincadeira entre estereótipos que os três diretores de Chico & Rita optaram por fazer, revelando cada vez mais, e pouco a pouco, o que realmente move a história. Muito além do senso comum, estilhaçado aqui na primeira e explícita transa entre as figuras-título. Sem medo de ser feliz.

    A música e a paixão, donas desse e daquele mundo, marcadas em tudo o que foi paralelo às circunstâncias do casal, são um caminho inteligente para desconstruir qualquer sentido de inocência apresentado pelo que comporta o gênero, infinito em suas possibilidades surreais – ainda que a animação sempre as terá – por tratar a realidade por meio de um sensorial literalmente ilustrado. Somos cúmplices das idas e vindas de Chico e (adivinhe?) Rita, mesmo suspeitando que ambos ficarão juntos – ou não – no final. Mas é a simplicidade e a franqueza nesse jardim de belas intenções românticas e culturais que nos pegam de jeito e não largam de nós até o último timbre de um manifesto em prol da beleza e da liberdade, seja ela humana, seja ela artística.

  • Crítica | Os Homens São de Marte e é pra Lá Que Eu Vou

    Crítica | Os Homens São de Marte e é pra Lá Que Eu Vou

    Depois  de trabalhar em obras audiovisuais ambientadas em universos mais maduros e adultos, Marcus Baldini dá vida a versão cinematográfica do monologo cômico protagonizado por Mônica Martelli. A história de Os Homens São de Marte e é Pra Lá Que Eu Vou foca-se na vivência de Fernanda, vivida pela autora da peça, que vivendo a meia-idade, não consegue achar um homem para chamar de seu, tendo na ironia de trabalhar como mestre de cerimônias, orquestrando casamentos, a certeza de que sua vida é miserável sem algum ser do cromossomo Y.

    Tudo que envolve Fernanda lembra – e relembra – o quão mal ela está por não ter nenhuma companhia ao fim do dia, desde as frases de aceitação da solteirice, às amigas igualmente “soltas” e sua equipe, formada por mil estereótipos, tendo em Anibal o maior dos arquétipos batidos, com Paulo Gustavo transbordando os trejeitos homoafetivo de péssimo gosto, semelhante a nove entre dez trabalhos em que o humorista busca ser um ator.

    As reclamações da heroína se contradizem, pelos homens que passam por si e pelas oportunidades que passam por sua porta. Suas desventuras incluem encontros românticos com homens de belos corpos e de estirpe alta, sujeitos endinheirados que querem desesperadamente o seu corpo, mas que somente o têm em momentos especiais, em meio a hotéis caríssimos, flats e coberturas localizadas em prédios de luxo. Fernanda parece saber se esgueirar por estes locais, uma vez que toma todo o cuidado para estar sempre bela, se maquiando em espaço físicos minúsculos, para não aparentar ressaca ou transparecer a idade que realmente têm, pois mesmo com todas as qualidades possíveis ela ainda se mostra insegura, com muitas falas trôpegas, repletas de receios, mas que escondem uma ânsia por ter o tal do “homem perfeito”.

    A carência da protagonista é tamanha que qualquer alento significa mil fantasias, planos de fazer seu futuro com os homens com quem dorme ou os que meramente se aproximam dela. O comportamento obsessivo de Fernanda parece afastar as possibilidades de amor. Todos os seus esforços e desejos envolvem agarrar um homem para toda a vida, ainda que esteja longe demais  disso, já que a ansiedade a limita a somente atrair pessoas distantes demais do que ela realmente quer.

    No entanto, é notório que qualquer homem mais velho que se aproxima dela logo parece o par perfeito, sonhadores, inteligentes e interessantes. Qualquer engodo a pega, mesmo quando as noções artísticas do sujeito sejam toscas e cafonas, e que não saltam aos olhos dela, mesmo com seu ofício que se pauta em arte. Seu deslumbre não é justificado em momento algum, a não ser pela ostentação financeira de quase todos os parceiros sexuais dela, homens ricos os quais ela parece querer comprá-los apenas com o luxo, já que ela se põe a venda o tempo inteiro.

    A comédia fútil não consegue entreter, tampouco faz rir; situações forçadas que se repetem demais, reprisando momentos de outros humorísticos românticos. Até a personalidade de seu público não é totalmente encontrada, já que o roteiro não sabe a quem agradar, pois pouco funciona para qual for o sexo do visualizador. A cada novo parceiro, Fernanda promete que não fará sexo na primeira tentativa do sujeito, mas sempre cede, refirmando todo o caráter de reprise da fita, se auto-referenciando o tempo todo, mesmo que o exercício seja pobre.

    A beleza de Mônica Martelli é um dos poucos pontos positivamente destacáveis da obra, em meio aos eventos que louvam a trivialidade e a completa ausência de conteúdo, além de julgar a rotina de gente simples como algo menor, num preconceito socioeconômico enorme. As brincadeiras que funcionavam no teatro ficam gritantemente excludentes no grande ecrã: O que deveria ser uma comédia leve acaba sendo um freak show de discriminações, que esconde todos os pré-julgamentos atrás de uma mensagem de busca por amor, um amor que não consegue aceitar os seres como eles são.

    O oportunismo e a vontade louca de agarrar um homem para sempre que Fernanda guarda banaliza o romance e o amor; o sentimento deixa de ser algo raro para servir unicamente ao egoísmo dela, movido pela ânsia por não ficar sozinha, seguindo uma cartilha de comportamento baseada no lugar comum e na sabedoria popular, mas sem qualquer conteúdo ou substância. Exibindo uma enorme variação de clichês, vendendo uma mensagem de autoajuda que tem no machismo exacerbado a sua âncora, Os Homens São de Marte e é Para Lá Que Eu Vou é uma história superficial e tola, um evento que poderia ser interessante, mas que se atém demais a forma, e pouco ao conteúdo, refém de um final feliz num conto de fadas que mal consegue abraçar uma moral, ou uma mensagem minimamente sofisticada.

  • Crítica | Será Que?

    Crítica | Será Que?

    Saudosismo é um sentimento que deveria remeter a bons momentos, normalmente vividos por duas ou mais pessoas, mas também pode compreender a imaginação do que seria uma vida ideal, ou uma postura que deveria ter sido tomada há muito. É baseada na segunda hipótese em que está a trama de Será Que?, a nova comédia romântica fofinha/indie/hipster de Michael Dowse, que apresenta um casal de jovens, Wallace e Chantry, que se conhecem de modo curioso e que produzem uma amizade platônica a partir dali, claro, com uma evidente tensão sexual, mas que prossegue sem ser concluída.

    O carisma dos personagens é garantido de modo quase automático, graças aos seus interpretes –  Daniel Radcliffe e Zoe Kazan – reunindo até alguns ecos de alguns de seus personagens anteriores. A falta de ação de Wallace lembra muito a persona eternamente adolescente de Harry Potter, ainda que de sua boca saiam mais palavrões e sacadas mais maduras que a do bruxinho, mas a falta de traquejo com seres do sexo feminino prossegue, tanto que o personagem permite que seu próprio potencial caia indiscriminadamente na mítica friendzone.

    O modo como os dois “pombinhos incompreendidos” agem corre inteiro pelo modus operandi dos superestimados e inconscientemente pretensiosos membros de nicho, que usam armações de óculos gigantescas e camisas xadrez, amando objetos artísticos não populares, louvando um modo de vida alternativo unicamente por ser alternativo, praticamente nem discutindo a qualidade do que consomem. E depois de 500 Dias Com Ela, uma comédia romântica para homens, e de tantas outras voltadas a outros nichos, essa agora tenta alcançar os fãs vazios de Pedro Almodôvar e quiche, emulando os diálogos hiper-verborrágicos de Woody Allen para dar volume a obra, mas sem banalizá-la por completo, apesar do vício linguístico claro.

    A aproximação dos dois é lenta por causa do compromisso de Chantry, apesar que desde antes do filme começar, já ficar evidente que o guião tratará de juntar os dois jovens. Todas as interações dos adolescentes envolvem muita química e uma inevitável vontade de que as peles se toquem e que todo o circo de sensualidade e inter-curso sexual finalmente ocorra, sempre esbarrando na condição de namoro a distância e de um comprometimento que nunca consegue se concluir em si. A carência une e atrai os dois, como mosquitos em direção a uma luminária mata-insetos.

    A situação vai se complicando com a intimidade chegando sem a possibilidade de coito. Os amigos começam a ser confidentes, adentrando numa intrínseca narrativa de segredo com alta confiança, e cada vez à distância do tão esperado enlace entre os dois. O paralelo visto entre o medo de se entrelaçar com o par – lê-se casamento – e o modo pomposo de se vestir em um casório, dito por Nicole (Mackenzie Davis) serve como alegoria a um dos maiores temores da vida adulta, inclusive cooptando as inseguranças de Wallace em finalmente se lançar em direção ao sentimento que tem por sua musa, e, claro, a evasão dos namoros sempre que as coisas começam a dar errado.

    As agruras pelas quais Wallace passa para reencontrar sua alma gêmea envolve uma série de fatos bastante nonsense, com provas de amor que cortam o globo terrestre e envolvem pensamentos e atitudes inconsequentes, que não são encaradas com a expectativa que ele tinha. A vida adulta mais uma vez exibe sua face cruel, frustrando seus desejos de finalmente ser um com sua amada.

    Será Que? Possui uma necessidade menor de paciência por parte do público masculino, que não fica completamente estafado com o resultado final, mesmo com todas as fórmulas e estratagemas repetidos de filmes como Ruby Sparks. O modo singelo como tudo é tratado neste microuniverso exala sensibilidade, medo e receio de que a modernidade e a rotina matem a possibilidade de romance, ainda que no desfecho haja um momento açucarado, como o gênero mesmo pede, até por motivos comerciais. A sensação após o ao apagar inicial das luzes é semelhante a da letra de Provas de Amor, dos Titãs, que em seus versos, afirma que  “Existem provas de amor… Não existe o amor“, remetendo ao sentimento de Chantry, que sempre tenta ir até o final de seus relacionamentos, mas acaba optando por seguir sua vida com o outro protagonista da fita, na demonstração de evolução mais palpável de ambos personagens.

  • Crítica | Virgínia (2011)

    Crítica | Virgínia (2011)

    A narrativa simples, cortada por uma narração e por estética típica dos filmes de terror feitos para o público juvenil, esconde uma análise sobre a decadência humana e a pretensão de espírito. Val Kilmer vive Hall Baltimore, um escritor especialista na temática de bruxas, mas que está com a sua carreira em declínio. Durante o tour de seu novo livro, ele chega a uma pequena cidade interiorana, sofrendo as agruras da fama, que fugiu de si, e as baixas vendas de seu novo produto.

    Movido por um instinto niilista e depressivo, Hall visita o que seria uma casa de Edgar Allan Poe, jogando vinho sobre o brasão do poeta e contista, revelando um ressentimento sobre a dificuldade de manter-se ativo e de produzir o próprio sustento através da venda de livros. Após tentar afogar as próprias mágoas na bebida e discutir com sua esposa, Hall decide atravessar a parte arbórea do lugarejo, encontrando, então, uma jovem e bela mulher chamada V. (Ellen Fanning), cuja cor alva destoa de todo o cenário acinzentado. O trabalho da fotografia exibe diferenciação de sentimentos através das cores que se sobressaem no ambiente, dominado por tons de grafite.

    Neste novo momento da carreira, Francis Ford Coppolla parece querer explorar emoções diversas, partes da alma humana normalmente ignoradas pelo cinemão. Ele se vale de estrelas da indústria para contar essas histórias – com Val Kilmer neste, Tim Roth em Velha Juventude e Joaquin Phoenix em Tetro – e, claro, com um orçamento irrisório, especialmente se comparado aos momentos áureos de sua carreira. Em Tetro, o baixo preço não chega a ser um problema, mas como, nesta obra, trata-se de uma história de terror, o risco da fita parecer trash é enorme, o que faz relembrar-nos dos primeiros trabalhos do realizador, como Demência 13.

    A crise econômica pela qual Baltimore sofre faz com ele passeie por seu inconsciente, tendo fantasias que se confundem com a realidade, em uma imaginação onde interage com situações espinhosas, como assassinatos, crimes envolvendo crianças, e com seu mentor, Poe (Ben Chaplin). Ao despertar, é tomado por uma mórbida curiosidade de procurar o delegado da cidade, Bobby La Grange (Bruce Dern), atrás de informações de um assassinato que acabou de acontecer. Seu motor é o tédio unido à vontade de escapar de sua própria vida. É em meio a uma conversa com Bobby que ele “tem” uma ideia para um novo livro, agindo de modo desesperado, se munindo do argumento do idoso para produzir uma sinopse de história de vampiros.

    Coppolla, nas cenas em que o escritor retorna ao mundo fantástico, prossegue com uma diferenciada abordagem, que até tenta se valer de uma criatividade narrativa, mas que esbarra em uma tosca realização, deixando de lado o que deveria ser um pedaço repleto de dualidade e dramaticidade para perder força, tornando, inclusive, digno de risos.

    Próxima do final, a temática começa a flertar com a comédia, especialmente quando o escritor adentra o mundo do líder de uma seita de góticos e satanistas chamado Flamingo (Alden Ehrenreich), que, com suas maquiagens esbranquiçadas e vestuário de couro, revela uma volúpia pela obscuridade da alma humana. Todo o arcabouço ideológico ligado ao ocultismo e ao mistério do assassinato esbarra na vontade que Virgínia tem em ser um filme de deboche, uma caricatura de muitos filmes slasher dos anos 90, usando um pretensioso protagonista para mostrar que, caso ele merecesse, nem mesmo o seu enorme ego o livraria de uma vida medíocre.

    A persona de Hall Baltimore faz, às vezes, de seu realizador, que em determinado momento da carreira entrou também em descenso, conseguindo posteriormente se reinventar, mas que, neste, exibe quase sempre vaidade e uma autorreflexão mal urdida.

  • Crítica | Uma Noite de Crime: Anarquia

    Crítica | Uma Noite de Crime: Anarquia

    A primeira semana de exibição de Uma Noite de Crime gerou uma bilheteria suficiente para pagar dez vezes o orçamento da produção. Uma sequência foi programada para este ano, com o diretor James Demonaco retornando ao universo distópico situado em um futuro de uma sociedade americana sem violência e composta por uma lei que, durante uma noite, autoriza assassinatos e crimes em geral como maneira terapêutica de expurgar o estresse anual.

    Se a história anterior enfocava a casa de uma família rica e um grupo que tentava invadi-la, Uma Noite de Crime: Anarquia se passa inteiramente nas ruas, local em que o expurgo acontece sem nenhuma censura. A trama apresenta personagens, em situações distintas, formando o grupo que tenta sobreviver durante esta noite. Além destes representantes do povo, surge um grupo político contra o governo e que, através da internet, produz vídeos de protesto contra o dia anárquico, explicando por que este é um sistema feito para exterminar as classes mais baixas da sociedade, incapazes de se defenderem.

    A tensão é melhor sustentada do que a produção anterior pela urgência de uma trama passada nas ruas, sem a proteção de um sistema de segurança caro, como na casa vista anteriormente. Entre as personagens da trama estão duas irmãs que acabaram de perder o pai – vendeu-se para um expurgo de ricos para garantir dinheiro para as filhas; um casal que tem o carro sabotado no trajeto para casa; e um homem que se prepara para uma vingança e, com aparatos e um veículo, ajuda as demais personagens a não perecerem nesta noite.

    A ausência de nomes conhecidos no elenco demonstra a intenção de apresentar uma história sem nenhum personagem em destaque como foco evidente de atenção. O grupo segue o homem que prepara a vingança não por ser o centro do roteiro, mas pela necessidade de sobrevivência. E, assim, vão se movimentando contra grupos de extermínio. Além dos cidadãos que realizam o direito constitucional de matar por uma noite, há um grupo de mercenários pagos para caçar outros e vendê-los para ricos que desejam expurgar, mas não se sentem confortáveis para ir à caça.

    Apresentando com melhor qualidade os ideários por trás deste futuro, a trama tem mais intensidade e apresenta um jogo político que a história anterior não mostrava. O conceito é rico e poderia ser desenvolvido em diversas tramas apresentando outras esferas de poder, embora a intenção de Demonaco seja, aparentemente, focar somente a ação e o suspense e a força imagética de um período em que a anarquia impera durante algumas horas.

  • Crítica | Crítico

    Crítica | Crítico

    Crítico 1

    Trabalhando com o equilíbrio entre a análise fílmica e a superestimação da opinião própria e alheia, Kléber Mendonça Filho – crítico e cineasta – usa argumentos metafóricos, imagens essencialmente pautadas no estudo da visão, para fomentar as falas dos depoimentos colhidos, entre estrangeiros e brasileiros. Escrutinar o apreço à arte e ao mensuramento da qualidade dos objetos analisados é uma árdua tarefa, além de ter em seu exercício a tendência de supervalorização, tanto do trabalho do realizador cinematográfico quanto da relevância que uma resenha tem, sendo associada comumente – e quase sempre erradamente – à prática de uma arte por si só.

    A busca por isolar o gosto ou expectativas da experiência em assistir a um filme é custosa: quase sempre esbarra em falas que podem ser interpretadas como azedas, amargas ou ressentidas, mas que, a priori, somente buscam elucubrar sobre algo óbvio aos olhos analíticos. Numa das entrevistas, João Moreira Salles argumenta que o papel do crítico é refém dos filmes por ele analisado, e que se o cenário artístico for completo somente por espécimes medíocres, de nada adiantaria todos os seus esforços.

    Por mais que teoricamente o papel do resenhista seja o de se eximir de seus próprios gostos pessoais, o ofício do julgamento é volátil, pois a quantidade de conhecimento que se adquire com o decorrer de seus dias muda constantemente o seu ideário e repertório. Pode-se, no ato de atribuir notas à obra analisada, cometer injustiças, já que, em pouco tempo, tudo poderia mudar, especialmente em quantas estrelas a película poderia merecer.

    Cláudio Assis, diretor de Amarelo Manga destaca que, uma vez o filme lançado, é preciso ter noção de que o produto será analisado e sofrerá ameaças à qualidade da produção, e que é preciso ter elegância para aceitar as falas ruins, pois isto faz parte do jogo. Já Bianchi não tem uma certeza sobre qual o ideal na crítica, se é somente informar as pessoas ou também reinterpretar artisticamente a obra avalizada.

    O modo como Mendonça conduz a câmera visa mostrar a dualidade, não só entre a necessidade e  a supervalorização da “crítica”, mas também a importância do diálogo entre o cineasta e o crítico. A fala de Walter Salles sobre isso é pródiga, destacando a Carrieri du Cinema, onde dois escritores teorizavam sobre o que deveria ser a Novelle Vague e dali começaram a praticar o que seria um movimento imortal do cinema, além de incitar dois dos realizadores mais marcantes da indústria e da arte – Truffaut e Godard. Os ecos disso seguem até hoje, com relatos de cineastas contemporâneos, como Bertrand Bonello e tantos outros.

    Os depoimentos dos artistas do cinema também são interessantes por exibirem uma passionalidade ímpar, desde os diretores que não conseguem ler todo o texto – como com Babenco – até os obsessivos, que não conseguem parar de ler, mesmo quando lhes dói, a exemplo de Bruno Barreto. Há também uma parcela de astros que execram alguns dos estilos, como a erudição desmedida e uma subjetividade que não é necessária.

    Outro argumento rebatido – especialmente por Daniel Burman e Fernando Meirelles – é o do “filme ideal”, onde o analisador, munido de seu conhecimento prévio e de uma expectativa preconcebida do que deveria ser a fita exibida, começa a apontar os momentos que deveriam mudar, as sequências de quadro e montagem editorial do produto, para que tornasse, dessa forma, uma obra perfeita. A frivolidade de tencionar que algo siga a escola preferida do observador somente revela uma pretensão de proporções dantescas.

    Crítico faz justiça também ao exibir os reclames dos comunicólogos, que não aceitam de bom grado algumas das demandas da indústria. Luiz Zanim destaca uma experiência que teve em Cannes, ao cobrir o evento para um jornal. Ao chegar em terras francesas, ele teria uma bateria de entrevistas com diretores e produtores e as quais jamais havia marcado. Ao retornar ao Brasil, recebeu uma correspondência pedindo que ele redigisse uma carta bilíngue com as desculpas por não ter feito todo o conteúdo programado pela representante dos filmes que não a da pauta do jornal. Zanim obviamente não o fez, fortalecendo a fala de que, para a indústria, o ideal é que o crítico se torne um assessor de seus filmes, que somente propague releases e informações, como se fizesse parte do seu jogo comercial.

    A reflexão causada pelo roteiro passa por diversos trabalhadores da indústria e pelos olhos e falas de artistas cooptados nos oito anos usados para que o filme de Mendonça fosse rodado. O estudo trata basicamente de sentimentos e sensações, conseguindo inserir muita informação num período de tempo curtíssimo  pouco mais de uma hora , e que, ao mesmo tempo que exaure seu receptor com as variações de fala e com a câmera tão próxima de seus entrevistados, exibe, a partir desse viés, uma forçada intimidade, quase desnudando os que depõem, obrigando a quem termina de assistir a Crítico a ter uma reflexão, especialmente sobre a adjetivação de obras pertencentes ao público.

  • Crítica | Interestelar

    Crítica | Interestelar

    Interestelar

    Desde que o primeiro homem andou sobre esse planeta, o céu e as estrelas exercem uma fascinação na espécie como nenhum outro fenômeno da natureza. Não à toa, praticamente todos os povos terrestres tinham como deuses planetas e estrelas, dadas sua magnitude, distância e beleza. Portanto, nada mais natural que, na era moderna, as artes tentem reproduzir esse senso de admiração pelo desconhecido. Dentre todas, o cinema é a que chega mais próxima de construir e reproduzir essas sensações para o público dito “comum”, que em meio à correria do dia a dia, mal tem tempo de olhar para o lado, quanto mais para cima.

    Desde Georges Méliès, passando pelo sempre cultuado 2001 – Uma Odisseia no Espaço, Contatos Imediatos de Terceiro GrauContato e, mais recentemente, por Gravidade, o Universo exerce um fascínio por sua exuberante beleza, ao mesmo tempo que assusta por suas escalas inimagináveis de grandeza e a sensação de que, ali, estamos perto de ser literalmente nada. Ciente de todas essas questões, o cultuado diretor britânico Christopher Nolan se lançou em uma empreitada arriscada, a de fazer uma história que se passa nesse cenário e que, ao mesmo tempo, possa emplacar um sucesso comercial.

    Interestelar gira em torno do piloto Cooper (Matthew McConaughey), que cuida de sua fazenda no interior dos EUA junto a sua família. Em um futuro não muito distante, que flerta com uma distopia onde a humanidade não foi destruída, mas passa por dificuldades e tenta viver normalmente, a sociedade não precisa mais de engenheiros e pilotos, pois a exaustão natural do planeta, junto ao crescimento da população, provocou a escassez de comida, sendo essa a atual função de Cooper, que nunca superou o fato de não ter levado adiante sua vocação. Sua filha, Murph (Mackenzie Foy/Jessica Chastain/Ellen Burstyn), mostra uma grande inteligência e inclinação para a ciência, enquanto seu filho, Tom (Timothée Chalamet/Casey Affleck), se mostra contente em seguir seus passos de fazendeiro, tudo aos cuidados do pai de sua falecida esposa, Donald (John Lithgow).

    Cooper tenta ao máximo se esforçar para cumprir suas tarefas como fazendeiro e pai, mas a frustração de não ser piloto sempre o impede de dar a tudo a atenção e importância que merecem. A passagem em que ele discute com os responsáveis da escola de seus filhos, onde os livros de história sobre a exploração espacial foram alterados, é excelente na medida em que mostra o descompasso entre aquele estágio da humanidade, que se contenta em apenas sobreviver, e a reminiscência de um passado sonhador, na figura de Cooper, que imaginava expandir as fronteiras da humanidade rumo ao espaço. A discussão a respeito do pioneirismo da exploração espacial – relembrando o Velho Oeste -, e o papel da ciência como salvadora da humanidade também poderia ser mais problematizada. O filme ignora condições sociais e ideologias das quais a ciência é fruto. Ela não existe sem seres humanos dotados de vontade produzindo-a, e da mesma forma que ela é tratada sozinha como a salvadora da humanidade, também poderia ter sido a causadora de sua extinção.

    Dentro deste mundo, os fenômenos naturais com os quais estamos habituados não acontecem mais do mesmo jeito. Elementos como uma poeira constante (que às vezes se transforma em tempestades) e alterações na gravidade por vezes acontecem, mas a preocupação com o dia a dia é tão grande que poucos ligam. Menos Murph. A criança percebe em seu quarto que algo estranho, que ela chama de “fantasma”, acontece, já que os livros de suas estantes sempre caem sozinhos. Cooper diz a ela para compilar dados e analisá-los, para depois se chegar a uma conclusão, como manda a lógica científica. Prontamente, Murph realiza o pedido do pai e em pouco tempo descobre uma mensagem codificada, em código Morse, e que, para a surpresa e espanto de Cooper, os leva a uma instalação secreta da NASA.

    Lá, Cooper reencontra um antigo amigo de seus tempos de piloto, o professor Brand (Michael Caine), e conhece a filha dele, Amelia Brand (Anne Hathaway). Então, a história dá uma guinada. Cooper é convidado para fazer parte de um projeto de tentativa de salvação da humanidade, que será extinta por uma “praga” que consome nitrogênio e altera o balanço da atmosfera. O projeto, que estava em andamento há anos, levou equipes diferentes de cientistas para outra galáxia através de um buraco de minhoca posicionado perto de Saturno por “alguém”, que ninguém sabe quem, mas que não estaria ali por acaso. E esse seria o caminho da viagem, o qual envolveria muitos riscos, provavelmente sem retorno.

    Nesse momento, o desenvolvimento dos personagens e suas angústias é parado para dar vazão a uma velha mania de Nolan, que é explicar para o espectador tudo o que os especialistas do filme pretendem fazer. Nesse caso, o professor Brand explica todo o passo a passo para Cooper, e o fato de escolherem um ex-piloto e fazendeiro, que apareceu por acaso naquela base para pilotar a missão mais importante da humanidade, causa um certo estranhamento, em que a explicação dada, onde “algo” o enviou ali, convence o espectador mais crédulo, mas não aquele mais exigente. A explanação do professor Brand sobre os planos A (resolução de sua equação e retirada da população da Terra para outro planeta) e B (popular o novo planeta com material genético guardado) também é acometida por isso.

    Chamado de volta a sua vocação, Cooper aceita a missão e precisa deixar a família, para o desespero de sua filha. A promessa do retorno do pai não resolve o conflito, que ecoará para sempre na vida de ambos. O relógio que Cooper dá a Murph como uma tentativa de criar um elo sentimental e temporal entre ambos também falha nesse sentido.

    Ao abandonar a Terra e ir para o espaço, o filme toma outra proporção, e as discussões científicas entre os personagens, para decidirem o próximo passo da missão, são sempre explicativas dentro de um limite do aceitável, mas bem perto deste limite. Para um espectador sem nenhum tipo de conhecimento científico, talvez ajudem-no a entender alguns conceitos básicos e o que estaria acontecendo em determinados momentos. Porém, para este mesmo espectador, explicação alguma ajudaria a entender fenômenos mais complexos, como o que acontece dentro de um buraco negro, o que, na verdade, ninguém sabe. Se em A Origem o excesso de explicações sobre uma trama relativamente simples acaba entediando o público, em Interestelar isso não acontece, pois as informações estão inseridas em um contexto totalmente diferente do que estamos habituados, e os diálogos ajudam-nos a familiarizar tanto com o tema quanto com as motivações por trás de cada personagem. Obviamente, escorregões acontecem, quando Amelia Brand discorre sobre o amor, mas são poucas as vezes.

    A sequência de aproximação, e quando entram no buraco de minhoca, é belíssima e lembra muito a viagem de Ellie, em Contato, ao transformar uma viagem espacial sob condições inéditas e extremas em uma aventura por si só. Ao mesmo tempo, a chegada ao local se transforma em uma paisagem visual para o vislumbre do espectador e dos protagonistas. Juntos na viagem estão os outros cientistas Doyle (Wes Bentley) e Romilly (David Gyasi), além dos computadores com inteligência artificial TARS (voz de Bill Irwin) e CASE (voz de Josh Stewart), que garantem bons alívios cômicos.

    Ao transformar o desconhecido do espaço em potenciais riscos para os astronautas, Nolan consegue criar situações de tensão de forma eficiente, e utilizando-se de toda a complexidade de estar em uma realidade com tempo e espaço totalmente diferentes, o horror da situação aumenta ainda mais, como na excelente sequência dentro do planeta aquático onde estava uma das cientistas que buscavam mundos habitáveis. Lá, tudo o que poderia dar errado, deu, em referência a uma própria brincadeira do filme com a “Lei de Murphy”. O fato do planeta estar próximo do buraco negro Gargantua faz com que poucas horas ali se transformem em quase 30 anos perdidos na Terra, e o peso de tais erros, ainda mais brutal sobre os tripulantes. Ao retornar à nave, percebem que se passaram 23 anos na Terra, e muita coisa aconteceu. Os filhos de Coop cresceram, e Murph, que agora trabalha com o professor Brand na NASA, ainda não superou a partida do pai, enquanto Tom permanece cuidando da fazenda. A teoria da relatividade é citada, usada e explicada extensivamente no filme e serve de fundo para explicar a motivação de Coop para tentar retornar logo para a Terra.

    Por perderem muito tempo e combustível nesse planeta, sobram mais dois para visitarem: um do Dr. Mann (Matt Damon), brilhante cientista, e outro do Dr. Edmmonds – que tinha um relacionamento amoroso com Amelia -, ambos com motivos para serem visitados. Porém, o lado racional de Cooper fala mais alto e eles seguem para o planeta de Mann, que, desesperado pela solidão e medo da morte, manda o sinal mesmo sem ter encontrado nada para tentar escapar, o que também garante boas sequências de ação e tensão, mesmo que previsíveis, com os velhos discursos do vilão e tudo mais. Aqui, ele poderia encarnar de forma mais enfática o papel crítico sobre a ciência, mas foi feita a escolha mais simples.

    A transformação do homem racional e altruísta em um homem egoísta, contradizendo todos os argumentos racionais de Cooper para escolherem aquele planeta, é feita de forma rasa ao contrapor o velho “sentimento versus razão”. A fuga do Dr. Mann danifica o equipamento espacial que acopla as naves, e a sequência para tentar encaixar a nave pilotada por Cooper e Amelia lembra bastante Gravidade, ao colocar seres humanos em risco no espaço, realizando manobras praticamente impossíveis para tentarem se salvar, mas sempre sem abusar da expectativa e tensão, que poderia cansar caso fosse esticada demais.

    Nesse momento, é também revelado para Murph e para Coop e Amelia que o plano original do professor Brand sempre foi o B, e a sua equação gravitacional não resolveria o problema de como salvar a humanidade, que sempre esteve condenada. Portanto, a viagem de volta de Coop seria impossível.

    Com o gasto excessivo de combustível, agora não havia o suficiente nem para Cooper voltar para casa, nem para irem ao planeta de Edmmonds. A solução é usar os recursos para contornar Gargantua e usar sua força para impulsionar a nave, mas Cooper engana Amelia e solta sua nave, caindo no buraco negro. E dentro do buraco negro onde Nolan se rende a homenagear, à sua maneira, o clássico espacial de Kubrick. Se em 2001 – Uma Odisseia no Espaço estamos sozinhos com Dave, dando a cada imagem o nosso próprio significado, Cooper faz questão de perguntar ao computador TARS cada passo da etapa no qual se encontra, em uma conversa que não chega a incomodar, mas tira um pouco o poder do espectador de ter a mesma epifania visual e criativa que Kubrick corajosamente permitiu.

    Assim como em 2001, a estrutura de dentro do buraco negro falou diretamente com Cooper, dando a ele elementos de sua natureza para conseguir se comunicar – no caso, a biblioteca do quarto de Murph quando criança. Lá, todas as condições são radicalmente diferentes de tudo o que conhecemos, e tanto o tempo quanto a gravidade são distorcidos. A estrutura consegue distorcê-los de forma padronizada, fazendo com que Cooper envie os dados da equação gravitacional que resolveria o problema de como salvar a população da Terra, ou seja, ele era o fantasma de Murph quando criança tentando se comunicar com ela. Todas essas cenas dentro do buraco negro, apesar de serem atrapalhadas por tanta explicação, brincam com conceitos da física, ao mesmo tempo que garantem uma gama enorme de emoções, em grande parte por causa da brilhante atuação de McConaughey.

    Após enviar a mensagem para Murph usando o mesmo relógio que havia dado à menina, ela consegue decifrar os dados e salvar a humanidade, enquanto Coop é reenviado pela estrutura do buraco negro e encontrado pelos terráqueos do futuro em Saturno. Nessa conclusão, um pouco da magia inicial se perde, pois o objetivo principal do desenlace é explicar e resolver praticamente todas as pontas soltas do filme, não deixando margem para praticamente nada, a não ser o paradeiro e situação de Amelia Brand. O reencontro de Coop com Murph, já idosa e prestes a morrer, não garante muitas emoções, e o passeio turístico dentro da estação espacial em Saturno soa desnecessário.

    Porém, em relação ao aspecto técnico, a produção funciona muito bem. As sequências no espaço, sempre em silêncio, garantem uma atmosfera de suspense que se mantém, até misturar com o som dos ambientes fechados dos atores. O jogo de luzes dentro das naves, remetendo sempre ao sol (o nosso, ou não), é sempre interessante de acompanhar. A também já criticada parceria com Hans Zimmer mostra sinais de cansaço, mas ainda funciona para compor canções que, por vezes, casam perfeitamente com os momentos vividos na tela, em especial nas cenas finais.

    Muito se tem comparado Interestelar a outras produções do gênero, mas nenhuma comparação é justa. Nolan, como qualquer artista, retira influências de suas obras preferidas e as coloca ali, misturadas a seus próprios elementos dentro de uma narrativa própria, que tenta fazer uma homenagem não só à ficção científica, mas ao próprio sentimento humano de querer saber o que existe além. Quem condena a exploração espacial por ser gasto inútil de dinheiro não consegue ver mais adiante. Como o próprio filme cita, a tecnologia espacial gerou vários outros frutos para a humanidade, como as comunicações via satélite e a máquina de ressonância magnética, que poderia ter salvado a vida da esposa de Coop. Se a humanidade gasta dinheiro à toa, ali realmente não é o lugar. O Professor Brand também afirma que cada pedaço de metal sendo usado na construção daquelas naves poderia ser utilizado na fabricação de uma bala de uma arma, então, de certa forma, tudo aquilo foi positivo. É junto a esse conceito básico e humanitário que o filme se posiciona e se constrói, em como a ciência, ao desvendar o funcionamento por trás da natureza, nos ajuda a entender como ela é bela e, principalmente, nos torna mais humildes e capazes de admirar tudo o que está lá fora.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Rio Ano Zero

    Crítica | Rio Ano Zero

    O filme da francesa Aude Chevalier-Beaumel começa com uma narração em inglês. O narrador, em seu carro, observa a Cidade Maravilhosa e diz querer estar próximo da ação e do povo, e não do poder, porque esta interação é bonita, a melhor coisa que poderia ocorrer com a cidade. Rio Ano Zero varia entre os momentos em que a violência do Rio de Janeiro é exposta – seja pelas armas que os seguranças precisam carregar em seu ofício, seja pelos morros, paramentados com toda sorte de arsenal pesado – como uma das alternativas políticas, diferente demais das figuras de poder presentes na tradição governamental da antiga capital do país.

    Marcelo Freixo não é afagado pela imprensa. Logo no início, é filmado em um estúdio da CBN tendo de responder se evadiria o país novamente, uma vez que estava sendo ameaçado de morte por milicianos, cujo cerco havia se apertado graças a CPI das Milícias. Os funcionários que estavam armados serviam a si mesmos, numa exposição clara de como funciona a rotina do Rio de Janeiro e como age o poder paralelo quando encontra um desafeto.

    A intimidade do professor de história, e intenso combatente deputado estadual, é mostrada não só em seu discurso extenso contra a corrupção, mas escrutinada até em seu cotidiano, em sua casa, com a câmera passeando entre sala e escritórios, capturando cenas onde ele está inclusive trajando pijamas. O foco é obviamente as denúncias do candidato do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) contra a criminalidade crescente no Estado do Rio, provocada por organizações de cunho mafioso, que vivem tranquilamente, habitando a mesma cidade que abrigaria a Copa do Mundo, Olimpíadas e a Jornada Mundial da Juventude. A conivência do prefeito e candidato à reeleição da eleição de 2012, Eduardo Paes, com uma chancela de vinte partidos, visava evitar o segundo turno e qualquer debate direto.

    A diferença de tempo disponibilizado no horário eleitoral era de pouco mais de um minuto para Marcelo, enquanto Paes dispunha de 16, em virtude do número de parlamentares na câmara municipal. As acusações ao mandatário da cidade prosseguem fortes e cada vez mais intensas, assim como a intensa corrida eleitoral.

    Freixo usa sua boa fala para destacar alguns pontos “a favor” da milícia, lembrando a boa aceitação desta com a opinião pública – a exemplo das falas de políticos antigos, como Cesar Maia, que afirmavam que esse sistema era a autodefesa da sociedade. Até a população geral a abraçava, graças ao modus operandi típico das organizações mafiosas pelo mundo, que apresentam um braço assistencialista e outro de terror, equilibrando caos e uma falsa atenção aos necessitados, em práticas puramente demagógicas.

    Toda a mudança na arquitetura da cidade é registrada pelas lentes, com a poluição visual e física causada pelos estandartes e santinhos, especialmente nas áreas periféricas da Zona Norte e Oeste. Como é destacado pelo próprio biografado, há um monopólio de informação, já que só há um jornalzão carioca, O Globo, do grupo de Roberto Marinho, que obviamente privilegia uma fatia de candidatos que estão na posição à direita. É neste ponto que mora o maior problema do filme, o qual repete um dos inconvenientes da esquerda, que secularmente fala a favor dos pobres e incautos, mas que não consegue ser plenamente entendida por estes, já que a sua fala é pomposa, não nem um pouco popular, emulando o traquejo de Freixo.

    As formas de comunicação utilizadas pela campanha do PSOL foram, em sua maioria, via internet, já que a massa começou a consumir o conteúdo digital. A tentativa do partido em ser pioneiro se deu não só em método político, mas também em divulgação, por meio de colaboração não comissionada. Se a ingenuidade prevalece em grande parte dos colaboradores de Marcelo, há uma estreita vontade de mudança, uma não consensual mudança, uma mudança que não prevê apoio daqueles que torturaram a máquina pública e o seu povo, que opta por revidar as injustiças que sofre há muito tempo, não com ódio, mas sim com uma tenaz esperança, que ganha corpo com a candidatura ética do deputado.

    A câmera passeia por vias laterais, mostra um lado de Freixo um pouco diferente do exibido na campanha, mas que guarda muito mais semelhanças entre rotina e discurso do que a maior parte dos políticos brasileiros, já que as causas e bandeiras populares presentes na fala do então candidato se refletem na sua privacidade, mesmo na banalidade do seu dia a dia.

    A sensação após o resultado final do primeiro turno, que sinalizava a não realização de um segundo certame, não foi abraçada pelo combatente e por seus partidários como um revés, já que a mudança da postura do povo parecia algo maior, assim como a postura da parcela mais jovem da população. As limitações e precariedades da campanha ajudaram a unir os que participaram da campanha. Abraçados pelo povo, por aqueles que se sentiram parte daquela jornada, não só por votarem naquela legenda, mas também por espalharem a mensagem de que nenhum adversário deveria ser tão respeitado e que não pudesse ser derrotado. A direção de Chevalier-Beaumel, apesar de fugir bastante do escopo fundamental ao escolher um viés um bocado utópico do pensar político, ao menos prima por um belo sentimento, focado na transparência do postulante revolucionário, que, nas últimas eleições, foi o mais votado de seu segmento no Rio de Janeiro, e que parece crescer em popularidade para uma possível candidatura à prefeitura da cidade em 2016.

  • Crítica | Isolados

    Crítica | Isolados

    Produções brasileiras de terror ou suspense são, normalmente, associadas a décadas passadas graças ao prestígio do personagem Zé do Caixão, idealizado e interpretado por José Mojica Marins. O bom momento do cinema brasileiro permite a exploração de outras temáticas além das tradicionais e repetidas narrativas, demonstrando que, ao se inspirar em estilos utilizados em obras de outros países, nosso cinema pretende se expandir e se consolidar.

    O gênero terror foi representado este ano por Quando Eu Era Vivo, adaptado da obra de Lourenço Mutarelli, e Isolados, com Bruno Gagliasso e Regiane Alves, em circuito no país. A trama segue à risca o modelo tradicional de narrativa de terror e acompanha um casal em uma viagem idílica de reconciliação. Se a trama é sempre um esboço comum, o que diferencia boas narrativas das más é a maneira como o horror é injetado e conduzido no roteiro. Neste gênero emotivo, o medo deve ser funcional. Logo, a trama tangencia dois estilos destas narrativas: o ambiente isolado e perfeito, que será destruído por alguma manifestação exterior, e a loucura vista sob os olhos da esposa com um histórico psiquiátrico notável.

    A tensão inicial é bem executada. No caminho para o local de descanso, o casal descobre que há um assassino na região. O ambiente envolto pela densa floresta aumenta a sensação de claustrofobia, enquanto o ambiente da casa transparece fragilidade. Uma construção repleta de janelas coloridas que, além de favorecer a iluminação, apresenta uma sensação constante de falta de privacidade. Após sofrer um ataque na floresta, o casal permanece preso na própria residência.

    Câmeras subjetivas são utilizadas em diversas cenas, como se vigias ocultos estivessem no exterior da casa. A maioria das cenas filmadas com um único foco de luz amplia a sensação de pânico, e tanto Gagliasso quanto Regiane Alves possuem apuro técnico para sustentar uma produção deste porte. Mas o roteiro falha na emoção primordial.

    Em entrevista, o também produtor Bruno Gagliasso confirmou que a intenção da obra é realizar um suspense made in Brazil com a qualidade técnica de filmes estrangeiros. Mas tentando aproximar-se tanto desta vertente, a produção também comete os mesmos pecados de longas-metragens contemporâneos de terror, que não fazem do medo o fio condutor da trama. Utilizando-se de um dos recursos  mais utilizados nos últimos anos, Isolados promove uma virada de roteiro que deveria causar maior impacto, mas que se torna falha, em boa parte por não conduzir apenas uma linha narrativa. Tentando equilibrar-se entre a loucura da esposa ao mesmo tempo que invasores externos ameaçam-nos, o enfoque argumentativo se perde.

    Isolados merece mérito por ser um filme de terror produzido no país. No entanto, assim como diversas produções americanas, não parece ter fôlego para permanecer na memória do público. De qualquer maneira, é um caminho interessante a ser seguido pelo cinema brasileiro e ainda marca a última produção de José Wilker, no papel de um psiquiatra.

  • Crítica | Tim Maia

    Crítica | Tim Maia

    De todos os tipos de produção em moda no cinema nacional atualmente, as biografias têm sido um dos mais utilizados. Em grande parte pela atração que o público brasileiro sente por grandes nomes e grandes feitos somados a narrativas novelísticas, o cinema nacional tem produzido várias obras sobre importantes figuras do cenário artístico brasileiro, resultando em produções que geralmente possuem as mesmas qualidades e defeitos.

    A produção de 2014 do diretor Mauro Lima, sobre a vida do cantor brasileiro Tim Maia e baseada no livro de Nelson Motta, reflete bem essa dualidade do cinema nacional. Tim Maia é interpretado enquanto jovem por Robson Nunes e adulto por Babu Santana. Ambas as interpretações são boas e convincentes no papel do polêmico cantor, com destaque para Babu Santana e sua semelhança física com Maia. Também estão no longa vários outros atores globais conhecidos do grande público brasileiro, como Alline Moraes no papel de Janete, esposa de Maia, e Cauã Reymond no papel do amigo Fábio, dentre outros.

    O tom do filme segue uma narrativa clássica de biografia, começando pela infância pobre de Sebastião Rodrigues Maia na Tijuca, entregando marmita para sua mãe e sofrendo os efeitos do racismo da sociedade brasileira por ter menos oportunidades que seus amigos brancos. Ao crescer, o jovem Maia, vendo toda essa desigualdade, acumula uma raiva, que, somada a seu gênio forte, irá causar várias das situações complicadas com as quais lidará em sua vida pessoal e profissional.

    A narração do filme, feita por Reymond, é um dos elementos que mais se destaca negativamente, não só pela narração em si, mas pelo tom quase de leitura de folheto de missa que o ator faz, sem acrescentar emoções ou informações relevantes à história. Por várias vezes, a narração simplesmente descreve o que estamos vendo em tela.

    Porém, se antes sofríamos com a baixa qualidade técnica das produções, atualmente esse não é mais um problema. Em vários dos filmes nacionais lançados recentemente, a qualidade de imagem, captação de som, enquadramento, figurino, maquiagem, dentre outros, cada vez mais se torna um nível de excelência, o que deveria favorecer o surgimento de novas produções de qualidade, já que essa tecnologia está cada vez mais acessível. Mas, infelizmente, as grandes produções ainda estão submetidas ao padrão Globo, e as produções alternativas ainda se encontram fora dos circuitos e do acesso da maioria da população.

    O filme também utiliza-se de um vício muito comum no cinema nacional, que é o apelo ao humor fácil usando situações engraçadas, muitas vezes com um tom artificial, e o abuso de palavrões para arrancar risos do espectador. Porém, nem mesmo esse artifício resiste à enrolada trama. Se o primeiro ato possui passagens muito bem filmadas, como a da briga, filmada em preto e branco e em câmera lenta, de Maia com um integrante da banda, nos outros dois o filme se perde em meio a tantos personagens e idas e vindas na vida do artista. O que parece é que a vida de Maia é tão complexa que nem mesmo o diretor conseguiu acompanhá-la nas filmagens.

    O padrão Globo também é uma das razões pelas quais a narrativa se torna tão conservadora e fechada, tornando a experiência de acompanhá-la um tanto quanto enfadonha, como usar muito tempo de tela para aprofundar relações que são secundárias, como a de Maia com Roberto Carlos (George Sauma). A duração do filme é um de seus principais problemas. Os 140 minutos se tornam totalmente desnecessários não para contar a história da vida do artista, grande e complexa, mas para mostrar a visão que Mauro Lima quis. Várias polêmicas a respeito da fidelidade do filme sobre a trajetória de Tim Maia foram levantadas por seus amigos e parentes, mas, como obra de ficção e adaptação, a questão a ser levantada não é essa, mas sim como uma história de 140 minutos poderia ser facilmente condensada em 90 ou 100 minutos.

    Ao retratar a vida adulta do cantor, mergulhado no consumo autodestrutivo de drogas e álcool, cujo problema, somado a sua personalidade problemática, acaba por afastar amigos e família, o filme dá um salto na história tentando compensar o tempo desperdiçado anteriormente. Se perdemos vários minutos acompanhando o cantor seguindo Roberto Carlos por São Paulo, subitamente sua vida pula vários anos: de um fundo do poço da carreira a uma mal explicada volta por cima, e de repente, morte.

    Em resumo, como figura história, polêmica e importante no cenário musical brasileiro, Tim Maia merecia ter sido retratado de forma mais objetiva. As escolhas de Mauro Lima tentam mostrar o lado problemático do cantor, mas acabam se perdendo em meio à complexidade do personagem, resultando na confusão da linha de condução da história, o que o diretor parece perceber e tentar consertar, sem sucesso, em seu final. Falta ao cinema nacional aprender a sair desse emaranhado de limitações artísticas e começar a se movimentar no sentido de produzir boas obras biográficas.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

    Compre aqui: Tim Maia: Vale Tudo – Nelson Motta.

  • Crítica | November Man: Um Espião Nunca Morre

    Crítica | November Man: Um Espião Nunca Morre

    A experiência acumulada após muitos anos de trabalho de campo conferem a Peter Deveraux, um afastado agente da CIA, a qualidade de ser o espécime perfeito para o drama mostrado em November Man – Um Espião Nunca Morre. A sensação de deja-vu causado pela figura de Pierce Brosnan insere o público de modo quase automático, apesar de trazer ecos desnecessários para a fita, em sensações que deveriam ficar bastante distantes dos dias em que o ator vivia James Bond. O estigma segue o britânico, apesar de seus outros dotes dramatúrgicos.

    Peter é escalado para realizar uma difícil tarefa, que envolve um antigo pupilo seu, ao mesmo tempo em que resgata o medo vivido na época da Guerra Fria, mas igualmente atual, especialmente se pensar na situação da Ucrânia e Donetsk. Aos poucos, os reais desígnios de Devereaux são revelados, envolvendo a figura máxima no estado de poder russo, rememorando os tempos quando 007 era vivido por Sean Connery e Roger Moore.

    Acostumado a trabalhar com filmes de ação dos mais genéricos e contendo alguns pequenos clássicos no currículo (A Experiência e A Fuga), Roger Donaldson executa uma fita que lembra alguns dos aspectos de cenário e fotografia de Paul Greengrass, claro, sem a câmera na mão que lhe era peculiar, mas com uma crueza bastante semelhante nas cenas de perseguição cuja iluminação estourada faz perder qualquer traço de boa  comparação com a trilogia Bourne.

    Outra semelhança notável é o uso da ultra tecnologia, que faria inveja a quaisquer inventos de M. O início do filme faz pensar como seria uma aventura de Bond se fosse conduzido por um diretor “modernoso”, como Luc Besson ou por um alguém mais genérico e com menos talento, como Stephen Sommers.

    O roteiro logo trata de conduzir o público a uma vingança pessoal, assassinando uma pessoa querida ao protagonista, que assiste incólume aos seus antigos mandatários deixarem sua funcionária perecer, somente por questionar suas ordens. O grupo de conspiradores se mostra desunido e sem a certeza de quais seriam seus alvos, tampouco havia clarividência de quais seriam os aliados seguros e Mason (Luke Bracey) era o que mais dava mostras dessa incerteza. Este aspecto reforça a ideia de remitência a Guerra Fria, um complicado período onde até a sombra de um homem poderia lhe fazer mal.

    A impressão de que November Man é uma colcha de retalhos, que repete alguns dos bons elementos dos filmes de espionagem recentes só aumenta no decorrer da sua exibição. No entanto, o marasmo pertence a metade de sua extensa duração. A tentativa de quebra de monotonia é levada por um embate entre mentor e discípulo, que até guarda momentos de violência que não chegam a ser nem extremos, nem de qualidade indiscutível. As sequências de ação, que deveriam ser um ponto alto são executadas de modo preguiçoso e engessado, um pouco graças a avançada idade de Brosnan, muito piorada pela equivocada direção de Donaldson, que não consegue esconder sequer os defeitos de seu astro principal.

    Nem mesmo a exploração da beleza de Olga Kurylenko é bem executada, tampouco sua intricada e trágica tradução é bem orquestrada ou aproveitada. As soluções do roteiro no último ato são infantis e tão enfadonhas quanto o meio do filme, não acerta nem sob a ótica escapista e nem pela realista. Vingança, reunião de almas aflitas e a sobrevivência dos heróis – tudo isto é completamente banalizado pela fraca abordagem dada ao filme, por seu caráter de remendo mal feito e de prato servido de modo insosso.

  • Crítica | O Homem Mais Procurado

    Crítica | O Homem Mais Procurado

    A narrativa investigativa de espionagem necessita de uma percepção histórica e realista para ser funcional. Não que seja impossível realizar uma trama em um mundo ficcional. Porém, há maior coerência em inserir uma ficção em um contexto real, principalmente para que o leitor compreenda as nuances envolvidas além da narrativa.

    Desta maneira, escritores de thrillers políticos exercem uma manipulação histórica para inserir seus personagens. A obra de estreia de Ken Follett, O Buraco da Agulha, utiliza a tensão da Segunda Guerra Mundial para acompanharmos um espião alemão infiltrado. Além da narrativa conduzida com cuidado, parte da força da trama deve-se ao fato de compreendermos este embate. John Le Carré, autor de O Homem Mais Procurado e de outras obras adaptadas recentemente aos cinemas, como O Jardineiro Fiel e O Espião Que Sabia Demais, acompanhou movimentos históricos durante suas obras e analisou diversas tensões políticas no decorrer do tempo, demostrando-se capaz de realizar romances contemporâneos de espionagem.

    O Homem Mais Procurado, dirigido por Anton Corbijn, se passa após os ataques de 11 de setembro desferidos contra os Estados Unidos. A trama desenvolve-se na Alemanha e demonstra o olho vigilante das agências governamentais a respeito de qualquer cidadão do Oriente Médio que adentre o país. Imigrante de origem chechena, Issa Karpov entra ilegalmente no país após ser torturado na Rússia em razão de informações terroristas das quais provavelmente tinha posse. Sua intenção é resgatar uma herança deixada pelo pai em um tradicional banco alemão. Ao ser identificado por agentes de espionagem, sua presença é considerada um alerta como um potencial terrorista.

    Realizar uma investigação é um processo lento. É uma tentativa de construir uma narrativa com bases em pistas e pequenos elementos. Requer observação, análise e uma percepção de imaginário forte o suficiente para pressupor uma trama maior do que simples acontecimentos podem mostrar. Além de exigir recursos financeiros e uma equipe capaz para realizar um bom serviço.

    Interpretado por Philip Seymour Hoffman, em um de seus últimos papéis para o cinema, Günther Bachmann é o principal investigador de possíveis terroristas em solo alemão. Cabe a ele recolher provas que justifiquem a prisão de indivíduos ou conduzi-los a acordos para descobrir terroristas com maior graduação na cadeia de comando. Entre as tensões governamentais, mantém a responsabilidade em operações sigilosas de investigação. A trama possui uma referência real de um caso de um turco preso pelos Estados Unidos e levado à prisão de Guantánamo. Porém, mesmo se o argumento fosse ficcional, representaria de maneira apropriada a visão governamental acerca do terrorismo. Um cerco agressivo e interventivo em diversos países do Oriente Médio, batizado pelos americanos como guerra ao terror, como se não houvesse nenhum denominador específico por trás desta cruzada.

    A percepção realista da história se expande além da investigação, focando três núcleos interligados: a investigação governamental que transforma Karpov em um provável terrorista; uma organização não governamental liderada pela advogada Annabel Richter (Rachel McAdams), que luta a favor dos diretos do imigrante; e o banqueiro Thomas Brue (Willem Dafoe), dono da instituição em que o pai da personagem acumulou sua poupança.

    Representar três personagens com objetivos e visões diferentes inseridos em um mesmo sistema dá maior profundidade à trama. Além da investigação taxativa, conhecemos como a prevenção investigativa pode julgar equivocadamente grupos e etnias e de como, para a maioria de grupos mundiais, ilegais ou não, é necessário o investimento de capital, por isso a necessidade de grandes empresários ou banqueiros que trabalhem no fronte como financiadores. Elementos que equilibram a trama, que ainda consegue analisar a figura do investigador central.

    A interpretação de Hoffman é ponderada, sem extremos de tradicionais espiões cinematográficos. Estressado com políticas internas e a tensão de ser bem-sucedido em sua missão, a personagem vive à beira de um colapso. O roteiro de Andrew Bovell apresenta a competência do espião, como também mostra sua dedicação ao trabalho, sem uma vida social além dele. Um estilo depressivo que o ator sempre soube explorar muito bem em sua carreira em interpretações carregadas de vazios e silêncios. A capacidade de  Günther em alcançar seus objetivos e usar os recursos que possui entrelaça as personagens. Como parte de um jogo maior, todos tornam-se peças de um tabuleiro em que o jogador oponente é um ser invisível, um sistema de governo apoiado em interesses próprios.

    Duas linhas narrativas, com pontos de partidas contrários: o drama microscópio do espião e o processo geral de governos e nações para eclodirem em um excelente ponto de equilíbrio capaz de representar em uma história uma vertente do sistema político em que tudo pode ser considerado um ponto de observação e, possivelmente, descartado após uso.

    Compre aqui: O Homem Mais Procurado – John Le Carré

  • Crítica | Vlado: 30 Anos Depois

    Crítica | Vlado: 30 Anos Depois

    vlado - 30 anos depois

    O filme de João Batista de Andrade usa a memória do dia 25 de outubro de 1975 para aplacar o sentimento da perda de um amigo e exemplificar qual seria o primeiro passo do declínio da Ditadura Militar no Brasil, apesar de não mostrar as imagens do medo, dos militares e dos aparelhos usados para reprimir seus inimigos. A narração dá um toque de perfeita pessoalidade, acompanhada do montante de fotos que ajudam a pintar a figura de Vladimir Herzog para uma geração que possivelmente não conhece a sua história.

    Os depoimentos dos entrevistados mostram uma figura fina, educada e muito cara a todos que o envolviam. Sua boa escrita ajudou não somente a falar sobre o Brasil e abordar a ética, mas também tinha a função de informar os amigos que estavam fora do país no período de recrudescimento da ditadura.

    Mais aviltante ainda é a fala do povo, que não percebe a história e currículo de Vlado, não sabendo quase nada sobre sua existência e menos ainda sobre a ditadura, ainda que alguns, munidos desse mesmo desconhecimento, hoje afirmem seu desejo de retornar a este governo. O infortúnio de Herzog seria ironicamente ligado à entropia de viajar de volta ao seu país poucos dias após a instituição do AI-5, fazendo dele uma figura bastante visada.

    A câmera passa por momentos emotivos de Vladimir, como seu casamento e seu ingresso a TV Cultura e à revista Visão. Obviamente, o foco maior é o começo dos eventos prisionais, que exibiam toda a crueldade dos militares com os seus “convidados” especiais. Num dos relatos, destaca-se o fato de que a vestimenta dos encarcerados não incluíam cadarços, linhas ou cintos, nada que pudesse produzir amarra, o que claramente desmentiria o suicídio do jornalista, em cuja foto estaria a “prova” do crime.

    A sensação de desmoronamento emocional é constante na vida dos que foram torturados; não foram percepções que permaneceram somente durante as horas em que os militantes eram maltratados. As marcas ficaram, as almas tocadas jamais foram as mesmas. Os métodos utilizados na Alemanha Nazista e no Estado Novo eram reprisados como um modo de atacar o emocional dos divergentes, numa tática nefasta e mecânica, calculada para abater sistematicamente mas que, analisada sob a visão atual, só demonstra a vergonha de quem acometeu o país e que ainda segue impune.

    Os registros do corpo de Vladimir nu, preso ao pau de arara, só não eram mais chocantes do que as falas dos torturadores aos jornalistas e amigos do militante, que saberiam, naquele momento, da morte do sujeito. A desculpa era de que Herzog atuava como agente da KGB, o que, obviamente, era uma mentira descabida.

    Um dos fatores preponderantes para a abertura do Regime foi a morte de Herzog e toda a falácia a respeito do encerramento de sua vida e do suposto suicídio, tanto para o realizador do documentário como para cada um dos mostrados pela câmera. Esse seria o principal motivo para que a morte de Vlado não fosse em vão. O Rabino Henry Sobel até decidiu localizar o túmulo do jornalista fora da área destinada aos suicidas, no Cemiterio Israelita do Butantã, ainda em 1975. No ano seguinte, inquéritos foram exigidos por meio de documentos assinados por membros do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, numa mostra de que a classe e o povo estavam ao lado de Vlado e de sua memória.

  • Crítica | Batman Eternamente

    Crítica | Batman Eternamente

    O sucesso de Batman e Batman – O Retorno, dirigidos por Tim Burton, não impediu o descontentamento por parte da Warner, incomodada com o resultado da bilheteria da segunda produção, aquém do esperado pelo estúdio. A fotografia escura e tradicional do diretor, além da violência em cena, foi motivo que inspirou uma nova leitura do Morcego nos cinemas, com Burton delegado à função de produtor, e Joel Schumacher, escolhido para assumir a cadeira de direção.

    Para compreender o sucesso de Batman Eternamente, devemos observar a época de seu lançamento. Em 1995, o Morcego era o único herói nas telas em um período em que não havia uma demanda cinematográfica favorável aos quadrinhos. A popularidade de Batman foi suficiente para atrair o público, mas é difícil levar a produção a sério e não imaginá-la como um diálogo explícito com a série sessentista.

    Desde a primeira cena, é notável a transformação do ambiente. As cenas são iluminadas, e há uma comicidade que anteriormente existia somente em comentários pontuais. Na cena de apresentação do herói, não há traço de verossimilhança quando, em resposta a Alfred e ao jantar, Batman informa ao mordomo que comerá em algum drive thru. Como se a personagem risse de sua própria concepção.

    Devido ao rumo diferente desta produção, Michael Keaton declinou o convite para retornar como o personagem, e coube a Val Kilmer vestir o manto, em uma interpretação que nada acrescenta ao personagem. Se Keaton apresentava um Batman/Wayne correto e um pouco inócuo, Kilmer funciona como um chamariz para o público feminino.

    O vilão Coringa, apresentado no primeiro filme e, nesta cronologia, responsável por matar os pais de Batman, não é citado. Uma nova origem é apresentada e sem confirmá-lo como assassino. Uma prova de que não só as origens dos quadrinhos são frágeis como também, conforme o desejo dos roteiristas, passam por modificações ou atualizações. Desta vez, dois novos vilões são introduzidos na trama: Duas-Caras e Charada, porém somente acompanhamos a trajetória de origem de um deles. Interpretado por Tommy Lee Jones, o promotor Harvey Dent está transformado em Duas Caras, mas sem nenhuma explicação além da inferência de que a mudança aconteceu há aproximadamente dois anos. Quem se transforma em cena é Edward Nigma, um empregado das empresas Wayne que, após uma experiência mal sucedida e rejeitada por Bruce Wayne, transmuta-se no exagerado Charada. Além dos vilões, um novo interesse amoroso surge para Wayne no papel da psiquiatra Chase Meridian (Nicole Kidman), obcecada pela figura do Cavaleiro das Trevas. O excesso no elenco piora quando entra em cena Dick Grayson, o órfão que se torna Robin, o sidekick do Morcego.

    Se já não bastasse a quantidade exagerada de personagens em cena e um roteiro que não os desenvolve ao menos de maneira satisfatória, comentários dizem que Jones e Carey não conheciam a essência de suas personagem e não procuraram leituras a respeito. Comentam que Jones foi orientado pelo diretor a seguir o estilo de Carey e seu Charada, um motivo coerente para explicar tanta afetação em dois vilões. Duas Caras parece acompanhar literalmente o estilo histriônico de Charada, e, além de mostrar uma descaracterização da figura de vilão, a dupla não parece em nenhum momento ameaçadora.

    O plano estabelecido para destruir a cidade é um recurso digno de produções antigas vindas de uma visão de mundo maniqueísta. Um sistema inserido na televisão que extrai os pensamentos da população de Gotham City. Outro aspecto em que é impossível não se recordar das estratégias de roteiro Soc! Tum! Pof! do seriado com Adam West.

    Se considerarmos o pastiche cômico e essa referência clássica, a produção pode ter certo valor como uma visão alternativa do Morcego, mas não como obra cuja intensão era se tornar sequência cinematográfica do bom ponto de partida estabelecido por Burton.

    Dentro das situações propostas, nada parece bem desenvolvido. Duas-Caras e Charada são exagerados, e a presença de Robin não chega a ser um definitivo estrago final, até porque os personagens contracenam apenas nas cenas finais. No entanto, parece um argumento precipitado. Assim como nas demais interpretações, Chris O´Donell também está exagerado e nos entrega algumas cenas que passam do limite de qualquer constrangimento ou riso.

    A direção de Schumacher é espantosamente errada. Gotham transformou-se em um cenário falso, misturado com luzes exageradas, como uma festa rave eterna. Não há frame que não contenha ao menos duas cores aberrantes em cena. Se a concepção era fazer uma Gotham diferente, acertaram em cheio, mas com exagero grotesco. Talvez a concepção da cidade fosse propositadamente abusiva nos elementos sensoriais, como um grande município. Mas nada justifica um local que não pareça em nada com uma metrópole real.

    Vista hoje, parece impossível compreender como a obra conseguiu se destacar e fazer sucesso na época, com bilheteria de 336 milhões. Triste é saber que este ainda não seria o momento mais baixo do Morcego. A seguir, veríamos uma Batgirl, mais uniformes com mamilos em relevo e um Batcard para qualquer momento de necessidade.

  • Crítica | Inatividade Paranormal 2

    Crítica | Inatividade Paranormal 2

    Ao contrário do que ocorria na outra saga paródica em que Marlon Wayans estava envolvido – Todo Mundo em Pânico – o começo do segundo filme de Michael Tiddes inicia-se após um acidente, que teria ocorrido logo após os acontecimentos mostrados nos instantes finais de Inatividade Paranormal, unicamente para ter todo o plot abandonado, minutos após, com um chancela de “passado um ano depois”. Malcolm (Wayans) aparece em outra vizinhança, capitaneando um família branca, novamente com seus registros videográficos engraçadinhos.

    O fato de Jaime Pressly interpretar Megan é somente um pretexto para existir uma gama cada vez mais crescente de piadas raciais, reforçando estereótipos que só não são mais incômodos do que o over-action de Wayans. São momentos de puro constrangimento, seja nos lamentos pela morte de seu cão, seja nas brincadeiras sexuais com uma versão de Annabelle que reprisa cenas do primeiro filme. Demonstra-se, assim, que o ineditismo passa longe da obra, pois não seria somente o formato que coincidiria, mas também algumas das piadas.

    Logo, o roteiro de Wayans e Ricky Alvarez trata de inserir as inconfidências de Malcolm como catalizadores dos fantasmas que voltam a assombrá-lo, inserindo cenas em que ele literalmente explica os motivos de ter mais câmeras pela casa, para, caso algum dos espectadores não tenha notado, fazer perceber que, naquele momento, tudo está lá, direitinho. As paródias com Invocação do Mal revelam uma verdadeira obsessão com os filmes de James Wan, uma vez que Sobrenatural foi um dos principais alvos de paródia do primeiro filme.

    Os fantasmas emocionais do passado do protagonista retornam através de sequências fracas, cujo humor é de baixo nível mesmo para os acostumados a paródias de humor rasgado e a piadas com flatulências. Todas as desculpas possíveis para que os atores do primeiro filme retornem são utilizadas, cada uma com a sua justificativa esdrúxula, tendo em nenhuma delas o necessário para proporcionar um momento realmente hilariante.

    As cenas que focam monólogos são excessivas e até garantiriam alguma graça ao filme, caso as piadas fossem melhor pensadas. O freak show é ainda repleto de piadas racistas, especialmente as protagonizadas por Cedric the Entertainer. A fita não consegue acertar nem quando repete os mesmos elementos dos filmes mais antigos dos irmãos Wayans, nem as caretas de Marlon, tampouco as cenas da refilmagem dos momentos clássicos dos filmes de terror são bem filmadas. A falta de originalidade do roteiro – algo já esperado – consegue atormentar menos o público do que o péssimo modo de filmar de Tiddes.

    O temor pelos dias que virão se agrava, com o gancho, mostrado ao final do filme, cometendo um autoplágio tão desnecessário quanto a duração dos dois filmes até agora realizados pelo time Wayans/Alvarez/Tiddes. O preocupante é que filmes como este ainda possuem um público cativo, o que chama a atenção para o estado de saúde mental da população mundial.